A remição de pena não pode servir de alternativa à indenização pela situação desumana nos presídios (Atualizado)

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A remição de pena não pode servir de alternativa à indenização pela situação desumana nos presídios
Há pouco tempo, foi noticiado no site do STF que, "ao invés de indenizar, por meio de reparação pecuniária, presos que sofrem danos morais por cumprirem pena em presídios com condições degradantes, o ministro Luís Roberto Barroso propôs a remição de dias da pena, quando for cabível a indenização. A proposta foi apresentada na sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta-feira (6), no voto proferido pelo ministro no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 580252, com repercussão geral, em que se discute a responsabilidade civil do Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária. Após o voto do ministro Barroso, o julgamento foi interrompido por um pedido de vista da ministra Rosa Weber."
Com todas as vênias, não há como concordar com o voto do Min. Barroso sobre a "indenização" pelas condições degradantes dos presos ser feita mediante/substituída por remição da pena, com base em mais de um fundamento.
Em primeiro lugar, por que se pretende inovar no ordenamento jurídico, mediante analogia, sem qualquer lacuna legislativa (o direito prevê a indenização em pecúnia)? Afinal, a analogia é regra de integração e só se aplica onde existe lacuna legis, não sendo este o caso, já que a solução se encontra expressamente prevista no art. 37, § 6º, da CRFB/88.
Assim, ao se ignorar o disposto no art. 37, § 6º, da CRFB/88 e trocar essa norma constitucional por um comando judicial (criado por "analogia"), se está diante de uma decisão não só contra legem, como absolutamente "solipsista", para usar a expressão de Lenio Streck. Ora, o julgador não pode se sobrepor ou se substituir à Constituição, tampouco deixá-la de lado para criar uma regra que lhe agrade mais.
Por outro lado, um dos argumentos para essa inovação é que a Itália possui legislação que possibilita a remição de pena como forma de "indenizar" o preso. E é justamente esse o ponto: a Itália promulgou uma lei, de forma democrática, sobre o tema, ao passo que, caso prevaleça o voto do Min. Barroso, o STF estará verdadeiramente legislando ao criar essa "norma".
Na verdade, é bastante duvidoso que uma sociedade que pugna pela redução da maioridade penal deliberaria em reduzir as penas dos presos por culpa da inércia do Executivo em providenciar um sistema prisional digno. Ou seja, esse tipo de decisão indica uma afronta à democracia e ao processo legislativo (democrático), configurando uma institucionalização da "ditadura do Judiciário" (vulgo "Juristocracia"); é o ativismo judicial em sua pior versão (subvertendo a Constituição).
Ainda, padece de questionável inconstitucionalidade uma decisão (ou até mesmo uma lei) que estabeleça remição de pena nessas hipóteses, por violar o princípio da vedação à proteção deficiente (Untermassverbot).
Em relação a questões processuais, o voto ignora/viola os princípios da inércia da jurisdição e da congruência da sentença (sentença extra petita), já que é pedida indenização em dinheiro e se está concedendo remição de pena, fazendo letra morta do art. 460 do CPC.
Afinal, quem disse que o autor da demanda quer remição de pena? Basta imaginar hipóteses em que falte um mês para ele finalizar o cumprimento integral de sua pena ou que esteja em regime aberto (sem conseguir emprego, por força do estigma penal) e prefira a indenização em dinheiro, dentre outras hipóteses. E, ainda que ele concordasse agora com essa ideia, não se poderia fazê-lo na presente demanda, mas somente em outra, sob pena de violar, de plano, a estabilização objetiva da demanda (art. 264, parágrafo único, do CPC).
Como se não bastasse, remição de pena é matéria da competência do juízo penal (mais especificamente, do juízo de Execução Penal, onde houver, nos termos dos arts. 65 e 66, III, c, da LEP), e não do juízo cível, o que configura a flagrante incompatibilidade de se ajuizar uma demanda cível para obter remição penal, bem como a incompetência absoluta do juízo – causa, inclusive, de rescisão da sentença (art. 485, II, do CPC).
Ademais, fundamentou-se a remição na "multiplicação de demandas idênticas e de condenações dos Estados", o que "além de não eliminar ou minorar as violações à dignidade humana dos presos, tende a agravá-las e perpetuá-las, já que recursos estatais escassos, que poderiam ser utilizados na melhoria do sistema, estariam sendo drenados para as indenizações individuais".
Entretanto, esse é um argumento manifestamente político, sem qualquer respaldo legal e que, como já dito, contraria regra constitucional expressa.
Do mesmo modo, a "enxurrada" de demandas pedindo indenização não pode ser motivo para se negar/modificar, por meio de decisão judicial, o direito constitucional que é do autor/cidadão, substituindo-o por algo diferente que é melhor aos olhos do magistrado.
Além disso, é difícil acreditar que as demandas de indenização por pecúnia inundarão o Judiciário, mas os pedidos de remição de pena, que recaem somente sobre os juízos (já assoberbados) de Execução Penal, não causarão qualquer impacto negativo. Dito de outra forma, esse fundamento "troca seis por meia dúzia", já que quem pede/pediu indenização agora pedirá remição de pena, quando possível.
Caso a ideia seja uma demanda cível para obter essa remição (a dúvida que fica é "como?"), o assoberbamento seria idêntico ao da hipótese de se permitir a indenização em dinheiro, não revelando qualquer utilidade prática sob esse ponto de vista.
Aliás, conhecendo a criatividade dos nossos advogados (públicos e privados), caso esse entendimento do Min. Barroso prevaleça, em breve, teremos demandas requerendo a remição em condenações posteriores (se a pessoa já tiver cumprido sua pena em situação degradante, quando for novamente condenada, pedirá a remição referente à condenação anterior). Há alguma dúvida de que esse tiro sairá pela culatra no que diz respeito ao número de processos instaurados?
Deixando de lado o aspecto (a)técnico da decisão, acredito que talvez a solução para a correção do sistema penitenciário seja mesmo a "enxurrada" de demandas indenizatórias para que o Executivo "sinta no bolso" e veja que o "barato pode sair bastante caro". De todo modo, ainda que isso não resolva o problema, é a "solução" legislada no art. 37, § 6º, da CRFB/88, que não pode ser ignorada, gostemos ou não.
Em síntese (e com todas as vênias ao brilhantismo do prolator do voto), se acolher essa proposta, o STF estará, sem dúvidas, atuando na função de legislador, o que não é papel do Judiciário e tampouco seu.
Com efeito, é de suma importância que nós, juristas – em especial o STF -, mantenhamos os pilares do Estado Democrático de Direito: processo legislativo democrático e garantia de direitos fundamentais. Não se pode, sob a justificativa de tutelar esse, simplesmente ignorar aquele (ou se substituir àquele).
Isso porque o ordenamento prevê meios de indenização de quem foi lesado, de responsabilização dos agentes políticos, de cumprimento das normas (o repasse e a utilização das verbas do Fundo Penitenciário nada mais são do que normas), de modo que não cabe ao Judiciário suplantar o Legislativo e criar novas regras, ainda que lhe pareçam mais "justas".
Portanto, o que deve ser feito para tentar contornar o problema de fundo é o ajuizamento de ações civis públicas, de improbidade e de responsabilização dos gestores públicos, a fim de que se implante um sistema penitenciário digno e que efetivamente se recuperem os presos.
Rio de Janeiro, 08.06.2015.
Felipe Barreto Marçal – Advogado e aluno da EMERJ – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro


http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=290987
"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."
Sobre o tema: SARLET, Ingo. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais n. 12, ano 3. Sapucaia do Sul: Editora Nota Dez, 2003. STRECK, Lenio Luiz. Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. In: (Neo)Constitucionalismo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, IHJ, 2004, pp. 243 e segs. FISCHER, Doulgas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. In: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html
"Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que Ihe foi demandado."
"Art. 65. A execução penal competirá ao Juiz indicado na lei local de organização judiciária e, na sua ausência, ao da sentença.
Art. 66. Compete ao Juiz da execução: (...) III - decidir sobre: (...) c) detração e remição da pena;"



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