A Religiosidade na Música-Teatro de Estércio Marquez Cunha e configurações identitárias: um ângulo do “sotaque” de um compositor goiano sob o enfoque do representacional

July 11, 2017 | Autor: Felipe Vinhal | Categoria: Música, Historia Cultural, Etnomusicologia, Musicología histórica, Musicologia
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A Religiosidade na Música-Teatro de Estércio Marquez Cunha e configurações identitárias: um ângulo do “sotaque” de um compositor goiano sob o enfoque do representacional Felipe Eugênio Vinhal Universidade Federal de Goiás – [email protected] Orientadora: Magda de Miranda Clímaco Universidade Federal de Goiás- [email protected]

Palavras-chaves: Configurações identitárias; religiosidade; Estércio M. Cunha; representações sociais 1. INTRODUÇÃO Este trabalho parte das descobertas e resultados obtidos em trabalho PIBIC do período anterior, “Configurações identitárias na obra de Estércio Marquez Cunha: o “sotaque” de um compositor goiano”, resultados que conduziram a novas questões. Ao propor esse novo ângulo da investigação, que agora busca o “sotaque” goiano da obra de Estércio Marquez Cunha relacionado ao aspecto religioso de sua Música-Teatro, continuo tendo em vista a abordagem da música na sua relação intrincada com a sociedade, como estrutura simbólica capaz de significar em relação a essa sociedade (GEERTZ, 1989; CASTORIADIS, 1995), de evidenciar representações sociais, uma modalidade de conhecimento cotidiano, coletivo, partilhado, que se objetiva nas formulações, práticas e obras de um grupo social, revelando um modo particular de valoração, classificação, categorização (CHARTIER, 1990), inerente a uma circunstância que aponta para processos identitários (HALL, 2003), que, no caso desse trabalho, estão também implicados com elementos de religiosidade (DURKHEIM, 1996; BRANDÃO, 1985). Neste trabalho, a religiosidade é encarada sob o crivo das representações sociais. Não há aqui o objetivo de defender ou validar determinada instituição religiosa, em detrimento de outras, e sim de conferir como essa religiosidade está ligada à constituição sociocultural humana e de como ela se expressa na obra de um compositor goiano. Segundo KUCHENBECKER (1997), “Desde os mais remotos tempos, o Homem age desta ou daquela maneira em função daquilo que acredita ou deixa de acreditar. Não existe povo, por mais bárbaro e primitivo que seja, que não tenha a sua forma de manifestação religiosa em sua cultura, seus tabus, seus princípios, seus valores, suas superstições, suas crenças. O ser humano é um ser religioso por essência” (p. 17).

Para DURKHEIM (op. cit.), um dos autores a falar em representações, religião é coisa eminentemente social. “As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais desses grupos” (p. 38). Como representações, a religiosidade então também é forjadora de processos identitários e, por conseguinte, revela seu valor dentro das ciências sociais e a antropologia, cada vez mais presentes nas novas abordagens musicológicas, que reposicionam o músico e a música na sociedade, agora como constituintes desta, não mais como apenas reflexo. O próprio compositor goiano, em entrevista realizada para o jornal local O Popular, em maio de 2000, revela que a religiosidade é um tema que “bate forte na sua cabeça”. Na pesquisa anterior, esse novo aspecto me saltava aos olhos e ouvidos na sua obra em geral e, devido à complexidade do tema, foi recortado para uma possível continuação, que pudesse dar a devida atenção. Pude notar que a religiosidade, presente em grande parte da obra de Estércio Marquez Cunha, se manifestava de maneira marcante principalmente em algumas de suas obras do gênero Música-Teatro. Este gênero, por sua vez, ainda é novidade dentro da composição musical, e em grande levantamento bibliográfico realizado não foi encontrada definição nenhuma, quanto mais satisfatória. ANDRADE (2000), revela que os professores americanos do compositor em sua pós-graduação nos EUA o incentivam a compor mais obras do gênero, o qual Estércio teve contato por Gilberto Mendes, grande nome do gênero no Brasil. Contato intermediado por Conrado Silva, compositor uruguaio e professor de Estércio na sua pós-graduação em Música Contemporânea na Universidade de Brasília. Embora não haja uma definição satisfatória, pode-se dizer que o gênero Música-Teatro estabelece uma ligação do gesto teatral com o musical, de forma que um seja pensado através do outro, se fundindo e se confundindo. Na obra “O Tempo”, por exemplo, correntes são usadas tanto como recurso cênico, significando aprisionamento da personagem, como também seus sons são necessários à parte musical. Essa nova proposta de trabalho, portanto, que tem em vista um aprofundamento da investigação anterior, um ângulo instigante e curioso dos processos identitários relacionados à “goianidade” da obra do compositor goiano Estércio Marquez Cunha, partiu das seguintes questões: Que elementos de religiosidade se apresentam na música-teatro composta por esse compositor? Como se apresentam? Essa música se evidencia como um campo do representacional implicado com processos simbólicos, forjadores de processos identitários relacionados também a essa abordagem da religiosidade? Esses processos têm a ver com a ligação de Estércio Marquez Cunha com a sua terra natal? Com o seu diálogo com

outras culturas? Buscando solucionar esta problemática, e partindo do pressuposto de que elementos de religiosidade também se encontram presentes na obra deste compositor, sobretudo na Música-Teatro, apresentando-se como resultados da sua interação com a cultura goiana e, como resíduo, na música de teatro que desenvolveu, sobretudo, durante a sua permanência nos Estados Unidos, este trabalho tem como objetivo investigar os elementos de religiosidade apresentados na música-teatro do compositor goiano Estércio Marquez Cunha, tendo em vista as suas implicações com o representacional, com elementos significativos implicados com os processos identitários relacionados à cultura goiana. Essa investigação justifica-se tanto por contribuir com o aprofundamento do trabalho que busca os processos identitários relacionados à relação do compositor com sua terra natal, por investir em um elemento que pode estar sobressaindo em sua obra de forma especial, quanto por continuar divulgando a obra de um compositor goiano, ainda não suficientemente reconhecido no cenário brasileiro. Por outro lado, continua contribuindo para a efetivação e divulgação das tendências mais atuais dos estudos musicológicos, ao chamar atenção para a importância do papel do músico e da música na sociedade, para a relação intrincada que a música estabelece com a sociedade quando percebida como estrutura simbólica, arraigada ao imaginário coletivo, capaz de significar em relação a essa sociedade, e de evidenciar representações sociais. 2. MÚSICA E RELIGIOSIDADE EM GOIÁS Um dos primeiros passos para tentar resolver as questões propostas foi levantar uma pequena história da religiosidade em Goiás, e nesse contexto compreender como a música interagiu com ela, e que legado foi deixado à nova capital, fundada na década de 1930, palco de formação e atuação do compositor aqui estudado, a fim de se analisar historicamente os elementos desse legado religioso presentes na música-teatro de Estércio Marquez Cunha e de como eles apontam para uma identidade regional. Para SILVA (2009), a história da religiosidade em Goiás acompanha a trajetória do ouro, em meados do século XVIII, com a criação da prelazia goiana em 1745 em Vila Boa de Goyas, atual Cidade de Goiás. Nesse período o Brasil era uma sociedade estritamente constituída nas bases do catolicismo. Vale lembrar que somente no ano de 1890, sob o comando de Deodoro da Fonseca, o Brasil se tornou um Estado laico. Até então, a Igreja Católica intervia em praticamente todas as questões da vida em geral, desde condutas domésticas a orientações políticas, e ainda hoje exerce grande influência social. Assim, são fundadas diversas igrejas, algumas ricas e imponentes, tanto em Vila Boa quanto Meia Ponte,

atual Pirenópolis, as duas principais cidades do início da sociedade goiana. Nesse contexto, a música se desenvolve fortemente ligada ao catolicismo. Segundo MENDONÇA (1981), corais e pequenos grupos instrumentais aspirantes do baixo contínuo eram criados e mestres de capela eram contratados com o único objetivo de formar corpo musical e repertório para as celebrações católicas. Mais tarde, até mesmo as bandas de metais ligadas às corporações militares, como as famigeradas Euterpe e Phoenix, tocavam, sobretudo nas festividades religiosas. Quando da fundação da nova capital Goiânia, na década de 1930, já com o Estado laico, o catolicismo ainda era religião oficial, principalmente no que se refere ao grande contingente de pessoas vindas da Cidade de Goiás e Pirenópolis. Assim, o catolicismo continua forte, igrejas e escolas continuam a ser fundadas, utilizando, das diversas ferramentas, a música. Nesse cenário, chega Estércio Marquez Cunha, um ano depois de seu nascimento, em 1941, na cidade de Goiatuba. Como revela ANDRADE (op. cit.), “Estércio foi educado em ambiente cristão” (p. 48). Parte da família era espírita e a outra, católica. Com liberdade de escolha religiosa, estudando em escolas católicas e frequentando missas com suas tias, Estércio chega a ser batizado. Quando retorna de seus estudos nos Estados Unidos, assume o espiritismo, envolto no cristianismo católico, que influenciou sobretudo sua infância. Na entrevista já citada, o compositor goiano, caracterizando a proposta do primeiro CD feito exclusivamente com sua obra, diz que o disco é essencialmente vocal, e que queria “fazer uma sequência que fizesse sentido em relação à civilização ocidental, mas trabalhando o lado da fé. A civilização ocidental concebida em cima da fé, do cristianismo” (p. 2). Essa dimensão do desenvolvimento da música e do cristianismo ligados ao desenvolvimento de toda a sociedade goiana, e do cristianismo escancarado do compositor, não ligado de forma direta a nenhuma instituição religiosa específica, são fundamentais à análise de suas obras, devido ao arsenal simbólico emanado destas e as representações que elas contem, ligando uma religiosidade cristã a um “sotaque” goiano. 3. OBRAS SELECIONADAS Outro passo rumo à solução dos questionamentos levantados nesta pesquisa foi a seleção estratégica de duas obras do gênero Música-Teatro, analisadas e interpretadas sempre com a consciência da interação dos caracteres musicais com o cenário sócio-histórico e cultural com o qual sua criação e fruição interagiram. As obras selecionadas foram: The Cycle of Man (1981) e O Ofício do Homem (1985).

As obras foram escolhidas tendo-se em vista dois importantes fatores: o momento de sua criação e a capacidade de fornecer evidências suficientemente relacionadas aos problemas do trabalho a partir da análise apenas da partitura (manuscrita ou impressa). O primeiro fator se deve aos resultados obtidos em trabalho anterior (VINHAL; CLÍMACO, 2012) que, dentre eles, destaca grandes mudanças nos processos composicionais de Estércio Marquez Cunha em seus diferentes estágios de vida, com base nos cenários com os quais interagiu. Essa interação, porém, não poderá ser analisada da mesma maneira como no trabalho anterior, pois, como já dito, com base em ANDRADE (op. cit.), o compositor investe mais no estudo e criação de obras do gênero Música-Teatro quando de sua passagem pelos Estados Unidos, em sua pós-graduação strictu sensu. A pequena diferença temporal da criação das obras selecionadas tem outra justificativa, e nesse ponto entra o segundo fator, do foco da análise das obras através das partituras. Isso se deve ao fato de que as peças, que misturam duas linguagens artísticas diferentes (música e teatro), não possuírem gravações de áudio e vídeo, e nem mesmo somente de áudio, o que não permite pleno uso dos elementos de uma análise fenomenológica, como explicitada por FERRARA (1984), importante ferramenta metodológica utilizada no trabalho anterior. Para o autor, o primeiro passo para a análise seria uma “audição aberta” (que no caso também envolveria a percepção visual), em que o pesquisador, desvestido de sua carga intelectual, tem a única tarefa de ouvir repetidamente a obra. Depois dessa exaustiva escuta, a análise alterna então três níveis diferentes: Uma análise sintática, que trata da organização sonora; uma análise semântica, da percepção de elementos estruturais que funcionam como significantes; e análise ontológica, na busca de elementos do (s) cenário (s) sócio-histórico e cultural (ais) que remetem aos significados. Como as obras do gênero Música-Teatro não oferecem recurso de gravação, e fazer uma montagem das peças com esse intuito seria dispendioso demais para a pesquisa, esta, portanto, se baseou na análise das partituras, e o diálogo com as ferramentas de análise de Ferrara foram utilizadas na medida em que a partitura, aliada à nossa imaginação, erudição, dedução e percepção (inerentes à ciência musicológica), pudesse colaborar e suprir as carências. E assim, obras que evidenciam grande teor religioso nas primeiras impressões foram selecionadas. Acreditamos que a falta de gravações, e até mesmo as parcas apresentações de obras do gênero no país (em comparação com outros gêneros musicais), se deve à carga de novidade e vanguarda em sua composição, na medida em que o gênero se encontra em atualização constante, não havendo ainda definições e especificações sólidas a seu respeito. Além disso, a execução de obras do gênero, muitas vezes, exige grande estrutura e dispor dela

demanda mais empenho do que o seria com obras para música ou realização de peças, que geralmente são de pequeno porte no contexto universitário do qual Marquez interagiu a maior parte de sua vida. Apesar de ser um gênero bastante querido pelo compositor, ainda não existe grande quantidade de músicas-teatro de sua autoria. A tabela abaixo mostra a lista atual de peças do gênero e seu ano de composição: OBRA O GUARDA-NOITE TEMPO THE CYCLE OF MAN LÍRICA INFANTIL RÉQUIEM PARA PROMETEUS BRINCADEIRA AO PIANO NATAL O OFÍCIO DO HOMEM RIZOMA DIÁLOGO

ANO DE COMPOSIÇÃO 1977 1978 1981 1982 1982 1983 1984 1985 2001 2011

Tabela 1 – Obras do gênero Música-Teatro de Cunha e seu ano de composição.

São apenas dez obras, sendo a maior parte composta entre os anos de 1977 e 1985, temporalidade que compreendeu a pós-graduação de Estércio nos Estados Unidos e alguns anos depois de seu retorno. Portanto, foram os anos mais prolíficos do compositor para o gênero, devido, provavelmente, ao seu investimento no estudo de Teatro, que fez para o doutorado, como uma complementação à área original de composição musical. É possível crer também que a baixa na produção de música-teatro depois de 1985 se deve ao fato de que Marquez geralmente compõe a pedido de alunos e professores de música, interessados, muitas vezes, nas particularidades de seu instrumento que, aliada ao interesse do compositor em música de câmara, acabou resultando num crescente investimento neste gênero após este período de alta produção. Vale ressaltar que a montagem e execução de obras do gênero música-teatro é quase sempre muito mais complexa, demandando maior estrutura física e humana do que música de câmara ou solos, que pode ser um dos fatores que também justifiquem o período pós-85. As obras selecionadas também foram analisadas a partir da noção de gênero de discurso de BAHKTIN (2003), e reflexões de ORLANDI (2002), baseada naquele autor: “O primeiro, quando permite a fundamentação para que se busque, nas obras analisadas, características de estilo de índole contextual e características de estilo de ordem individual; a segunda, quando lembra que esses gêneros discursivos têm condições de

revelar o homem falando através das suas obras com outros homens, e, nessa circunstância, de entrecruzar “o já dito” (o interdiscurso), com “o que está sendo dito agora” desse modo e através dessa forma (o intradiscurso). Esses gêneros discursivos têm condições de entrecruzar diferentes representações sociais, portanto” (VINHAL; CLÍMACO, 2012, p. 6).

The Cycle of Man, composta no ano de 1981, com duração de cerca de 14 minutos, foi executada no ano seguinte, em Oklahoma. No Brasil, foi montada nas cidades de Uberlândia-MG e São Paulo-SP por volta de 1986. Já O Ofício do Homem, de 1985, de grande porte, durando cerca de 45 minutos, foi executado somente em Maringá-PR, também na década de 1980. Saliento outra vez que estas peças foram selecionadas devido, além dos limites do trabalho, oferecerem indícios, alguns que saltavam aos olhos, sem a necessidade do recurso áudio-visual (inexistente até o momento desta pesquisa), havendo, portanto, a necessidade de complementação de dados no futuro, quando estas e outras obras do gênero puderem ser executadas e gravadas. Composta nos Estados Unidos como requisito parcial para a conclusão de seu doutorado na Oklahoma University, The Cycle of Man é uma peça intimista, moderna, que explora dissonâncias e efeitos sonoros em toda sua potencialidade de criar uma ambientação sonora necessária para conduzir a narrativa nesse contraponto entre música e teatro, que caracteriza o gênero. Escrita para voz masculina, voz feminina, clarineta e piano, esta obra faz uso dos mais variados efeitos possíveis e não-convencionais (com exceção da clarineta) de se realizar tanto no piano quanto nas vozes, quase sempre utilizados nesse sentido, como sussurros, arranhões nas cordas e percussões na caixa de ressonância. Já O Ofício do Homem, composta no Brasil, de maior estrutura, foi escrita para um conjunto de percussões, flauta doce, coro e órgão - além de inserir personagens não músicos, mas que tem por função atuar somente (P1, P2, P3 e P4, que não são chamados pelo nome, mas claramente representam Jesus, Judas, Pedro e Pilatos)-, e são nas percussões e no coral onde Marquez explora os efeitos sonoros. Como na primeira, os efeitos aqui também objetivam uma ambientação sonora que subsidie a narrativa, embora não seja um recurso presente em todas as cenas. Fundamental às obras, o texto faz uso de diferentes citações. Em The Cycle of Man, o texto, na íntegra: A quem hoje eu posso falar? Os irmãos são maus. A quem hoje eu posso falar? Não há direitos, A terra está entregue aos perversos. (de um papiro do Egito Antigo).

O assassino de milhões recebe o nome sedutor da gloriosa arte da guerra, e proporciona fama imortal. (Edward Young, 1683-1765). Quitolis pecata mundi, miserere nobis. (ordinário da missa). A minha alma está cheia de tristeza até a morte. (Mateus 26:38). Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? (Mateus 27:46). Meu Pai, se é possível, afasta de mim esse Cálice. (Mateus 26:39). O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens.(Mateus 17:22). Que nos importa? Isso é contigo! (Mateus 27:4). Tenho sede! (João 19:28). Está consumado. (João 19:30). O Ofício do Homem segue a mesma estrutura textual, baseando-se em textos bíblicos do evangelho e de alguns ordinários de missa para construir uma narrativa que divaga numa interpretação da poética do evangelho, desde a Santa Ceia até a Paixão do personagem Nº01, não possuindo, como em The Cycle of Man, frases soltas na composição musical, e sim uma sequência de conversas, cenas e demais recursos narrativos, contando-se a história da Paixão. Como pode ser visto, em The Cycle of Man, a maior parte das citações são bíblicas e uma do ordinário da missa. Embora as duas primeiras não façam parte deste conjunto, elas possuem em sua essência dois dogmas religiosos cristãos: a relação entre o bem e o mal e a imortalidade. O Ofício do Homem é ainda mais direto, utilizando somente texto bíblico e ordinário de missa. Assim, todo elemento textual tem seu pé na religiosidade do compositor, e que remete a nada mais que uma maneira contemporânea do canto, utilizando textos sacros, presente nos primórdios da música ocidental ligada à igreja Católica, e do coral, marcante no desenvolvimento musical da capital goiana, escrito na maior parte do tempo em

estilo homofônico ou numa única linha melódica, com pequena movimentação intervalar, remetendo ao estilo recitativo - marcante no cantochão e em muitos gêneros como óperas e oratórios -, duas características da música católica em seu início. Como nos ensina Bakhtin, temos aqui o gênero atualizado, carregando características contextuais, no canto sacro, com características de índole individuais, que é todo esse estilo vanguardista na maneira com que Marquez compõe, com efeitos e tratamento moderno de dissonâncias:

Recorte 1 – O Ofício do Homem, de Cunha. Compassos 120 ao 127.

Dividida em três cenas, os primeiros segundos de The Cycle of Man já denotam todas as características fundamentalmente marcantes na obra: sonoridades brandas, marcadas por silêncio e pausas, ritmo fluido, sem estrutura de compassos, sonoridades inusuais que pontilham como fagulhas sonoras, uma busca menor por elementos harmônicos e melódicos, e maior por efeitos e dissonâncias, sons que desaparecem calmamente enquanto outros surgem como que de dentro do anterior que morre, e o cantor com funções de ator que narra o texto, explorando seus registros:

Recorte 2 – The Cycle of Man, de Cunha. Primeiro sistema da página 3.

Características semelhantes na ambientação sonora com narração podem ser observadas nas cenas V, VI, VII e XIX de O Ofício do Homem, por exemplo:

Recorte 3 – O Ofício do Homem. Segundo sistema da página 11.

Vemos então que o compositor recorre a técnicas composicionais das quais tratamos no trabalho anterior (VINHAL; CLÍMACO, op. cit.). O piano, instrumento fortemente ligado ao desenvolvimento da música na capital goiana e à subseqüente Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, possuindo relevante papel na primeira obra, a exploração do silêncio e das sonoridades brandas, das pausas e dos sons que nascem disfarçadamente na morte de outros (entradas mascaradas), remetendo a uma espécie de ecologia sonora que resgata o cerrado, ecossistema da região em que o compositor nasceu e viveu (e vive) a maior parte de sua vida. Todas estas características identitárias, que revelaram toda a originalidade e a goianidade do compositor - sendo The Cycle of Man, representada no palco americano de sua composição e primeira montagem, mostrando que identidade desconhece fronteiras, mecanismo que invalida o ideal massificador da globalização -, dialogam aqui com novos elementos, e revelam uma religiosidade latente em sua obra. Essa brandura, o silêncio que busca uma inflexão do eu dentro de si mesmo, as sonoridades e notas que fagulham aqui e acolá, os efeitos e recursos que trazem à tona características sentimentais como dor, sofrimento, amor e desespero, tudo isso culmina num ambiente perceptivelmente catedrático de missas, cultos, rezas, orações, reflexões, contemplações e estudos religiosos, dos quais o compositor viveu, principalmente em sua infância, e que o marcaram profundamente. Andrade (op. cit.) nos revela que em sua infância Estércio frequentava diferentes ambientes religiosos, em sua maioria cristãos, com a permissão de sua família, e que realmente gostava desses contatos. Mais tarde, já compositor, escreveu uma peça com procissões e rezas, a qual chamou “Reza”. Com base, portanto, no trabalho anterior, podemos crer que a obra do compositor, em geral, pode ser considerada uma

invocação desse templo sincrético, que tanto revela a religiosidade do compositor como elemento constituinte de sua goianidade, como também se evidencia em sua obra, a qual contempla um deus que é senão a música, essência de si mesma. A segunda cena de The Cycle of Man, entretanto, trás ligeiras diferenças estruturais. Em contraste com a Cena I, possui compasso composto e ritmo mais marcado, além de breves construções melódicas em sobreposição à exploração de dissonâncias em construção harmônica. A voz masculina, que antes narrava, agora tem por função o canto vocalizado, enquanto a narração passa à voz feminina. No fim dessa cena, uma das características da música-teatro é retomada, quando todos os músicos se tornam atores, falando “Que nos importa?”, caracterizando a fusão dos dois gêneros distintos que estão em sua base, como pode ser visto na figura 2:

Recorte 4 – The Cycle of Man. Segundo sistema da página 7.

Mesmo contrastando ligeiramente com a cena anterior, esta não deixa de apresentar características daquela, como o uso de pausas, pequenas sonoridades e invocação de um ambiente contemplativo-reflexivo, tenso. Em O Ofício do Homem, o coro também faz as vezes de atores, no papel da multidão, ora enfurecida, ora comovida, realizando procissões, que remetem claramente ao ritual tradicional cristão, ou outras ações. Como em The Cycle of Man, O Ofício do Homem conecta o gesto musical com o teatral. P1, por exemplo, não é crucificado, e sim acorrentado, e o som das correntes é fundamental para a ambientação sonora. Aliás, correntes são

elementos recorrentes nas composições para música-teatro de Estércio Cunha, provavelmente uma crítica à servidão do homem, às amálgamas que o prendem a um modelo de vida que afasta a espiritualidade e aliena ensinamentos milenares. Para complementar essa relação entre música e teatro, os sons que a multidão produz, como burburinhos, gritos e passos também tem relevante papel na composição. O Ofício do Homem possui diversas cenas onde também se utilizam compassos definidos, ritmos marcados. Uma diferença destacável nesta obra em confronto com a anterior é o investimento em construções melódicas e harmônicas, marcadas por sonoridades construídas em base modal, predominantemente em Re dórico remetendo ao cancioneiro popular de décadas anteriores, como cantigas de roda -, muitas vezes encorpadas, principalmente nos momentos que envolvem a multidão (representada pelo coro) ou o sofrimento explícito do personagem 1, como pode ser observado no primeiro recorte. Vale ressaltar que a construção em Re dórico está repleta de tensões harmônicas, com acréscimo, principalmente de sétimas e nonas. A terceira cena de The Cycle of Man, de maior duração e que encerra a obra, retoma todas as características que marcaram a construção da primeira cena. Porém, com efeitos novos, e em diversos momentos, dá mais espessura ao corpo de efeitos, intensificado pelo aumento no volume, nestas partes, invocando um transe espiritual, como pode ser observado na figura 3:

Recorte 5 – The Cycle of Man. Segundo sistema da página 17.

Recurso semelhante é utilizado para a narração do texto quando, novamente, todos os músicos sussurram:

Recorte 6 – The Cycle of Man. Primeiro sistema da página 16.

Esta técnica composicional é empregada em diversos momentos em O Ofício do Homem, a qual revela muito mais força narrativa, devido sua maior estrutura, evidenciando verdadeiro terror como, por exemplo, no ápice da alucinação de P2, que o leva ao suicídio:

Recorte 7 – O Ofício do Homem. Cena VIII, compassos 18 ao 22.

As duas obras se encerram com palavras recorrentes no vocabulário cristão: “Amém”, em The Cycle of Man, e “Osana”, em O Ofício do Homem, a primeira, de forma branda, suave e silenciosa, num glissando feito com vidro nas cordas do piano, e a segunda com um fortíssimo, revelando o júbilo no coro que canta evocando a ressurreição de P1.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista os resultados obtidos nas análises das obras, entrecruzados com os resultados obtidos em pesquisa anterior, e munidos com arsenal teórico que pudesse dar suporte às especificidades dessa nova problemática, pudemos perceber como as composições do gênero Música-Teatro de Estércio Marquez Cunha evidencia religiosidade. Religiosidade essa ligada a um cristianismo que está tanto nas bases históricas de Goiás, quanto no Brasil e no mundo ocidental, e que compõe mais elementos para esse “sotaque”, essa goianidade percebida como um todo na obra do compositor. The Cycle of Man e O Ofício do Homem, além de oferecer os indícios necessários para confirmar a pressuposição de que as obras de Música-Teatro de Cunha apresentam elementos de religiosidade, fazem essa religiosidade dialogar com os elementos de uma goianidade latente do compositor, percebida tanto aqui quanto na pesquisa anterior, no silêncio, sonoridades brandas, mascaradas, desenvolvimento de uma ecologia sonora cerrana, investimento em formações instrumentais que remetem ao desenvolvimento da música em Goiás, criação de texturas sonoras, efeitos e trabalho com dissonâncias, que num primeiro momento podem fazer com que essas composições se afastem de um teor regionalista. Estes elementos compõem a identidade desse compositor, principalmente depois das principais interações que fez ao longo de sua carreira, como a passagem pelo Rio de Janeiro e dos Estados Unidos. As peças evidenciam características de gênero de índole contextuais, como os corais, o recitativo, modalismo, as formações instrumentais, que ganham o colorido das características de índole individuais, resultantes dos processos composicionais de Cunha, ressignificados ao longo de interações com diversos cenários sócio-históricos e culturais, no investimento em efeitos, texturas e trabalho com dissonâncias, no teor de vanguarda e inovação, que dá aos gêneros, a cada nova composição e interpretação, uma nova peça, que, mesmo por trás de texturas e dissonâncias, apresentam um religioso compositor goiano. É uma pena que obras tão ricas tecnicamente e repletas de significados sejam pouco executadas. Com esta pesquisa, esperamos poder contribuir para maiores produções e montagens das obras desse gênero, motivando o compositor a investir novamente na MúsicaTeatro. Com novas montagens e possíveis gravações, esperamos poder complementar esta pesquisa na medida em que pudermos usar de ferramentas de uma análise áudiovisual, que podem acrescentar novos e importantes dados à análise deste tipo de composição.

5. REFERÊNCIAS ANÔNIMO. Sinfônica Nacional executa obra de compositor goiano. O Popular, Goiânia, 21 maio 2000. ANDRADE, Martha M. de C. Poética musical como instauração do mundo pelos caminhos de Estércio M. Cunha. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Estética da comunicação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BORGES, Maria Helena J. A Música e o Piano na Sociedade Goiana (1805-1972). Goiânia: FUNAPE, 1998. BRANDÃO, Carlos. Memória do Sagrado: estudo da religiosidade e ritual. São Paulo: Paulinas, 1985. CARVALHO, Leonardo V. A obra vocal de Estércio Marquez Cunha: especificidades da música e memória no cenário musical goianiense. Goiânia: UFG, 2012. [Dissertação de Mestrado] Goiânia, Universidade Federal de Goiás (UFG), 2012. CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1995. CHARTIER, Roger. A História Cultural Entre Práticas e Representações Sociais. R.J.: Bertrand, 1990. DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. GEERTZ, Cliford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. KUCHENBECKER, Valter. O Fenômeno Religioso. In: _____. O Homem e O Sagrado: a religiosidade através dos tempos. Canoas: ULBRA, 1997. Cap. 1. MENDONÇA, Belkiss S. C. A música em Goiás. Goiânia: Ed. UFG, 1981. PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. Memória Musical de Goiânia. Goiânia: Kelps, 2002. ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2002. SILVA, Maria da Conceição. Catolicismo e Casamento Civil em Goiás, 1860-1920. Goiânia: UCG, 2009. 171 p. VINHAL, Felipe Eugênio; CLÍMACO, Magda de Miranda. Configurações identitárias na obra de Estércio Marquez Cunha: o “sotaque” de um compositor goiano. In: ANAIS CONGRESSO DE PESQUISA, ENSINO E EXTENSÃO – CONPEEX (2012). Goiânia: UFG, 2012. p. 1440-1454. Disponível em . Acesso em: 21 maio 2013.

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