A relação entre religião e pragmatismo em Richard Rorty

September 9, 2017 | Autor: André Donadia | Categoria: Religion, Pragmatism, Richard Rorty
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA

ANDRÉ OLIVA DONADIA

A RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM RICHARD RORTY

VITÓRIA 2013

ANDRÉ OLIVA DONADIA

A RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM RICHARD RORTY

Monografia apresentada ao Colegiado do Curso de Filosofia como requisito para conclusão do curso de graduação em Licenciatura de Filosofia. Orientador: Prof.º Dr.º Marcelo Martins Barreira.

UFES Vitória - Espírito Santo 2013

ANDRÉ OLIVA DONADIA

A RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM RICHARD RORTY

Monografia apresentada ao colegiado do curso de Graduação em Filosofia do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito para conclusão do curso de Licenciatura em Filosofia. Aprovada em ___ de ___________ de 2013.

COMISSÃO EXAMINADORA

__________________________________ Prof.º Dr.º Marcelo Martins Barreira Universidade Federal do Espírito Santo Orientador

__________________________________ Prof.º Universidade Federal do Espírito Santo Membro da Banca

__________________________________ Prof.º Universidade Federal do Espírito Santo Membro da Banca

Aos meus pais.

Agradecimentos Agradeço muito especialmente ao meu orientador, professor Marcelo Martins Barreira, pela imensa paciência, disposição e competência que foram decisivos para a feitura desse trabalho; Aos meus familiares, por sempre acreditarem em mim e me apoiarem de todas as formas possíveis e necessárias; Aos professores e funcionários do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo, pelos ensinamentos, experiências e apoio prestados em minha vida acadêmica.

“Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deus quis que não conhecêssemos, Por isso não se mostrou...” (Alberto Caeiro)

“A respeito dos deuses, não estou em posição de saber nem se existem, nem se não existem, nem quais são: efetivamente, muitas coisas impedem de saber; não só a obscuridade do problema mas a brevidade da vida humana.” (Protágoras)

RESUMO

Fundamentado na obra Filosofia como Política Cultural de Richard Rorty (1931-2007), o presente trabalho tem como objetivo analisar o modo como o filósofo entende a relação entre pragmatismo e religião e, com isso, indicar uma leitura possível do fenômeno religioso a partir de uma visão pragmática. Tal visão se revela como uma possibilidade alternativa às teorias dogmáticas e se fundamenta na necessidade de uma cultura de diálogo para a comunidade religiosa atual. De modo específico, almeja-se na pesquisa lançar luz sobre como a religião vem sendo trabalhada nos discursos filosóficos atuais. Palavras-chave: Fenômeno religioso; Pragmatismo; Rorty; cultura do diálogo.

Conteúdo INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8 1.

RICHARD RORTY: ASPECTOS BIOGRÁFICOS E FILOSÓFICOS ............................. 9

2. RORTY E A RELIGIÃO NO CONTEXTO PÓS-METAFÍSICO ...................................... 13 3. A DISTINÇÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO ....................................................... 17 4. O PRAGMATISMO DE RORTY E A RELIGIÃO ............................................................. 24 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 32 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 34

8

INTRODUÇÃO Desde os escritos de Hegel e Nietzsche a concepção de verdade moderna, que assegura que a verdade é adquirida por meio de um processo de “descoberta”, i.e., uma verdade universal e atemporal, vem sendo substituída pela noção de “verdade historicamente situada”. Assim, se antes a noção de verdade era a de adequação das representações mentais dos indivíduos com os objetos do mundo, o que por sua vez permitiria juízos universais a-históricos, agora é posto de outro modo: a verdade é historicamente construída, i.e., estabelecida em um contexto. Nesse sentido, no lugar da “verdade como adequação à realidade”, tem-se agora a “verdade como construção social”. Uma vez que os critérios para o estabelecimento da verdade são postos pela linguagem e, ainda, sendo a linguagem estabelecida de forma social e histórica, vale ressaltar a nãoneutralidade dos discursos que almejam fundamentar algum tipo de verdade, seja ele o discurso científico, filosófico, político, religioso, etc. Entretanto, de modo especial para o âmbito do religioso, o enfraquecimento da noção de “verdade enquanto adequação” em prol de uma “verdade histórico-situada” gera questões filosóficas complexas. É nesse sentido que se pode questionar: no mundo contemporâneo, com a existência de discursos religiosos variados, bem como de fundamentalistas e extremistas existentes dentro da prática religiosa, como adequar um critério de verdade situado histórico e socialmente? Como se evitar a queda em um relativismo ético-religioso, no qual todos os discursos são válidos e devem ser aceitos? Uma das respostas a essas questões pode ser encontrada no pragmatismo, corrente filosófica iniciada no final do século XIX e amplamente difundida e aprofundada no século XX. Dentro do pragmatismo atual, Richard Rorty (1931-2007) se encontra em um patamar de grande relevância, principalmente por seu vínculo teórico com a ótica pós-metafísica, que se apresenta como uma abordagem alternativa aos discursos filosóficos tradicionais de viés moderno que são usados para se analisar o fenômeno religioso. Nela, o filósofo apresenta propostas atípicas da filosofia tradicional, sobretudo das correntes de vertente moderna, como o hegelianismo e as teorias influenciadas por Kant, e argumenta que o debate sobre o religioso deve ser fundamentado sobre conceitos práticos, i.e., levando em consideração as consequências práticas do ato religioso para, só assim, se pensar no critério de veracidade: o critério passa agora a ser o que é útil para a sociedade.

9

Assim, fundamentado na obra Filosofia como Política Cultural de Richard Rorty, o presente trabalho tem como objetivo analisar o modo como o filósofo entende a relação entre pragmatismo e religião, possibilitando assim uma leitura do fenômeno religioso na cultura pós-metafísica ocidental a partir de uma visão pragmática. Tal visão se revela como uma possibilidade alternativa às teorias dogmáticas e se fundamenta na necessidade de uma cultura de diálogo para a comunidade religiosa atual. . De modo específico, almeja-se na pesquisa lançar luz sobre como a religião vem sendo trabalhada nos discursos filosóficos atuais.

1. RICHARD RORTY: ASPECTOS BIOGRÁFICOS E FILOSÓFICOS

Antes de se adentrar nos pormenores da questão tratada na pesquisa, a saber, a relação entre religião e pragmatismo em Richard Rorty, crê-se que um breve comentário sobre a vida e o pensamento do filósofo pode fomentar ainda mais a pesquisa, servindo de referência para algumas considerações que poderão ser postas posteriormente. Assim sendo, parte-se agora para a análise da vida do filósofo. Nascido no dia 4 de outubro de 1931, na cidade de Nova Iorque, Richard Rorty sempre presenciou em sua vida os debates sobre política, sobretudo por intermédio de seus pais, intelectuais de esquerda influenciados pelo liberalismo político. Na juventude, estudou Filosofia na University of Chicago, tendo concluído seu bacharel no ano de 1949. Nesse período, teve professores renomados e consagrados na filosofia analítica do século passado, como Rudolf Carnap (1891-1970)

1

e Charles Harsthorsne (1897-2000) O contato com

grandes nomes da filosofia analítica é um marco importante na filosofia de Rorty, sobretudo em seus primeiros escritos. Tal influência fez com que o filósofo, entre os anos de 1952 e 1956, escrevesse sua tese de doutoramento, intitulada The Concept of Potentialit (RAMBERG, 2009). Rorty iniciou sua atividade de docência no Wellesley College. Porém, em 1961, ele ingressou na Princeton University, renomada universidade na qual permaneceria por 20 anos. Após

1

Vale lembrar a importância de Rudolph Carnap para a filosofia do século passado. Como aponta Kyburg Jr. (1999, p. 118), Carnap foi um filósofo alemão naturalizado americano e um dos líderes do “Círculo de Viena” [Wiener Kreis], movimento que fundamenta o positivismo/empirismo lógico na filosofia. Carnap realizou contribuições fundamentais à semântica e a filosofia da ciência, bem como para a fundamentação da probabilidade e da lógica indutiva.

10

vários trabalhos em Princeton, Rorty ingressa como professor na Universidade da Virgínia, na qual permanecerá até o ano de 1998. Entretanto, um ponto curioso é que Rorty não se alocou no Departamento de Filosofia na Universidade da Virgínia, mas sim no Departamento de Literatura Comparada. Tal fato mantém relação com a crença do filósofo de que o ambiente acadêmico em que a filosofia se encontrava era pouco proveitoso ou útil para seus trabalhos, uma vez que sua filosofia encontrava vez ou outra resistência de seus companheiros de Departamento. Sobre os motivos da mudança de Departamento, Rorty explica:

Não, foi repulsa em vez de atração, isto é, o que eu queria era um trabalho que não fosse em um departamento de filosofia. Não me importava o tipo de emprego, desde que não tivesse mais de ir a reuniões de departamentos de filosofia. [...] Eu não tinha pensado em me mudar para a área de letras. Apenas recebi uma ligação do chefe do departamento, que precisava de alguém que ensinasse filosofia para alunos de pós-graduação em inglês

(RORTY, 2005, p. 79-80).

Em 1979, Rorty tornou-se reconhecido no meio acadêmico filosófico pela publicação de A Filosofia e o Espelho da Natureza (1979). Na obra, Rorty faz uma crítica fundamental à filosofia analítica. Tal como adverte Gutting (1999, p. 798) os comentários sobre a obra, tanto os positivos quanto os negativos, foram muitas vezes equivocados, porém não há dúvida de que o filósofo questiona pressupostos basilares de muitos filósofos anglo-americanos e, ainda, mostrou na obra afinidades da filosofia continental e da analítica para a resolução de certos problemas filosóficos.2 Na obra, o filósofo faz uma crítica severa ao modelo epistemológico moderno proposto por René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704) e Immanuel Kant (1724-1804), principalmente pela ambição destes em oferecer bases racionais para a aquisição de todo conhecimento possível (RORTY apud SOUZA, 2005, p. 39).3

2

Entende-se “filosofia continental” como a mudança gradual de pontos de vista filosóficos que no século XX desenvolveram-se na Europa Continental e que são notavelmente diferentes das várias formas de filosofia analítica que durante o mesmo período floresceu na filosofia anglo-americana. 3 Vale lembrar, tal como salienta Rorty, que a teoria dos três filósofos citados anteriormente se encontra relacionada na filosofia do século dezenove. “We owe the notion of a „theory of knowledge‟ based on an understanding of „mental processes‟ to the seventeenth century, and especially to Locke. We owe the notion of „the mind‟ as a separate entity in which „processes‟ occur to the same period, and especially to Descartes. We owe the notion of philosophy as a tribunal of pure reason, upholding or denying the claims of the rest of culture, to the eighteenth century and especially to Kant, but this Kantian notion presupposed general assent to Lockean notions of mental processes and Cartesian notions of mental substance” (RORTY, 1980, p. 4).

11

Segundo Ramberg (2009), para Rorty a epistemologia moderna não é apenas uma tentativa de legítima reivindicação para o conhecimento do que é real, mas também uma tentativa de reflexão filosófica que conta com o advento da nova ciência proposta nos séculos XVI e XVII. Como resultado dessa investigação, o conhecimento empírico-teórico tornou-se frutífero e, ainda, carregou em si normas aparentes e incontestáveis de progresso representando, assim, um desafio de legitimação de uma forma de pensamento perante o pensamento anterior. Nesse sentido, a epistemologia cartesiana é projetada para ser uma dessas tentativas de legitimação. Entretanto, Rorty (apud Ramberg) é cético quanto a isso: as dúvidas céticas como as de Descartes são feitas com a finalidade de preservar ao mesmo tempo um campo e uma posição/teoria filosófica. Assim, o objetivo de Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza é “[...] minar as hipóteses à luz de que esse projeto de dupla legitimação faça sentido” (RAMBERG, 2009). Assim, Rorty procurou em seu livro reavaliar noções modernas como “mente”, “conhecimento” e “fundações” [foundations] no sentido da teoria do conhecimento. Sobre isso, o filósofo adverte:

This book is a survey of some recent developments in philosophy, especially analytic philosophy, from the point of view of the antiCartesian and anti-Kantian revolution which I have just described. The aim of the book is to undermine the reader‟s confidence in “the mind” as something about which one should have a “philosophical” view, in “knowledge” as something about which there ought to be a “theory” and which has “foundations”, and in “philosophy” as it has been conceived since Kant (RORTY, 1980, p. 7).

Ressalta-se que, de acordo com Gutting (1999, p. 798), apesar das afinidades apontadas em A Filosofia e o Espelho da Natureza sobre a filosofia continental e a analítica, Rorty não pode ser enquadrado nem como um analítico (com exceção de sua clareza estilística) nem como “filósofo continental” (exceto por sua amplitude cultural). Sua visão é mais bem posta como “pragmática”, posição teórica contemporânea que retoma o modo peculiar de filosofar americano, anteriormente já posto por James, Peirce e Dewey. O pragmatismo de Rorty envolve diretamente uma crítica ao representacionismo que dominou na filosofia moderna de Descartes até o positivismo lógico.4 Vale lembrar que, de acordo 4

De acordo com Fumerton (1999, p. 514), o positivismo lógico é um movimento filosófico inspirado pelo empirismo e pelo verificacionismo na filosofia. Iniciou-se na década de 20 do século passado e floresceu durante

12

com o representacionismo, temos um acesso direto apenas a ideias que representam o mundo, não para o próprio mundo. A filosofia teria, então, o papel privilegiado de determinar os critérios para julgar que representação nossas são adequadas à realidade. Para Gutting (1999, 798), a principal justificativa de Rorty para sua crítica ao modelo representacionista em A filosofia e o Espelho da Natureza é, primeiramente, mostrar como este tem funcionado como pressuposto injustificado em clássicos modernos, como Descartes, Locke e Kant. Após isso, mostra como tal pressuposto é refutado por filósofos analíticos, tal como Wilfrid Sellars e Quine, mostrando assim que o representacionismo se mostra como um pressuposto incoerente para as teorias epistemológicas contemporâneas. Dado que, na visão de Rorty, representacionismo define o projeto epistemológico da filosofia moderna, a sua falha requer que abandonemos este projeto e, com ele, as pretensões tradicionais para um papel cognitivo privilegiado para a filosofia. Segundo Gutting (1999, p. 798) para Rorty, ao invés de se procurar um fundamento representacionista ou nãorepresentacionista, é condição suficiente para aceitar como justificadas aquelas com que a nossa comunidade epistêmica concorde - e a utilização de "verdade" como um termo honorífico de crenças que vemos como "justificadas ao máximo”. Segundo Gutting (1999), Rorty caracteriza a sua posição como "ironismo liberal”. Seu liberalismo é de um tipo padrão, tendo como valor básico a liberdade de todas as pessoas: primeiro, a liberdade do sofrimento, mas também a liberdade para formar suas vidas com os valores que julgarem mais atraentes. Para Gutting (1999, p.798), Rorty distingue a "esfera pública", em que todos compartilham o compromisso liberal de liberdade universal, da "esfera privada", na qual se encontra todo o trabalho de nossa própria concepção específica do bem. Seu ironismo reflete sua percepção de que não há fundamento para valores públicos ou privados que não o nosso profundo (mas contingente) compromisso com eles e sua apreciação da multidão de valores particulares. Rorty enfatiza a importância da literatura e da crítica literária, em oposição à filosofia tradicional, para fornecer aos cidadãos de uma sociedade liberal sensibilidades adequadas às necessidades e valores dos outros.

vinte ou trinta anos, enquanto filósofos se identificavam com tal corrente e classificavam suas teses como em concordância com o positivismo lógico. Posteriormente, muitas de suas doutrinas e teses centrais sofreram um ataque considerável na segunda metade do século passado. De certo modo, o positivismo lógico pode ser visto como um produto do empirismo radical e do atomismo lógico. A aceitação dos princípios lógico-positivistas fez com que os adeptos rejeitassem muitas questões sobre religião, moralidade e o tipo de filosofia que eles classificavam como metafísica.

13

2. RORTY E A RELIGIÃO NO CONTEXTO PÓS-METAFÍSICO

Na modernidade, algumas vertentes filosóficas proclamaram o “fim da religião”, principalmente aquelas correntes relacionadas de alguma forma com o ideal de progresso oriundo dos estudos científicos. O positivismo elaborado por Augusto Comte (1798-1857),5 por exemplo, teorizava que a história – seguida por um ideal de progresso racional e evolutivo – assegurava que a religião era um pensamento de tipo inferior que deveria ser substituído pela metafísica e, em sequência, pelo pensamento científico. Assim sendo, a religião tenderia “naturalmente” à extinção conforme o decorrer progressivo da história. Não obstante, Comte não foi o único a relegar a uma posição inferior. Karl Marx (18181883), em A questão judaica (1843), discutia sobre a necessidade da emancipação do Estado da religião, uma vez que esta última levava os indivíduos à alienação ao invés de prepará-los para o pensamento crítico. Entretanto, tal como afirma Calvez (apud Baleeiro, 2009, p. 54), não seria suficiente separar a religião do Estado, pois a alienação ainda estaria presente no âmbito privado podendo, assim, retornar na sociedade a qualquer momento. Contudo, a alienação seria para Marx apenas a expressão de uma alienação maior, que é a alteração da felicidade real para a ilusória, tal como afirma em Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Daí a afirmação: “A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo” (MARX, 2001, p. 4546). A crítica à religião não se restringe a Marx e a Comte. Em O futuro de uma ilusão (1974), Sigmund Freud (1856-1939), pai da psicanálise, estipula que a religião é uma ilusão ao relacioná-la com aquilo que ele denomina como “complexo de Édipo”.6 De acordo com

5

Augusto Comte foi um filósofo e sociólogo francês, fundador do positivismo. Em conformidade com o empirismo da época, Comte alegava que o conhecimento do mundo deriva da observação. Ele foi além de muitos teóricos empiristas ao renegar o a possibilidade do conhecimento dos objetos físicos inobserváveis. Comte concebeu o positivismo como um método de estudo baseado na observação e restrito aquilo que é observável (WEIRICH, 1999, p. 168, tradução nossa). 6 De acordo com Strickland (2001, p.464), o Complexo de Édipo é a teoria que defende que crianças estão divididas entre sentimentos de amor por um dos pais enquanto sente a sensação de competição com o outro. Foi primeiramente posta por Sigmund Freud como uma das possíveis causas das neuroses na vida adulta. Freud sugeriu pela primeira vez a existência daquilo que viria ser conhecido como “Complexo de Édipo” em sua obra A Interpretação dos Sonhos (1900). Nessa obra, ele descreve em crianças sentimentos inconscientes de intensa competição contra o pai do mesmo sexo, e sentimentos intensos de amor romântico pelo pai do sexo oposto. Ele sentiu que, se esses conflitos não fossem resolvidos com sucesso na infância, tal conflito poderia contribuir para neuroses na vida adulta. O nome "Édipo" refere-se a Édipo Rei, peça teatral clássica grego de Sófocles, que conta a história de Édipo, que é abandonada no nascimento por seus pais, Lauis Rei e Rainha Jocasta.

14

Baleeiro (2009, p. 55), a criança, que desde o nascimento mantém uma ligação com a mãe, mantém com o pai um sentimento ambíguo: o odeia por ser um indivíduo presente entre sua relação com a mãe, porém o adora por se sentir protegido por ele. Partindo dessas considerações, Freud faz relação da figura paterna com Deus, sendo a religião uma ilusão por esconder o desamparo humano. Não obstante, vale lembrar da passagem em que Freud afirma que toda pretensão de dar ao homem aquilo que a ciência não pode dar é ilusão (FREUD, 1974, p. 63). Apesar de tais críticas, que afirmam a condição “ilusória” da religião, percebe-se que o fenômeno religioso volta a ser estudado pela perspectiva pós-metafísica da filosofia contemporânea, principalmente por duas correntes teóricas distintas: a hermenêutica7 e o pragmatismo. No que diz respeito a Rorty, para contribuir no debate contemporâneo do campo religioso, o filósofo inspira-se em um importante pragmatista: William James (1842-1910). Para James, as concepções sobre o campo religioso deveriam ser fundamentadas a partir de critérios utilitários, defendendo que, “a crença certa a ser adquirida é sempre aquela que fará mais pela felicidade humana” (JAMES apud RORTY, 2009, p.22). Nesse sentido, James defendia que os crentes poderiam escolher qualquer crença religiosa e serem livres de qualquer tipo de constrangimentos. Segundo Marinho, “[...] o intuito maior [de James] é fazer a defesa do direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem que, por isso, seja condenado à alguma coação lógica do intelecto” (2012, p.31). Essa defesa é estimulada como uma grande influência que o desenvolvimento científico tinha alcançado no início do século XX. Dentro desse contexto, na qual a ciência ganhava cada vez mais importância na sociedade e seus resultados eram cada vez mais precisos, a fé religiosa era, muitas vezes, encarada como superstição retrógada. Segundo James, uma abordagem pragmática do fenômeno religioso proporcionaria uma atmosfera mais tolerante dentro da sociedade. Uma revelação religiosa não seria considerada

7

Segundo Bohman (1999, p. 378) no século XX, a hermenêutica é alavancada por Heidegger e Gadamer, radicalizando a noção de “círculo hermenêutico”, vendo-a como uma característica de todo o conhecimento e atividade. Hermenêutica é, então, já não o método das ciências humanas, mas o “método universal", e interpretação é parte do caráter finito e situado de todo o saber humano. A “hermenêutica filosófica" do século XX assume, portanto, uma postura crítica diante do fundacionalismo cartesiano na epistemologia e do universalismo iluminista na ética, e vê a ciência como uma prática cultural e com preconceitos como nãoeliminável em todos os julgamentos. Positivamente, enfatiza a compreensão como continuação de uma tradição histórica, bem como a abertura dialógica, em que os preconceitos são desafiados e horizontes alargados.

15

“menor” comparada a uma “verdade” científica, desde que se considere a utilidade dessas duas proposições. Pois, para James, os juízos intelectuais não são infalíveis e a consciência não nos dá certezas objetivas incontestáveis:

Ninguém deve proibir a cada um sua peculiar crença, nem zombar dela; pelo contrário, a liberdade mental deve ser profunda e cortesmente respeitada; só assim prosperará a república intelectual; só com tal espírito de íntima tolerância não será um corpo sem vida toda nossa bendita tolerância externa, orgulho do empirismo; só assim progrediremos tanto no mundo especulativo como no prático (JAMES apud MARINHO, 2012, p.33)

A defesa da religião era, para James, necessária, visto que ele entendia que a religião tinha um caráter benéfico para a sociedade como um todo. Nessa perspectiva, pode-se dizer que uma “característica do sentimento religioso é a sua capacidade de proporcionar alegria e otimismo, o que o tornaria útil e verdadeiro” (MARINHO, 2012, p.33-34). Entretanto, os critérios para a justificação de uma escolha de fé religiosa não são do tipo racionais. A fé religiosa teria como critério “valores” pragmáticos como, por exemplo, o de maximizar o bem para o maior número de pessoas. Portanto, o horizonte pragmático sobre a religião não tem um interesse em confrontar dogmas científicos com dogmas religiosos. Para James, os critérios para realizar um juízo de valor sobre a experiência religiosa seriam: “luminosidade imediata, „razoabilidade filosófica‟ e „prestimosidade moral' todos eles de caráter pragmático” (MARINHO, 2012, 34).

Nesse sentido o horizonte pragmático de James está preocupado com os resultados das proposições religiosas:

Assim, para James, é importante julgar a vida religiosa também, e principalmente, por seus resultados. A filosofia deve refletir acerca da utilidade moral da experiência religiosa e da relação de tal experiência para com o que acreditamos ser verdadeiro (MARINHO, 2012, p.34).

Para Rorty, houve uma época em que os bens culturais eram produzidos por diferentes instituições. Em uma época foram as religiões que forneceram à sociedade as “verdades” que traziam conforto. Posteriormente, a ciência foi incumbida de realizar tal tarefa. Entretanto essas instituições, segundo Rorty (CASTRO apud MARINHO, 2012, p.37), não são mais responsáveis por essa tarefa. “Assim, a religião não ocuparia mais o topo da relação dos bens

16

simbólicos, e a ciência teria sido secundarizada dessa posição em virtude de ter se tornado uma auxiliar da tecnologia e da indústria” (MARINHO, 2012, p.38) Esse fenômeno cultural trouxe algumas consequências, como a deflação dos dogmas, tantos científicos como religiosos. As verdades de cunho a-histórico perderam seu espaço dentro da cultura pós-metafísica e, assim:

[…] a dissolução da metafísica da ciência, possibilitou a existência de uma religião antiessencialista, movida por interesses privados, pessoais e que tenta realizar as palavras de João no Evangelho, quais sejam, Deus já não nos considera servos, mas amigos (MARINHO, 2012, p. 38).

Em uma cultura pós-metafísica, o papel da religião não seria mais o de fornecer verdades absolutas para seus seguidores: “o exercício religioso busca a religião como exercício da amizade entre Deus e o homem, livre das imposições institucionais” (MARINHO, 2012, p.39). É dentro desta perspectiva que Rorty faz a distinção entre o público e o privado, distinção importante para o estudo da visão pragmatista sob a religião, tal como considera Rorty, e que será estudada agora.

17

3. A DISTINÇÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

As recomendações neopragmáticas de Rorty defendem aqui a distinção entre as esferas pública e privada da sociedade no âmbito da religião. O texto O pragmatismo como um politeísmo romântico (2009) de Richard Rorty é a base para se entender como a sociedade ganharia um tom maior de tolerância se as religiões fossem isoladas ao campo privado de seus cidadãos e mostra, ainda, algumas consequências nos casos em que a religião se encontra no campo público da sociedade. De início, para fazer uma distinção entre os campos públicos e privados, Rorty se apoia teoricamente em Robert Brandom (1950-) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e mostra que há diferentes espaços lógicos dentro da sociedade e que cada espaço lógico joga um jogo diferente de linguagem (BARREIRA, 2012, p.03).8 Os espaços público e privado podem ter regras diferentes de articulação de suas proposições. Desse modo, “[...] espaços lógicos que tragam propósitos particulares e não universais permitem uma valorização democrática de crenças ou práticas” (Idem). A religião é avaliada no campo privado como uma forma de autoaperfeiçoamento e, no campo público, como ética para com os outros cidadãos. Essa distinção reforça a ideia de que as “verdades” e as necessidades humanas não são determinadas por condições pré-linguísticas, ou seja, não são a-históricas, mas dependem de um consenso socialmente aceitável e secularizado (BARREIRA, 2012, p.04). A distinção entre o público e o privado traz uma consequência para a sociedade no que tange ao debate sobre o religioso: o combate de formas violentas de expressão de religião como, por exemplo, as práticas fundamentalistas, fanáticas e de cunho terrorista. Segundo Barreira:

[…] Mesmo que sejam colocados no âmbito privado, os sistemas privados de crenças têm como limite as práticas sociais, conforme a posição de James e Mill, assumida por nosso autor. O princípio liberal de uma emancipação, sob a égide da ironia, faz ver que essa saída do religioso da esfera pública é a 8

Devido à influência de Wittgenstein nas ideias de Rorty, uma ponderação sobre as considerações mais relevantes do primeiro deve ser realizada para que se obtenha uma clareza maior da questão abordada. Segundo Sluga (1999, p. 979), Wittgenstein pensa a filosofia como uma prática descritiva e terapêutica. O filósofo argumenta que a necessidade lógica é derivada de uma convenção linguística e que as regras não podem determinar suas próprias aplicações, i.e., que seguir regras pressupõe a existência de práticas regulares. Não obstante, as palavras de nossa língua só têm sentido na medida em que existem critérios públicos para a sua correta aplicação – e esses critérios não são dados de forma universal e/ou atemporal.

18

melhor alternativa às suas formas violentas, que se desdobram em fundamentalismo, fanatismo e terrorismo – todas elas marcadas pela pretensão de se possuir a Verdade sobre Deus e, por extensão, sobre o mundo em geral (BARREIRA, 2012, p.04).

Segundo Nancy Fraser, Rorty divide a cultura em dois aspectos, a saber, o público e o privado, no qual o primeiro aspecto é o setor da cultura dedicada ao bem viver, onde o objetivo é a melhoria de vida de todos os cidadãos: “a esfera onde predominam a utilidade e a solidariedade” ( apud BARREIRA, 2012, p.07). Noutros termos, é a esfera da cultura na qual o individuo tem dever com a comunidade. O outro aspecto da cultura é a do âmbito privado. A preocupação do indivíduo nesta esfera é consigo mesmo, é a “esfera da autodescoberta, sublimidade e ironia” (FRASER apud BARREIRA, 2012, p.07). Dentro deste aspecto da cultura, o indivíduo tem a licença para não seguir a lógica das regras públicas, desde que isso não vá afetar negativamente outras pessoas. Vale lembrar a consideração do filósofo na qual salienta que as religiões são práticas saudáveis somente quando respeitam a restrição utilitarista. Sobre isso, ele adverte:

[…] um eficaz critério não-epistemológico para que uma expressão religiosa seja salutar para a democracia, basta a aplicação da “restrição utilitarista”. Essa restrição consiste em checar se determinada prática religiosa interfere com a felicidade dos concidadãos.[...] Essa “restrição utilitarista” não apela à experiência ou à razão como instâncias absolutas de acesso objetivo ao real, como auxílio para o estabelecimento de novas práticas sociais. (BARREIRA, 2012, p.07).

Posto isso, deve também salientar que para Rorty “uma prática religiosa só é salutar para a democracia se ela respeita as práticas socialmente aceitas.” (BARREIRA, 2012, p.01). Dado a divisão proposta por Rorty, faz-se necessário ressaltar as cinco teses que “fundamentam” essa atitude pragmática para com o religioso. Essas cinco teses são apresentadas no texto O pragmatismo como um politeísmo romântico e serão agora analisadas. A saber: [1] crenças são hábitos de ação, [2] a vontade de verdade identifica com a de felicidade, [3] A terceira tese parte da nova distinção proposta por Rorty: a que se dá entre projetos éticos e projetos estéticos, no qual a decisão é pessoal com o objetivo de autodesenvolvimento individual, [4] não há o “amor à Verdade” e, por fim, [5] o amor à Verdade como uma tradução secular da esperança, aliviando as necessidades humanas.

19

A primeira tese é a de que “crenças são hábitos de ação” (RORTY, 2009, p. 68). O conceito de crença para Rorty é criticado na obra O futuro da religião (2006), quando o crente tenta convencer todos que o que ele crê deve ser entendido como algo objetivo, logo, como algo verdadeiro para todos. Já em O pragmatismo como politeísmo romântico (2009), Rorty apresenta uma concepção de crença diferente, compreendendo-a de um modo nãorepresentacionista (BARREIRA,2012, p.08). Noutros termos, Rorty passa a aceitar que a crenças não têm a responsabilidade de “unificar todas as nossas crenças em uma única visão do mundo” (RORTY, 2009, p.68) e, por isso, podem variar sem muito conflito, i.e., existe a possibilidade de que os hábitos de ação – bem como seus propósitos – variem inocentemente. Sobre isso:

[...] é uma vantagem da concepção antirrepresentacionalista da crença [...] que ela nos libera da responsabilidade de unificar todas as nossas crenças em uma única visão do mundo. Se todas as nossas crenças fazem parte de uma única tentativa de representar um mundo único, elas devem permanecer estreitamente unidas. Mas elas são hábitos de ação, então, como os propósitos atendidos pela ação podem variar inocentemente, assim também os hábitos que desenvolvemos podem servir a esses propósitos (RORTY, 2009, p. 68).

A segunda tese de Rorty é a de que “a vontade de verdade se identifica com a felicidade”. Essa tese consiste na tentativa herdada de autores como Arnold e Mill, bem como Tillich, de abandonar a acirrada disputa entre os espaços culturais destinados à religião ou à ciência, pois ambas já foram concebidas pelos ocidentais como fonte de verdades absolutas. Isso é traduzido em um esforço de “abrir mais espaço para a individualidade do que o que pode ser fornecido pelo monoteísmo ortodoxo, ou pela tentativa do Iluminismo de colocar a ciência no lugar da religião como fonte da Verdade” (RORTY, 2009, p.68). Para que esse projeto realmente se concretize, Rorty aposta no entendimento de que cada “pedaço” da cultura tem o seu propósito, sendo assim, “algumas partes da cultura satisfazem nossa necessidade de conhecer a verdade e outras preenchem objetivos menores” (RORTY, 2009, p.68). Vale ressaltar que essa consideração do filósofo leva em consideração que a religião não deve ser considerada como linguagem simbólica ou, ainda, como poética religiosa, tendo em vista que a ciência seria supostamente o opositor no campo das validades perante a religião. Ao contrário, tal como afirma Rorty (2009, p. 28), ciência e religião preenchem e satisfazem instâncias diferentes de nossa sociedade e, assim, não são duas instâncias antagônicas.

20

[...] a tentativa [...] de considerar a fé religiosa como simbólica e, com isso, tratar a religião como poética e poesia como religiosa, e nenhuma das duas como competindo com a ciência, está no caminho certo. Mas para torná-la convincente necessitamos abandonar a ideia de que algumas partes da cultura satisfazem nossa necessidade de conhecer a verdade e outras preenchem objetivos menores. O utilitarismo romântico dos pragmatistas de fato abandona essa ideia: se não há nenhuma vontade de verdade distinta da vontade de felicidade, não há maneira de se contrastar o cognitivo do não cognitivo (RORTY, 2009, p. 68).

A terceira tese de Rorty diz respeito à divisão do ético e do estético. Tal como diz Barreira, “a terceira tese parte da nova distinção proposta por Rorty: a que se dá entre projetos éticos e projetos estéticos, no qual a decisão é pessoal com o objetivo de autodesenvolvimento individual” (BARREIRA, 2012, p.08). O que se entende dessa tese é que, para os aspectos mais “duros” de nossa cultura, como nas ciências, torna-se necessário um acordo intersubjetivo. Isso se dá uma vez que esses assuntos são de todos, do público.

[...] o pragmatismo permite-nos fazer outra distinção que retoma parte do trabalho feito anteriormente pela antiga distinção entre o cognitivo e o não cognitivo. A nova distinção é entre projetos de cooperação social e projetos de autodesenvolvimento pessoal. Um acordo intersubjetivo é requerido pelos primeiros, mas não pelos últimos (RORTY, 2009. P. 69).

Assim sendo, o âmbito público da cultura – com seus aspectos mais “duros” - deve ser tomado enquanto projeto ético, pois “a ciência natural é um projeto paradigmático de cooperação social: o projeto de aperfeiçoar a condição do homem [...] de maneira a facilitar a realização de previsões que se tornarão verdadeiras” (RORTY, 2009, p.69). Já a arte, que pode ser entendida de um modo amplo, é um projeto de autodesenvolvimento individual e não depende de um consenso na esfera pública. Rorty acredita que se a religião pudesse “ser desconectada tanto da ciência quanto dos costumes – da tentativa de prever as consequências de nossas ações e da tentativa de classificar as necessidades humanas -, poderia ser outro desses paradigmas” (como a arte, a poesia, etc.) (IDEM). O que se deve ter em consideração em relação ao terceiro ponto salientado por Rorty é que aqui tratamos dois âmbitos distintos – religião e ciência. – e que ambos necessitam de projetos diferentes. A ciência requer um acordo intersubjetivo, pois é realizada por meio de uma

21

interação social que visa a aperfeiçoar a condição humana e suas previsões futuras. Entretanto, nesse sentido, tanto a religião como a arte romântica (e.g.) seriam um contraponto ao projeto da ciência, pois não necessitariam de cooperação social, mas sim do aperfeiçoamento da própria pessoa. Haveria aqui, então, algo como uma condição de realidades distintas, onde uma pertenceria à ciência e outra a projetos paralelos, como a arte e a religião. Rorty diz ainda que não há o “amor à Verdade”. Essa é a quarta tese do autor, que pode ser lida na seguinte passagem:

Em quarto lugar, a ideia de que devemos amar a Verdade é em grande parte responsável pela ideia de que a crença religiosa é intelectualmente irresponsável. Mas não há uma coisa tal como o amor à Verdade. O que tem sido chamado por esse nome é uma mistura do amor por se atingir um acordo intersubjetivo, o amor por vencer discussões, e o amor por sintetizar pequenas teorias em grande teorias (RORTY, 2009, p. 69).

A tese defendida por Rorty demonstra como o Ocidente tem diferenciado o tratamento dado a dois aspectos da cultura: fé e razão. De um lado temos que a fé, segundo essa tradição, é “intelectualmente irresponsável” (RORTY, 2009, p.69) e a razão que deveria ser objeto de nosso amor. Pelo modo como a fé foi tratada até então houve, segundo o filósofo americano, objeções ao exercício da fé, tendo como base “fundamentações” racionais. Mas, segundo o pensador norte americano, somente porque não há como fundamentar a fé isso não justifica uma objeção ao exercício da mesma (RORTY,2009, p.69), pois “a única objeção possível poderia ser o fato de que ela intromete um projeto individual em um projeto social e cooperativo” (IDEM). Nesse sentido, a fé religiosa só poderia sofrer uma intervenção crítica negativa se deixasse de lado seu caráter individual e interferisse no âmbito democrático, sendo emparedada pela legitimidade da liberdade individual que deve ser resguardada pelo nível cooperativo e social da cultura. Entretanto, deve-se advertir que a ideia de que o indivíduo religioso “traia” o compromisso de liberdade legitimado pela democracia, em prol da religião, não fere seu compromisso com a “verdade” ou “razão”, mas sim com sua própria responsabilidade de cooperar com outros seres humanos.9 É por isso que a quinta e última tese de Rorty diz que “o

9

Sobre isso, Rorty ainda destaca: “[...] O fato de não haver nenhuma prova para uma crença religiosa nunca constitui uma objeção a ela. A única objeção possível poderia ser o fato de que ela intromete um projeto social e cooperativo e, com isso, contra os ensinamentos de Sobre a liberdade. Tal intrusão é uma traição da

22

amor à Verdade como uma tradução secular da esperança, aliviando as necessidades humanas” (BARREIRA, 2012, p. 9). Sobre isso, Rorty salienta de modo pontual que:

[...] a tentativa de se amar a Verdade, de pensá-la como Uma, capaz de medir e avaliar as necessidades humanas, é uma versão secular da esperança religiosa tradicional de que a lealdade para com algo grande, poderoso e não humano persuadirá esse ser poderoso a ficar do nosso lado em nossa luta contra outras pessoas (RORTY, 2009, p. 69-70).

Assim, a procura pela lealdade para com algo grandioso, não-humano é inútil, afinal se tal atitude for levada a sério, isso acarretaria a traição do “princípio” de lealdade herdada da tradição judaico-cristã, da qual participa a democracia (RORTY, 2009, p.70). Esse ideal é expresso, segundo Rorty, em sua melhor forma na doutrina, “de que cada necessidade humana deveria ser satisfeita a menos que isso cause a insatisfação de muitas outras necessidades humanas” (2009, p.70). O que se pode observar dessa última tese de Rorty é que a Verdade, uma vez pensada como Una, se torna similar ao ideal religioso judaico-cristão de pensar a esperança religiosa em um ser grandioso que ficará em nosso lado a favor da luta contra a deslealdade, injustiça, etc. Mesmo que Nietzsche critique qualquer esperança religiosa para a resolução dos problemas humanos (vide Rorty, 2009, p. 70), Rorty adverte que os pragmatistas têm a mesma objeção de Nietzsche, porém com uma consideração diferente: a fraternidade humana, prezada por seu ideal, prega que cada necessidade humana deveria ser satisfeita, sendo interposta caso a insatisfação de outras pessoas sejam atingidas. A objeção dos pragmatistas aos fundamentalistas propõe que tais pessoas não são intelectualmente irresponsáveis por deixar de lado os resultados da ciência natural, mas sim por negligenciar moralmente as consequências de seus atos perante o consenso democrático que tende a maximizar o ideal de felicidade humana, ignorando os ideais de liberdade necessários para a sociedade atual. Como salienta Rorty (2009, p. 70), “[...] eles [os fundamentalistas religiosos] não pecam por ignorar os métodos indutivos de Mill, mas por ignorar suas reflexões sobre a liberdade”.

responsabilidade de um indivíduo de cooperar com outros seres humanos, não da responsabilidade de um indivíduo para com a Verdade ou a Razão” (RORTY, 2009, p. 69).

23

A objeção pragmatista à Verdade como Una que fomente eticamente a ação do indivíduo ou, ainda, as ponderações feitas de modo crítico em relação à tomada da religião na esfera pública por partes dos indivíduos da sociedade abre margem para a importância da discussão do religioso por meio da ótica sustentada pelo pragmatismo, tal como propõe Rorty, e que será na sequência analisada.

24

4. O PRAGMATISMO DE RORTY E A RELIGIÃO

Em O pragmatismo como um politeísmo romântico, Rorty critica à conclusão de James sobre a religião, quando este afirma que temos o direito de acreditar no que quisermos, pelo menos em nosso “tempo livre”, i.e., no âmbito privado de nossas vidas (JAMES apud RORTY, 2009, p. 72). Entretanto, Rorty adverte que essa pretensão se vê diante de alguns problemas quando se defronta ou se mistura com alguma consideração política ou científica. Nessas esferas, de acordo com Rorty, é necessário reconciliar nossas crenças com as crenças e os hábitos de ação dos outros, uma vez que nossos hábitos de ação, bem como nossas crenças, não dizem respeito a ninguém além de nós mesmos. Em continuação a isso e, assim, em uma cultura na qual a predominância de um discurso de verdades pragmáticas é estabelecida, pode-se ter uma discussão pautada não pelo certo e errado, mas sim pelo útil e não-útil e, desse modo, pelo desenvolvimento de uma sociedade menos intolerante, pois não se teria aí uma disputa pelo verdadeiro ou falso. Ter-se-ia, desse modo, um modelo de adequação de discursos, como Galileu adequou-se a Aristóteles, ou Nietzsche a Sócrates.10 Para que este modelo seja estabelecido na cultura, volta-se a um momento anterior à própria discussão: o estabelecimento das próprias regras do jogo. Parte-se aqui do pressuposto que a linguagem é uma questão de consenso linguístico de uma comunidade. Segundo Ghiraldelli:

A linguagem é algo que os possíveis futuros usuários de uma linguagem a inventam na interação um com o outro e na interação de ambos com um meio ambiente compartilhado – o “mundo”. Essa idéia é o ponto de chegada comum de duas grandes correntes filosóficas nascidas na segunda metade do século XIX – o pragmatismo norte-americano e a hermenêutica européia”. (GHIRALDELLI , 2006. p. 9. )

Assim, tal como aponta Zabala (2009, p. 21), o a priori linguístico não se constitui como algo anterior à nossa experiência, mas sim como a nossa própria estrutura da experiência. Noutros termos, uma vez que a experiência é vista de um ponto estritamente linguístico e histórico, 10

Sobre isso, Zabala (2009, p. 19): “[...] em uma cultura gadameriana do futuro, seres humanos desejariam se adequar apenas um ao outro, no sentido em que Galileu adequou-se a Aristóteles, Blake a Milton, Dalton a Lucrécio e Nieztsche a Sócrates”.

25

não existiria então maneira alguma de considerar ou ultrapassar a linguagem para alcançar algo o “todo da linguagem”. Nesse sentido, temos alguns eventos históricos que corroboram essa atitude de enfraquecimento da metafísica e fortalecimento da importância da linguagem, logo, de uma cultura do diálogo. Esses eventos são: a Revolução Francesa, que tem como característica principal a solidariedade, o cristianismo, que representa a caridade, e por fim o Romantismo, como representação da ironia (ZABALA, 2006, p.22). Esses são, segundo Rorty, os três principais elementos que contribuíram para uma nova atitude para a análise da religião de um modo que seja útil para todos aqueles que participariam do diálogo democrático. Além do mais, estes três marcos históricos contribuíram para o progresso espiritual do homem. Vale ainda ressaltar que apenas após a Revolução Francesa, de acordo com Rorty (apud Zabala, 2009, p. 22), os homens aprenderam a confiar de modo autônomo em suas forças e, assim, participar integrante da democracia como sujeitos ativos e responsáveis. Numa sociedade pautada por uma cultura do diálogo, as religiões não precisariam de explicações de cunho determinantes ou objetivantes, tais como alguns dos discursos fundamentados cientificamente. Sobre os discursos científicos, bem como os discursos filosóficos dogmáticos, Rorty assinala:

Isso significa que ninguém se encontra sob nenhuma restrição para buscar a Verdade, nem para se importar se a Terra gira em torno do Sol ou vice-versa. As teorias científicas, assim como as teológicas e as filosóficas, tornam-se ferramentas opcionais para facilitar os projetos individuais ou sociais. (RORTY, 2009. p. 57- 81)

Neste aspecto, as religiões seriam consideradas como ethos universal, como algo integrante da cultura e não mais uma terrível querela sobre a possibilidade da existência de Deus, mas sim pela problemática relativa à conformidade do debate sobre Deus, tal como afirma Rorty: “Tenho sustentado que deveríamos substituir a questão ontológica sobre a existência de Deus pela questão da conveniência cultural da conversa sobre Deus” (RORTY, 2009, p. 52). Este tipo de atitude fortalece a democracia, pois as fundamentações dogmáticas - pautadas em códigos binários de asserção (certo-errado ou verdadeiro-falso) - seriam postas em segundo plano. As verdades absolutas são tratadas de forma diferenciada quando se adota uma postura

26

pragmática, tal como propõe Rorty. Estas passam a ser consideradas como boas ou ruins de acordo com seu desempenho útil para a sociedade. Substituem-se as pesquisas que buscam “verdades por si mesmas” por pesquisas que busquem “verdades que possam melhorar as vidas dos homens” (RORTY apud ZABALA, 2006, p.20). Assim como culturas mais antigas já tiveram a necessidade de superar algumas certezas incontestáveis para suplantar a dualidade radical entre verdadeiro e falso, o homem pós-metafísico deve superar a época das verdades absolutas. Nesse sentido, a filosofia aparece não mais como uma atribuidora de objetividade e certeza absoluta, mas sim com uma tarefa bem distinta: mostrar que a verdade não é objetiva, mas sim fruto de um diálogo intersubjetivo. O que se pode observar, como aponta Zabala (2006, p. 20), é que em concordância com os escritos filosóficos contemporâneos norteados, por exemplo, em Rorty e Gadamer, o diálogo sobre o “ser e o nada”, sobre a “linguagem e realidade” ou, ainda, sobre “Deus e sua existência” não se tornam úteis sob o aspecto pragmatista, pois pressupõem que a existência pode ser exercida independente da história. Entretanto, o que se observa é que o consenso linguístico intersubjetivo não é uma questão de representação acurada da realidade, mas sim uma discussão não-findada sobre a formação do próprio indivíduo (vide ZABALA, 2006, p. 21). Há uma busca pelo enfraquecimento de estruturas objetivas e a redução da violência motivada pelo dogmatismo. O enfraquecimento da verdade, segundo Zabala, se caracteriza pelo

enfraquecimento que reduza o peso das estruturas objetivas e a violência do dogmatismo. A tarefa do filósofo parece ser, hoje, o avesso do programa platônico: o filósofo conclama os homens à sua historicidade mais do que conclamá-los para aquilo que dura eternamente. A filosofia passa a estar mais interessada na edificação progressiva da humanidade do que no desenvolvimento do saber. (ZABALA, S, 2006, p.31).

O homem pós-metafísico teve que aprender a lidar com a questão da “queda” de valores absolutos. Não existem mais estruturas fixas ou garantias divinas para as ações humanas, com a habilidade de fornecer uma fundação una e normativa para o conhecimento e para a ética. Segundo Zabala, “[...] o homem pós-moderno, se assume a fundo a condição fraca do ser e da existência, pode finalmente aprender a conviver consigo mesmo e com a própria finitude” (ZABALA, 2006, p.35). Isso implicou em uma lição para a humanidade nos sentidos práticos da vida: a lição de que caso ele (o homem pós-metafísico) volte seus esforços para o “aqui”,

27

há muito a ser feito, não haverá espaço para a intolerância. O homem pós-metafísico teve de aprender, depois da “morte de Deus” – anunciada inicialmente por Friedrich Nietzsche em Gaia Ciência, nas seções 108, 125 e 343 - e depois do abandono de verdades metafísicas absolutas, a lidar com o plural, a ter que lidar com o diferente e, nesse sentido, uma fé caracterizada pela metafísica e suas verdades seria dogmática e nociva para uma vida em democracia.11 O individuo pós-moderno se viu obrigado a aprender a conviver com as ânsias da “verdade-relativa”, i.e., das “meiasverdades”, sem um saber absoluto ou de uma realidade fundamentada em um mundo totalmente organizado racionalmente. Segundo Zabala:

o homem que afasta sua atenção além do mundo, direcionando-a para este mundo e para este tempo, prepara-se para fazer valer os ideais do pluralismo e da tolerância, e evita que uma visão particular do mundo imponha-se usando a autoridade que lhe é atribuída. (ZABALA, 2006, p.36)

Dentro desse contexto teórico, uma questão dentro da filosofia surge de modo crucial. Afinal, o que é mais proveitoso para a sociedade: o debate sobre a existência de Deus ou as consequências práticas provindas da noção de Deus existente em nossa cultura? Segundo a concepção de Rorty, a comunidade deveria deixar de realizar debates acerca da existência de Deus, visto que tal debate, além de infrutífero e infindável, se torna um empecilho para a busca da felicidade humana.12 Tal atitude, segundo Rorty, faz parte daquilo que o filósofo chama de “atitude pragmática” diante da religião.

Dizer que se deveria deixar de falar a respeito de Deus porque isso impede a 11

“Por ter sido o „último dos filósofos metafísicos‟, Nietzsche pôde pensar na possibilidade de superação, ainda que não tenha conseguido isso. [...] O anúncio da morte de Deus é o início de grandes transformações na filosofia ocidental. „Deus está morto‟ representa a superação da metafísica, de qualquer ideia de fundamento e verdade absoluta. Mas como isso pode ser interpretado? A morte de Deus não é a afirmação da não-existência de Deus, já que isso implicaria numa permanência na metafísica. Tal afirmação aponta para uma verdade objetiva que a limitaria dentro da esfera metafísica. Como é já bastante aceito em alguns círculos [filosóficos], a morte de Deus acontece pelo desinteresse do homem na ideia de fundamento supremo, gerado pelo alto grau de desenvolvimento da técnica e das ciências modernas” (BALEEIRO, 2009, p.25). 12 Vale aqui ainda ressaltar a seguinte passagem de Rorty: “[...] Muitas pessoas pensam que nós deveríamos deixar parar de falar a respeito de Deus. Elas pensam isso pelas mesmas razões porque crêem que falar sobre raça e casta seja algo ruim. A máxima de Lucrécio Tantum religio potuit suadere malorum tem sido citada por dois milênios para que nos recordemos de que as convicções religiosas podem ser facilmente utilizadas como desculpa para a crueldade (RORTY, 2009, p. 21).

28

busca da felicidade humana é tomar uma atitude pragmática em relação à religião que muitos crentes religiosos consideram ofensiva e muitos teólogos acreditam fugir à questão. (RORTY, 2009, p.21).

Para Rorty, os debates filosóficos deveriam ser abalizados pelo critério ético fundamentado na felicidade humana. Assim, todo debate teórico existente que sirva de obstáculo para realização do bem estar comum deveria ser extinto ou substituído, visando assim uma ética utilitarista, ou seja, uma ética com fins práticos. Rorty advoga em favor de que a política cultural deveria substituir a questão da existência (ou não-existência) de Deus. Nisso, Rorty se alinha em favor da posição de James, que por sua vez se baseia em Mill.

Este [James] concordava com John Stuart Mill que a coisa certa fazer e, a fortiori, a crença certa a ser adquirida é sempre aquela que fará mais pela felicidade humana. Ele advogava, portanto, uma ética utilitarista da crença. (RORTY, 2009, p.22)

O papel da religião, a partir da consideração de Rorty sobre uma ética utilitarista, seria o papel de averiguar qual a importância que determinada discussão possui para a sociedade. Ao invés das provas necessárias exigidas dos crentes em relação à sua crença, o que se buscaria agora é a consequência prática da crença dessas pessoas para a comunidade em geral. Rorty assemelha a exigência de uma prova ou justificativa para uma crença religiosa com o período histórico da Inquisição, visto que em ambos os períodos a exigência de uma hipótese deveria ser respaldada em um critério de verdade aceito de acordo com apenas um tipo de perspectiva.

Por exemplo, a questão sobre se os crentes religiosos deveriam ser questionados sobre as provas da verdade de sua crença, e condenados como ignorantes ou irracionais se fossem incapazes de apresentar evidências suficientes, é uma questão sobre qual o tipo de papel nós desejamos que a religião tenha em nossa sociedade. Ela é exatamente análoga à questão levantada pela Inquisição: deveria ser permitido aos cientistas negligenciar desdenhosamente as escrituras quando formulam hipóteses sobre os movimentos dos corpos celestes? (RORTY, 2009, p.23).

O problema, tanto do período da Inquisição como de quem hoje exige uma justificativa da realidade do divino para a prática religiosa, seria o da exigência de uma justificativa respaldada apenas por um número delimitado de pessoas ou, ainda, de um determinado grupo

29

social. Para Rorty, a justificativa não deveria ser respaldada no critério de realidade, mas sim no de praticidade ou utilidade para só então serem incorporadas na sociedade.

Atribuições de realidade ou verdade são, sob o ponto de vista que compartilho com James, tributos que prestamos a entidades e crenças que se distinguiram, demonstraram ser úteis e, portanto, foram incorporadas às práticas sociais aceitas. (RORTY, 2009, pp.24-25)

A problemática persiste ao se pensar que na sociedade atual, com seus distintos grupos e práticas religiosas, não há uma autoridade comum a que os indivíduos possam recorrer para afirmar a veracidade de suas posições religiosas: “A questão em discussão [...] reduziu-se ao seguinte: há alguma autoridade além da autoridade da sociedade – uma autoridade como Deus, a Verdade ou a Realidade – que a sociedade deveria reconhecer?” (RORTY, 2009, pp. 26). O que se percebe é que não é a fonte da justificativa ou a crença religiosa em si que fundamenta ou abaliza o critério de veracidade de um discurso carregado com um tipo de conhecimento específico, mas sim o âmbito social que permite que tal discurso seja válido. Como exemplo disso, Rorty cita a aprovação das teorias de Galileu, que muito mais do que opiniões com adequação ao real, necessitaram de aceitação pública para se tornarem válidas.

Analogamente, não foi o relatório de Galileu sobre manchas se movendo na superfície do planeta Júpiter, provavelmente causadas pelo trânsito de luas, que derrubou a autoridade da cosmologia atistotélica-ptolomaica. Mas, no contexto da iniciativa que estava sendo montada pelos políticos culturais copernicanos, seus camaradas, esse relatório teve uma importância considerável. [...] O que vale como um relatório preciso da experiência depende do que a comunidade deixará passar. O apelo à experiência é tão ineficaz quando os apelos à Palavra de Deus, a menos que estejam respaldados por uma predisposição por parte da comunidade para levar a sério tais apelos (RORTY, 2009, pp.30-31).

Assim, o que Rorty advoga é que o apelo à experiência ou à adequação ao real não pode valer como critério de justificação para uma prática ou crença religiosa. Isso se dá uma vez que tal apelo se mostra ineficiente, pois nenhuma experiência poderá responder ou dar conta de tais questões. Noutros termos, a fundamentação na “palavra de Deus” se mostra ineficiente se não é compartilhada com uma comunidade linguística anterior predisposta a aceitar as conclusões da mesma, i.e., que estejam respaldadas pela comunidade que leva a sério tais considerações.

30

Assim, o apelo à experiência como justificativa não pode, por si próprio, servir como horizonte fundamental para o debate entre políticas culturais no que diz respeito à religião. O que Rorty adverte é que a questão sobre a religião, assim como a questão da consciência (trabalhada com Wittgenstein, Sellars e Nagel, por exemplo) não pode ser resolvida por meio do apelo à experiência, da mesma forma que não se pode apelar para à experiência para resolver questões éticas (se o problema de o casamento entre castas distintas ser repugnante ou não).

A moral que eu pretendo extrair da analogia entre Deus e a consciência é que a existência de qualquer um dos dois não é uma questão que possa ser resolvida apelando-se para a experiência, assim como ninguém pode apelar para a experiência para determinar se um casamento entre castas ou raças diferentes é algo intrinsecamente repugnante ou não. (RORTY, 2009, p.35).

No concernente à possibilidade da existência de Deus, percebe-se, paralelamente, que não há segundo Rorty nenhum espaço canônico que seja realmente neutro para avaliar a justificativa de uma prática religiosa, o que por si só torna problemática a questão da razão por adequação à realidade.

[...] a tentativa de identificá-lo [Deus] com o auxílio de uma lista já existente de designantes canônicos – é inútil [...] porque não há nenhum espaço lógico neutro dentro do qual a discussão possa ter prosseguimento entre as pessoas inclinadas a negar e as pessoas inclinadas a afirmar a existência da entidade relevante. [...] são indiscutíveis porque não há uma lista de designantes canônicos neutros em referência aos quais elas possam ser respondidas. (RORTY, 2009, p.46).

Questões sobre a existência de Deus ou, ainda, sobre a laicização do Estado, ou da controvérsia sobre o uso de crucifixos em repartições públicas, são problemas que exigem soluções diferentes em culturas distintas, em séculos diferentes e/ou em espaços diversos, pois não há uma regra – seja ela linguística ou moral – válida universalmente que pode ser invocada para dar fim a essas questões.

31

Questões como essa requerem soluções diferentes em países diferentes e séculos diferentes. Seria absurdo sugerir que há normas universalmente válidas que poderiam ser invocadas para resolvê-las. Mas eu insistiria em que um debate sobre tais questões políticas concretas é mais útil para a felicidade humana do que um debate sobre a existência de Deus (RORTY, 2009, p. 54).

A hipótese de Rorty é de que as discussões do fenômeno religioso referentes ao âmbito ontológico, como a existência ou não de Deus, deveriam ser deslocadas para o debate sobre as consequências práticas do ato da crença em determinada divindade. Conclui, ainda, que um debate sobre tais questões é mais útil para a vida em sociedade do que as querelas intermináveis sobre a realidade do Ente fundante da prática religiosa. Ao fim, pode alguém questionar: qual é o futuro da religião de acordo com a ótica de Rorty? O que se pode perceber é que, de acordo com a perspectiva rortyana, a religião deverá ser analisada em concordância com aspectos políticos, sociais e históricos, para que um dia a solidariedade, a caridade e a ironia se perfaçam como uma lei integral. Nesse sentido, vale lembrar a posição de Rorty (2009, p. 43) que afirma que o pragmatismo e a hermenêutica correspondem, hoje, a perspectivas filosóficas com a habilidade de ir além do lógos metafísico tradicional e, em paralelo a isso, buscar uma cultura de diálogo que não é mais firmado por uma busca de uma Verdade unilateral.

32

CONCLUSÃO

O pensamento de Richard Rorty aparece como uma alternativa para os problemas que a filosofia contemporânea enfrenta. No início de sua carreira, quando ainda se dedicava à filosofia analítica, Rorty já demonstrava como o seu modo de lidar com os problemas filosóficos era diferente dos tradicionais: acreditava, seguindo Wittgenstein que os problemas filosóficos não deveriam ser resolvidos, mas dissolvidos. O filósofo americano tem como fio condutor de suas pesquisas uma atitude antiessencialista. Noutros temos, a procura por fundamentos últimos capazes de descrever e antecipar toda a realidade não tem espaço em sua filosofia e, quando o tem, é alvo de crítica, pois sua filosofia é voltada para o contingente, para a prática, para as intuições, característica da filosofia pragmatista, cujo autor é herdeiro. Nem todos enxergam que a filosofia de Rorty seja uma alternativa válida para as questões as quais ele se dedicou. Há acusações de irracionalidade, irresponsabilidade e relativismo em suas obras, como ele mesmo nos mostra em sua autobiografia intelectual Trostky and the Wild orchids (1999). Estas acusações parecem ser injustas, porque, embora sua filosofia ensine que a Razão não pode ser o centro absoluto de toda a realidade humana, o acordo e a compreensão são guias importantes dentro do pensamento filosófico de Rorty. Essa atitude se reflete em seus constantes debates com autores tais como Habermas e Vattimo. Rorty defendia que a filosofia que procurava um fundamento para a moral ou a política ofereceu muito pouco às melhorias da condição humana quando comparada à produção literária, ou o jornalismo investigativo. Por isso os seus escritos apontam para uma filosofia que seja mais edificante para a nossa sociedade e que não deveria ficar reclusa a si mesma. O interessante, para Rorty, seria que a filosofia tivesse um papel mais ativo em nossa sociedade. O filósofo seria aquele que traria à tona mais perspectivas, sendo assim, haveria mais inclusão de mais vozes sobre um determinado assunto, deste modo ampliando os direitos políticos ao maior número possível de pessoas, sob a égide da solidariedade. Quanto ao tema da filosofia se envolvendo nas questões religiosas, temática central desse trabalho, a postura filosófica de Rorty é fiel às consequências que o seu pensamento antifundacionista acarreta . Entende que a religião é um dos diversos aspectos da cultura. Não é a mais importante, mas isso não significa que não tenha o seu lugar. Como se sabe, a

33

religião pode ser um ponto de partida para atitudes solidárias, ou para atitudes violentas. O olhar que defendemos é que a religião tem a sua importância dentro de nossa sociedade, com a ressalva de que a religião não deveria ser encarada como fornecedora de verdades absolutas, assim como a filosofia e a ciência já tentaram fazer dentro da história da cultura ocidental. Ao entender que a religião é um aspecto particular das vidas das pessoas – do mesmo modo como a poesia e a arte de modo geral - teríamos um espaço para ver que a religião contribui para o autoaperfeiçoamento de seus praticantes. O questionamento sobre a existência de Deus é um exemplo da inutilidade dos debates entre a religião e as ciências. Tanto os religiosos como os cientistas defendem suas perspectivas de forma acirrada e racionalmente. No entanto, nenhum deles cede, pois não se trata de um diálogo, é uma conversa na qual o objetivo final é calar o oponente. Rorty apresenta uma alternativa a essa querela: por que ao invés de debatermos sobre esse assunto não falamos de outra coisa? Por exemplo, por que não falamos das consequências que certas práticas religiosas têm em nossa sociedade? Por que não problematizar sobre a violência que seitas radicais praticam em nome de um determinado credo? Tais questionamentos seriam, na perspectiva do filósofo, muito mais interessantes e viáveis para a nossa sociedade do que descobrir se de fato Deus existe ou não. Talvez essa última conversação nem seja aconselhável, pois se tivéssemos a verdade sobre essa questão, e se todos aceitassem essa verdade, isso nos tornaria mais tristes ou mais alegres? Assim sendo, a proposta de tratar a religião sob uma perspectiva pós-metafísica e com tom pragmático enriquece o número de possibilidades de como se aproximar do tema filosofia e religião. É um modo alternativo de abordagem, pois não tentar fundamentar práticas ou discursos. É uma filosofia que nos convida a abandonar ideais metafísicos e a que procuremos melhorar as condições do aqui e agora. Vale lembrar que esta é uma das propostas que está misturada com muitas outras, não se sabe se é a mais acertada e se é a melhor. Temos consciência disso, mas é uma aposta que alarga horizontes e nos ajuda a construir uma sociedade que esteja mais aberta ao diálogo, e consequentemente, mais tolerante.

34

REFERÊNCIAS

BALEEIRO, Cléber Araújo Souto. O retorno da Religião na era da superação da metafísica. [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Universidade de São Paulo, 2009. BARREIRA. Marcelo. O campo religioso a partir da distinção entre as esferas público e privado no neopragmatismo de Rorty, http://www.fil.ufes.br/node/11, acesso em 10/08/2012. BOHMAN, James. Hermeneutic. In: AUDI, Robert. Cambridge Dictionary of Philosophy. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. FREUD, Sigmund. O Futuro de uma ilusão: a essência das religiões. Rio de Janeiro: Imago, 1974. FUMERTON, A. Logical Positivism. In: AUDI, Robert. Cambridge Dictionary of Philosophy. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. Pragmatismo e hermenêutica. In: RORTY, R & Vattimo, Gianni. O futuro da Religião – solidariedade, caridade e ironia. Rio de Janeiro: Relume Duamrá, 2006. p.9-17. GUTTING, Gary. Richard Rorty. In: AUDI, Robert. Cambridge Dictionary of Philosophy. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. KYBURG JR., Henry E. Carnap. In: AUDI, Robert. Cambridge Dictionary of Philosophy. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. MARINHO, Cristiane M. James, Rorty, Vattimo e a Religião Pós-Metafísica. http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano2_04/2_marinho.pdf

.

Acesso em 04 out. 2012 MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001. RAMBERG, Bjørn. Richard Rorty. In: ZALTA, Edward. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. URL = . 2009. RORTY, R. Anticlericalismo e ateísmo. In: RORTY, R & Vattimo, G. O futuro da Religião – solidariedade, caridade e ironia. Rio de Janeiro: Relume Duamrá, 2006. p. 47-62. ______. A política cultural e a questão da existência de Deus In: RORTY, R. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 19-57

35

______. O pragmatismo como um politeísmo romântico In: RORTY, R. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 57- 81 ______. Philosophy and the Mirror of Nature. [2. Ed.] New Jersey: Princeton University Press, 1980. ______.Trotsky and the Wild Orchids. In: Philosophy and Social Hope. Penguin Books, 1999 RORTY, Richard; NYSTROM, Dereck e PUCKETT, Kent. Contra os patrões, contra as oligarquias. Uma conversa com Richard Rorty. São Paulo: Editora UNESPE, 2005. SLUGA, Hans. In: AUDI, Robert. Cambridge Dictionary of Philosophy. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. SOUZA, José Crisótomo (Org.). Filosofia, Racionalidade, Democracia – Os Debates de Rorty & Habermas. São Paulo: Unesp, 2005. STRICKLAND, Bonnie. The Gale Encyclopedia of psychology. 2ª Edição. USA: Gale Group, 2001. WEIRICH, Paul. Auguste Comte. In: AUDI, Robert. Cambridge Dictionary of Philosophy. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. ZABALA, S. Uma religião sem teístas e ateístas In: RORTY, R & Vattimo, G. O futuro da Religião – solidariedade, caridade e ironia. Rio de Janeiro: Relume Duamrá, 2006, p.19-47.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.