A religião na escola e a especificidade do olhar sociológico sobre o fenômeno religioso

October 2, 2017 | Autor: Harlon Santos | Categoria: Sociology of Education, Religião
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A RELIGIÃO NA ESCOLA E A ESPECIFICIDADE DO OLHAR SOCIOLÓGICO SOBRE O FENÔMENO RELIGIOSO Harlon Romariz Rabelo Santos1 Alef de Oliveira Lima2 Danyelle Nilin Gonçalves3

GT Educação e Ciências Humanas Apresentado no V Encontro Nacional das Licenciaturas, UFRN (Natal, RN), 2014.

RESUMO A escola é um espaço pedagógico onde os estudantes tem acesso, mesmo que de forma fragmentada, a uma pluralidade de discursos. Entre eles a ciência representa ou representaria um dos fundamentais. Baseando-se nesse pressuposto este artigo versa sobre a questão da religião na escola e nas relações difíceis que o conhecimento religioso implica a apreensão de um olhar sociológico. Nosso aporte metodológico constitui da construção dos relatos etnográficos, que foram possíveis graças à observação participante exercida nas aulas de Sociologia, dentro da Escola Estadual de Ensino Médio Liceu do Conjunto Ceará, oportunizada pela condição de bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) da Subárea de Sociologia. Ao todo as observações feitas dão ênfase ao mês de novembro/2013, quando por ocasião discutia-se a questão da consciência negra, negritude e identidade cultural. Conclui-se que de maneira geral o conhecimento religioso sedimentado nos alunos ao longo de suas socializações, embarreira e por vezes impede uma apreensão mais profunda da abordagem sociológica. Fazendo com que os estudantes confundam os conhecimentos da Ciência Sociológica com uma agressão a suas crenças. Demonstram indisposição a analisar a religião enquanto fenômeno humano e levam para a dimensão pessoal às análises tecidas pelo professor. Também foi constatado que essa questão é ainda mais densa, quando percebemos que essa inquestionabilidade com que os alunos defendem suas crenças se presta a uma relação de autonomia com o seu saber e sua visão de mundo. Esses aspectos tornam a temática da religião no espaço escolar mais complexa e permeada impactos cognitivos e sociais.

Palavras-chave: Religião; Olhar sociológico; Pluralidade na escola.

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Introdução O tema da religião na escola, assim como diversos outros assuntos desafiadores para a educação, perpassa por inúmeras questões de ordem acadêmica, cultural e política e que obviamente não serão esgotadas neste texto. Neste relato de experiência serão apresentados apontamentos oriundos de uma atividade docente de ação-reflexão oportunizada pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) na Escola Estadual de Ensino Médio Liceu do Conjunto Ceará (Fortaleza-CE) em novembro de 2013. É importante pontuar, à guisa de introdução e fundamento, que a atividade docente é constituída de inúmeras práticas ou partes que, conjuntamente, produzem o fazer docente. Planejamento, Construção da ação didática e Avaliação são algumas das principais atividades do professor no contexto escolar. Não obstante, é relevante aqui pontuar a centralidade da prática avaliativa. Luckesi (2003) argumenta novos saberes sobre a prática avaliativa e constrói uma reflexão em torno da importância e indispensabilidade do ato avaliativo por parte do professor. Aqui o autor demonstra o caráter permanente e crítico do processo avaliativo, processo este que quando tomado em sua plenitude produz resultados profundos sobre a própria prática docente. Luckesi (2003) vai defender que a prática avaliativa, ou seja, a reflexão sobre o dia-a-dia do fazer docente, será um passo indispensável para a aprendizagem do aluno. Não há construção sólida de uma ação educativa e/ou docente sem que haja a Avaliação percorrendo todo o processo, esta avaliação precisa ser contínua, recriando permanentemente as práticas docentes, numa construção de ação-reflexão-ação. As ações que deram como fruto esse relato são oriundas da busca por introduzir a reflexão em nossa prática docente. Reflexão entre aquilo que se espera como resultado do ensino com aquilo que é demonstrado pelos alunos, no caso específico, sobre aquilo que os alunos demonstraram sobre o tema da religião.

Relato de experiência e contexto O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID-CAPES) possibilita que o aluno da licenciatura tenha uma experiência prática dentro da escola ao longo de sua formação universitária. Nós fazemos parte do PIBID da Universidade Federal do Ceará subprojeto de sociologia. Durante os meses de setembro de 2013 ao janeiro de 2014 estivemos envolvidos com a Escola Estadual de Ensino Médio Liceu do Conjunto Ceará, no turno da noite. O Conjunto Ceará é um dos bairros limites de Fortaleza, afastado do centro, compostos por famílias de classe média e média-baixa, mas cercado por vários bairros de baixo IDH

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(SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2013). Uma das nossas principais atividades era a de acompanhamento das aulas de Sociologia e intervenções extracurriculares. Chegando ao final do segundo semestre de 2013 o professor titular e nós percebemos que boa parte dos alunos ainda não haviam entendido um dos aspectos mais importantes da sociologia, como ciência social. O objetivo era mostra-lhes que a sociologia como ciência não pode ser construída a partir de opiniões ou valores de seus agentes, e que é inerente a constituição dessa disciplina que os sociólogos saibam a diferença entre julgamento de valor e julgamento de realidade. Essa compreensão configura-se como um dos primeiros conteúdos da disciplina, ainda no 1º ano do ensino médio, e tornou-se um desafio fazê-los entender que a disciplina não trabalha com volições pessoais, opiniões ou discursos valorativos. Essa falta de entendimento sobre o que é e sobre como a sociologia trata seus objetos foi nitidamente percebida por nós três no momento que abordamos questões religiosas, mais especificamente sobre a diversidade religiosa no Brasil com os alunos do 1º ano. Percebemos que precisávamos trabalhar de forma mais específica sobre esse problema. Nossa preocupação e atitude reflexiva nos conduziram a preparar novas aulas, utilizando de outros recursos didáticos e lúdicos, como vídeos. Essa circunstância ocasionalmente se aliou a Semana da Consciência Negra encabeçada pela escola, em que várias atividades foram divididas entre os professores e nós do PIBID. Foram escolhidos dois minidocumentários pelo professor: o Brincando com os Deuses que mostra um grupo de crianças num terreiro e de seus relacionamentos com as entidades e o A Boca do Mundo: Exu no Candomblé4 que explora a figura de Exu numa conotação não negativista dessa entidade. A intervenção se baseou em especial nas três turmas de 1º ano do turno noturno. A primeira turma que pode assistir ao vídeo foi o 1º J. Tratava-se de uma turma ligeiramente apática às aulas de Sociologia, apesar de contar com alunos que interviam frequentemente nas aulas. De início pareceu ser um filme comum aos alunos, mas quando começaram a aparecer as crianças falando sobre os orixás, mimetizando os rituais que elas vivenciavam, o desejo de se tornarem mães e pais de santo, os alunos começaram a ri, caçoar e demonizar as crianças, afirmando que elas estariam com o “cão nos couros”, “endemoniadas” e toda sorte de manifestações que caracterizavam ofensa. Essas manifestações ofensivas partiam, em especial, por um pequeno grupo que se concentrava bem no fundo na sala. No fim da sessão nós junto com o professor introduzimos as discussões sobre o que era a Religião e de como funciona o sistema religioso, afirmando que era preciso tratar o tema como um assunto humano comum, religião sob o olhar sociológico, como um fenômeno humano. Por vezes as discussões redundavam em acusações, e perguntas de fórum intimo sobre a existência de Deus, e se nós (alunos do PIBID e o professor) acreditávamos ou não nessa existência. De certo modo, foi em vão reafirmar que não se tratava em afirmar ou negar a existência de um Criador, mas de compreender as diferentes religiões que coexistem no Brasil. Nas demais turmas do primeiro ano a situação se deu mais ou menos como na primeira turma. Foi oferecida

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também, por ocasião da semana temática, uma oficina cujo tema era Negritude e Identidade Cultural, tendo como metodologia o uso de um vídeo chamado Atlântico Negro: na rota dos Orixás, onde se ressaltava as relações entre Brasil e o Continente Africano, principalmente Angola. Focando nas similaridades religiosas entre os rituais em ambos os países e de como isso ressalta uma conexão étnico-racial compartilhada nas práticas. O público-alvo foi à turma do 2º L as reações em relação ao filme foi bem melhor, e os estudantes ficaram mais à vontade para a discussão apesar de manter um distanciamento comum com essa questão. Segundo o professor aquela turma era mais fácil de trabalhar aqueles tipos de assuntos. Posteriormente foram feitos cartazes com intuito de afirmar a negritude brasileira. Em decorrência da temática sobre negritude e em virtude do pouco tempo que o professor tinha para organizar outra oficina para outras turmas, o filme utilizado nas aulas de Sociologia. Os alunos, já no 2º H, tiveram reações bem contraditórias alguns enxergaram similaridades entre o cristianismo e o candomblé. Entendendo que se tratava de uma espécie de catecismo que aquelas crianças passavam como eles para entender os preceitos daquela religião. Outros, no entanto, questionaram o professor e eu afirmando que ele queria passar uma imagem positiva daquelas práticas e assim negativar o cristianismo e os cristãos em geral. No final junto com o professor decidimos inverter a ordem: primeiro apresentar a forma como vamos investigar e questionar a religião, e só posteriormente exibir o vídeo. Assim foi feito com as turmas de 3º ano, apesar de esclarecemos que iríamos compreender a religião como fenômeno humano, construindo socialmente, e que teve e tem funções econômicas e políticas. Além de tratá-la como sistema simbólico, os alunos insistiam que aquilo era algo maléfico e que aquelas práticas se relacionavam ao demônio, poucos foram aqueles se colocaram de maneira diferente. Apesar de dizerem que respeitam aquela religião. As aulas retornaram a normalidade no dia 27 do mesmo mês, e a turma do 1º ano K foi à última que viu o filme. No primeiro momento houve uma grande agitação em relação às imagens e as próprias crianças que falavam no vídeo sobre sua religião. As mesmas expressões das outras turmas persistiram. No dia 29 esse grupo de estudantes teve que escrever a redação e demostram imparcialidade, no entanto alguns continuavam a repetir que só existe um Deus, e que não gostavam daquelas manifestações, demonizando as práticas mostradas no vídeo. Essa experiência passou a ser alvo de nossa reflexão e análise. Chamou-nos a atenção a recorrência de manifestações ofensivas, emotivas e negativistas sobre um outro fenômeno religioso, num caso o Candomblé, menos praticado em termos absolutos no país. A situação torna-se assim um dado etnográfico a ser problematizado e aqui explorado: tanto da importância desse tipo de tema e debate dentro da escola como da singularidade do olhar sociológico que apresentou-se como diferente e desafiador dentro de um contexto nitidamente marcado por discurso sobre a religião que polariza o debate. Ao todo foram cinco turmas observadas,

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compostas por alunos, na sua maioria, entre 15 e 21 anos de idade, moradores, em geral, dos bairros adjacentes.

A religião na escola Pela sua importância e influência social a religião é um tema que dificilmente sairá do ambiente escolar. É preciso considerar a grande pujança e força que tem a religião num país marcado culturalmente pela presença e diversidade religiosa. Apesar de criticado, o artigo 210 §1º da Constituição Brasileira institui o ensino religioso no ensino fundamental, deixando a cargo do sistema escolar especificar os conteúdos dessa disciplina facultativa. Dessa forma, fica evidente a impossibilidade de se negar a presença da religião na escola, seja culturalmente ou institucionalmente. Houveram perspectivas como a de Peter Berger que defendiam um possível fim da religião, que seria um fenômeno a passar, no entanto, esse fenômeno assumiu novas formas, ressignificações e novas presenças contemporâneas inegáveis sociologicamente (GIUMBELLI, 2002; GEERTZ, 2001). A pergunta que se torna relevante então é aquela que questiona a abordagem e o conteúdo dessa disciplina ou conhecimento dentro da escola. A proposta desse texto é problematizar abordagem religiosa dentro do ambiente escolar e defender um olhar específico sobre o fenômeno religioso: o olhar das ciências sociais, tomando a religião como fenômeno humano. Essa problematização parte de considerações mais gerais e teóricas sobre o tema e a partir de nossa observação participante já indicada.

A escola como espaço privilegiado da ciência Tanto a escola como a área da Educação são instituições sociais não neutras e não desvinculadas de um determinado projeto social. A escola é antes de tudo uma tecnologia social e não pode ser pensada fora do escopo que a sociedade adulta pensa e acredita sobre a formação dos novos sujeitos sociais. A escola figura na sociedade moderna como uma instituição singular na formação humana. Fruto da necessidade de que “o processo de formação do ser humano tem que ser intencionalmente dirigido, pelos próprios seres humanos que se relacionam socialmente.” (TOZONI-REIS, 2014, p. 2). Assim a escola passa a ser espaço de disputas políticas sobre que formação e currículo se quer. As questões de filosofia da educação se encontram então em permanente debate e tensão. A presença da religião na escola também se encontrará nesse debate e o tipo de abordagem que tal conhecimento terá na escola será alvo de acordos e tensões, igualmente. Assim, essa primeira parte do texto vai tenta problematizar a questão da religião dentro de uma noção liberal, afirmando-se no princípio da laicidade do estado e posteriormente vai apresentar a especificidade do olhar sociológico sobre a religião e a importância desse discurso dentro da escola.

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A questão coloca parte da noção moderna de que a escola é um espaço privilegiado da ciência e que seus conteúdos e abordagens devem ser crivados por esse conhecimento específico. Tanto as legislações, o entendimento internacional, e mais especificamente os Parâmetros Curriculares Nacionais e Orientações Curriculares Nacionais demostram claramente a necessidade de um conteúdo uniforme, baseado no conhecimento científico e empírico. O uso dessa tecnologia social chamada ‘escola’ está nitidamente regido por um entendimento de que apesar da diversidade de conhecimentos de uma sociedade, a escola será um espaço privilegiado da ciência. Assim, a religião, como demais conhecimentos de mesma natureza, deve entrar na escola sob um discurso científico. No caso do fenômeno religioso sob um olhar que valoriza-o como uma forma de sociabilidade e representação, e fixa-o como produto da ação humana, como construção humana (DURKHEIM, 1996) sem se apropriar do caráter metafísico e absoluto que marca a cosmovisão religiosa. A escola deve ser entendida como uma instituição social, imbuída de diversas finalidades sociais, a qual se convencionou ser orientada pelo discurso científico. Numa sociedade moderna e democrática, há uma valorização dos diversos discursos e uma pluralidade de percepções sobre a realidade que devem ser valorizadas. Nesse contexto, em especial da escola pública, deve haver um redirecionamento para um discurso científico.

Por uma pluralidade de discursos Ao resgatar mais uma vez a escola como instituição social e ao pensar na relação escola-família-comunidade, fica fácil perceber a importância e centralidade da escola como lugar de socializações. É fato que as socializações experimentadas pelos alunos são das mais híbridas e plurais possíveis, e aqui se destacam o papel da família, amigos, mídia, artes e da própria religião como demonstra Lahire (2006) ao retratar os jovens e Setton (2008). Assim, a escola aparece como um dos espaços de socializações, carregada ainda de poder e legitimação social, apesar de suas fragilidades e dissonâncias. Dessa forma, se nos desafiarmos a pensar as socializações pela qual passa um aluno poderíamos chegar a problematizar: em que espaços um aluno poderia ouvir ou ter contato com um discurso sobre a religião que não fosse o discurso prosélito? Mais especificamente no nosso caso etnográfico, fica a pergunta: em que situações e lugares um aluno da periferia de Fortaleza-CE teria contato com um conhecimento científico sobre o fenômeno religioso? Obviamente essa resposta careceria de uma pesquisa empírica com retratos sociológicos bem elaborados e extensos, o que não é o caso e pretensão desse texto. No entanto, é possível esboçar uma hipótese (também ancorada nas nossas observações do cotidiano escolar e nas conversas informais com os alunos) de que a escola é um espaço diferenciado, singular no sentido de tentar trazer um conhecimento diferente daquele ensinado na família, comunidade ou igreja/culto. Por conseguinte, se pensarmos na escola dentro de seu espaço social mais próximo, vamos concluir que a mesma acaba por apresentar um discurso

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diferente (ou pelo menos assim deveria ser) sobre o fenômeno religioso, esse sob o olhar da ciência. É perceptível que os alunos já possuem, na comunidade e na família, contato com a religião nas suas mais diversas formas (institucionalizadas ou não) e discursos. E talvez para muitos, será somente a escola o lugar onde esse educando terá acesso a um discurso diferente sobre a religião, sob um pressuposto diferente, pluralizando sua visão acerca de algo até certo ponto naturalizado e praticado sem muita reflexividade. A escola estará dando sua contribuição para a formação humana do aluno ao tratar da religião como uma manifestação humana, tendo este fenômeno como objeto científico e passível de reflexão e espírito crítico. Estimulando uma postura de respeito aos direitos humanos e compreendendo e aceitando a diversidade e pluralidade religiosa tanto em âmbito local como nacional. Tal postura ou abordagem pode ser adotada não para inferiorizar o sujeito religioso ou para desqualificar quaisquer tipos de manifestação religiosa, mas para dar ao aluno mais uma visão sobre o fenômeno, a visão da ciência. Ao fazer isso a escola estará pluralizando e oportunizando uma visão e um discurso sobre a religião que é pouco conhecida pela sociedade em geral e talvez seja na escola que o mesmo terá essa oportunidade de forma mais latente. O que nossas observações permitem afirmar, no entanto, é que, no caso específico da nossa escola, foi a disciplina de sociologia que trouxe esse discurso diferente sobre a religião, analisando como fenômeno humano e assim pluralizando os discursos em torno do tema e realocando a escola como espaço privilegiado do conhecimento científico.

A especificidade do ensino de sociologia em relação ao fenômeno religioso Uma discussão acerca da diversidade religiosa não gira em torno do seu próprio eixo, principalmente quando o espaço onde essa discussão é realizada, é a instituição escolar. Nesse caso o texto que tecemos aqui é uma reflexão particular sobre as maneiras que a ciência sociológica encontra para tratar essa temática. Ainda mais quando damos ênfase na relevância cognitiva desse tipo de conhecimento científico na escola. No decorrer das várias intermitências que a sociologia sofreu, não houve em suma um espaço-tempo suficientemente ajustado que permitisse de forma esquemática traçar a especificidade do ensino de sociologia no nível básico da educação, tão pouco direcionar o olhar dos pedagogos sobre as implicações cognitivas desse ensino. A sociologia entende a religião de duas formas possíveis: a primeira é aquela compreendida pelos seus próprios adeptos e devotos, um sistema de significação transpessoal e intersubjetivo. Que tem como consequência orientar moralmente as ações e o caráter dos indivíduos, tendo como meta uma religação, ou uma maior proximidade com aquilo que é reconhecido como sagrado. A segunda forma de compreender a religião é defini-la enquanto sistema simbólico, construído pela ação humana ao longo do tempo, que se remete a contextos

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sociais específicos, com funções políticas e econômicas prescritas historicamente. Um sistema que se apresenta prescritivo e classificatório, que ecoa nas implicações sociais dos seus dogmas, causando ressonâncias de todo a sorte. Essas maneiras de se entender a religião na sociologia em particular, demonstram com clareza a pluralidade de sua abertura para problematizar sociologicamente esse assunto tido como espinhoso. A dificuldade se insere na tentativa de transmissão/inteligibilidade da peculiaridade desse olhar para o educando, pois o que se está colocando em jogo é se o aluno da escola média consegue compreender essa particularidade e o modo como ela trabalha a religião? Se como deliberam as Organizações Curriculares Nacionais (OCNS), os objetivos do ensino de sociologia são estranhar e desnaturalizar a realidade. Então, por que não pôr em prática um regime de problematização da diversidade religiosa, tratando-a como ação humana construída perante um todo social? Quais os sentidos dessa dificuldade de apreensão por parte dos alunos? As perguntas são pertinentes por expor uma debilidade da sociologia, mas não tão somente dela: as “ciências humanas”5 no geral apresentam essa questão. O que de fato ocorre é que essas ciências elaboram uma pedagogia orientada a uma postura cognitiva, e não a um treinamento fincado na resolução de questões. Percebendo que sua necessidade se baseia no método de abstração. A ciência sociológica vai além dessa necessidade, pois para ela a abstração é um processo de confronto teórico com a realidade empírica. Logo o aluno da escola média que estuda a sociologia deve em certa medida se apropriar de uma capacidade imaginativa-dedutiva ao mesmo tempo em que desenvolve uma habilidade de comparação lógica com a realidade social vista no seu cotidiano. Não é apenas a especulação filosófica da realidade de acordo com um raciocínio lógico, ou entendimento puro da construção histórica do tempo humano, mas suas conexões dinâmicas. A resistência a essa particularidade do olhar sociológico não se baseia exclusivamente na esfera cognitiva, ela é fruto de uma resistência socialmente disposta em relação à classe social, a distribuição de renda. Uma resistência que tem como referência uma disputa de socializações que se instauram no sujeito de ensino-aprendizagem. Aquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu (2007) definiria como habitus. Particularmente o que percebemos ao longo das aulas foi que além dessa resistência a sociologia, existe uma resistência à postura científica que a sociologia desenvolveu durante seu amadurecimento, que se insere nos princípios de compreensão do real, segundo dados empíricos coletados de maneira sistêmica e com técnicas especializadas, que se referenciam na tentativa cognitiva de empatia, aspectos relacionais da realidade dentre outros. Assim a peculiaridade do olhar sociológico é pautada na tentativa compreensivoexplicativa da realidade, e se constitui por um esforço de taquigrafia/dedutiva da mesma. Para tanto a sociologia concebe os fenômenos sociais como: processos, construções, dinâmicas, etc. Com a religião não é diferente e os critérios de investigação continuam os mesmos. Mas, devido

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a sua particularidade ela acrescenta maiores questões, pois tem caráter prescritivo e influi na maneira como os sujeitos se relacionam com o mundo. A temática religiosa se mantém na esfera da afetividade (se inscreve no sentir) e ao mesmo tempo se constrói como entidade moral, sugere condutas e afirma valores. Na contemporaneidade esse aspecto ganha matizes cada vez mais agressivas, ao se perceber o surgimento em massa da teologia da prosperidade, principalmente no Brasil e na sua ênfase em guerrear (espiritual e politicamente) com as religiões de matrizes africanas. Muitas vezes a ojeriza que os alunos demonstraram em relação às outras religiosidades que não fossem a sua, se confundia com a negação dos fundamentos analíticos da ciência sociológica. Denotando uma compreensão superficial dessa ciência e deixando em destaque suas debilidades no que tange a apreensão do olhar sociológico. O professor ver-se numa posição delicada ao usar um artificio de problematização potencialmente perigoso: a dessacralização, como meio de tornar o assunto mais fácil de ser abordado. Para poder tomá-la de acordo com uma das posturas já mencionadas. Ela deixa de ser algo sagrado e pode ser questionada a partir de suas funcionalidades, implicações, histórias e conflitos. Assim, o que se espera desse estudante é tanto uma imparcialidade quanto uma capacidade crítica de se compreender os fenômenos humanos.

Considerações finais Ao desenvolver esse relato e problematizar a temática da religião no contexto escolar, podemos observar que as deficiências dos alunos em relação à sociologia se instauram numa postura dificultosa e dogmática para sacralizar não apenas o seu entendimento do que é religião, mas tudo o que ela sugere enquanto conhecimento e valor de mundo. A escola como dita ao longo do texto deve ser compreendida como espaço social onde há uma pluralização dos discursos, privilegiando a ciência na esfera educativa. De maneira geral também percebemos que os alunos se apropriam da superficialmente do conhecimento sociológico, como uma escolha. Ao preterir um discurso sobre o outro o aluno, constrói uma relação de autonomia com o seu saber, e não é papel do professor questionar ou agredir essa relação. Mas, quando nos referenciamos ao espaço pedagógico é interessante que a ciência apareça como protagonista dos debates e não um saber reificado, sem questionamentos. A questão é profundamente delicada, pois o caráter prescritivo e normativo da religião acaba por montar arcabouços de compreensões preconceituosas e dificulta de maneira efetiva a apreensão do conhecimento sociológico, devido aos seus fundamentos pluralistas que a sociologia assume. Os alunos cultivavam uma postura enrijecida tanto para relativizar as religiões, quanto para se atentar a capacidade de abstração e crítica exigida do conhecimento sociológico. Nesse sentido o estudo e a análise da diversidade religiosa atingem a visão de mundo que eles

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possuem, significando afirmar que os estudantes confundem a abordagem sociológica com um ataque as suas crenças de modo deliberado. Entendem até os posicionamentos do professor, a necessidade de discussão daquele assunto, mas conservam uma inquestionabilidade de sua crença. Assim, o ensino de sociologia torna-se mister a partir de uma abordagem dos fenômenos humanos que não se fixa a opiniões ou construções fixas e tradicionais de pensamento. A disciplina oportuniza uma construção alternativa ao conjunto de conhecimentos e referências que são apropriados pelos alunos em seus contextos familiares e comunitários. A escola também surge nessa reflexão como dotada de uma particularidade: a de promover um olhar democrático e científico sobre questões delicadas e em constante tensão como é o caso da religião. É inegável a parcialidade da escola pública e de seu papel político como extensão do Estado dentro dessa macroestrutura moderna. Da mesma forma, é inevitável que um tema tão pujante como a religião esteja extra murum da escola. A consideração problematizada aqui seria aquela que busca não negar a religião, mas trabalhá-la sob um ideal laico e democrático, instrumentalizando-se de conhecimentos específicos, como o são os das ciências sociais, que tem o fenômeno religioso como um dos seus temas clássicos.

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NOTAS 1. Aluno da Licenciatura em Ciências Sociais na UFC, bolsista do PIBID e bacharel em Teologia. 2. Aluno da Licenciatura em Ciências Sociais na UFC e bolsista do PIBID. 3. Graduação em Ciências Sociais, Mestrado e Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professora adjunta da Universidade Federal do Ceará e Coordenadora de Área do Subprojeto de Sociologia do PIBID UFC. 4. Ambos os vídeos são de fácil acesso na internet, em especial na plataforma YouTube, segue links: “Brincando com os Deuses”. Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2014. “A Boca do mundo: Exu no Candomblé”. Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2014. 5. Compreendendo que toda a ciência é praticada de maneira social, por uma comunidade de cientistas e pesquisadores, portanto toda a ciência é humana. A distinção feita entre ciências naturais e humanas se refere à particularização de seus objetos de estudo e suas metodologias. Fato que está sendo colocado em discussão na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 8. ed. Campinas: Papirus, 2007. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996. GEERTZ, Clifford. A nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Capítulo 8: O beliscão do destino – a religião como experiência identidade e poder. GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar Editorial, 2002. LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Artmed, 2006. 656 p. LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem na escola: reelaborando conceitos e recriando a prática. Salvador: Malabares Comunicação e Eventos, 2003. SETTON, Maria da Graça Jacintho. Experiências híbridas de socialização entre jovens brasileiros. [S.l]: FFLCH USP, 2008. Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2014. SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Desenvolvimento humano, por bairro, em Fortaleza. Fortaleza, 2013.

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