A relevância contemporânea do pensamento político tardio de Tolstói

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A relevância contemporânea do pensamento político tardio de Tolstói 1 por Alexandre J. M. E. Christoyannopoulos2 (Tradução: Bruno Luis Marra Silva e Ligia Chicareli Kawata)

Resumo: Nos últimos trinta anos de sua vida, Liev Tolstói escreveu inúmeros livros, ensaios e panfletos apresentando sua radical concepção religiosa e política. Nestes trabalhos, Tolstói expressou seu profundo descontentamento com o Estado, a Igreja, o sistema econômico e os revolucionários, e baseado na sua compreensão do cristianismo formulou uma estratégia de mudança. Este artigo argumenta que muitas das suas críticas permanecem verdadeiras assim como eram quando foram escritas há um século, e que, portanto, o pensamento político de Tolstói não perdeu sua relevância no século XXI. O Estado – seja ele autocrático ou democrático – continua a usar da violência ou da sua ameaça para impor sua vontade àqueles que discordam de sua agenda. A Igreja continua a dar pouca atenção àquilo que Tolstói considera implicações claras e verdadeiramente revolucionárias dos ensinamentos e exemplos de Jesus. Um sistema econômico profundamente injusto continua a prosperar em cima daquilo que Tolstói considerou como premissa inaceitável da propriedade privada. É compreensível que muitos dos que sofrem neste sistema global continuem a ser atraídos – para Tolstói, erroneamente – por meios violentos, ao tentarem melhorar suas situações. Pode ter chegado o momento de a humanidade considerar a alternativa de Tolstói para sociedade. Seu pensamento político tardio certamente oferece um ângulo interessante para a reflexão sobre a ordem mundial, o descontentamento a respeito dela e dilemas enfrentados por aqueles que tem a intenção de mudá-la. Palavras Chave: Liev Tolstói; não resistência ao mal; cristianismo. Abstract: In the last thirty years of his life, Leo Tolstoy wrote countless books, essays and pamphlets expounding his radical religious and political views. In these, Tolstoy expresses his deep discontent with the state, with the church, with the economy and with revolutionaries, and he formulated a strategy for change based on his understanding of Christianity. This paper argues that many of his criticisms hold as true today as they did when he penned them a century ago, and that therefore Tolstoy’s political thought has not lost any of its relevance in the twenty-first century. The state – whether autocratic or democratic – continues to use violence or the threat of it to impose its will upon those who dissent from its agenda. The church continues to pay little attention to what Tolstoy sees as the clear and truly revolutionary implications of Jesus’ teaching and example. A deeply unjust economic system continues to thrive on what Tolstoy saw as the unacceptable premise of private property. And many of those who suffer in this global environment understandably and yet, for Tolstoy, mistakenly continue to be attracted by violent means in an effort to improve matters. The time might have come for humanity to consider Tolstoy’s alternative for society. His late political thought certainly provides an interesting angle with which to reflect on the world order, its discontent, and the dilemmas faced by those who are intent on changing it. Keywords: Liev Tolstói; non-resistance to evil; Christianity.

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Texto originalmente apresentado no 21° Congresso da International Political Science Association (IPSA), Santiago - Chile, entre 12 e 16 julho 2009, com o seguinte título: The Contemporary Relevance of Leo Tolstoy’s Late Political Thought. O texto original está disponível página do autor: http://sites.google.com/site/christoyannopoulos/publications. A Revista e os tradutores agradecem a autorização do autor para esta publicação. 2 Alexandre J.M.E. Christoyannopoulos é Mestre em Relações Internacionais e Estudos Europeus e Doutor em Estudos Religiosos e Políticos, ambos pela Universidade de Kent – Inglaterra. Atualmente leciona na Universidade de Loughborough – Inglaterra. Além de artigos publicados em revistas e congressos, publicou o livro Christian Anarchism: A Political Commentary on the Gospel (2010) e organizou o livro Religious Anarchism: New Perspectives (2009). Página: http://sites.google.com/site/christoyannopoulos/. Email: [email protected]

Jesus diz:“Foi instilado em vocês, vocês se acostumaram a considerar como algo bom e razoável que deveriam resistir ao mal pela força e arrancar olho por olho, que deveriam estabelecer tribunais de justiça, policiais e soldados, e que deveriam lutar contra seus inimigos; mas eu vos digo: não façam violência, não tomem parte na violência, não façam mal a ninguém, nem mesmo àqueles a quem chamam de inimigos. [...] Vocês acham que suas leis corrigem o mal; elas só o fazem aumentar. Há uma única maneira de eliminar o mal - o retorno do bem a todos os homens sem distinção. Vocês tentaram os seus princípios por milhares de anos, agora tentem o meu, que é o oposto” (Tolstoy, 1902, p. 41)

Liev Tolstói já foi outrora tão famoso por seus romances quanto por sua crítica anarquista cristã da sociedade moderna, elaborada últimos trinta anos da sua vida. Entretanto, depois de sua morte em 1910, décadas de supressão na Rússia, paixões nacionalistas, guerras mundiais e recessão global contribuíram para a marginalização gradual do seu pensamento político3. Com isso, hoje poucos estão familiarizados com seus escritos políticos, ainda que eles não tenham perdido qualquer relevância com a passagem do século. O objetivo deste artigo é corrigir essa carência de apreciação, sintetizando primeiramente o pensamento político tardio de Tolstói e, depois, trazendo a tona sua relevância no século XXI. O artigo está dividido em três partes: a primeira define o contexto do pensamento político tardio de Tolstói, esclarecendo suas raízes na compreensão particular dele sobre o cristianismo. A segunda e principal parte sintetiza e apresenta a crítica do Tolstói sobre o Estado, a Igreja, o sistema econômico e determinados revolucionários. A terceira e última parte retoma cada uma dessas quatro críticas com o objetivo de apontar sua pertinência nos dias atuais.

1. A base cristã do pensamento de Tolstói A compreensão de Tolstói sobre o cristianismo era singular4. Quando Tolstói se “converteu” ao cristianismo, próximo ao seu aniversário de cinquenta anos, não foi o cristianismo ortodoxo da Igreja tradicional que ele adotou. Para Tolstói, Jesus não era o “filho de Deus”, tampouco realizou milagres sobrenaturais. Foi aquilo que Jesus ensinou o que Tolstói estava interessado, e que, por sua vez, deu forma ao seu pensamento político. 1.1 “Conversão” de Tolstói Tolstói se converteu ao cristianismo tardiamente. Ele nasceu em 1828, em uma família rica da aristocracia e, na década de 1850, já havia se estabelecido como um respeitado romancista. Seus dois trabalhos mais famosos, Guerra e Paz e Anna Kariênina, foram escritos entre 1863 e 1869 e entre 1873 e 1877, respectivamente. Em 1869, porém, a vida de Tolstói começou a mudar. 3

Uma revisão extensa da literatura existente sobre o pensamento político tardio do Tolstói está disponível em: Christoyannopoulos (2008a). 4 Essa seção consiste, basicamente, numa versão atualizada de: Christoyannopoulos (2007)

Durante uma viagem a uma província distante da Rússia, Tolstói passou por uma agonizante experiência de mortalidade. No meio da noite, ele foi dominado por uma sensação de que todos os empreendimentos eram inúteis, e o único resultado possível era a morte. Não era a morte em si que lhe causava terror, mas o fato que a vida parecia não ter sentido já que a morte era algo prometido. Essa experiência assombrou Tolstói cada vez mais nos dez anos que se seguiram – enquanto escrevia Anna Kariênina. Como explicou em Uma Confissão, Tolstói procurou incessantemente o sentido da vida em grandes pensadores da ciência, religião e filosofia – em vão (Tolstoy, 1987b). Ele não conseguia encontrar qualquer coisa que desse sentido e valor à vida e chegou até mesmo a considerar o suicídio. Mas então, em algum momento por volta de 1879, veio a descoberta. Tolstói observou que os camponeses a sua volta pareciam se aproximar da morte com calma e serenidade – como um aristocrata orgulhoso, ele os havia negligenciado até então. Mas, por quê? O que havia que ajudava os camponeses a parecerem tão serenos diante da aparente futilidade da vida? Tolstói percebeu que o que eles tinham era “fé”. Isso o intrigou, e ao mesmo tempo lhe deu esperança. E assim, ele mergulhou na Bíblia com um novo impulso, na esperança de que o sentido da vida pudesse finalmente ser revelado a ele – e, dessa vez, foi.

1.2 O Sermão da Montanha A revelação veio a Tolstói repentinamente, enquanto refletia sobre uma passagem específica e famosa de Jesus, o Sermão da Montanha. Conforme afirma Tolstói em Em que acredito, essa passagem imediatamente revelou a ele todo significado da Bíblia e, com isso, todo o seu anseio existencial finalmente repousou (Tolstoy, 1902, p. 15-18). Tais importantes palavras estão em Mateus 5: 38-42: Vocês ouviram o que foi dito: “Olho por olho e dente por dente”. Mas eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa. Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas. Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado (Bíblia, 2002, p. 770-771).5

Para Tolstói, as implicações destas instruções eram nada menos do que revolucionárias. Jesus estava propondo um novo, radical e mais sábio método para os seres humanos responderem a qualquer forma de “mal”: quando coagido ou tratado injustamente, não retaliar, mas responder com amor, perdão e generosidade.

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Para esta tradução, utilizou-se a mesma versão da Bíblia que o autor: a Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional (N/T).

Tolstói refletiu sobre o conselho de Jesus e observou que a humanidade sempre esteve presa a um ciclo vicioso de violência e pagamento do mal na mesma moeda [tit-for-tat]. Os seres humanos constantemente tentam resistir ao mal com o mal, tratar violentamente problemas da violência, fazer guerra para impedir outras guerras. Mas tais respostas são bem sucedidas apenas em espalhar mais amargura, raiva e ressentimento – e só o que isso garante é o fortalecimento do mal e ainda mais sofrimento no futuro. Tolstói percebeu que o único remédio para este ciclo de violência é sobrepor à ele um ciclo virtuoso de amor, tão bem articulado por Jesus. O ciclo destrutivo da raiva, do ódio e da vingança só pode ser superado por um ciclo paciente de amor, perdão e sacrifício. Oferecer a outra face significa mais sofrimento em curto prazo, mas a esperança é que, eventualmente, aquele que fez o mal se arrependerá e mudará seu comportamento. Assim como a violência é contagiosa, o amor também é. No entanto, como entendia Tolstói, isto significa que é necessário abrir mão da vontade de forçar os outros a se comportarem de uma certa maneira (“melhor”). Não pode existir nenhuma diferença entre meios e fins: violência gera mais violência e apenas o amor pode eventualmente levar a uma sociedade unida pela caridade, paz e amor. E o amor só pode ser ensinado pelo exemplo. Isto requer coragem, pois até mesmo quando perseguido injustamente, aquele que segue Cristo deve pacientemente amar e perdoar – mesmo quando o preço final a pagar é a morte (ou como no caso de Jesus, a crucificação). Esta, para Tolstói, é a essência dos ensinamentos de Jesus para a humanidade. É o que Jesus ensinou não apenas no seu sermão, mas em todo seu ministério, e o que ele promulgou durante toda sua vida e morte. E a síntese mais expressiva desta lei do amor e não resistência é a passagem retirada do Sermão da Montanha. Alguns dirão, com certeza, que essa visão é utópica e fantasiosa, mas em resposta a este ponto de vista, Tolstói diz: Pode-se afirmar que o constante cumprimento desta regra é difícil, e que nem todo homem 6 encontrará sua felicidade em obedecê-la. Pode-se dizer que é tolice; que, como falam os incrédulos, Jesus foi um sonhador, um idealista, cujas regras impraticáveis foram seguidas apenas por causa da estupidez de seus discípulos. Mas é impossível não admitir que Jesus disse de forma muito clara e definitiva o que ele pretendia dizer: que os homens não devem resistir ao mal; e que, portanto, aquele que aceita o seu ensinamento não pode resistir ao mal (Tolstoy, 1902, p. 18-19).

Estas foram as palavras de Jesus que Tolstói repetiu de diversas formas e decretou diversas vezes. Para Tolstói, negar que o ponto mais importante dos ensinamentos de Jesus era pedir a não resistência ao mal (ou a qualquer coisa que seja definida como mal) era simplesmente hipocrisia. 6

É importante reconhecer que a linguagem de Tolstoi é claramente centrada no sexo masculino: ele sempre fala de "homens", nunca - ou raramente – de “mulheres”. Esse viés tendencioso não poderia passar em branco nas citações literais de Tolstói deste artigo.

Esta perspectiva sobre os ensinamentos de Jesus formaram a base da nova abordagem de Tolstói sobre o cristianismo. Ele estudou a Bíblia, frequentou a Igreja, apropriou-se de um outro olhar do dogma tradicional da igreja e filtrou todas estas novas informações, mantendo apenas o que considerava estar de acordo com a essência da mensagem de Cristo. Em outras palavras, sua compreensão do cristianismo era muito peculiar. Na verdade, não é isenta de problemas.

1.3 Um cristianismo racional Tolstói talvez estivesse certo em chamar a atenção para uma dimensão negligenciada da Bíblia, mas sua interpretação da metafísica por trás dela continua a ser inaceitável para muitos cristãos hoje - em grande parte, porque em seu impulso de remover o que ele compreendia como uma versão corrompida dos ensinamentos de Jesus, impôs uma abordagem muito racional para o cristianismo, que acaba com todos os mistérios, rituais ou tradições. Na sua busca pelo sentido da vida, a única luz de Tolstói era a razão do século XIX. Se ele foi conquistado pela mensagem de Jesus, foi porque ele acreditava que Jesus era simplesmente o professor mais racional e humano que já andou sobre o planeta – não algum inacreditável “filho de Deus” cujo corpo ressuscitou e voou de volta ao céu. Tolstói acreditava que os mistérios tradicionais, como a divindade de Jesus, a virgindade de Maria, milagres e ressurreições eram: ou totalmente sem sentido; ou poderiam ser explicados de maneira mais lógica, no máximo, como metáforas úteis para transmitir uma verdade importante (porém racional, material). Para Tolstói, a Bíblia foi enfeitada por superstições implausíveis destinadas a desviar a atenção do leitor para longe dos ensinamentos racionais, agora ocultos dentro dela. É por isto que Tolstói reescreveu o evangelho eliminando todos os trechos irracionais, harmonizando todos os relatos conflitantes e reorganizando a vida de Jesus em uma narrativa cronológica lógica. De acordo com Tolstói, neste evangelho não há milagres sobrenaturais, a luz da razão é o principal destaque e o texto termina quando Jesus morre na cruz - não poderia haver ressurreição fantástica no evangelho de Tolstói. Tolstói, dessa forma, reduziu a religião à moralidade. Para ele o mais eloquente código moral já articulado por um ser humano é o Sermão da Montanha de Jesus. Tolstói suspeitou que todos os mistérios e dogmas teológicos tenham sido adicionados por fraudulentas autoridades do Estado ou da Igreja, e assim, ele alertou que é preciso ler a Bíblia e os pronunciamentos teológicos sobre ela com muita cautela, filtrando toda afirmação pelo teste da razão. Por essa razão, Tolstói nunca acreditou em vida após a morte. É difícil compreender ou descrever o que apaziguou sua inquietação existencial, pois Tolstói não explica isto de forma clara. Sabe-se apenas que está relacionado com a compreensão de que há algo infinito além do finito, e a "fé", nesta compreensão, concede conhecimento ao significado da vida. O que é "infinito”

permanece, porém, obscuro. Parece estar estreitamente relacionado com razão e amor, mas isso é incerto em seus escritos. O ponto é que Tolstói realmente encontrou o “sentido da vida” na sua compreensão racional do cristianismo. Ele podia ver agora um propósito em viver, que era se esforçar para fazer jus aos ensinamentos de Jesus, e superar todo o mal através do poder contagiante do amor. Para ele, este seria o único meio de alcançar um progresso substantivo nas relações humanas. É importante notar que, para Tolstói, ainda que esta lição tenha sido ensinada por uma figura religiosa famosa, sua essência era eminentemente lógica. Como explicou Aylmer Maude sobre a posição de Tolstói: “o que é essencial nos Evangelhos não decorre da autoridade de alguma revelação sobrenatural, mas da correspondência deles com a razão e consciência do homem” Maude, 1934, p. xxviii). O pensamento que Tolstói apresentou com base em sua filtragem do cristianismo não é, portanto, limitado ao cristianismo, porque tem um apelo tão universalista quanto qualquer outro julgamento desenvolvido por meio de raciocínio lógico. Por isso, o pensamento político cristão de Tolstói não é apenas "cristão", mas é dirigido a toda a humanidade.

2. Crítica de Tolstói sobre a sociedade A partir de sua nova compreensão do cristianismo e da realidade social, Tolstói desenvolveu uma crítica amarga ao Estado, ao sistema econômico e à Igreja, mas também às principais correntes revolucionárias que pretendiam reformá-los. São nestas quatro críticas que esse artigo irá agora se debruçar.

2.1. O Estado Para Tolstói, os cristãos deveriam repensar a relação que tem com o Estado. No Sermão da Montanha, Jesus instruiu seus seguidores a não apenas resistirem, mas também a não prestarem juramentos (porque, para Tolstói, ninguém pode prometer seguir ao mesmo tempo a razão divina e as autoridades humanas), a não julgarem (porque nenhum de nós é puro o suficiente para estar acima de outros e poder julgá-los), e a amarem os inimigos (porque fazendo isto, supera-se a falsa e destrutiva diferenciação que tem se sucedido entre as nações). No entanto, o Estado exige juramentos de fidelidade, julga seus cidadãos e detém tanto os infratores internos quanto os inimigos externos. O Estado promove guerras, encarcera as pessoas e reivindica autoridade absoluta (uma forma de idolatria) sobre um determinado território. Evidentemente, Tolstói concluiu, então, que o Estado é uma instituição anticristã. Além disso, se os cristãos realmente tivessem a coragem de agir como Jesus os ensinou - se gerissem suas relações sociais por meio do amor, perdão e caridade - então, não haveria necessidade de um Estado. As pessoas ajudariam umas às outras e de boa vontade compartilhariam todas as

necessidades básicas da vida. O princípio ordenador da sociedade seria o amor, e não uma ilusória e enganosa "justiça" imposta por um Estado brutal. Para Tolstói, portanto, o cristianismo e o Estado são visões incompatíveis. Uma pessoa não pode ser um cristão honesto e, ao mesmo tempo, reconhecer a legitimidade do Estado, porque o Estado contraria diretamente os claros conselhos de Jesus, e porque se as recomendações de Jesus fossem colocadas em prática, então, o Estado se tornaria obsoleto. "O cristianismo, em seu verdadeiro significado, destrói o Estado", diz Tolstói, acrescentando que "isto foi assim compreendido desde o princípio e por isso Cristo foi crucificado” (Tolstói, 2011, p. 224). Nem mesmo na reforma democrática Tolstói deposita muita esperança. Numa epígrafe anônima de um de seus capítulos, com tom e estilo que sugerem ser dele, Tolstói escreve:

Quando entre cem homens, um domina sobre noventa e nove, é injusto, é um despotismo. Quando dez dominam sobre noventa, é igualmente injusto, é uma oligarquia; mas quando cinquenta e um dominam sobre quarenta e nove (e isso é apenas na teoria, pois na realidade são mais ou menos dez ou onze desses cinquenta e um), é completamente justo, é a liberdade! Poderia haver algo mais irónico, na sua clara absurdidade, do que tal raciocínio? E, no entanto, é este o raciocínio que serve como base para todos os reformistas da estrutura política (Tolstoy, 1987c: 165).

Para Tolstói, é evidente que uma maioria de pessoas que decide votar de um mesmo modo não torna a decisão mais “justa” ou “livre”. Nada no governo democrático (muito menos nas suas variantes representativas, que estão, afinal, ainda mais distantes do ideal teórico do governo verdadeiramente democrático) garante uma melhor aproximação da justiça simplesmente por causa da sua configuração institucional. Além disso, sejam as leis estabelecidas democraticamente ou de outra forma, Tolstói insiste que "as leis são regras feitas por pessoas que governam por meio de violência organizada para o descumprimento, e aquele que a desobedece é submetido a apanhar, a perder da liberdade ou até mesmo ser assassinato” (Tolstoy, 1948b, p. 112). A violência ou a ameaça dela é a condição sine qua non do conjunto de máquinas do Estado moderno. Sem a violência, as suas leis não teriam poder. Mas a violência estatal, para Tolstói, é simplesmente irracional: Das duas uma: ou as pessoas são seres racionais ou são seres irracionais. Se eles são seres irracionais, então, eles são todos irracionais e, portanto, tudo entre eles é decidido pela violência e não existe razão para algumas pessoas terem, e outras não, o direito de usar a violência. Nesse caso, a violência governamental não possui justificativa. Mas se os homens são seres racionais, então, suas relações deveriam ser baseadas na razão e não na violência daqueles que tomaram o poder. Nesse caso, novamente, a violência governamental não possui justificativa (Tolstoy, 1948b, p. 119).

Assim, para Tolstói, a reivindicação do Estado pelo monopólio do uso legítimo da violência

na verdade evidencia sua fraca base de sustentação. Ou o monopólio é injustificável ou qualquer violência é injustificável. Tolstói discorda também do raciocínio de que o monopólio do Estado sobre o uso legítimo da violência é necessário para prevenir a violência e o caos de todos contra todos. “Os governos”, Tolstói escreve, “justificando a sua existência e afirmando garantirem um certo tipo de segurança àqueles que estão sob seu domínio, são como o ladrão-chefe da Calabria que recolhia uma taxa regular de todos aqueles que desejavam passar com segurança ao longo estrada” (Tolstoy, 1948b, p. 124-125). O Estado, para Tosltói, é como uma enorme protection-racket7, cuja existência, sobretudo, institucionaliza o mal que alega proteger contra. E para aqueles que argumentam que temos o dever de proteger os fracos e que perguntam como reagiríamos se uma criança estivesse sendo atacada por um louco, Tolstói replica: Eu nunca, exceto em discussões, me deparei com aquele bandido que, diante de meus olhos, desejou matar ou violar uma criança, mas […] incessantemente vi e vejo não um, mas milhões de bandidos que usam violência contra crianças e mulheres e homens e idosos e todos os trabalhadores, em nome de um direito reconhecido de fazer violência para seus semelhantes (Tolstoy, 2001a, p. 534).

As pessoas se preocupam com uma situação que, se não for imaginária, é pelo menos muito rara, mas estão contentes em ver a violência praticada todos os dias em uma escala muito maior e mecânica, como resultado direto de sua aceitação de que a violência poderia ser necessária em cenários extremos, mas hipotéticos. Ao aceitar que a violência é às vezes necessária (algo cuja eficácia Tolstoy contesta, em qualquer caso), as pessoas concedem ao Estado a autoridade de usá-la contra milhões. Além disso, o Estado não apenas pratica a violência contra seus próprios cidadãos, mas também rouba e mata aqueles que estão além das suas fronteiras, sem o menor remorso. Obviamente que cada Estado justifica a manutenção de seu exército como uma defesa necessária contra estrangeiros mal-intencionados, mas “isto é o que todos os governos dizem uns para os outros”, de modo que, “o poder do Estado, longe de nos salvar do ataque de nossos vizinhos é, ao contrário, a causa de tais ataques” (Tolstoy, 2001c, p. 199). A lógica é circular. O real propósito dos exércitos, Tolstói suspeita, foi precisamente insinuado por Lichtenberg, quando escreveu que se um viajante visse um povo em alguma ilha distante, cujas casas estivessem protegidas por canhões carregados e em torno delas vigias que patrulham dia e noite, ele não poderia deixar de pensar que a ilha era habitada por bandidos. Ora, não é desta maneira que ocorre com os Estados europeus? (Tolstoy, 1937a, p. 253).

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Uma situação na qual um grupo criminal exige dinheiro de um proprietário de loja, empresa etc. em troca de não prejudicá-lo (Cambridge Dictionaries Online) (N/T)

Exércitos estão lá para patrulhar fronteiras que são erguidas para proteger a riqueza indevida que muitas vezes foi saqueada do exterior. Em suma, Tolstói era um anarquista porque ele não podia aceitar a violência do Estado e os argumentos que a justificam. Para ele, o Estado é um tirano violento cuja existência é um insulto à razão (e ao cristianismo). No entanto, o Estado existe e se mantém enganando as pessoas para que elas aceitem a sua necessidade. Um ajudante crucial dessa fraude, na concepção do Tolstói, tem sido frequentemente a Igreja.

2.2 A Igreja Diante dos ensinamentos de Jesus e da história do Estado, pode-se questionar por que tantos cristãos estão tão felizes por deverem submissão ao Estado. Para Tolstói, a razão disso é clara: desde o imperador Constantino, a Igreja oficial traiu o cristianismo quando hipocritamente ficou de braços dados com o poder do Estado. E é por isso que Tolstói é tão severo com a Igreja e com o Estado. Ele acusa as autoridades da Igreja e do Estado de conspirarem para manterem-se no poder, perpetuando uma mistura de mentiras irracionais e legitimação da violência para manter os "cristãos" hipnotizados em submissão. Na verdade, para Tolstói, a maioria dos credos professados pela Igreja é irracional, se não nitidamente errado. Ele particularmente despreza as várias formas pelas quais os teólogos da igreja reduzem a importância dos mandamentos mais radicais de Jesus (especialmente a não resistência ao mal). Ele também não tem tempo para a suposta infalibilidade da Igreja e da Bíblia. Esta última, para Tolstói, é apenas uma coleção de escritos de diversos autores, agrupados e revisados de tempos em tempos. Certamente, não é perfeita, indivisível nem traz revelações infalíveis. Mas, se os credos da Igreja são tão irracionais, Tolstói tinha que explicar porque a Igreja vem sendo tão bem sucedida em convencer as pessoas do seu valor. Ele fez isso acusando a Igreja de usar hábeis ferramentas de trapaça mental, dentre elas: a ideia que milagres fornecem provas da crença da Igreja; o desvio da atenção para longe da essência do cristianismo focando na adoração externa; a mistura deliberada de verdades com mentiras para abafar as verdades; e a maneira como tudo isto se combina para sufocar a razão e, fundamentalmente, levar ao hipnotismo cuidadosamente planejado. Diante desta análise, Tolstói foi obrigado a concluir que a Igreja é uma organização perversa. Para ele, o espírito das primeiras Igrejas se manteve próximo dos propósitos de Jesus, porém, a Igreja foi gradualmente se degenerando de tal forma no tempo de Constantino que nas gerações seguintes se tornou exatamente o oposto daquilo que deveria ser – Tolstói chega, até mesmo, a chamar a Igreja de anticristo. Tolstói não hesita também em acusar o clero de ser um encontro de hipócritas que se consideram virtuosos, e cujos ensinamentos são agora destituídos de

qualquer orientação moral decente. Previsivelmente, divulgar tais opiniões críticas sobre a Igreja o levou à sua excomunhão pública da congregação Russa Ortodoxa, o que somente reforçou a crença de Tolstói de que é preciso inevitavelmente escolher entre: de um lado, Jesus e o Sermão da Montanha e, de outro, a Igreja e seus credos irracionais e hipnóticos. Resumindo, se Tolstói usa uma linguagem forte contra a Igreja, é porque ele considera que ela traíu os ensinamentos de Jesus, optando por se concentrar em rituais e superstições ao invés da mensagem principal sintetizada no Sermão da Montanha. Para ele, o comportamento da Igreja e do Estado é contrário aos ensinamentos de Jesus, e, portanto, ambas são instituições anticristãs, fadadas a se tornarem obsoletas em uma sociedade verdadeiramente cristã. Uma aplicação completa e honesta do cristianismo pode exatamente conduzir a uma sociedade sem Estado e sem Igreja.

2.3 O sistema econômico Tolstói é também muito crítico em relação ao sistema econômico que conduz as sociedades capitalistas modernas. Ele compreende o sistema como fundamentalmente injusto e pouco diferente da escravidão. Tolstói escreve: Se o proprietário de escravos da nossa época não possui o escravo João – quem ele pode enviar para a fossa para limpar seus excrementos –, ele tem cinco xelins dos quais centenas de Joões tem necessidade, de tal forma que o proprietário de escravos da nossa época pode escolher qualquer um dos Joões e ser um bem feitor a ele, dando-lhe a preferência, e permitindo que ele, ao invés de outro, desça para o esgoto (Tolstoy, 1948b, p. 95).

O escravo do sistema capitalista não pode ser levado ao trabalho degradante por meio de um chicote, mas ele se apresentará espontaneamente de muito "bom grado" para esse trabalho, uma vez que é a única maneira de ele reunir o dinheiro suficiente para sobreviver e alimentar sua família. O trabalho não é menos degradante e o trabalhador não é menos devotado em fazê-lo. A única diferença com a escravidão está na maneira pela qual o trabalhador é obrigado a assumir esse trabalho. O que está na raiz desta injustiça, de acordo com Tolstói, é que "de uma forma ou de outra, o trabalhador está sempre em escravidão para aqueles que controlam as taxas, a terra e os artigos necessários para satisfazer suas necessidades" (Tolstoy, 1948b, p. 100). Por extensão, a culpa é da propriedade privada. Em um de seus textos, Tolstói vai ainda mais longe e afirma que “a propriedade é a raiz de todo o mal”. Não só porque está na base de um sistema assimétrico e injusto, mas também porque gera cobiça, ganância e uma depravação moral concomitante entre os que tem e os que não tem (Tolstoy, s/d, p. 228). Sobre esse assunto, o pensamento de Tolstói não é muito diferente de muitos outros pensadores de esquerda. Entretanto, Tolstói não gostava da atmosfera científica em torno dos

marxistas contemporâneos e por isso é mais frequente encontrá-lo criticando um colega de esquerda do que aprovando um deles. Há um pensador que Tolstói simpatiza muito e cujo pensamento tende a ser esquecido hoje. Seu nome é Henry George e seu pensamento é informado por uma perspectiva cristã, como o de Tolstói. Ele também é um crítico veemente da propriedade privada, pois para ele toda a terra era um presente de Deus para toda a humanidade. A sua principal (e mais radical) recomendação para a sociedade moderna é a abolição de todas as taxas e sua substituição por uma taxa com base no valor da terra – algo cuja administração ainda iria requerer a contínua operação do Estado. Tolstói defendia a reforma georgista para seus contemporâneos (em seu terceiro e último grande romance, Ressurreição, que foi escrito depois da sua conversão), mas, como Aylmer Maude observa, ele faz isso “somente na forma de uma concessão para a fraqueza da humanidade” (Meude, 1930, p. 429). Para Tolstói, as propostas de George para reforma do sistema econômico eram passos massivos na direção certa, mas no final, eram apenas um passo, enquanto a mudança mais importante e necessária deveria ser a abolição do Estado, justamente por subscrever um sistema profundamente injusto de relações econômicas.

2.4 Revolucionários Isto conduz à questão sobre o método, isto é, os meios pelos quais o Estado teria de ser abolido. E aqui, novamente, Tolstói divergia muito da opinião comum. Num período de agitação revolucionária (sobretudo em sua terra natal), Tolstói foi muitas vezes levado a advertir que os métodos violentos só levariam a mais violência e que os revolucionários devem ser intransigentes em renunciar o uso da violência para não instigar uma nova ditadura, diferente e igualmente injusta. Tolstói compreende o apelo à violência, que é alimentado por uma profunda frustração contra a astúcia e a resiliência do sistema. Além disso, sabe que os revolucionários violentos apenas empregam os métodos que lhes foram ensinados. Porém, adotar meios revolucionários violentos apenas justifica a contra-violência revolucionária como resposta, afirma Tolstói. Certamente, segundo ele, os revolucionários devem ser capazes de delinear “meios mais eficientes de melhorar as condições da humanidade do que pelo assassinato de pessoas cuja aniquilação pode ser tão inútil quanto cortar a cabeça daquele monstro mitológico, que ao ter a cabeça cortada imediatamente constitui outra no lugar?” (Tolstoy, 1937b, p. 197). Isso também o levou a se distanciar de outros anarquistas, os quais Tolstói, juntamente com muitos de seus contemporâneos, não conseguiu dissociar dos arremessadores de bombas, assassinos reais e outros. Ele concordou com grande parte das análises dos anarquistas, mas não com o uso da violência: “os anarquistas”, disse Tolstói, estão certos em tudo; na negação da ordem existente e na afirmação de que, sem Autoridade, não poderia haver pior violência do que aquela nas condições existentes com

Autoridade. Eles estão enganados apenas em pensar que a anarquia pode ser instituída por uma revolução violenta (Tolstoy, 1990b, p. 68).

Para Tolstói, o único método revolucionário verdadeiro foi aquele articulado por Jesus, e sua “essência […] repousa em substituir um objetivo interior (para alcançar o que ninguém mais julga necessário) no lugar de objetivos externos (para alcançar o que todos consentem como necessário)” (Tolstoy, 2001c, p. 413). A única revolução verdadeira, portanto, deve ser orientada pelo exemplo. Ela deve começar dentro de nós, por uma mudança de coração, que leva à adoção de um comportamento de amor e perdão. O nosso exemplo, por sua vez, poderia inspirar os outros a seguilo e fazerem o mesmo. Tolstoi tinha fé no poder contagiante da transformação interior, como demonstrado pela seguinte citação (observe o que Tolstói aqui chama de "conceito social da vida" é o estado atual da violência organizada): Os homens, em seu atual estágio, assemelham-se a um enxame de abelhas aglomerado num galho de árvore. Sua situação é provisória e deve, a qualquer custo, ser modificada. É preciso que voem e procurem um lugar para se instalar. Cada abelha sabe disso e deseja mudar esta situação, mas estão presas umas às outras e não podem voar todas juntas, e o enxame permanece suspenso. Parece que não haveria saída nem para as abelhas, bem para os homens presos na rede do conceito social [de vida]. […] Mas, como basta que uma abelha abra as asas e voe, para que uma segunda, uma terceira, uma décima, uma centésima, a sigam, e, assim, todo o enxame levantará voo imediatamente; do mesmo modo, bastaria que um só homem vivesse segundo os ensinamentos de Cristo para que um segundo, um terceiro, um centésimo seguissem seu exemplo, fazendo desaparecer o círculo vicioso da vida social, do qual não parece haver saída (Tolstói, 2011, p. 207).

Tolstói esperava que a adoção do método revolucionário de Jesus por alguns corajosos pudesse, eventualmente, desencadear o nascimento de sua visão para toda a sociedade. Durante os últimos trinta anos de sua vida, Tolstói escreveu incansavelmente dezenas de livros, artigos e panfletos sobre religião e política na esperança de que isso pudesse contribuir para despertar seus irmãos cristãos para a verdadeira essência do cristianismo. Suas críticas virulentas às autoridades do Estado e da Igreja o levaram a ser frequentemente censurado, mas seus escritos foram publicados no exterior e circularam na Rússia e em todo o mundo. Seus companheiros russos o respeitavam por fazer frente ao Tsar, mas ele também recebeu muitas cartas (incluindo de Gandhi, que reconheceu abertamente sua dívida para com Tolstói) e visitas do exterior, interessadas na sua interpretação política do cristianismo. Assim, ele se tornou uma figura internacional importante na virada do século, ainda que hoje seja apenas lembrado pelos romances que ele escreveu antes da sua “conversão” ao cristianismo.

3. Relevância contemporânea de Tolstói Tolstói articulou seu pensamento político anarquista cristão entre 1880 e 1910, mas sua relevância para o momento contemporâneo já deveria ter se tornado evidente, por conta da

atualidade dos seus pensamento. Para destrinchar esta questão um pouco mais, esta seção retorna brevemente para cada um dos quatro objetos da sua crítica, na mesma ordem anteriormente apresentada.

3.1. O Estado O Estado não é menos violento hoje do que há um século. Seu registro no século XX é, acima de tudo, manchado por galões de sangue. Ele continua a justificar sua existência como o garantidor da paz e da segurança enquanto guerras são travadas em nome dessa ou daquela libertação, dessa ou daquela missão civilizatória (por exemplo, de espalhar a democracia), desse ou daquele direito de auto-defesa. E a violência continua sendo usada contra aqueles que violam suas leis internas – incluindo aqueles tão desprovidos que recorrem ao crime, aqueles tão sem esperança que cruzam fronteiras para ganhar a vida e aqueles que fazem campanha por um mundo diferente8. A democracia representativa foi espalhada por todo o globo, mas as minorias ainda são governadas por maiorias e a ilusão que identifica justiça com a vontade de uma maioria sobrevive. Além disso, o breve comentário do Tolstói sobre o tamanho muito menor do grupo que realmente influencia o processo decisório do governo não é menos verdadeiro hoje do que antes. O Estado do século XXI parece diferente: é maior, despersonalizou e institucionalizou ainda mais funções de governo e suas ações são relatadas com mais rapidez no domínio público. Mas nada disso tornou o Estado menos violento ou mais cristão. Tornou-o, sim, uma máquina autoafirmativa, onisciente, onipotente numa dimensão muito mais preocupante do que na época de Tolstói. Evidentemente, Tolstói não está sozinho em chamar a atenção para todas estas questões do Estado. A escola de pensamento anarquista, por exemplo, também vem expressando preocupações similares por quase dois séculos . Mas a voz de Tolstói adiciona neste coro sua rejeição radical à violência, bem como no seu fundamento cristão.

3.2. A Igreja Em seu fundamento cristão, Tolstói novamente não está sozinho. Outros anarquistas cristãos, como Jacques Ellul, Vernard Eller, Dave Andrews e pessoas associadas ao movimento Catholic Worker também pertencem à vertente cristã do anarquismo9. Mas é em sua visão muito racional do cristianismo que Tolstói é singular em relação a eles. Apesar disso, tal visão sobre o cristianismo não é completamente inédita. Muitos foram 8

E para a contínua relevância de Tolstói mesmo na “guerra” contra os diferentes fenômenos do terrorismo, ver: Christoyannopoulos (2008b). 9 Ver, por exemplo: Andrews (1999; 2001), Coy (1988), Day (1952), Eller (1987), Ellul (1991), Gennacy (1994), Maurin (2003). Para introduções gerais ao anarquismo cristão, ver: Christoyannopoulos (2009; 2010).

desiludidos por aquilo que muitas vezes se chama de “religião institucional”, e escolheram ouvir e tirar do cristianismo aquilo que vêem como sua interpretação correta. Assim, muitos encontraram inspiração nos ensinamentos de Jesus sem necessariamente respeitar a Igreja. De fato, muitos europeus expressam respeito por Jesus ao lado de um forte ressentimento da Igreja. Tal anticlericalismo é, sem dúvida, mais popular hoje do que nos tempos de Tolstói. Pode-se perceber que a Igreja perdeu muito do poder e status que possuía há um século, e, ao mesmo tempo, os Estados que realmente confiavam na Igreja e promoveram-na parecem também estarem menores do que em relação à época de Tolstói. Mas então, novamente, Estado e Igreja não estão totalmente separados. Seja porque a subsistência do clero é financiada pelo Estado, ou porque a herança cristã é parte integral da identidade nacional, ou porque as duas instituições e seu pessoal se sobrepõem, ou ainda porque os símbolos de um estão presentes no outra, o caso de amor entre o Estado e a Igreja continua. De fato, os teólogos da igreja continuam citando muitos dos argumentos levantados por Tolstoi para justificar a sua resignação ao Estado. Em suma, as Igrejas de hoje não são tão diferentes daquelas criticadas por Tolstói. Nem sequer reconsideram o dogma cristão tão criticado por ele. O que Tolstói tinha a dizer, por tanto, ele provavelmente iria repetir tão veementemente hoje. E na Europa atual, pelo menos, é possível que mais pessoas do que naquele época considerem o ponto de vista de Tolstói sobre a Igreja semelhante aos seus.

3.3. O sistema econômico Com relação ao sistema econômico, aquilo que Tolstói considerava como escravidão inerente ao sistema não transformou-se substancialmente – hoje talvez a única diferença seja que o sistema se tornou tão globalizado que a enorme distancia ajuda a esconder dos acionistas do Norte o escravo do Sul. A propriedade privada, por sua vez, continua, quase que totalmente, incontestada – ela está absoluta na base do capitalismo econômico, a tal ponto que mesmo uma crise global de proporções sem precedentes apenas levou a uma corrida frenética para a cura de sintomas, e não a uma séria, aberta e engajada reconsideração das possíveis causas fundamentais da crise. O que mudou desde Tolstói é que a experiência comunista foi posta em prática em muitos lugares e em quase todos falhou. Tolstói, entretanto, nunca teria aprovado o tipo de planejamento central e Estado totalitário que caracterizaram muitos experimentos comunistas. Ele inclusive alertou sobre isto e previu exatamente outra ditadura. Aqui novamente, sobre o sistema econômico, a crítica de Tolstói não é exclusiva sua. Muitos pensadores de esquerda, incluindo muitos anarquistas, construíram críticas semelhantes. A presença contínua destas perspectivas sobre o sistema econômico certifica a relevância duradoura da

concepção de Tolstói sobre a economia, também.

3.4. Revolucionários Onde a contribuição de Tolstói permanece bastante singular, e talvez onde ela seja mais conveniente e atual, é em suas advertências sobre a adoção da violência para promover qualquer causa revolucionária, em sua defesa intransigente da não violência e em ensinar pelo exemplo. Gandhi demonstrou o potencial do sacrifício não violento como um método revolucionário e muitos vem sendo inspirados a segui-lo desde então. Entretanto, permanece o fato de que a maioria das pessoas admite ocasionalmente a necessidade do uso da violência – especialmente para mudar o que é visto como um sistema político e econômico profundamente injusto. Poucas pessoas comentem o mal voluntariamente ou, pelo menos, a maioria das pessoas racionaliza para longe o mal que cometem, usando os fins pretendidos como justificativa dos danos colaterais provenientes dos meios. As reflexões de Tolstói são um alerta contra esta lógica, pois advertem que os meios tornam-se os fins e que os fins estão perdidos se meios violentos são adotados. Numa era de descontentamento global, Tolstói alerta contra a adoção de meios violentos para expressar este descontentamento. Fazendo isto, a voz de Tolstói, e por meio dela a de Jesus, soa como a de um profeta denunciando a condição presente da humanidade e advertindo sobre o caminho perigoso à frente. Dada a gravidade de seu diagnóstico e prognóstico, não há duvidas que vale a pena dar mais atenção a uma voz tão profética

Considerações Finais A versão de Tolstói para o cristianismo será desconfortável para aqueles que sinceramente acreditam que mistérios divinos podem apenas ser revelados por meio da contemplação paciente e do ritual zeloso. E os críticos poderiam muito bem estar certos em se sentirem cansados da interpretação extrema, quase fundamentalista, de Tolstoi acerca do cristianismo. Mas a contribuição de Tolstói à política mantém o seu valor, por chamar atenção para as implicações políticas radicais do Sermão da Montanha, e, porque, enquanto reflete sobre isto, profere uma série de críticas pertinentes sobre o Estado, a Igreja, o sistema econômico e os métodos revolucionários. Além disso, o que ele escreveu sobre o assunto, ele escreveu bem e escreveu extensivamente. Sua interpretação do cristianismo pode, de fato, ter sido peculiar, mas sua obra o tornou uma voz profética e, sem dúvida, eminente, na ampla e diversificada orquestra da teoria política. Uma voz cujo timbre não perdeu (infelizmente) a ressonância no desenrolar do século XXI.

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