A Representação Artística do Mal nos Games: A Fantasia e o Grotesco

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Anais
19-22 maio - Londrina-PR
Universidade Estadual de Londrina
A Representação Artística do Mal nos Games: A Fantasia e o Grotesco


Márcio Lins de Carvalho (PPGARTES - UFPA)
Resumo
A presença do mal em histórias se adapta de diversas maneiras dependendo dos meios que são usados, nos games desde um obstáculo até um inimigo cheio de recursos podem representar tal; neste trabalho deverão ser usados para tal pesquisa os jogos Dragon Age: Inquisition e Diablo III (e expansão); através do método crítico-reflexivo, analisando as artes dos games através de algumas bases: de estudos filosóficos, para discutir, limitadamente para a pesquisa, a natureza do mal; e estéticos, como de Bakhtin quanto o grotesco e fantasioso. Foi possível constatar que no meio dos games um imaginário constante do mal se repete na forma de distorções e do que representações religiosas deixaram na senso comum; seu uso que difere dependendo dos meios, podendo ter bem clara uma representação do mal em oposto ao que se considera "bem" (Dragon Age: Inquisition) ou ter linhas dúbias, com forças que agem para o "bem", mas que se travestem com ícones reconhecíveis ao "mal" (Diablo III).
Palavras-chaves: Representação, Mal, Games, Grotesco, Dragon Age, Diablo.
Introdução
O grotesco e o fantástico são abordagens estéticas relevantes para diversas representações artísticas. Neste trabalho deveremos analisar como esses conceitos estéticos são usados para que expressem visualmente a qualidade do "mal", particularmente nos games em que essa qualidade povoa boa parte do que é criado para esta plataforma, especificamente no delineamento bem estruturado visualmente entre o bem e o mal em Dragon Age: Inquisition, diferentemente (por exemplo) de Diablo III e sua expansão, no qual a caracterização do bem e do mal é clara conceitualmente na narrativa, mas não em termos visuais.

1. Um olhar na superfície do Mal

Para este estudo vamos nos ater à conceituação religiosa do mal, já que a teologia antiga, ao "naturalizar" a abrangência do mal, colocou as consequências dele no mesmo patamar das causas que agem interna e externamente ao ser humano.
Sob este ponto de vista da teologia na antiguidade, o mal é uma força influenciadora universal que tem encanto sobre o material e o imaterial, e suas consequências definem o caráter maléfico dos atos/acontecimentos. Neste ponto, algumas consequências determinadas pelo mal (como a morte, a doença e a destruição, mesmo que causadas pela natureza) figuram tanto no universo dos sentimentos humanos considerados maus (como a agonia, o medo, a inveja e a dor), quanto nas regulações morais embutidas nas noções de pecado e sua consequente definição de lícito e ilícito.
É sobre esses conceitos atrelados à noção de mal que parte da arte antiga e medieval foi figurada e é essa figuratividade que nos servirá de solo para a análise dos jogos citados neste artigo.
Para a identificação das representações artísticas do mal ao longo da história do Ocidente, é necessário entender minimamente as origens deste na antiguidade, quando várias civilizações criavam e caracterizavam suas deidades segundo suas respectivas visões de mundo, de natureza e estrutura sócio-política. Nesse contexto, quaisquer fatores considerados benéficos ou perniciosos para a convivência (fossem esses fatores intra ou extra sociais) eram caracterizados numa divindade que os representasse (geralmente animais ou seres antropomórficos) e que constituísse um arquétipo ou um mito que funcionasse como princípio geral, de modo que as diferenças entre o permitido e o interdito fossem claras.
Como exemplo, dragões, serpentes e figuras abstratas (como o pentagrama) surgem para representar características básicas dos humanos entre si e destes com a natureza e o inexplicável, como a fertilidade e suas conexões (sexo, família, saúde, alimento etc), o conhecimento e seus usos (em escambos, memórias e saberes transmissíveis etc) e vida em sociedade (com suas relações de gênero, de parentesco, profissionais etc). É dessa maneira também que deuses com características humanas, da flora, da fauna ou híbridas entram e saem de diversas culturas, geralmente antropomorfizados, como os egípcios que adequavam imagens de seus deuses para facilitar a aceitação destes nos aspectos da realidade ainda não suficientemente explicados pela teologia da época, emprestando aos animais (como águia, chacal e garça) características humanas de modo a explicar o eventual fracasso no atendimento de pedidos ou desventuras que seus fiéis viessem a enfrentar e aumentar a possibilidade de assimilação por outros povos e culturas. De qualquer modo, as configurações simbólicas se deram através de uma lenta maturação, por iniciativa própria desses povos ou por miscigenação imposta ou assimilada. Tais transformações eram comuns e constantes, algo que SCARPI tão bem ressalta:

"Deve-se antes pensar em um mecanismo de trocas culturais, favorecido pelo desenvolvimento do comércio e das tecnologias, do qual brotaram reinterpretações e remodelações, reformulações e adaptações, as quais deram vida às expressões próprias e peculiaridades de cada civilização" (SCARPI, 2004. p.25)

É nesta estratégia de adaptação cultural que o catolicismo selecionou criteriosamente elementos e símbolos de outras religiões (inclusive alguns hoje ainda considerados "pagãos") para, misturando-os à sua própria simbologia, compor uma iconografia mitológica, a fim de facilitar a doutrinação sobre o bem e o mal. Assim, deuses antigos que resistiram a várias gerações e culturas e pouco se aplicavam aos dogmas da baixa idade média são demonizados, enquanto outros simplesmente são assimilados. Como exemplo dessa prática ainda perceptível na contemporaneidade, podemos citar o que SILVA expõe sobre as relações entre religiões afro-brasileiras e neopentecostalismo, primeiramente em termos de demonização, quando explicita:

"[...] Os ataques feitos no âmbito das práticas rituais das igrejas neopentecostais e seus meios de divulgação e proselitismo têm como ponto de partida uma teologia assentada na ideia de que a causa de grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas. [...] O panteão afro-basileiro é especialmente alvo deste ataque, sobretudo a linha ou categoria de Exu, que foi associada inicialmente ao diabo cristão e posteriormente aceita nessa condição por uma boa parcela do povo-de-santo, principalmente o da umbanda." (SILVA, 2007, p. 10-11)

A partir dessas práticas atuais, é possível perceber que a assimilação cultural, sob pretextos claramente políticos de aumento de fiéis e poder de influência, permitiu que algumas simbologias comuns a várias culturas fossem reunidas para efeito de demonização. O chifre, a cabra e a cobra são bons exemplos disso: o que antes era símbolo de sabedoria e virilidade (o chifre), de fertilidade e força (a cabra) e de sabedoria e perspicácia (a cobra), foram ressignificados, para efeito de doutrinação e desautorização da cultura religiosa alheia, como manifestações figuradas do demônio.
Outras práticas de desqualificação destinavam-se à apropriação da força simbólica de determinados elementos culturais dos "hereges", assimilando-os segundo suas próprias conveniências, tal como SILVA ainda percebe nas estratégias atuais de incrementação do rebanho:

"Uma outra face da desqualificação de tais símbolos é, paradoxalmente, a sua 'incorporação' nas práticas evangélicas, porém dissociando-os de sua relação com as religiões afro-brasileiras. Assim surge a capoeira de Cristo, evangélica ou gospel, em cujas letras não há referências aos orixás ou santos católicos." (SILVA, 2007. p. 15).

Essas estratégias não são novas e basta lembrarmos que símbolos como o ovo e o coelho, outrora ligados à fertilidade, ao sexo e à reprodução em outras mitologias, foram apropriados pelo cristianismo para significar a renovação da páscoa; festas juninas, que eram rituais de celebração à deusa Juno e ao culto à renovação da terra pelo fogo, se tornaram festas de devoção a apóstolos, mantendo-se simbologias originais como a fogueira e as danças em sua volta, mas com um caráter da doutrina cristã. Entretanto, há que se considerar que algo da força e do significado original do mito permanecem na assimilação.
Esse imaginário criado ou recriado pelo cristianismo foi absorvido e perdura há séculos, alimentando o imaginário popular, sendo remixado local e globalmente. A figura "maligna" de chifres, pés de bode, tridente e rabo pontiagudo resiste no senso comum, povoando boa parte da mídia de temática fantástica produzida na atualidade, seja em filmes, em jogos, em livros, em animações ou seriados, dentre outros. Só que, agora, esses elementos não são vistos como um mal em si, como o era em outros tempos, mas apenas como ícones destinados a facilitar a caracterização e a percepção de personalidades maléficas.

2. O grotesco e o fantástico como "máscaras" do mal

Concluída, mesmo que superficialmente, a análise das estratégias privilegiadas pelas igrejas cristãs para caracterizar a simbologia do mal, da maldade e do maléfico associando-a à culturas ditas "heréticas" ou "pagãs", cabe um esboço (também breve) sobre as concepções filosóficas e literárias de "grotesco" e "fantasia" como ferramentas simbólicas de expressão das relações entre as emoções humanas e o mal. Dentro do grotesco, a fantasia passeia de forma livre como uma ferramenta dentro de outra, em que a subversão do comum, atrelado à alteração da realidade em favor da fantasia, funcione não apenas para o deslumbre comumente aliado ao belo e ao sublime, mas também funcione como provocadora de estranheza entre o feio, o trágico, o belo e o sublime.
No que tange à fantasia, utilizaremos estudos sobre a literatura fantástica, especificamente os realizado por Roger Caillois e demonstrados por CAMARANI ao explicitar os conceitos de feérico (no qual Caillois coloca os contos de fadas), fantástico (que aborda os contos de realismo fantástico) e sobrenatural (como uma divisão dentro do fantástico).
Os objetos deste estudo serão analisados a partir desses conceitos ao vermos que elementos do feérico (como a magia e o encantamento) são comuns dentro das narrativas em análise, mas, ao contrário feérico e a favor do fantástico, o sobrenatural produz surpresa e viola regras, tudo dentro do universo em questão, qual seja, o status quo de uma ordem pré-estabelecida e que as figuras malignas vêm corromper. Aqui, o sobrenatural tem base similar ao imaginário de signos que são ligados ao mal no mundo real; são forças desconhecidas e, por isso, imageticamente construídas a partir do que se supõe serem os sentimentos inerentes a essas forças. CAMARANI faz uma lista de exemplos construídos por Caillois:

"Caillois passa, então, a elencar os signos que compõem o fantástico literário: o pacto com o demônio, a alma penada que exige o cumprimento de certa ação para que possa repousar, o espectro condenado a um percurso desordenado e eterno, a morte personificada surgindo no meio dos vivos, a 'coisa' indefinível e invisível que mata ou prejudica, os vampiros ou mortos que se asseguram uma juventude perpétua sugando o sangue dos vivos, a estátua, manequim, armadura, autômato que se animam e adquirem temível independência, a maldição de um feiticeiro que desencadeia uma doença terrível e sobrenatural, a mulher fantasma saída do além sedutora e mortal, a intervenção dos domínios do sonho e da realidade" (CAMARANI, 2014. p. 57).

Todas essas são formas de representar o medo, a tristeza e a tentação em figuras imaginadas; são formas de distorcer a realidade para personificar sentimentos tidos como negativos ou prejudiciais através de símbolos relacionados ao que se considera como "mal" e que as narrativas explicitam através do fantástico e do grotesco. Assim deverá ser visto no jogo Dragon Age: Inquisition, que propõe entidades ligadas a sentimentos negativos.
Este último, por sinal, reitera significações mais profundas desse tipo de simbologia ao estabelecer funções sociais à fantasia apresentada, se levarmos em conta os estudos de BAKHTIN sobre o grotesco ao considerar os estudos de Schneegans e sua classificação dos três usos do cômico. Essa classificação deverá ser considerada nas análises e, mesmo que BAKHTIN tenha contestado a amplitude da teoria de Schneegans, as visões dos dois estudiosos são convergentes. Alguns dos resultados da análise que BAKHTIN faz do grotesco no cômico na obra de François Rabelais são ampliados por VÁZQUEZ ao explicitar traços do grotesco como horror, estranheza e antimaterialidade (próprios do cômico) e, para além da comicidade, as características do feio e do monstruoso, portanto aplicável a muitos outros tipos de obras.
Na primeira característica delimitada por Schneegans, que consiste na bufonaria, esta é causadora do riso despretensioso e que se caracteriza pelo inesperado sem prejudicar a imagem de nenhum dos envolvidos; no burlesco

"...a satisfação vem do rebaixamento das coisas elevadas, as quais acabam fatalmente por cansar. Cansa olhar para cima, é necessário baixar os olhos. Quanto mais poderosa e mais duradoura for a dominação das coisas elevadas, maior satisfação provocam seu destronamento e rebaixamento." (BAKHTIN, 1996. pg. 266-267).

No grotesco em si, o "rebaixamento das coisas elevadas" é configurado através de imagem impossível e ínverossímil, sendo a imagem tão fantástica que pode incomodar quem presencia ou mesmo quem apenas tenta conceber o que é mostrado ou descrito. É essa impossibilidade, essa incapacidade de imaginar que cria um vivo sentimento de insatisfação. Mas, como já foi dito, BAKHTIN desconstrói esses conceitos de Schneegans e os amplia, pois a principal crítica de BAKHTIN a essas definições se dá em sua discordância de que o grotesco se baseie apenas no exagero ou movimentos de poder entre os personagens; trata-se, na verdade, de uma distorção dos limites entre o que se supõe ser real e o que pode ser imaginado, sendo o corpo explorado em seus limites pelo grotesco

"...a lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do corpo e ocupa-se apenas das saídas, excrecências, rebentos e orifícios, isto é, unicamente daquilo que faz atravessar os limites do corpo [...]. Montanhas e abismos, tal é o relevo do corpo grotesco ou, para empregar a linguagem arquitetural, torres e subterrâneos." (BAKHTIN, 1996. pg. 277-278)

Considerando essa visão mais geral e as minúcias das características apontadas por BAKHTIN a partir de Schneegans, é possível analisar a estética distorcida da realidade para construir imagens ligadas ao mal quando se percebe seres com corpos humanos e cabeças de animais, rostos deformados tendo apenas orifícios, lagartos alados ou compostos apenas por chifres significando o mal, suas causas e consequências. Tudo isso compõe um imaginário que se aproveita das reações causadas pelo grotesco para enfatizar o caráter maligno que as simbologias de chifres, fogos e caveiras revelam. Na aplicação em jogos, as trocas que esse maniqueísmo entre bem e mal fazem com o apoio do grotesco e da fantasia podem deixar as linhas de atuação da arte do jogo bem delineadas, mesmo com jogos preponderantemente sombrios.

3. Dragon Age: Inquisition e o mal além dos dragões

O mundo de Thedas, onde se passa a história de Dragon Age: Inquisition, já passara por vários conflitos descritos em dois jogos anteriores e várias publicações em livros; nesse caso, o mundo está à beira do conflito entre duas facções pelo poder, templários e magos, e a religião de maior culto no mundo, conhecida como Chantry, almeja um encontro que tem por objetivo apaziguar os ânimos entre esses lados sob a ameaça de uma guerra que pode devastar os reinos das terras deste mundo. Porém um atentado a esta religião durante este encontro, causado por forças sobrenaturais, destrói não só as chances de um entendimento neste conflito, mas adiciona um elemento caótico nesse cenário: uma invasão demoníaca que se mostra um mal maior que deveria forçar a união dos lados em conflito para combater um inimigo em comum, além de sumir com a figura da chefe da religião Chantry, aparentemente bem quista entre as facções e única chance de paz. O objetivo do jogador é reunir os povos do mundo de Thedas, tentando dar um fim ao conflito interno de modo a combater o mal desconhecido, mal este que o personagem estará ligado através de uma marca recebida durante o atentado demoníaco e que se mostra como a chave para fechar os portais que os demônios usam para invadir o mundo.
Dada a extensão artística dessa obra (e da análise seguinte, de Diablo III), vamos nos ater a uma relação de conflito visual entre protagonista/antagonista (comum nas obras em análise), começando pelas características visuais dos heróis com suas armaduras e símbolos de poder, como o olho luminoso (símbolo da Chantry), poses heroicas e aparências ameaçadoras, supondo preparo para as batalhas. A construção do herói típico do universo dos contos de fadas se faz presente como o personagem do jogador e seu grupo que representa pela narrativa claramente o bem, uma força opositora aos males que afligem o mundo do jogo: guerra, violência, morte e destruição.
Ainda que exista essa divisão clara nos conceitos de bem e mal, muitas das concepções dos personagens em volta do personagem do jogador podem se encaixar na categoria grotesca numa forma bem intimidadora, como no personagem Iron Bull, pertencente a uma raça chamada Qunari que tem características de touros e similares pelos chifres que carregam – anteriormente discutidos neste estudo como símbolos de força e sabedoria demonizados pela religião junto ao senso comum. A despeito de sua aparência bruta, facilmente identificável/confundível com um antagonista, o personagem trabalha a favor do personagem do jogador e enquanto está ativo no grupo de personagens jogáveis, tem comportamentos inesperados para sua aparência (fig. 1). Considerando esses conflitos entre visualidade e personalidade, o que se considera também como grotesco é o conflito do esperado e do "normal" com o inesperado, numa ação simultânea onde o grotesco demanda certo distanciamento do real na medida em que o real, a partir dessa perspectiva fantástica, arbitrária, estranha, perde sua consistência e torna, portanto, inconsistente, estranho, o que antes parecia sólido e familiar (VÁZQUEZ, 1999. pg. 291). O grotesco presente no estranhamento entre expressão visual e expressão da personalidade torna-se uma chave que ajuda a refletir os conflitos propostos pelo jogo.


Figura 1 - Iron Bull é aliado do jogador, ainda que não aparente.
Já no que toca aos antagonistas, o fantástico e o grotesco se evidenciam com uma força visual ímpar, a começar pelo inimigo que intitula a obra em análise, os dragões, suas representações não poderiam ser mais clássicas, mesmo nas variações que o jogo apresenta. Iconografias atreladas ao mal como chifres, asas reptilianas, garras e presas compõem sua representação, alguns com a malignidade acentuada pela aparência cadavérica e em decomposição – na narrativa, está ligado ao mal supremo que causa o principal problema sugerido pelo jogo, reforçando o poder e força deste. A equipe de arte do jogo se empenhou particularmente nestes antagonistas, por ser parte do título do game e por este simbolizar a força do mal que o jogador deverá derrotar; houve uma considerável interação na equipe responsável pelo visual para que o terror e a força que os dragões devem simbolizar atingissem um nível de excelência.


Figura 3 - Alguns dos vários conceitos artísticos elaborados para retratar o demônio da inveja

Outros inimigos enfrentados pelo personagem do jogador manifestam um espectro vasto do grotesco, servindo de personificações do mal no mundo de Thedas: caveiras (e decomposição) ligados à morte; garras e presas expressando violência; ratos, aranhas e moscas representando pestes e doenças e iconografias inusuais, como plantas carnívoras (conotando possível canibalismo). São materiais misturados sob a receita do grotesco para que se tenha um elenco notável de monstros que representem o mal ao qual o jogador deverá identificar e eliminar. Essa proposição foi pensada exatamente nesses termos, pois os criadores do jogo admitem o uso de sentimentos para servir de inspiração para os demônios vistos em DA:I:

"Demônios tomam suas formas grotescas imitando coisas observadas no plano físico [do jogo]. Eles tendem a incorporar - em aparência e comportamento - singulares, poderosas emoções como medo, desespero e fome" (THORNBORROW e GELINAS, 2014. pg. 247, tradução do autor)

Um exemplo é a criação do demônio que encarna a inveja, pensado para ter um corpo cheio das melhores partes das vidas que consumiu, brutalmente costuradas em seu corpo. Nesse ponto, sua capacidade fantástica para absorver partes sedutoras e poderosas, serve de escopo para montar um ser grotesco que, mesmo sem símbolos explicitamente ligados ao mal, faz com que a qualidade grotesca de sua concepção artística almeje que o jogador interprete este ser como maligno (fig. 3).
O red lyrium, minério misterioso apresentado no jogo, é o último ponto a ser abordado dentre as simbologias malignas do mundo de Thedas. Claramente uma referencia à propensão humana pela sede de poder, é conhecido por empoderar quem o detém. Esta característica é facilmente aliável ao fantástico e ao sobrenatural através do mote tantas vezes repetido da substância que serve como moeda no "pacto com o demônio" e que confere poderes extraordinários a quem o manipula, mas que impõe terríveis consequências ao final de sua validade; a coloração vermelha e a formatação espinhosa são símbolos visuais de seu poder e perigo, comumente ligados ao inferno cristão, reino do fogo e da destruição.


Figura 4 - O ambiente alterando o corpo é uma possibilidade de uso do grotesco pela fantasia.

Ainda que o objeto em si não tenha a princípio ligação com o grotesco, os personagens expostos ao contato com o minério por longo período de tempo ganham características horrendas, deformações resultantes da exposição prolongada, como se esse elemento invadisse o corpo de seu portador e o alterasse de dentro para fora, trazendo, nesse momento, a característica grotesca da fusão entre homem e o minério, configurando uma mensagem clara do mal que este causa, a despeito do poder que confere (fig. 8); tal transformação casa-se bem com as definições do corpo grotesco estudados por BAKHTIN e expostos anteriormente.
O mundo de Dragon Age: Inquisiton, em geral, parece estar enraizado na concepção moderna de mal (advindo das emoções), mas faz uso dos signos clássicos da maldade nas consequências – uma mixagem conceitual subjetiva relativa aos personagens do jogador, mas perfeitamente clara no jogo binário entre bem-mal que tanto facilita a interpretação das narrativas fantásticas. Essa "qualidade do fantástico" é primorosamente usada para imaginar cenários, adversários e objetos encontrados durante o game.

A dicotomia do mal em Diablo III e sua expansão

Indo numa direção um tanto quanto diferente do game anteriormente analisado, a Blizzard Entertaiment, produtora do jogo Diablo III, trouxe uma concepção visual muito mais sombria com a qualidade do "bem" focada no heroísmo que a história incita. Aqui, a figuração considerada como mal permeia toda a arte, desde o que se considera mal no jogo até as forças antagônicas a esta.
Em Diablo III, o mundo é assombrado pela concretização de uma profecia sobre o fim dos tempos trazida por poderosos demônios e, posteriormente, por um anjo caído; os heróis emergem travestidos do mal que combatem para salvar o mundo em questão, enfrentando diversos monstros com variadas combinações das simbologias do ligadas ao mal, seus chefes diretos e os lordes que tramam todo o infortúnio.
No que trata aos inimigos enfrentados pelos personagens dos jogadores, a predominância dos elementos fantásticos que usam o grotesco permeiam toda a base artística e os signos citados neste artigo [colocar nota de rodapé referente à pg. 3 ou 4] compõem muitos dos conceitos artísticos deste jogo. Para fins de estudo, classificaremos estes em três categorias: inimigos menores, sub-chefes e chefes. Dentre os inimigos menores podemos botar três classificações: 1) os mortos-vivos, que englobam seres fantásticos que são originários da causa "morte", como esqueletos, mortos-vivos e fantasmas; 2) as feras, seres que são considerados hostis, mas que não foram necessariamente tocados pelo mal como vorazgos, bestas selvagens e andarilhos das terras altas (fig. 5); 3) os infernais, tratando de qualquer criatura que advenha ou tenha contato com as principais forças antagônicas que os personagens dos jogadores enfrentam, tais como cultistas, carniçais e demônios em si.


Figura 5 – Andarilho das Terras Altas, um exemplo do grotesco dentre os inimigos apresentados ao jogador

Para os mortos-vivos, a qualidade do mal se origina da morte, uma consequência ligada a vários signos, muitos presentes no jogo (como os já citados no parágrafo anterior), seres com características pensadas pelo fantástico que tem ligação ao mal pelo imaginário comum; são os antagonistas primeiros do jogo para deixar claro ao jogador a essência sombria que os desenvolvedores querem passar na historia do game. Junto a isso toda uma escatologia e fantasia inerente a estes, seja no sentido apocalíptico colocado na história do jogo (fim dos tempos), seja na qualidade "suja e podre" que mortos-vivos trazem do imaginário coletivo. Fantasmas são um caso a parte, já que parecem mais propensos ao fantástico do que ao grotesco. Mesmo que na concepção artística eles sejam retratados tal e qual encontravam-se no momento da morte, este é um trabalho de imaginação dos criadores baseado no que o público conhece de fantasmas: seres translúcidos, incorpóreos, que refletem – em termos – suas origens no mundo físico (por variados motivos) e, aqui, a presença deles atrela-se à maldições e outros grilhões que o imaginário construiu para fantasmas, tendo a falta de liberdade e paz como uma outra face do mal.
As feras evidenciam a selvageria, a violência e o caos, todos colocados como males que se opõem ao jogador e suas boas ações (ou boas intenções); são evidentes obstáculos influenciados pelo mundo caótico no qual se inserem e que vêem no jogador, por motivos misteriosos, uma oposição. Aqui, as feras operam de forma indireta; se não são influenciados, são coagidos pelo mal principal da história a cooperar com os mesmos e perecem junto com vários antagonistas. Suas aparências podem não ser precisamente as mesmas de animais selvagens do mundo real, mas suas garras, pêlos, músculos, dentes, presas e outras características físicas representam o que comumente se interpreta como selvagem e caótico.
Os infernais são agentes conscientes do mal que o jogador enfrenta; são os agentes mais próximos (demônios que trabalham para as forças infernais) ou mais distantes (humanos que se prestam a ajudar essas forças em troca de poder). Nessas criaturas, vemos toda a representação simbólica mostrada no segundo tópico e explorada ao máximo para evidenciar o mal: chifres e rituais, homens-cobra como agentes de demônios da traição e da dissimulação, asas de morcego em belas representações femininas seminuas a fim de demonizar os prazeres sexuais, xamãs decaídos simbolizando cultos ao pérfido e ao pecaminoso – os usos da simbologia católica do mal são abundantes e cumprem com eficiência a demanda pela representação de um mal que deseja dominar o mundo, devastando-o.
Ao abordar os subchefes que os jogadores enfrentam, vemos um recurso de game design comum a vários games que é um empoderamento das imagens antagônicas enfrentadas pelo jogador: depois de destruir vários mortos-vivos, enfrenta-se Leoric, o Rei Louco morto-vivo; após destruir aranhas gigantes no seu ninho, deve-se encarar a Aranha Rainha; depois de enfrentar seguidores de um culto do mal, a líder, Maghda, aguarda o jogador para o embate... Assim segue-se o reforço aos vários símbolos, mostrando que os males enfrentados tem faces ainda piores que as já vistas.
Na expansão, inimigos menores e subchefes ganham outra conotação. Como são anjos caídos os oponentes dos personagens dos jogadores (com motivações benevolentes, mas um tanto quanto cruéis), o conflito visual destes se dá na perversão da imagem de anjos e outros seres ligados ao bem em criaturas ameaçadoras, dificilmente classificáveis dentro das três categorias antes estabelecidas. Demanda-se, então, criar uma específica para estes, chamemos de "caídos" (fig. 6).

Figura 6 – O Exarca é um exemplo de "caído", antes anjo, agora corrompido pelo poder de Malthael

Os chefes têm características singulares concernentes às suas funções e simbologia. Primeiro a ser enfrentado, O Açougueiro mostra o mal em sua mais crua trivialidade: na selvageria, na barbaridade, na violência e na morte; os símbolos clássicos do mal demoníaco estão presentes (e perdurarão nos outros chefes): os chifres, as presas, o gancho e o cutelo mostrados de forma grotesca, reforçando seu apelido de "Açougueiro". Até mesmo a simbologia desse nome usado no jogo como algo mau (associando-o, grosso modo, a serial killers, esquartejadores e similares) demoniza uma profissão que desmembra seres mortos para servirem de alimento e, assim, reforça todo o caráter violento comumente atrelado à maldade. O segundo, Belial, como demônio Senhor da Mentira, povoa o ato do jogo que antagoniza; geralmente disfarçado, se revela no final em duas formas, enfatizando seu caráter ilusionista, simbolizando a mentira e a podridão que ela causa (com outros símbolos como venenos, cobras, invisibilidade). Sua representação lembra uma cabeça com várias faces através dos seus chifres, um rosto impreciso e incômodo que dificulta o reconhecimento de uma face. Azmodan (fig. 7) pouco se apreende especificamente do mal que lhe é atribuído, mas os símbolos já utilizados do mal como um todo, conforme já evidenciado neste estudo, estão presentes. Diablo, que intitula o jogo, simboliza o Terror e seu caráter corruptivo. Baseando-se na história contada, este personagem que emana os males maiores que afligem o mundo em que se passa o game, tem o corpo todo como carapaça, várias bocas e chifres – um uso do grotesco emblemático do que o jogo pretendeu passar. Na expansão, Malthael é o anjo da morte que personifica a máxima de "os fins justificam os meios" e seu intento de destruir a humanidade e uni-la pela morte, traz toda uma dicotomia que o jogo visualmente já carregava e que agora perverte a beleza angelical com os intentos cruéis do anjo que antagoniza o Ato adicional da história. Sua visualidade misteriosa, com asas esqueléticas e aparência imponente, evoca o conflito (que o grotesco revela) presente na manifestação do dúbio e do impreciso.


Figura 7 – Conceito artístico de Azmodan, os chefes abusam dos signos atrelados ao mal para evidenciar seu antagonismo

A dicotomia da representação artística do mal neste jogo se torna evidente, pois os chifres, garras, presas e caveiras são também recursos visuais usados pelos heróis dos jogadores. Excedente à classe Cruzado, que tem sua representação fortemente baseada no que se conhece como "bem", outras classes como Bárbaro, Arcanista e Monge tem representações estritamente ligadas aos símbolos ligados ao mal como a violência, artes ocultas e repressão. Particularmente duas classes se destacam nessa figuração, a Caçadora de Demônios demonstra abraçar as qualidades dos demônios que enfrenta, se valendo destas para enfrentá-los; enquanto que o Feitiçeiro (fig. 8) se vale do sobrenatural, bem como descrito por Caillois ao listar os espíritos, além de simbologias pagãs ou tribais para representar a qualidade e poder que usará para enfrentar o mal do jogo.

Figura 8 – O Feiticeiro, um ícone do uso dos signos ligados ao "mal" nos personagens que representam o "bem"

Nos poderes controlados pelos jogadores, a diferenciação é vista apenas com a classe Cruzado, que se reveste de luz, raios e brilho para mostrar sua forte inclinação para o bem e a ordem – signos claramente referentes ao céu; o restante das classes usa de animais selvagens (caninos e aranhas, vivos ou mortos), espíritos, mortos-vivos, fogo, dragões e outros recursos visuais para evidenciar que os heróis, ainda que se comportem e ajam como tal, se apoderam de forças similares às combatidas para se igualarem ou superarem estas.
Vale relembrar o movimento de incorporação que parte das igrejas cristãs utilizaram e que se vê repetido no conceito visual dos heróis, dificilmente colocado como crítica a estas, é um exemplo evidente de que tal manobra por ser representada em obras narrativas e, além disso, ser representada visualmente em tal; se antes símbolos pagãos e outros signos eram acolhidos pelo "bem" que certas igrejas cristãs se colocavam, o bem mostrado no jogo repete tal a fim de usá-lo para rechaçar o mesmo mal no qual "se apossaram" os símbolos, com seus significados.

Conclusão

Os signos ligados ao mal no imaginário comum, com características claramente grotescas e fartamente manipulados na fantasia popular, são recursos ricos para fornecer diferentes representações do mal, mesmo antagônicas, como as mostradas aqui – "bem" e "mal" podem ou não ser bem delineados visualmente entre lados opostos. Ainda que valendo-se de deturpações históricas de simbologias antigas, trazidas da teologia e incorporadas ao senso comum, os games conseguem utilizá-los satisfatoriamente bem no seu visual, seja para reforçá-los, através do maniqueísmo exaustivamente visto em várias mídias, seja para criticá-lo (sem deixar de reforçar), ao compartilhar o sombrio, o violento e o mortífero com os heróis. Mas além da apresentação que as mídias colocam do mal, o que se mostra mais rico e com um terreno fértil para outros games futuramente, são as ferramentas visuais que o grotesco e a fantasia (sejam juntas ou separadas) proporcionam artisticamente para mostrar outras possibilidades de representação visual de fatores variados, como o mal aqui analisado. O estudo das diversas representações que o mal apresenta nos jogos ainda tem muito mais a oferecer, mas já mostra que o grotesco e/ou fantástico, podem ser bases seguras para concepções visuais apuradas em se tratando do imaginário comum de signos que nos povoam.




BIBLIOGRAFIA

Livros
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. Edunb, HUCITEC. São Paulo - Brasília, 1996.
CAMARANI, Ana Luiza Silva. A Literatura Fantástica: Caminhos Teóricos. Ed. Cultura Acadêmica. São Paulo - SP, 2014.
KAMBOUCHNER, Denis. Há Bons Motivos Para Ser Mau?. Ed. Alaúde. São Paulo - SP, 2015.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância Religiosa: Impactos do Neopentecostalismo no Campo Religioso Afro-brasileiro. Edusp. São Paulo - SP, 2007.
SCARPI, Paolo. Politeísmos, as religiões do mundo antigo; coleção História das Religiões. Hedra. São Paulo - SP, 2004.
THORNBORROW, Nick e GELINAS, Ben. The Art of Dragon Age: Inquisition. Dark Horse. Milwaukie - OR, 2014.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro - RJ, 1999.

Hipertextos
http://us.battle.net/d3/pt/media/artwork. Acessado em 17 de abril de 2015.





Graduado em Comunicação Social: Habilitação em Publicidade e Propaganda pela Universidade da Amazônia (UNAMA), mestrando em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA), orientado pela Profª Drª Valzeli Sampaio (PPGArtes - UFPA)
CAMARANI, 2014. p. 54-55)
VAZQUEZ, 1999. p.291
BAKHTIN, 1996. p. 267
BAKHTIN, 1996. p. 267

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