A representação da identidade antilhana em poemas de Nicolás Guillén

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A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana

Por

Wanessa Cristina Ribeiro

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ 2010/2

A poesia Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana

Por

Wanessa Cristina Ribeiro

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ 2010/2

A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana Wanessa Cristina Ribeiro Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas(Estudos Literários -Literaturas Hispânicas). . Examinada por: Profª. Dr ª. Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Profª. Dr ª. Ximena Antonia Díaz Merino UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

Profª. Dr ª. Rita de Cássia Miranda Diogo Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Profª. Dr ª. Ana Cristina dos Santos Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Prof. Dra. Marinês Lima Cardoso Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas/ Bolsista PRODOC/CAPES UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Avaliação:....................................... Em 07 de dezembro de 2010, às 14 horas

RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos LiteráriosLiteraturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.

Resumo

Análise crítica sobre a identidade nacional em poesias do escritor cubano Nicolás Guillén através de estudo comparativo baseado no diálogo entre elementos-chave na construção da ideia de nação, presentes no imaginário popular antilhano, e o discurso poético de Guillén. A relevância dessa análise se deve à conjunção harmoniosa entre suas composições poéticas e as demais manifestações artísticas cubanas, além de congregar os valores identitários de Cuba sem perder a grandeza dos valores estéticos. Através da contextualização histórica do fim do século XIX e o decorrer do século XX, as análises poéticas de “Rumba”, “Secuestro de La mujer de Antonio”, “Balada de los dos abuelos”, “Tengo” e “España: poema en cuatro angustias y una esperanza”, devidamente associadas a outras produções artísticas pretendem corroborar com a ideia de que Guillén, ao transmutar os valores da sociedade cubana, cumpre a função de alimentar o imaginário coletivo de seu povo, reafirmando a necessidade de entender a identidade como um projeto a ser continuamente trabalhado.

RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.

Resumen

Detallar la cuestión de la identidad nacional en la poesía cubana de Nicolás Guillén a través del estudio comparativo basado en el diálogo entre los elementos clave en la construcción de la idea de nación Antillana en la imaginación popular, y el discurso poético de Guillén. La relevancia de este análisis se debe a la combinación armoniosa entre sus composiciones poéticas y otros eventos artísticos en Cuba. Además de aportar con brillantez los valores de la identidad nacional cubana, sin perder su grandeza en los valores estéticos. A través de los antecedentes históricos de finales del siglo XIX y el transcurrir del siglo XX, se analiza las composiciones poéticas: "Rumba", “Secuestro de la mujer de Antonio", "Balada de los dos abuelos" "Tengo"y "España: poema en cuatro y una angustias y esperanza ", combinados adecuadamente con otras producciones artísticas destinadas a reforzar la idea de que Guillén, por la transmutación de los valores de la sociedad cubana, cumple la función de alimentar el imaginario colectivo de las personas, reafirmando la necesidad de entender la identidad como un proyecto a ser trabajado de forma continua.

RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos LiteráriosLiteraturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.

Abstract

Critical analyze about the national identity in poetries of Cuban writer Nicolás Guillén through of the comparative study based on dialogue between key-elements in the construction of the idea of nation, that is present in the popular imaginary Antillean, and the poetic speech of Gullén. The relevance of this analyze is due to the harmonious union between his poetic compositions and others artistic Cuban manifestation, beyond congregate the values of identities of Cuba without lose the greatness of the esthetics values. Through of the historic contextualization at the end of the century XIX and in the course of century XX, the poetic analyses of "Rumba" , "Secuestro of La mujer de Antonio", "Balada de los abuelos", "Tengo" e "España: poema en cuatro angustias y una esperanza", duly associated to others artistic productions to intend corroborate with the Gullén's idea, by transmuting the values of the Cuban society, fulfils the function of the feed the collective imaginary of his people ,reasserting the necessity of understand the identity as a project to be continuously worked.

Dedicatória

Em Deus estão a sabedoria e a força, a Ele pertencem a perspicácia e a inteligência. Jó 12: 13

Nada mais justo que dedicar ao Autor da minha vida o êxito em concluir esta dissertação...

Agradecimentos

“Gracias, gracias, gracias. Quiero agradecer a quien corresponda…” Jorge Drexler

Toda e qualquer forma de verbalizar um agradecimento pecará sempre pela falta e pelo excesso. Como não acredito ser possível fugir desta regra, pecarei pela falta de algum nome ou momento especial no desenvolvimento desta dissertação pelo excesso de alegria em vê-la se tornar realidade. Agradeço primeiramente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela subvenção financeira, que me auxiliou desde o início das pesquisas, possibilitando o aprofundamento de meus estudos, que culminou com a conclusão do presente curso. Também agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ pelo suporte técnico e incentivo acadêmico durante todo o período. Impossível deixar de registrar meu agradecimento à Faculdade de Letras da UFRJ, que me acolheu desde os estudos de Graduação, representada pelo excelente Corpo Docente e Administrativo. Em especial à Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, orientadora e amiga, uma pessoa de extrema significação em minha vida acadêmica e pessoal. Quem me forneceu o apoio bibliográfico, teórico, pedagógico e humano para converter uma ideia em ideal. Graças a sua paciência e dedicação pude transformar meus brutos e sentimentais gostos literários em análises sóbrias e mais fundamentadas que antes. Agradeço também ao Prof. Dr. Luiz Edmundo Coutinho por manter vivo o incentivo a cada membro da “turma do futuro”; à Profa. Dra. Leticia Rebollo pela dedicação em todas as aulas e orientações ministradas e pela constante torcida. À Profa. Dra. Cláudia Luna por seus questionamentos e indicações bibliográficas sempre pertinentes; à Profa. Dra. Sônia Reis pelo empenho em me ajudar a encontrar um fio condutor para meus “devaneios literários” e a

todos os docentes desta Faculdade que direta ou indiretamente contribuíram para o meu desenvolvimento acadêmico. Outro campus desta Universidade que me permitiu alçar vôos mais altos e seguros ao longo dos estudos de Pós-Graduação foi a Escola de Música da UFRJ. Ainda que por um breve espaço de tempo, o período que passei imersa nesse mundo novo chamado Etnomusicologia, sob supervisão atenta e prestativa do Prof. Dr. Samuel Araújo, além dos cuidados e préstimos viabilizados pelo querido Gilson Cabral, que só se tornaram possíveis graças à fortuita acolhida concedida pelo Prof. Dr. Marcos Nogueira, foram fundamentais para o amadurecimento de meus estudos. Como não render graças àqueles que Deus pôs em meu caminho, através de um laço de sangue, para guiarem meus passos nessa eterna utopia que é viver? Muito obrigada vovó Zizinha, quem me obriga a ser feliz a cada conversa; à minha mãe que dedica toda sua vida para fazer de mim um ser humano digno; ao meu vô Antônio de quem eu herdei o talento de me desmanchar em lágrimas; a minha tia Dora, fiel companheira, confidente e comadre; a minha dezena de tios e às dúzias de primos que me fazem rir e nunca perder essa mania de família, família... Sem deixar de incluir a família que meu coração escolheu: Jose, vizinha e mãe nas horas apertadas e dinda Marise, meu anjo e exemplo. Agradeço agora a todos aqueles que me ajudaram a olhar, como bem disse Eduardo Galeano em um de seus textos. Àqueles que apareceram como professores e hoje são amigos especiais e “culpados” por tudo que eu produzir ao longo do tempo. Meus sinceros agradecimentos a Célia Lúcia, minha leitora e confidente incansável; a Fernando Pimenta, o temperinho da minha alegria; a Kátia que sempre me incentivou com seu famoso: “você poderia ter feito melhor” e a Angela Espíndola, quem me ensina desde o mesmo ângulo que ocupo. Hoje em dia quase ninguém mais guarda fotos 3x4. Amontoamos arquivos jpeg em infindas pastas. No entanto, continuamos dizendo eu te amo, seguimos fazendo muitos filmes e ao nos reencontrar ainda temos a mesma beleza e fantasia de antes. Neste e em todos os dias que virão eu não poderia

dizer menos que eu te amo à Kennya Fandi, aos meus Diogos prediletos, ao Bruninho e sua família linda, a Rafael Ferreira e bem... acho que para Debora Medeiros eu teria de dizer ti voglio bene. Obrigada aos bons amigos que nasceram pela fé, com os quais poderei contar e cantar para sempre. Primeiramente ao Padre Diegues, responsável direto pela minha formação moral e espiritual na adolescência. À musical família Tostes, especialmente ao André; aos meus compadres Joyce e Orlando; à Fabiana, Jéssica, Paloma, Ana, Rodrigo, Paula e Anderson por estarem ao meu lado sempre. Sonhando com o céu, com o mar e com as estrelas a brilhar... E ainda um pouco distante de colocar um ponto final, começo o parágrafo agradecendo a quem celebrou comigo aquele sol diferente no céu visto da EBA, da Letras ou de qualquer cantinho mágico desta jornada chamada graduação. Meu agradecimento a Nathalia Loureiro, sócia desde os tempos de pré-vestibular; à Luana Damaso, desesperada amiga e aos vértices Evelyn Lucena e Dani Veiga. A esta última devo a capacidade em ver no mais simples acontecimento um potencial espetáculo de vida. Obrigada por estrelar comigo essa odisséia chamada Letras. À medida que crescem os parágrafos tenho a sensação de que essa parte da dissertação vai estendendo cada vez mais suas fronteiras, assim como a relação que construí com as pessoas a quem dirigirei meu “muito obrigada”.

À

Vanessa

Azevedo,

com

quem

coleciono

dezenas

de

coincidências; a Gustavo Furtado, companheiro de viagem desde o primeiro instante e ao quarteto fantástico do qual faço parte junto a Anastácia Cabo, Giselle Pereira e Priscilla Romano. A esta primeira integrante do quarteto devo a revisão desta dissertação e de outras tantas revisões acadêmicas ou não. Assim como as inúmeras refeições, conversões e discussões sobre temas que ultrapassam qualquer vã filosofia. À Kelly Ferreira, minha amiga da vida inteira. Que chora o meu choro e compartilha comigo seus sorrisos. Por vibrar a cada conquista minha como se sua fosse e por ser a primeira a estar ao meu lado em momentos de queda.

Aquela que participa da minha vida como se estivesse por perto o tempo todo porque nunca vai deixar de estar junto de mim. À Luísa Perissé, por ser mi amiga e por não me deixar sozinha nessa tarefa tão solitária que é “mestrar”. Obrigada por ser companheira, revisora, colega de trabalho. Por embarcar e me colocar em inúmeras enrascadas sob a frase que sempre nos consola: “Calma, amiga, vai dar tempo... a gente consegue.”. Por concorrer, mas nunca disputar comigo. Sei que sempre haverá lugar pra nós duas e a que subir primeiro estará de mão estendida para levantar a outra. A Gabriel Poeys: o menino de sobrenome mais poético que já vi na vida. Companhia presente e carinhosa que se pode ter em todos os momentos, assuntos. Obrigada por me entender sem que eu precise falar. Por gostar de mim sem precisar dizer em palavras. Por estar junto, perto, dentro. Por me incluir na sua vida, por dividir comigo a lealdade de Pedro Carné e sua banda amiga que nos aguanta el corazón. E, finalmente, aos meus afilhados Andrey Ribeiro, Ramon Pereira e Arthur Franco. No sorriso de vocês eu pude encontrar solução para os momentos de cansaço, de desalento, de falta de criatividade. Sei que ainda não entendem quase nada sobre a questão identitária cubana, mas são especialistas em fazer da vida uma canção de melodia simples e ritmo contagiante.

Cantemos frente a los frescos siglos recién despiertos, bajo la estrella madura en la nocturna fragrancia y a lo largo de todos los caminos abiertos en la distancia Nicolás Guillén

Sinopse

Análise crítica de poemas do escritor cubano Nicolás Guillén. Abordagem da temática identitária e sua relação com os aportes teóricos, da transculturação e da práxis musical. Destaque para a correlação entre história e literatura nacionais.

em

Cuba

na

consolidação

dos

valores

SUMARIO

PRÓLOGO............................................................................................15 INTRODUÇÃO......................................................................................16

I – CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL CUBANO........................21 1- A influência das décimas no fazer poético em Cuba.............................23

2- Cuba e suas independências ao longo do Século XX........................28

II – UM OLHAR SOBRE A PRÁXIS MUSICAL E POÉTICA EM VERSOS DE NICOLÁS GUILLÉN.........................................................................41 1 – As “Rumbas” e o desejo na construção do olhar poético......................46 2 – Um dueto entre música popular em Cuba.............................................52

III – O CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN NA TESSITURA SIMBÓLICA DA IDENTIDADE ANTILHANA..................................................................59 1- Transculturação: história e ampliação de um conceito...........................61 2 - Hispanidade imaginada: Guillén, tecelão de identidades......................70 2.1 - Revolução cubana: do literal ao literário............................73 2.2 - “ESPAÑA”: la imagen del caos…………………………..…78

CONCLUSÃO…………………………………………………………….….94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................96 ANEXO

Prólogo

Ao iniciar os estudos na área das Literaturas Hispânicas, no ano de 2005, pude vislumbrar a rica diversidade do universo cubano e, desde então, só aumentou o meu interesse em conhecer cada vez mais essa apaixonante forma de expressar a realidade de um povo. Durante os dois anos de Iniciação Científica, sob orientação da Profa. Dra Mariluci Guberman, pude transformar esta afinidade em objeto de estudo. Ao concluir minha Graduação na Faculdade de Letras da UFRJ não tive dúvidas ao escolher o caminho a seguir no Curso de Mestrado. A partir do 1°semestre de 2009 pude prosseguir oficialmente como aluna e bolsista da Capes no Programa de Pós Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Durante o primeiro ano de curso pude amadurecer minhas teorias e repensar em todo o processo que desenvolvi ao longo dos anos de Iniciação Científica. Já no segundo ano, especificamente, no primeiro semestre do ano de 2010, vivenciei um período deveras produtivo para o meu desenvolvimento acadêmico. Dando continuidade aos estudos sobre o sistema histórico-literário caribenho, minhas pesquisas avançaram dentro e fora do campo de Letras. Graças à amplitude vislumbrada pelo Programa de Letras Neolatinas, prossegui com a coleta e tratamento de dados na Escola Nacional de Música UFRJ, na biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ e na biblioteca central da UNIRIO, através das quais pude ter acesso a uma bibliografia significativa que foi importante na consolidação do meu corpus teórico, bem como na definição dos pontos a serem trabalhados ao longo de minha dissertação. Todo o trabalho dos professores deste Programa, sem esquecer o extenso apoio bibliográfico e intelectual fornecido por minha orientadora desde os tempos de Iniciação Científica, se configurou como um alicerce que me permitiu galgar passos mais firmes. Deu-me o respaldo necessário para buscar novas leituras sobre os fenômenos sociais por mim estudados e produzir a presente dissertação

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Introdução

Cuba: um extenso lagarto verde com olhos de pedra e água, que abriga uma nação marcada por anos de lutas e conquistas. Seus olhos podem ver imensas tempestades de povos e costumes: partir, chegar, nascer e sempre resistir. É esse o principal enfoque da poesia de Nicolás Guillén que, através desse ir e vir, viver e resistir nos permite sair e conhecer outras culturas, em uma troca de experiências e valores enriquecedores. No que se refere ao cenário literário cubano, José María Heredia (1803-1839), José Martí (1853-1895) e Nicolás Guillén (1902-1989) são considerados

como

os

principais

autores

responsáveis

por

traduzir

literariamente as etapas do processo de formação do povo cubano. O ano de nascimento de Nicolás Guillén foi marcado pela instituição da República de Cuba. O poeta cubano pertence à geração que sofreu com maior intensidade a frustração da independência dentro das condições semi-coloniais impostas pelo imperialismo norte-americano. Ele é fruto da união entre o jornalista Nicolás Guillén Urra, de origem branca, e de Argelia Batista, filha de escravos. O pai do poeta faleceu vítima da repressão a uma revolta política, fato que abalou radicalmente a situação econômica da família Guillén. Guillén começou a publicar seus escritos por volta de 1917 com influências modernistas. Nota–se também em sua obra que o poeta era leitor assíduo dos clássicos espanhóis como Lope de Vega, Miguel de Cervantes, Quevedo, Luis de Góngora, com relevantes influências de Gustavo Bécquer. A obra de Guillén se enraíza na poesia patriótica de Heredia, que foi precursor do processo da Revolução Cubana, e que, através de Martí, se propaga com seus escritos o clamor do povo em luta pela independência. O processo de ruptura com a estética modernista pode ser observado a partir de sua composição “Al margen de mis libros de estudio”. Depois de um longo tempo sem escrever, Guillén retoma o hábito como ofício inspirado pelo movimento vanguardista – um grupo composto por artistas e intelectuais inconformados com as normas acadêmicas e a retórica dos valores

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convencionais. É esse o acontecimento crucial para impulsionar a força criadora do poeta que teve seu ponto de partida nas asas do Cisne modernista do nicaraguense Rubén Darío. A poesia de Nicolás Guillén percorre e faz uso de todos os explosivos e encantadores ingredientes desse mundo latino-americano, caribenho, negro e cubano. É como um poeta-jogral que consegue, em sua primeira etapa madura, desenvolver uma estética pessoal e, através dela, abordar toda a memória dos rituais da festa pagã, da resistência do índio e do crioulo. Fortemente ligado às suas origens, plasma em sua poesia todas as imagens contempladas por seus olhos ao longo de sua vida. Tem- se como resultado uma profícua mescla de sonoridade caribenha, pintada de negro e com um toque de “ron” e “melaza”. Cultiva o interesse em descobrir, no cotidiano de seu povo, cenas corriqueiras que contam muito mais que seus costumes, pois são descritas com o deslumbre, o respeito e a ironia de quem fez parte desse universo. O poeta, além de ser o resultado da rica profusão de diferentes etnias e culturas, é também testemunha ocular dos momentos mais comoventes de seu povo e, em alguns casos, de outras comunidades. Discorramos agora sobre algumas de suas obras. A publicação de Sóngoro Cosongo aconteceu após um ano e meio da chegada de Motivos de son. Ambos os livros representavam, segundo Augier (1984:127), [...] uma onda sonora cuja vibração havia de perdurar indefinidamente, sobretudo ao renovar sua ressonância com a inclusão de los Motivos de son no novo livro [Sóngoro Cosongo], cuja segunda parte veio a integrar como um complemento lógico.

Guillén tomou o título Sóngoro Cosongo do estribilho de um de seus poemas publicados em livro anterior. Dentre as inúmeras composições poéticas, podese destacar “Secuestro de la mujer de Antonio”, clara e confessadamente inspirada em um “son” da época, obra de Miguel Matamoros, cuja letra estava já na época incorporada ao cancioneiro popular. Sobre esta composição de Guillén, Augier (1984:132) afirma:

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Este personagem foi tomado por Guillén para um romance de estilo novo, heterodoxo, crioulo, onde a metáfora relampejante forjada com elementos do ambiente nativo se combina com o ritmo peculiar do bongó que «se calentó» expresso à maneira já inconfundível de Guillén.

Na composição poética “Rumba”, Nicolás Guillén exalta os valores negros, destacando a rumba como uma das possíveis formas de representar a identidade. Uma tentativa de combater o preconceito pelas vias poéticas. Em West Indies, que desde o título satiriza a realidade de dependência econômico-politica cubana, sedimenta o seu talento ao abordar o mestiço. Em “Balada de los dos abuelos”, Guillén exalta a importância de sua origem mestiça sem omitir as dores de seus antepassados nem justificar o sofrimento causado pelos conquistadores. Muito mais que preconizar o mundo e as crenças de um “abuelo blanco” com sua “gorguera” ou de um “abuelo negro” de “torso pétreo”, Guillén consegue, através de suas composições, salientar o resultado desse processo. Apresenta-se como elemento que representa a fusão dessas duas etnias. O ritmo do Son cubano, que se intensifica em seu livro El son entero, pode ser confirmado como característica intrínseca do fazer poético do autor. Em “Tengo” é possível perceber o envolvente jogo fonomelódico1 de um eu-lírico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionária. Porém suas composições não se limitam apenas aos problemas e particularidades inerentes à Cuba, mas sim aos acontecimentos de diversas partes do mundo. Por onde passa, Nicolas Guillén registra em seus versos o que seus olhos puderam testemunhar. Como exemplo do que foi mencionado no parágrafo anterior temos o livro Cantos para soldados que foi publicado no México, quando o autor participou de um congresso de escritores, convidado pela Liga de Escritores e Artistas Revolucionários (LEAR). De lá seguiu para a Espanha, com o objetivo de participar do II Congresso Internacional de Escritores Antifascistas en Defensa de la Cultura. 1

Termo utilizado por Mariluci Guberman em “Poder de libertad en Guillén.” El mar y la Montaña, Guantánamo, 1989

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Uma de suas composições, publicadas nessa mesma época, possui como tema a Guerra Civil Espanhola e se intitula “España, Poema en cuatro angustias y una esperanza”. Os valores estéticos desse poema, que expressa uma sincera solidariedade do povo cubano com a causa defendida pelos republicanos espanhóis perante o avanço fascista, superam a mera representação literal dos fatos. Pretende-se,

portanto,

com

a

presente

pesquisa,

estudar

a

representação da identidade nacional de um povo através do diálogo entre composições poéticas do autor e música popular, bem como a repercussão das heranças africana e européia na sedimentação de conceitos identitários das Antilhas, com enfoque particular para Cuba, através da análise histórica e literária de poesias selecionadas do autor Nicolás Guillén. Para tanto, parte-se das influências artísticas anteriores vivenciadas, juntamente com a história de Cuba para iniciar os estudos sobre o contexto cultural e literário. Busca-se compreender os processos evolutivos do cenário cultural, considerando, portanto, os artistas que antecederam o momento vivido por Nicolás Guillén. As análises literárias embasam-se nas acepções publicadas por Kevin Lynch em A imagem da cidade (1982) e Justo Villafañe em Introducción a la teoria de la imagen (2002). Outro aporte teórico relevante encontra-se em Walter Benjamin (1994) e seu conceito de memória: uma busca do tempo passado no presente. O estudo da identidade é o respaldo teórico que permite ratificar os elementos vislumbrados no contexto histórico. Para este fim, foram empregadas as concepções de Zygmunt Bauman (2005) e Benedict Anderson (2008) sobre identidade, discutindo-se também a ideia de tranculturação em Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (2002) de Fernando Ortiz e em Transculturación narrativa en América Latina (1987)

de Angel Rama,

por

entender a importância que este conceito possui na construção da ideia da identidade cubana . Toda essa série de elementos que compõem o universo poético de Guillén é embalada pelo “son”. E para tratar das questões pertinentes ao universo musical cubano e suas influências, temos como fundamentos teóricos

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principais os estudos de Alejo Carpentier, em seu livro La música em Cuba (1998), e no escrito por Fernando Ortiz, La africanía de la música folklórica de Cuba (1950) e também no de Mareia Quintero Rivera, A cor e o som da nação: a idéia de mestiçagem na crítica musical do Caribe hispânico e no Brasil (1928/48) (2000).

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I – CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL CUBANO

A cada una de las etapas de la evolución histórica de Cuba corresponde exactamente cada uno de los períodos de nuestra poesía. Ángel Augier

A História se configura como memória viva que define o momento presente. É um patrimônio humano através do qual adquirimos o conhecimento e a compreensão necessários para tornar viável uma mudança na realidade que nos circunda. As obras literárias são, portanto, veículos atemporais nos quais a história de um indivíduo ou nação se perpetua na memória como História de um povo. São elas o elo que permite a disseminação de elementos-chave na compreensão do modus vivendi de uma sociedade num tempo e espaço definidos. Como bem discorre o escritor e historiador Angel Augier, em sua obra Nicolás Guillén: estúdio biográfico-crítico, o grito romântico em Cuba coincidiu com os primeiros lampejos da consciência nacional, expressa ainda nos primórdios do século XIX através dos versos de Jose Maria Heredia. O mesmo ocorreu em tempos de exacerbada agitação pela independência da ilha no fim desse século, momento em que se pode destacar a figura de José Martí como um dos principais nomes que encabeçariam a renovação literária motivada pelos ideais do modernismo hispano-americano. Os escritos de Nicolás Guillén, assim como os dos integrantes do grupo Minorista, são um reflexo literário da urgência literal em conquistar a plena independência da ilha. Coincidem com um momento em que todos os cidadãos cubanos se envolvem na causa revolucionária com o fim de extirpar problemas, alguns deles, sinalizados por Guillén em seu primeiro artigo, publicado em 1929 no Diário de la Marina sob o título “El camino de Harlem” no qual interroga:

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¿Cuáles son los problemas de La raza de color, hoy, en la República de Cuba? ¿Es que después de dos grandes revoluciones contra España y después de la instauración de una patria libre, en cuya Constitución la igualdad entre todos los ciudadanos es dogma primordial, puede haber una cantidad de cubanos, por pequeña que ella sea, que se sienta diferenciada por ella?

O próprio poeta responde na sequência do texto encontrado em Augier (1984: 89), La respuesta es grave y, sin embargo, debe darse. Sí, señores, todavía tiene problemas la raza de color en Cuba y todavía necesita luchar mucho para resolverlos. Todavía la igualdad no alcanza a todos los sectores de la vida republicana, y aún hay mucha trinchera prematuramente abandonada, donde es preciso seguir combatiendo contra prejuicios innumerables.

Ao longo do século XX, com o intuito de compreender os processos evolutivos do cenário cultural através dos fatos históricos que podem ser vislumbrados em dado momento, serão abordadas, nesta pesquisa, as décimas cubanas como veículo transmissor dos valores nacionais de 1898 a 1925 e da história de Cuba. Para tanto será de fundamental importância os estudos de Bonifacini (1987), Portuondo (1985) Ibarra (1994) e Bethell (1998).

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1- A influência das décimas no fazer poético em Cuba Con los pobres de la tierra quiero yo mi suerte echar el arroyo de la sierra me complace más que el mar José Martí

Pode-se considerar a décima, como a estrofe nacional dos cubanos. E esta informação está completamente decantada nos meios literários e sociais não só da América Latina, mas também em território espanhol. Esse modo de expressão artística nasceu em território espanhol, graças a Vicente Espinel no fim do século XVI e foi trazida, juntamente com o romance, às terras americanas com a colonização. Converteu-se em uma das expressões mais características da poesia popular, sendo utilizada até os dias atuais por poetas e nas relações interpessoais, quando se pretende expressar algum sentimento através de versos. Para delinear um perfil sócio-cultural do cubano no século XX, cabe destacar que este, como bem discorre Cíntio Vitier, pouco se identificou com o romance tipicamente espanhol, porque o que o define e difere dos espanhóis seria [...] uma sensibilidade atenta somente ao fresco presente como sucessão de instantes, como perene improvisação efêmera. O romance gravita, ressoa, vive de seu próprio eco, flui em um rio profundo. (Cintio Vitier In: Ibarra 1994: 195)

Era preciso consagrar uma expressão de espírito breve e vigoroso como o canto do galo. Portanto, as décimas se apresentaram como modelo ideal para retratar o momento vivenciado. Sobre o assunto ainda podemos afirmar, em conformidade com os estudos do professor Boris Lukin que, Diferente do poema épico, as obras líricas tinham uma interpretação massiva, o que oferecia mais possibilidades para adaptar os textos a novos sentimentos e conexões. Não há em Cuba a tendência dos

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romances, nos quais se vislumbra o pintar de gestas do passado, fundamento do romanceiro espanhol. (Boris Lukin in: Ibarra 1994: 194)

Ainda sobre as características definitórias da décima cubana, vale mencionar primeiramente que esta responde, em todos os termos, aos acontecimentos vividos no momento presente e, por conseguinte, é um fenômeno explosivo de curta duração. Em seguida, pode-se observar que há nela maior possibilidade de interpretação quando se pretende realizar uma análise histórica e sociológica do cubano. A décima possui uma estrutura redonda: o primeiro verso e o décimo de alguma maneira se reencontram. O improviso é marcante e se aproxima ao barroco, pois se abre como uma espiral em direção à luz, à semelhança arquitetura barroca. No final do século XVII e na primeira metade do século XX, apareceu como expressão genuína, atrelada à terra e à natureza cotidiana dos cubanos. Não existia nada que a vinculasse às crônicas oficiais da burocracia colonial o que facilitou sua disseminação. A clara preferência por essa forma de expressão se configura como uma nítida rejeição a uma história oficial que não cristalizava a realidade de um povo que abrangesse todas as camadas sociais existentes. Manteve-se e se nutre, até os dias atuais, da necessidade de estabelecer comunicação entre as diversas regiões que compunham as camadas populares. Na primeira metade do século XIX, se observa uma marcada ausência dos temas políticos nas manifestações artísticas do gênero. Já na segunda metade do mesmo século, tem-se um aumento na discussão dos problemas políticos devido às guerras em prol da independência da Ilha. Com isto, se pode elencar uma série de trovadores regionais que representaram esse momento em Cuba através de suas décimas: Vate de Canasí, Senén e Nemesio Cabrera, procedentes de Pinar Del Rio; Verbena de Güirarde Melena; Tejera Trujillo (Gareo) de Guines; San Fancón de Lajas; Fórun del sol de Cienfuegos; Tocororo de Palmera; Miguel Puertas Salgado de Placetas; José Limedoux de Sagua; Ceferino Tirado de Camagüey.

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Em princípios do século XX, Samuel Feijóo coletou e publicou no semanário popular humorístico titulado La política cómica algo em torno de 200 décimas. Dentre elas, 59 se referiam diretamente a temas políticos o que confirma a tendência referida em parágrafos anteriores. O diretor do semanário cubano na época, que até princípios do século concordava com uma política conservadora, passou a dar espaço às publicações provenientes do interior da Ilha. Atitude que tanto pode ser interpretada como uma possível mudança de posicionamento quanto como o anseio de aumentar as vendas do semanário. O contexto histórico-político fervilhava nas décimas camponesas. Das publicadas em La política cómica entre 1920 e 1923 encontraram 60 referências contra a política de Menocal e 16 contra Zayas. A crítica mais dura se fundamentava no apoio que os políticos demonstravam às determinações norte-americanas. Dessa forma é possível explicar as 83 referências contra as classes dominantes que oprimiam as camadas mais humildes e as 84 referências dirigidas contra o vizinho do norte. Estas últimas se apresentavam como uma resposta às ameaças de união dos territórios; à Emenda Platt e aos empréstimos que lesavam a soberania nacional, fazendo crescer a urgência em obter a plena soberania em Cuba. Para que a explanação iniciada no início do presente estudo tenha uma consistência efetiva, sigamos com a apresentação de algumas décimas da época para ilustrar as inquietudes do povo cubano.

I ) “La tonada Del dia” que faz uma alusão às condições vividas no plantio de cana: Los meses así han pasado/ desde mayo hasta noviembre/ y éntrase más en diciembre/ y todavía no han pagado. / De ese modo han engañado/ al campesino cañero/ y aunque saben que el bracero/ de su miseria está muriendo/ siempre le salen diciendo: / dentro de poco hay dinero. (In: Ibarra 1994:205)

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II) “Explotando a Liborio” em uma referência clara a exploração das industrias norte americanas em Cuba: Vienen los norteamericanos/ trayéndo aqui muchos reales/ para comprar los centrales que les venden los cubanos/ Ellos nos llaman hermanos/ desde que hubo intervención, / y ahora encuentran la ocasión/ de aumentar su capital/ pagando poco jornal/ en su gran explotación. (In: Ibarra 1994:206)

III) “A Cuba” na qual se apresentam as diferenças entre as classes sociais Ay, cuanta miseria enseñanza encierra/ ese humilde hogar cubano/ los que con callosa mano/ llenan de frutos esa tierra./ Los que con la suerte en guerra/ nunca a la labor se hacían/brindan al comercio espacio,/ viven en bohíos ruinosos/ mientras dan al poderoso/ modo de habitar palacios. (In: Ibarra 1994:206-207)

IV) “Peñon de las cotorras” que denota o sentimento aguerrido em mudar a situação de dependência. Liborio se halla arma en brazo/ se encuentra ya prevenido/ el pájaro entrometido/ no le daría al aletazo. / De su tierra ese pedazo/ que se lo quiten no deja/ el águila grande y vieja/ tendrá fuerza, sí señor/ pero a Liborio el valor/ le sobra y eso le empareja. (In: Ibarra 1994:210)

As décimas aqui citadas constituem um singelo exemplo que figura em uma série de composições que aludem o modo de vida do cubano. Nelas se perfilam uma atitude de intensa emoção. Transparecem a dor, a amargura o inconformismo diante da situação vivida em Cuba. São, segundo Jorge Ibarra (1994:208) um reflexo fiel dos sentimentos dominantes na massa rural, ao passo que contribuem para fixar um conhecimento exato da natureza do conflito entre explorados e exploradores, necessário para uma tomada de consciência de si.

Sua linguagem espontânea e atenta abarcou a crise política instalada em Cuba no primeiro quarto do século XX. Nestes anos, poucos depositavam suas esperanças nos homens e instituições da república. Nas décimas, o mal

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estar e a irritação encontravam sua máxima ressonância superando efetivamente os meios de comunicação aliados a burguesia. Tiveram, portanto, um caráter patriótico e popular, pois congregavam a todos ao entoar os anseios e aspirações do povo. Ainda hoje encontram espaço no cenário cubano, já que o intenso vínculo entre oralidade e escrita permanece vivo nas composições cubanas. Como comprovaremos ao relacionar as considerações dos estudos que se seguem às análises das composições poéticas de Guillén.

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2- Cuba e suas independências ao longo do Século XX Libertad es el derecho que todo hombre tiene a ser honrado, y a pensar y a hablar sin hipocresía José Martí

A primeira metade do século XX se caracterizou como um período de tensões entre Cuba e algumas nações que pretendiam obter o controle da Ilha. O combate travado entre Espanha e Cuba fez com que a primeira ficasse à beira da ruína. No entanto, o triunfo da campanha militar cubana não alcançou os resultados esperados na esfera política de Cuba. Acabou facilitando a intervenção dos Estados Unidos no conflito e, consequentemente, fortaleceu o poder de atuação do leão de duas cabeças 2 em solo cubano. Sobre a participação dos EUA no “novo” processo de dependência de Cuba, vale destacar os escritos de Leslie Bethell (1998:151), catedrático emérito de história da América Latina na Universidade de Londres, quando afirma que: A intervenção armada conduziu a ocupação militar e ao concluí-la, em maio de 1902, os Estados Unidos reduzira a independência de Cuba a uma simples fórmula. A Emenda Platt negava a recém-nascida república: sinalizava limites para a dívida nacional e sancionava a intervenção estadunidense para a “manutenção de um governo idôneo, para a proteção da vida, a prosperidade e a liberdade individual”.

O tratado de reciprocidade não só atrelava o açúcar, principal produto cubano de exportação, a um único mercado como também abria setores-chave da economia cubana ao controle estrangeiro, majoritariamente, o estadunidense. Amparadas pelo tratado de reciprocidade, as forças políticas dos Estados Unidos puderam substanciar a dependência cubana do açúcar e, em menor escala, do tabaco. Além disso, obtinha-se também como resultado um retardo no desenvolvimento da economia na Ilha, já que o mercado cubano se

2

Expressão utilizada por José Marti no manifesto “Nuestra América”. In: MARTÍ, José. Nuestra América. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005.

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encontrava sufocado diante das imposições estrangeiras. Como se vê ratificado nas linhas abaixo: Antes que transcorresse uma década desde a guerra de independência, os Estados Unidos já eram onipresentes em Cuba. Dominavam totalmente a economia, penetravam por completo no tecido social e exerciam o controle pleno do processo político. A localização desta presença deu forma ao caráter essencial da república em seus primeiros tempos. (Bethell 1998: 152)

Como grande parte da riqueza nacional passou rapidamente a mãos estrangeiras, os cargos políticos foram distribuídos entre as elites. Esta era a única atividade que se caracterizara por ser desempenhada completamente por membros da sociedade cubana. Tornou-se o principal meio de vida das camadas mais privilegiadas em Cuba. Nesses moldes, o processo eleitoral passou a ser um espaço de substituição cíclica e previsível. A preservação desse sistema era tão importante que a sucessão presidencial foi o estopim de protestos armados em 1906. Primeiro na reeleição de Tomás Estrada Palma e no ano seguinte contra o candidato Márcio García Menocal. O intento de alterar a ordem estabelecida na ilha demorou a findar. Anos mais tarde, os protestos contra a reeleição de Gerardo Machado tomou proporções bem maiores que os movimentos organizados em eleições anteriores. O conflito saiu dos tradicionais partidos Conservador e Popular e se concentrou também no partido Liberal. Porém, a oposição ao governo de Machado não se originou fundamentalmente nos partidos arraigados. Novas formas começaram a dar sinal de vida na sociedade. Na década de 20 a primeira geração de cubanos nascidos sob a república, dentre os quais figurava Nicolas Guillén, já alcançara a maturidade política e conhecia as deficiências do sistema republicano. A desilusão da nação cubana encontrou alento na troca de ideias, em novas correntes literárias e artísticas. Sobre esta última informação, cabe destacar a citação de Angel Augier, renomado historiador e crítico cubano, sobre a participação de Guillén no processo de transformação político-social em Cuba:

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Nos domínios da arte e da literatura, o espírito de protesto se manifestou com o Grupo Minorista, formado em 1924, por, como definira um de seus animadores, “intelectuais jovens de esquerda” que se pronunciaram, desde os primeiros momentos, contra os falsos valores e por uma radical e completa renovação formal e ideológica, nas letras e nas artes, que sem esquecer estes propósitos [...] se interessava pelos problemas políticos e sociais de Cuba, da América e da humanidade, e por eles trabalhavam em sentido radical e progressista. (In: Bonifacini:1987: 26-27)

O Vanguardismo, denominação genérica das novas formas de expressão artística em Cuba, surgiu apoiado nas tendências europeias através dos intelectuais atuantes do Grupo Minorista. Os principais veículos de circulação de ideias e princípios dessa geração revolucionária foram a Revista de Avance (1927-1930) e o suplemento literário dominical do Diário de la Marina. Não só os intelectuais atuaram na transformação em Cuba. Junto a eles, estudantes e trabalhadores levaram o descontentamento além dos limites da tradicional política entre partidos. A geração republicana objetivava regenerar por completo a república, o que a conduziu a levar o embate político às vias da reforma e da revolução. Como resposta a essa mudança que se verificava na sociedade cubana, as elites políticas tradicionais formaram uma aliança para promover a reeleição de Gerardo Machado. Esta conjunção de forças recebeu o nome de Cooperativismo e fez cair por terra a aparente independência entre os partidos, assim como desmitificou a concorrência entre eles. Ainda em 1927, ano da reeleição, Machado conseguiu que o Congresso aprovasse uma resolução que estendia o mandato presidencial. Assim sendo, obteve sua reeleição por um período de seis anos. Com este cenário, intensificou-se em Cuba o enfrentamento político gerado pelo conflito social das correntes de pensamento. A crise mundial contribuiu seriamente para o aprofundamento do embate, levando-o às vias da ação revolucionária. Em meados da década de 30, as condições se agravaram ainda mais quando os Estados Unidos implantaram uma medida protecionista, a tarifa Hawley-Smoot, que incrementou direitos na importação correspondente ao açúcar cubano. Atitude que levou os produtores a rebaixar salários, demitir trabalhadores, reduzindo sua produção. Durante o governo de Gerardo

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Machado também foram feitas drásticas reduções salariais a outros setores das camadas sociais, excluindo-se apenas as forças armadas. Se por um lado, as condições econômicas da ilha pioravam; por outro lado crescia o ressentimento de uma população que ansiava derrubar um sistema com a derrocada de um presidente. Por volta de 1933, líderes de oposição que se encontravam exilados organizaram uma junta revolucionária em Nova York com o fim de convocar uma revolução nacional para expulsar Machado do poder. Toda essa efervescência político-econômica em Cuba preocupava aos Estados Unidos que via escapar de suas mãos o domínio sobre a economia cubana. O General Gerardo Machado, então presidente, já não era útil aos interesses das elites e menos ainda aos estrangeiros. A ordem e a estabilidade, que lhe garantiu o apoio de Washington, proporcionadas em seu primeiro mandato já não existiam. De tal forma, os Estados Unidos deixaram de apoiá-lo iniciando um dissabor que abalaria o cenário político-econômico de ambas as nações. Após muitas manifestações o exército obteve, em agosto de 1935, a retirada de Machado. Iniciou-se então uma nova discussão: quem seria o sucessor adequado. Porém, esta questão foi resolvida de forma provisional. O estadista Carlos Manuel de Céspedes foi nomeado para o cargo após um breve tempo de mandato assumido por Alberto Herrera, Secretário de guerra e ex-chefe do exército. Céspedes era tido como um político inexpressivo, inofensivo já que não estava filiado a nenhum partido ou tendência política. Seu governo foi marcado pela sombra dos efeitos da administração de Gerardo Machado e a crise econômica e social instauradas na ilha não se mostrou menos intensa durante seu mandato. Os movimentos que impulsionavam uma mudança governamental efetiva consideraram insatisfatória a solução Céspedes. Muitos deles, como as organizações estudantis e o Partido Comunista passaram muito tempo lutando pela revolução e isto lhes impedia de se conformarem com um golpe de

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palácio3 como resultado de seus esforços políticos. Seu tempo de governo terminou de forma inesperada. Militares do acampamento de Columbia, que se reuniram em La Habana para tratar de suas reivindicações, ao não conseguir êxito em seus propósitos, conseguiram apoio de grupos anti-governamentais e, juntos, articularam um golpe de estado que seria conhecido alguns anos depois como revuelta de los sargentos. Sobre esse momento, vale destacar o comentário de Bethell (1998: 161) sobre a revolta dos sargentos: Foi uma coalizão de conveniência, não sem seus defeitos, porém ofereceu a absolvição das tropas rebeldes e poder político aos civis dissidentes. Deste consenso civil-militar provisional saiu uma junta revolucionária composta por Ramón Grau San Martín, Porfírio Franca, Guillermo Portela, José Irizarri e Sérgio Carbó.

O traslado da junta revolucionária do quartel do acampamento de Columbia ao palácio presidencial serviu para que a autoridade em Cuba mudasse de lugar. Na manhã do dia 5 de setembro, um manifesto político anunciou

o

início

de

um novo

Governo

Revolucionário

Provisional,

proclamando também a afirmação da soberania nacional, a instauração de uma democracia moderna e de um movimento de criação de uma nova Cuba. Este governo de caráter provisional encontrou em Summer Welles, embaixador dos Estados Unidos, seu maior adversário. Os novos moldes de governo em Cuba destituíam toda a autoridade conservadora defendida por Welles que prontamente recomendou uma intervenção militar norte americana em Cuba com o fim de devolver o poder a Céspedes. No entanto, não obteve sucesso. Ainda no mês de setembro a junta se dissolveu para dar lugar a uma forma de governo mais tradicional sob o controle de Ramón Grau San Martín. Foi nomeado como chefe do exército, Fulgencio Batista, para evitar qualquer

3

É uma espécie de golpe pelo qual um governante ou setor do governo tem sido movido por forças pertencentes ao próprio governo, sem seguir as normas legais estabelecidas para a substituição de funcionários. É muito comum a existência de golpes no palácio ditaduras decorrentes de golpes.

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ruptura na ordem pública. A respeito deste momento político em cuba se faz esclarecedor introduzir a citação de Bethell (1998: 162) quando enuncia que: Sob o slogan de “Cuba para os cubanos”, o novo governo começou a promulgar leis reformistas em ritmo vertiginoso comprometendo-se com a reconstrução econômica, a mudança social e a reorganização política. O novo governo revogou a Emenda Platt e dissolveu todos os partidos machadistas. As taxas de serviço público foram reduzidas em 40% e as taxas de juros também sofreram redução. O direito de voto foi concedido às mulheres e também autonomia para a universidade. Foi instituído o salário mínimo para os cortadores de cana, [...] a jornada de oito horas, indenizações aos trabalhadores, a criação de um ministério do trabalho e um decreto sobre a nacionalização do trabalho que dispunha que 50% de todos os empregados da indústria, do comércio e da agricultura fossem cidadãos cubanos.

O apoio militar ao governo provisional sempre se caracterizou mais pelo interesse que por solidariedade à causa revolucionária. O militar Fulgencio Batista era apenas um dos quatrocentos suboficiais promovidos recentemente cuja graduação dependia de que em Havana houvesse uma solução política compatível com a nova hierarquia do exército. Sabendo disso, Welles explorou de forma hábil a fragilidade dessa aliança para desestruturá-la concentrando seu discurso em Batista. Em dezembro, Summer Welles anunciou que Batista buscava por uma mudança efetiva no governo devido, entre outros fatores, ao temor de que houvesse uma nova intervenção dos Estados Unidos. Retirou o apoio de seu exército a Grau e apoiou Carlos Mendieta – ato que foi legitimado pelos Estados Unidos cinco dias após a ação de Batista. No entanto, as forças de mudança

liberadas

durante

o

machadado

não

minguaram

com

o

desaparecimento do governo de Grau, pelo contrário, encontraram novas formas de expressão. Entre 1934 e 1935 houve mais de cem greves em toda ilha. Dentre as inúmeras greves ocorridas no período, destaquemos a greve geral de 1935. Foi o último golpe revolucionário da geração republicana. Fracassou em poucos dias, porém seus efeitos perduraram até o fim da década. A severidade com que foi reprimida acarretou em desacordos na coalizão presente no poder levando a sua dissolução. Dessa forma, a greve alcança o efeito desejado,

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porém não consegue cumprir seu objetivo já que Batista e as forças armadas acabam preenchendo o vazio político deixado com a saída de Mendieta. Fulgencio Batista passou a ser a força política mais importante em Cuba. Seu prestígio aumentou durante toda a década de 30 à medida que foi restaurando a ordem e a estabilidade. Os grupos revolucionários, diante dos conflitos vivenciados, se encontravam desarticulados. O historiador Leslie Bethell (1998: 166) explica o êxito do governo de Batista quando descreve que Não cabem dúvidas que Batista transformou o exército cubano em um eficaz meio de repressão. Ao mesmo tempo, porém, os líderes militares se entregaram aos negócios ilícitos e a corrupção em uma escala desconhecida em Cuba. [...] Comprometeu as forças armadas com uma ampla série de programas sociais, começando em 1937 com a inauguração de escolas cívico-militares, nas quais sargentos atuavam como professores nas zonas rurais. Estas missões educativas cujo fim era difundir informação referente à agricultura, higiene e a nutrição entre as comunidades rurais foram o início de uma rudimentar rede de educação no interior. O exército tinha mil escolas onde durante o dia se educavam as crianças e à noite os adultos. No fim da década de 30 o exército criara uma extensa burocracia militar cuja tarefa era a de administrar programas sociais

As condições econômicas melhoraram ao longo dos anos 30. O açúcar cubano recuperou pouco a pouco uma maior participação no mercado estadunidense, contudo a recuperação econômica de Cuba interna e externamente teve seu custo. A Ilha obteve, graças ao tratado de 1934, um mercado assegurado para suas exportações agrícolas em troca de reduções tarifárias para uma grande variedade de produtos e a redução de impostos internos sobre produtos estadunidenses. Os Estados Unidos fizeram concessões que abarcaram trinta e cinco artigos do tratado, enquanto as feitas por Cuba afetaram a quatrocentos, vinculando a ilha, uma vez mais, ao país do leão de duas cabeças. O fim da crise econômica e o retorno da estabilidade em Cuba, além do clima de aparente concórdia entre as forças políticas da ilha permitiram a discussão que instauraria uma reforma constitucional. Para tanto se reuniram em 1939 representantes de todas as filiações políticas em uma assembleia constituinte. O resultado dessa discussão pouco acalorada foi a promulgação,

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em 1940, de uma Constituição notadamente progressista. As cláusulas sociais do documento contemplavam apenas uma série de generalidades trabalhistas como: horários máximos, salários mínimos, direito a greve. A constituição de 1940 nascia como uma exposição de objetivos, um programa do que deveria ser feito no futuro. Além disso, vale destacar que sua criação permitiu a celebração das eleições presidenciais no ano de sua promulgação. Uma vez mais se enfrentaram Batista e Grau San Martín, que regressou do exílio para enfrentar seu antigo rival no processo eleitoral. O resultado da eleição foi categórico: Batista obteve mais de 800.000 votos frente aos 575.000 de Grau.

Na presidência, Batista promoveu

mudanças saudáveis. A eleição celebrada em 1940 serviu para conferir um novo caráter à distribuição do poder. O poder político real já não passava mais da autoridade civil constitucional ao chefe de estado do exército cubano. Sobre o período em que Batista esteve no poder cabe destacar que: Em princípios de 1941 as alfândegas, que desde muito tempo eram fonte de subornos para os militares, passaram ao controle do Ministério da Fazenda. Os projetos educativos patrocinados pelo exército estavam, agora, sob a administração do Ministério da Educação. A supervisão dos faróis, a polícia da marinha mercante e o sistema postal voltou aos ministérios governamentais pertinentes. (Bethel 1998: 168-169)

Essa série de mudanças despertou rapidamente a ira dos oficiais setembristas de alta patente e causou uma baixa na confiança dos militares em Batista. Porém este último saiu favorecido do embate entre presidência e força militar. Batista também se beneficiou em que seu mandato coincidisse com a 2ª Guerra Mundial. A entrada de Cuba no conflito, em 1941, facilitou os acordos comerciais e programas de concessões e créditos com os Estados Unidos. A queda na produção de açúcar na Ásia e na Europa, em função da guerra, foi um estímulo para os produtores cubanos que tiveram sua produção elevada de 2,7 para 4,2 milhões de toneladas. No entanto, a guerra também trouxe perdas à ilha. Paralela à valorização vertiginosa do açúcar, vivenciou-se o problema causado pela falta de barcos e o risco em transportar mercadorias à outra margem do Atlântico.

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O turismo também sofreu uma grave queda e o número de viajantes caiu de 127.000 em 1940 para 12.000, três anos após. Todo esse clima fomentou um animado debate político em 1944. Ano em que se celebrariam as eleições presidenciais. Uma vez mais estava na disputa o Autêntico Grau San Martin que, desta vez, saiu vitorioso. Tal fato despertou imensas expectativas populares no programa de reforma que era a grande promessa do PRC4. Contudo, nem o governo de Grau (1944-1948) nem o de seu sucessor Carlos Prío Socarrás (1948-1952) pôde corresponder aos anseios dos cubanos. O governo de Grau foi marcado por incertezas e desfalques por parte do PRC. Como complemento do que foi citado anteriormente, têm-se algumas das acusações feitas nesse período: Grau foi acusado de desfalcar 174 milhões de dólares. Em 1948, acreditava-se que o ministro da Educação roubara 20 milhões de dólares. O ministro da Fazenda do governo de Prío foi acusado de se apropriar indevidamente de milhões de bilhetes velhos do banco que deveriam ser destruídos. (Bethel 1998: 170)

As oportunidades econômicas no período pós-guerra se perderam graças à má administração. Fruto de erros de cálculo, da corrupção e do abuso de poder na distribuição e gestão dos cargos públicos. A derrocada da administração do PRC gerou uma série de conflitos internos no partido, acarretando em uma séria ruptura entre seus membros. O golpe de 10 de março representou o tiro de misericórdia que pôs fim a um regime decadente. Militares insatisfeitos com a gestão de Grau se uniram para derrubar os Autênticos do poder. Na madrugada desse dia, os rebeldes se apoderaram dos principais postos militares da capital. Os militares ocuparam posições estratégicas na ilha e os cubanos despertaram sob o rumor de um golpe de Estado, do qual não se podia ter certeza já que as estações de rádio tocavam música ininterruptamente. O complô liderado por Batista alcançou êxito sem muita resistência. Fato que aparecia como resposta a um governo repleto de manobras corruptas e escândalos. Batista retornou ao poder na ansiada e discutível eleição de 1954 com 40% dos votos. 4

Sigla para designar o Partido Revolucionário Cubano. Que se opunha ao Partido dos Autênticos.

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Os Diálogos cívicos, série de entrevistas feitas a Batista por representantes da oposição moderada, representavam a última tentativa de negociar uma solução política para a crise vivenciada na ilha. Objetivava fazer com que o presidente celebrasse eleições com garantias a todos os participantes. Como Batista se negou, a resposta à sua atitude chegou ainda no ano de 1955. No final deste ano, Cuba estava imersa em uma série de manifestações estudantis. Eram constantes os choques armados entre estudantes e as forças militares e policiais. Os anos seguintes foram de inúmeras tentativas de retirar Batista do poder e realizar em Cuba as transformações necessárias para o seu real progresso. E nesta guerra de guerrilhas, Fidel Castro e seus homens queriam aniquilar a Guardia Rural presente na Sierra Maestra, que durante décadas aterrorizara as comunidades rurais da região. Tal intento ganhou apoio dos camponeses, fazendo com que o contingente aumentasse em número e êxito. Sobre a repercussão dessa manobra de Castro pode-se afirmar que: As vitórias dos insurgentes obrigaram o governo a admitir que havia enclaves de território liberado em toda a província do Oriente. Durante todo o ano de 1957 e começos de 1958 o tamanho do exército rebelde aumentou [...] Em meados de 1958 uma coluna de cinquenta homens sob o comando de Raúl Castro estabeleceu a Segunda Frente no noroeste de Cuba, além de consolidar várias partidas rebeldes que atuavam na região. [...] Outra coluna atuava ao leste do pico Turquino sob o comando de Ernesto «Che» Guevara. [...] A expansão da luta no campo foi acompanhada de uma crescente resistência nas cidades [...] À medida que aumentava o número de sequestros e assassinatos, o regime respondia com maior ferocidade [...] A volta de Batista ao poder havia dado o sinal para a transformação geral no comando do exército e velhos oficiais setembristas.[...]Batista enfrentava tanto a crescente oposição popular como a resistência armada com um exército cada vez mais inseguro politicamente e de pouco fiar profissionalmente. (Bethel 1998: 175-176)

A crise cubana dos anos cinquenta era muito mais que um conflito entre um presidente e seus adversários políticos. O descontentamento durante a década de cinquenta se fundamentava tanto na frustração socioeconômica quanto nas demandas políticas. Em 1957, 17% da população ativa estava desempregada;

na

indústria

açucareira,

aproximadamente

60%

dos

trabalhadores estavam empregados por seis meses ou menos . E este cenário representava um dos melhores anos da década na ilha. No entanto, Cuba

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possuía uma das rendas per capita mais altas da América Latina. Somente México e Brasil superavam Cuba em número de televisores e rádios por habitante.

O

consumo

de

importações,

principalmente

de

produtos

estadunidenses, aumentou de 515 milhões de dólares em 1950 para 649 milhões em 1956 e para 777 milhões dois anos mais tarde. Em 1958 o Movimento 26 de julho começou uma guerra contra a propriedade e a produção por todos os cantos da ilha com o fim de afastar Batista do apoio que recebia das elites econômicas estrangeiras e nacionais. Em fevereiro os líderes da guerrilha anunciaram sua intenção de atacar os engenhos de açúcar, as fábricas de tabaco, as empresas de serviço público, as estações de trem e as refinarias de petróleo. O que fez com que Cuba estivesse durante todo o ano no limite da revolução. O Pacto de Caracas, realizado em junho de 1958, nomeou Fidel Castro como líder principal da revolução.

As tropas de Batista fracassaram no

combate travado na Sierra Maestra. Os comandantes militares das regiões se rendiam, pouco a pouco, sem disparar um só tiro. Ainda no mesmo ano, Batista ganhou mais um adversário: o governo dos Estados Unidos. Em dezembro do mesmo ano, 90% da população apoiava a guerrilha. Fato que foi marcante para a decisiva batalha de Santa Clara. Depois da vitória dos guerrilheiros em Santa Clara, Fulgencio Batista se afastou do poder sob uma onda de entusiasmo popular. Acabava um período de poder tirano e despótico, controlado pelos EUA, bem como o comando de Batista, desde 1952 à frente dos destinos de Cuba. O episódio histórico vivenciado em Santa Clara imortalizou-se em um conjunto de trechos ou títulos de canções e poesias cubanas, a maior parte das vezes dedicadas ao Comandante, Che Guevara, desaparecido mais tarde, em 1967, na Bolívia. Dentre as poesias, destacam-se, “Che Guevara” e “Che comandante”, compostas por Nicolás Guillén, cujos trechos leremos, respectivamente, a seguir:

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Che Guevara Como si San Martín la mano pura a Martí familiar tendido hubiera, como si el Plata vegetal viniera con el cauto a juntar agua y ternura, así Guevara, el gaucho de voz dura, brindó a Fidel su sangre guerrillera, y su ancha mano fue más compañera cuando fue nuestra noche más oscura.

[…] Em “Che Guevara” nota-se a alusão à San Martin, figura imortalizada no imaginário latino-americano e à José Martí, um dos precursores do processo de independência em Cuba. A imagem construída a partir das duas figuras nos sugere uma relação de cumplicidade, de união. Também a mão de Guevara se uniu a de um companheiro de causa, aqui representado na figura de Fidel Castro, para atravessar e vencer a noite mais escura numa provável menção aos tempos de tensão que vivenciaram durante a Revolução em Cuba. Já em “Che comandante” observa-se um destaque à figura do comandante Guevara frente aos desafios vivenciados na guerrilha. Como se pode vislumbrar nos versos seguintes:

Che comandante Con sus dientes de júbilo Norteamérica ríe. Mas de pronto revuélvese en su lecho de dólares. Se le cuaja la risa en una máscara, y tu gran cuerpo de metal sube, se disemina en las guerrillas como tábanos, y tu ancho nombre herido por soldados ilumina la noche americana como una estrella súbita, caída en medio de una orgía. Tú lo sabías, Guevara, pero no lo dijiste por modestia, por no hablar de ti mismo, Che Comandante, amigo. Estás en todas partes.

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A poesia ressalta a satisfação das forças norte-americanas ao ver um inimigo abatido, com o fim de classificar este sentimento como uma conquista vã, pois o comandante está “en todas partes”. Ambas as composições exaltam, portanto, a coragem do argentino Ernesto Guevara em manter-se fiel a seus ideais até o fim, como um exemplo a ser seguido. Guevara representa os guerrilheiros que acreditavam em uma pátria mais justa, imortalizou em seus atos os anseios de outros tantos comandantes anônimos que lutaram na Ilha.

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II – UM OLHAR SOBRE A PRÁXIS MUSICAL5 E POÉTICA EM VERSOS DE NICOLÁS GUILLÉN

Antes el poeta era un músico […] Ahora el poeta se mete dentro de si mismo Y allí dentro, dirige su orquestra. Nicolás Guillén

O interesse no estudo das expressões culturais populares Latino Americanas, como via de encontro de uma expressão nacional, tomou novo impulso na década de 1920 motivado pelo exacerbado espírito nacionalista e canalizado através dos ideais vanguardistas. A busca por uma independência plena foi o norte que permitiu articular o ideário político-social antilhano ao desenvolvimento de novas propostas estéticas no campo artístico. Nicolás Guillén, cuja obra é objeto central desta dissertação, foi um dos intelectuais letrados que descobriu nas artes uma capacidade singular de representar a Nação. Ao fazer uso dos elementos étnicos e culturais que constituem a população cubana, construiu em seu discurso sobre “o nacional” a sugestão melódica de uma comunidade imaginada. composições

poéticas

foram

interpretadas

por

Muitas de suas

músicos

de

diversas

nacionalidades. Guillén também se inspirou em várias obras musicais e literárias para plasmar em seus versos o cantar uníssono de um povo. Em conformidade com o escritor Fernando Ortiz (1950: 116-118) A poesia cubana de inspiração negróide tardou muito a emanciparse da música. [...] teve que amulatar-se e dominar o idioma branco, o castelhano, que foi língua comum [...] de todos os negros de Cuba, para poder esvaziar suas expressões em molde alheio à música. Primeiro foi o verso de um encantamento, depois o de um cantar bailado [...] A poesia mulata a que nos referimos agora [...] com popular difusão, devido a musas amestiçadas e escritores 5

Numa alusão ao termo utilizado pelo Prof. Dr. Samuel Araújo. In: “MÚSICA, POLÍTICA E CIDADANIA” SIBE, 2008.

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descendentes de avós brancos e negros como Nicolás Guillén [...] é de essencial musicalidade, tanto que é difícil não poder cantá-la nem acompanhá-la de tambores.

Sobre o tema das origens e implicações sociais das manifestações artísticas em Cuba, cabe destacar ainda a pertinente afirmação de Ortiz (1950: 115-116): Cada situação social possui sua própria música, suas danças, seus cantos, seus versos e seus peculiares instrumentos. As fluências migratórias da musicalidade transcorreram em Cuba ao longo de leitos sociais muito acidentados, como as mais típicas correntes fluviais da terra cubana, mansas ou tormentosas, límpidas ou turvas, y por vezes submersas em cavernas para depois rebrotar com maior caudal e a plena luz. Umas músicas entraram em Cuba como próprias dos conquistadores e da classe dominante, outras como dos escravos e da classe dominada. [...] A história de Cuba está no vapor de seu tabaco e na doçura de seu açúcar, também está no sandungueo de sua música. E no tabaco, no açúcar e na música estão juntos brancos e negros no mesmo compasso de criação, desde o século XVI até os tempos de agora.

Durante décadas, quase todas as atividades musicais cubanas (música interpretada como modus vivendi e não como fazer cultural privado) foram realizadas por negros e mulatos, em sua maioria criollos. Originalmente tal fato podia ser explicado pelo pouco prestígio que o ofício de músico conferia a seus praticantes. As famílias de maior poder aquisitivo destinavam seus filhos, segundo o músico e escritor Alejo Carpentier (1972: 137-138), “para a magistratura, a medicina, a Igreja, a carreira de armas ou, na falta de algo melhor, a administração pública, reservando-se o monopólio das ‘condições honrosas”. Quanto ao negro, tal profissão se encontrava no topo de suas possibilidades já que “estavam vedadas a ele a magistratura, a carreira eclesiástica e a administrativa em seus melhores cargos”. Nessas atividades, no âmbito da sociedade de classes, se impôs aos músicos negros os padrões da classe dominante, para a qual tocavam. No entanto, esses negros e mulatos, oriundos da base da sociedade, que aprenderam a executar os instrumentos europeus conforme os cânones musicais de uma cultura, diferente da que receberam não se desvincularam dos padrões africanos, ainda que estes representassem em Cuba a cultura oprimida.

Esta

particularidade

lhes

permitiu,

em

médio

prazo,

ser

simultaneamente fonte e veículo do processo de criação de uma música nova.

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A contribuição espanhola a esta nova música está, em maior parte, determinada pelo acervo artístico dos grandes núcleos de trabalhadores e soldados europeus que chegavam a Cuba. Em menor grau encontra-se também a influência das manifestações musicais e danças espanholas que encontraram maior difusão na classe dominante daquela sociedade. Os elementos da cultura oprimida não se perderam, mas sim permaneceram subjacentes na base da sociedade e posteriormente se incorporaram a elementos da cultura dominante para paulatinamente criar, com identidade própria, a música cubana. Dentro do vasto cenário musical cubano, far-se-á no presente capítulo um corte que pretende destacar o complejo de la rumba que tem sua origem marcada nos grupos bantú congo. No que concerne à origem do termo rumba aplicado à música, cogita-se a possibilidade de que se deva à qualificação de mujeres del rumbo, dada a certa forma de prostituição ligada às casas de dança. A primeira variante conhecida pelo estudo desenvolvido por Odílio Urfé, importante músico cubano, é a dança “El Yambú” composta por volta de 1850. A partir daí, a classificação empregada por Urfé, para estabelecer uma relação genérico-estilística segue a presente ordem:

I.

Rumba estribillo;

II.

Rumba yambú;

III.

Rumba guaguancó;

IV.

Rumba del teatro bufo;

V.

Coros de rumba guaguancó;

VI.

Rumba tahona;

VII.

Tango congo;

VIII.

Rumba abierta;

IX.

Rumba columbia

Cada variante apresenta um estilo básico do qual emanam variações com os tempos, o repique dos tambores solistas e as acentuações do esquema fundamental. Em todos os casos a organologia está integrada por três

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tambores criollos e os xilofones. Todas as variantes, e especialmente a guaguancó, expressam movimentos desenvolvidos e marcados por cadências e modos de ordem litúrgica africana – em um sistema rítmico com duas vertentes principais: la regla kimbisa e la regla mayombe6 - , porém com padrões líricos indiscutivelmente hispânicos. Os cantos e ritmos de todas as variantes citadas se realizam em compasso de 2/4, e os coros de chave em 6/8. Segundo os estudos de Fernando Ortíz, a rumba é o grande tema da lírica de Cuba na primeira metade do século XX. Não apenas porque se apresenta como o elemento mais típico e universal na cultural afro-cubana, mas também porque carrega uma expressão de caráter genuíno. A rumba é um fenômeno humano de complexa sinergia. É o desabafo das forças restantes de vida em um frenesi que envolve todos os músculos; é a hipnose da música que envolve com o encantamento de seus ritmos; é a exaltação báquica7 do espírito todos os estímulos da embriaguez: música, dança, canto, amor, álcool, drama, multidão e religião. Em seu livro La africanía de la música folklórica en Cuba, Ortiz (1950-180) corrobora o acima exposto através da seguinte citação: A Rumba: “É uma música simplesmente cubana, onde a cubanidade aparece já integrada como produto novo de duas culturas (...). Na Rumba só existe ‘o cubano’, a totalidade orgânica que nos distingue como povo, que nos caracteriza como concretude cognoscível da mais ou menos abstrata universalidade.

A verdadeira e tradicional rumba é a viva representação de um sagrado teatro primitivo no qual dançarinos, músicos e coro integram o ato dramático desde as primeiras fases miméticas do diálogo amoroso até a apoteótica possessão carnal. Esse ritmo envolvente é o que o povo cubano define paradoxa e espontaneamente como um relajo con orden; relaxamento das inibições sociais até o limite consentido pela harmonia vital. Desde “La rumba”

6

Palo, ou Las Reglas de Congo são grupos de denominações estreitamente relacionadas de origem Bantu desenvolvidas por escravos, vindos da África Central, em Cuba. Outros nomes associados com os diversos ramos desta religião incluem: Palo Monte, Palo Mayombe, Brillumba, Kimbisa 7 Numa referência ao deus mitológico Baco.

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publicada pelo poeta José Zacarias Tallet, considerado um dos iniciadores da poesia afro-cubana, todos os poetas do temário mulato compuseram rumbas. Analisaremos, a seguir duas composições poéticas de Guillén: “Rumba” e “Secuestro de la mujer de Antonio” nas quais o poeta descreve cenas cotidianas carregadas de desejo que transcorrem ao som melódico da rumba. E para fundamentar a análise se utilizar-se-ão também trechos da poesia inaugural de Tallet e fragmentos da letra da canção La mujer de Antonio composta e executada incialmente pelo Trio Matamoros.

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1- As “Rumbas” e o desejo na construção do olhar poético

Algún dia se dirá: “color cubano”. Estos poemas quieren adelantar ese día. Nicolás Guillén

A estrofe que inicia a composição poética “Rumba”, composta por Nicolás Guillén apresenta o cenário em que se transcorrerá a cena. Félix Guatarri, (2007:289) filósofo e militante revolucionário francês, afirma que “a expressão do corpo, a expressão da graça, a dança, o riso [...] são linguagens que não se reduzem a pulsões quantitativas, globais. Constituem a diferença.” Dessa forma consegue-se depreender o espaço descrito como propício para observar a expressão do corpo da mulata que está plenamente envolvida com o ritmo da rumba. Outro aspecto importante a ser destacado nos primeiros versos do poema é a conotação dada ao vocábulo “palo”. Nas danças dedicadas a Elégua, um deus travesso de origem africana, a dançarina usa um pequeno pau que é movido de um lado a outro para afastar a maldade ou para abrir caminho na selva. Tendo em vista o fato de a rumba possuir influências de origem bantú, e de esta última predominar entre os bailes frequentados por escravos de origem camponesa, pode-se inferir que Guillén, ao enunciar em sua composição poética que “La rumba revuelve su música espesa con un palo”, parece manifestar a intenção de afastar qualquer elemento que perturbe a festa, manifestado na estrofe como “el negro chulo con fela”. Como se observa a seguir: La rumba revuelve su música espesa con un palo Jengribe y canela… ¡Malo! Malo, porque ahora vendrá el negro chulo con fela.

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Nos versos seguintes, Guillén atribui a partes do corpo da rumbera características próprias de um vocabulário que pertence a um campo semântico marcado pelo calor e pelo desejo. Disserta sobre o mecanismo da sexualidade de acordo com as concepções de Michael Foucault (2004, p.100), outro filósofo francês, quando afirma que: “trata-se de uma rede trançada por um conjunto de práticas, discursos e técnicas de estimulação dos corpos, intensificação dos prazeres e formação de conhecimentos”. Guatarri (2007: 382) também discorre sobre o tema afirmando que [...] a questão da montagem da expressão, da montagem maquínicaque muda os dados, que os remaneja, que propulsiona novas referências, novos universos- é inseparável da questão dos territórios ou dos “corpos sem “orgãos” sobre os quais se inscrevem, se marcam, se encarnam os devires maquínicos, os procesos incorporais

Toda essa descrição é alimentada pelo olhar do eu-lírico que não está isolado. Em um jogo de métricas, temos um movimento geométrico e voluptuoso que nos remete à rumba, segundo Angel Augier, graças a combinação de assonantes em a e ea, nos dois últimos versos, que dão espaço a outras consonantes. Embalado por este ritmo, o olhar do sujeito poético se enraíza na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade, como se apresenta no fragmento: Pimienta de la cadera, grupa flexible y dorada: rumbera buena, rumbera mala.

O olhar não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. Não é só clarividente, é também desejoso, apaixonado. No entanto, em nenhum momento, o sujeito poético atribui ao desejo configurado um tom de repreensão ou estigmatização. Segue, portanto, as concepções de Guatarri (2007: 261-262): O desejo não é forçosamente um negócio secreto ou vergonhoso como toda psicologia e moral dominante pretendem [...] proporia denominar desejo todas as formas de vontade de viver, de vontade

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de criar, de vontade de amar [...], como o molde de produção de algo, [...] sempre o modo de construção de algo [...]

Desejo que já se evidenciava nos seguintes versos: En el agua de tu bata Todas mis ansias navegan: Rumbera buena, Rumbera mala. Anhelo de naufragar En ese mar tibio y hondo: fondo del mar! Fig 1

Guillén alça mão de sua imaginação para construir a figura da dançarina de acordo com o que afirma Gastón Bachelard (1989:17-18), filósofo e poeta francês, ao enunciar que “a imaginação não é como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.” Assim sendo, o desejo, essa natureza

de sistemas

maquínicos

altamente

diferenciados e elaborados, dá vida aos versos do poeta cubano e transporta o leitor, através da musicalidade de suas palavras, ao cenário descrito em um ritmo cada vez mais intenso e revelador. Pode-se vislumbrar certa semelhança entre a composição de Guillén e a “Rumba” inaugural de Jose Z Tallet, no que concerne a alguns pontos temáticos abordados no poema. A descrição do corpo da dançarina é um tema presente em ambas as composições, porém na composição poética de Tallet, observa-se a descrição de um casal de dançarinos, como se apresenta nos versos a seguir:

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Las ancas potentes de niña Tomasa en torno de un eje invisible, como un reguilete rotan con furor, desafiando con rítmico, lúbrico disloque, el salaz ataque de Ché Encarnación: muñeco de cuerda que, rígido el cuerpo, hacia atrás el busto, en arco hacia’lante abdomen y piernas, brazos encogidos a saltos iguales de la inquieta grupa va en persecución. Fig. 2

Cabe ressaltar também que o desejo se manifesta sob um foco distinto da composição escrita por Guillén. Na “Rumba” de Tallet o foco da poesia está centrado no espetáculo da dança como manifestação de um ritual. Descreve os anseios de um eu – lírico que observa a representação dos dançarinos comandados pela música. Ainda sobre o tema do ritual, destaca-se a afirmação contida na apresentação do livro Os ritos de passagem, escrito pelo antropólogo alemão Arnold Van Gennep. Nela Roberto Da Matta, considerado um dos grandes nomes das Ciências Sociais brasileiras (In: Gennep 1977:11) discorre que: [...] o rito igualmente sugere e insinua a esperança de todos os homens na sua inesgotável vontade de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e libertar, nesta constante transformação do mundo e de si mesmo que está inscrita no verbo viver em sociedade.

O desfecho de ambas as composições se dá com o fim da dança, no entanto se apresentam de maneiras distintas já que na composição de Tallet o fim da composição é dado com o fim do ritual; representado na descrição dos dançarinos e na representação acorde final dos instrumentos, como se percebe em: Al suelo se viene la niña Tomasa, al suelo se viene José Encarnación; y allí se revuelcan con mil contorsiones, se les sube el santo, se rompió el bongó. ¡Se acabó la rumba, con-con-co-mabó!

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¡Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca! ¡Pam! ¡Pam! ¡Pam!

Na composição poética de Guillén, que também retrata a complexidade do mundo da rumba, o sujeito poético parece participar ativamente da cena final se nos atentamos à utilização da primeira pessoa do singular e do plural, além do imperativo, em alguns versos como: Ya te cogeré domada, Ya te veré bien sujeta, […] Quítate, córrete, vámonos… Í Vamos!

Denotando, portanto, a clara intenção do eu-lírico em possuir o corpo desejado. Essa relação de desejo estabelecida entra em conformidade com o que o filósofo francês Michel Foucault expõe ao afirmar que as relações de poder operam sobre o corpo de modo imediato; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, [...] obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. O poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado [...] de relações, que estão sempre recorrendo a uma estrutura de dominação e servidão.

O jogo iniciado entre quem olha e quem é olhado, atividade e passividade, faz com que seus integrantes participem de um campo de forças onde o poder e o conhecer se fundam mutuamente. Cria-se uma tensão em que o outro-observador constitui uma liberdade que pode invadir a outroobservado. Tensão que se vislumbra em: Cuando como ahora huyes, Hacia mi ternura vengas, Rumbera Buena; O hacia mi ternura vayas, Rumbera Mala.

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O desejo construído ao longo dos versos de Guillén, leva à sua concretização através do poder de dominação estabelecido nos versos finais, marcando o término da festa e deixando no ar a ideia de que o desejo observado ao longo dos versos seria concretizado fora daquele espaço construído. No ha de ser larga la espera, […] Ni será eterna la bacha, […] Te dolerá la cadera, […] Cadera dura y sudada, […] ¡ Último trago! Quítate, córrete, vamonos... ¡ Vamos!

Há um parentesco entre o olhar do outro e o corpo desejado que remete a um único mundo. Essa afinidade ou essa intercorporeidade consagrase de modo eminente no ato amoroso e no fazer artístico, pois em ambos se eclipsa, ao longo do processo de união-criação, a dualidade existente entre eu e outro. Ao considerarmos o uso das palavras, em que os homens trançam os fios lógicos e os fios expressivos do olhar, é possível relacionar o pensamento do historiador e crítico literário Alfredo Bosi à composição poética “rumba”, para compreender o fazer poético guilleneano como tradução de um olhar que vislumbra a continuidade de seu ser no outro. Sua percepção atenta e lúcida do mundo que o circundava lhe permitiu, aliada à sua capacidade criativa, cantar seus desejos e tristezas sem fazer disso uma mera contemplação subjetiva de uma mirada ufânica ou limitada, mas sim construir um panorama lírico e envolvente da realidade de nação que tanto amou e cantou em suas composições.

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2- Um dueto entre música popular e poesia em Cuba

Todo es hermoso y constante, Todo es música y razón, Y todo, como el diamante, Antes que luz es carbón. José Martí

A sensibilidade de Guillén para a música cubana e sua capacidade para encontrar nela o tom mais expressivo da essência mestiça o conduzem a empregá-la como forma constitutiva de sua poética. Outro exemplo primoroso de composição poética é “Secuestro de la mujer de Antonio” que traduz a beleza existente no cotidiano do povo cubano ao aludir algumas imagens da canção “La mujer de Antonio” 8 composta por Miguel Matamoros. A canção que serviu como inspiração para a poesia de Guillén foi imortalizada na voz do Trío Matamoros, formado por Miguel Matamoros (guitarra, primeira voz e líder do conjunto), Siro Rodriguez (maracas e segunda voz) e Rafael Cueto (guitarra e terceira voz). “La mujer de Antonio” captou brilhantemente cenas cotidianas para ironizar, de modo sutil, a situação político-social vivida na ilha sob o regime de Gerardo Machado, o quinto Presidente de Cuba e general da Guerra de Independência Cubana. Assim como as duas poesias de Guillén selecionadas como apoio para o presente estudo, a canção também parte da perspectiva de um olhar alheio, um olhar que tece suas considerações acerca da mulata. No entanto o desejo que move esse olhar descrito na letra da canção é bem diferente do encontrado nas poesias de Guillén ao longo da presente análise.

O olhar

evidenciado no início da música composta por Miguel Matamoros destaca a curiosidade dos vizinhos a respeito do modo de viver e agir de transeuntes que passam pela rua, como se observa no fragmento da canção: 8

Todos os trechos da canção foram extraídos de http://www.herencialatina.com/Matamoros/Matamoros.htm

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La vecinita de enfrente Buenamente se ha fijado Como camina la gente Cuando sale del mercado

A poesia de Guillén faz uso apenas do caráter anedótico e musical que remete à música do Trio Matamoros. Não pretende evidenciar uma crítica social, como fez Miguel Matamoros no seguinte quarteto em que se observa uma sutil ironia à política utilizada por Gerardo Machado: alimento em troca de manter-se politicamente calado. Mala lengua tú no sigas hablando mal de Machado, que te ha puesto allí un mercado que te llena la barriga.

Nos versos de Nicolás Guillén, com a paupável influência do Trio Matamoros, se evidencia a relação homem-mulher, a presença da dança como possessão e a escolha de colocar a sensualidade em primeiro plano. Em ambas as composições reflete-se o sentido de humor criollo, alcançando um resultado inesperado e cômico; a narração de acontecimentos cotidianos que ressaltam as particularidades do cubano. A evidente aproximação entre a obra poética de Guillén e as canções do Trio Matamoros é confirmada pelo poeta, no seguinte fragmento de uma entrevista: Me apresuro a decir, sin embargo, que la poesía «mulata» se inspiró en la música de cantantes bien conocidos, como los Matamoros, y que en ella hay poemas completos que anuncian algunos de los míos. Podría citar en este caso el Secuestro de la mujer de Antonio, que pusieron de moda dichos cantantes. (AUGIER 1984: 131-132)

Ainda sobre os músicos cubanos, Nicolas Guillén assim se pronunciou em sua obra Sones Cubanos:

Los Matamoros estão escritos sem dúvida no movimento por nós conhecido como Geração de 30, ele contribuiu também no

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cumprimento de uma das ambições desse movimento que era a de buscar nossa própria personalidade e de encontrá-la com nós mesmos.

Assim como se observa na composição “Rumba”, em “Secuestro de la mujer de Antonio” se fazem presentes os elementos propícios para que se aflore o desejo do eu-lírico: álcool, música e a figura da mulata. Elementos que se combinam magistralmente nos seguintes versos da segunda poesia de Guillén analisada no presente capítulo: Te voy a beber de un trago, Como una copa de ron; Te voy a echar en la copa De un son, Prieta, quemada en ti misma, Cintura de mi canción.

O eu-lírico pede que a mulata tire seu xale para torear a rumba, para conquistá-lo, usa toda sua sensualidade aproveitando-se do movimento curvilíneo próprios da dança e da tourada. Dessa forma dá continuidade à ambientação inciada na estrofe anterior em que o sujeito poético manifesta o interesse de apropriar-se do corpo da mulata da mesma maneira que faz com o copo de rum: “de un trago”. Denota, portanto que o caráter da ação seria breve e intenso, pois as relações de desejo estabelecidas na poesia são efêmeras e caracterizadas pela quebra de um valor instituído pela sociedade formal. Como vemos nos versos iniciais da estrofe: Záfate tu chal de espumas para que torees la rumba;

A mulher exaltada na poesia é a mulher de Antonio, ou seja, a mulata pertence a alguém que não está presente e somente a ele lhe seria concedido, em principio, o direito sobre aquela mulher. Essa observação mostra que os valores africanos são bem diferentes dos instruídos pela sociedade dominante. A fidelidade, o casamento, o controle do desejo são valores que pertencem ao colonizador e não à cultura dos descendentes africanos. Por tal razão, o desejo

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carnal apresenta-se, tanto em “Rumba” quanto em “Secuestro de la mujer de Antonio”, livre de qualquer repressão ou culpa do eu – lírico. Aparece também na segunda estrofe, o primeiro elemento, depois do título da composição poética, que permite a associação entre a tradicional canção cubana e a poesia em análise. A menção a Antonio em Guillén, personagem fictício em ambas as obras artísticas, nos remete a “La mujer de Antonio”. Canção em que o referido personagem é citado por conta do caminhar de sua mulher. Como comprovam os seguintes versos, da poesia de Guillén: Y si Antonio se disgusta Que se corra por ahí: ¡ la mujer de Antonio tiene que bailar aquí!

E no refrão da canção interpretada pelo Trío Matamoros: La mujer de Antonio camina así Cuando viene de la plaza camina así Por la mañanita camina así

Em seguida, a poesia segue o ritual que leva a mulata, na composição poética com o nome de Gabriela, a participar do cenário da festa. O sujeito poético pede que a dançarina não apague a vela, como um pedido de que esta prossiga no baile e não acabe com a festa, pois já havia esquentado o tambor – aqui denominado bongô para marcar a origem africana – o que indica o início da festa. Importante também é ressaltar a expressão “Tranca la pájara blanca”. Pode-se inferir, a partir da seguinte estrofe, a intenção de usar o objeto tranca para espantar o cansaço, a falta de forças para praticar alguma ação, representado pela expressão “pájara blanca” no espaço musical descrito e,

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consequentemente, no espaço poético composto por Guillén. Assim como a mulata que, em “Rumba”, “revuelve su música espesa con un palo” para afastar “el negro chulo” se sugere a mesma intenção nos seguintes versos de Guillén: Desamárrate, Gabriela. Muerde La cáscara verde, Pero no apagues la vela; Tranca la pájara blanca, Y vengan de dos en dos, Que el bongó Se calentó…

Na estrofe seguinte tem-se o desejo de posse claramente manifestado ao longo dos versos. O eu – lírico faz uso de um tom imperativo para manifestar suas vontades em relação à mulata. A respeito desse desejo de posse carnal Foucault afirma que ao criar esse elemento imaginário que é “o sexo”, o dispositivo de sexualidade suscitou um dos seus mais essenciais princípios internos de funcionamento: o desejo do sexo — desejo de tê-lo, desejo de aceder a ele, de descobri-lo, de libertá-lo, de articulá-lo como discurso, de formulá-lo como verdade. Na composição em análise, o discurso da música envolve a dança e todos os elementos que a constituem é o mecanismo através do qual se obtém o acesso, a descoberta, a libertação do desejo do sujeito-poético. No que concerne à escolha vocabular, a palavra “zafra” que denominava a colheita do açúcar em Cuba é empregada pelo sujeito do poema e articula-se de modo que deixe transparecer sua origem confirmando a intenção guilleneano de traduzir em versos o cotidiano do povo cubano e seus costumes herdados das tradições africanas. De aquí no te irás, mulata, Ni al mercado ni a tu casa, Aquí molerán tus ancas La zafra de tu sudor:

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A intenção poética de aliar musicalidade à tradução lírica da cubanidade se vê também nos três versos que finalizam a quarta estrofe. As onomatopéias que se seguem pretendem aludir ao som do bongô, embalando a dança da mulata que remexe suas ancas ao som da rumba. Esse efeito é alcançado através da combinação de consoantes vibrantes [r] e oclusivas [p, k,] que dão um tom explosivo, simulando o som emitido pelos tambores. Como se comprova a seguir: [...] Repique pique, repique, Repique, repique, pique, Pique, repique, repique, ¡po!

Tal recurso onomatopéico é encontrado em diversas passagens da “Rumba” de Jose Z Tallet. Como vemos em: ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! […] ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! [...] ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan! ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!

As estrofes finais de “Secuestro de La mujer de Antonio” delineiam, à diferença da composição “Rumba” de Guillén, a disposição do sujeito poético em garantir a permanência da mulata na festa a qualquer custo. Semillas las de tus ojos Darán frutos epesos: Y si viene Antonio luego Que ni en jarana pregunte Cómo es que tú estás aquí…

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Após um encantador jogo fonomelódico¹ conseguido através da aliteração presente no primeiro verso que encerra a poesia, Guillén faz novamente uma alusão à canção do trio cubano quando sugere que até o mais forte homem, na composição poética representado pelo adjetivo “toro”, sairá “caminando así”. Constitui-se, portanto, como um recurso bem-humorado que sugere um caminhar diferente do observado na mulata da canção “La mujer de Antonio”, como se apresenta nos seguintes versos do poema: Mulata, mora, morena, Que ni el más toro se mueva, Porque el que más toro sea Saldrá caminando así; El mismo Antonio, si llega, Saldrá caminando así; Todo el que no esté conforme, Saldrá caminando así...

E que se confirma quando observamos o refrão da canção escrita por Miguel Matamoros: La mujer de Antonio camina así Cuando trae lechuga camina así por la madrugada camina así cuando ve a la gente camina así

O poeta Nicolas Guillén não se propôs a encontrar nenhuma maravilha perdida em um recanto escondido da terra. Dispôs-se apenas a traduzir em versos o cotidiano do povo cubano da maneira mais verdadeira possível. Deixou que as asas de sua imaginação se transformassem em letras que embalam e perpetuam a maravilha da simplicidade presente na essência cubana. Seu olhar atento e perspicaz imortalizou a geografia, a história, aspectos políticos e econômicos que conferem especificidade ao devir cubano e americano.

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III- CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN NA TESSITURA SIMBÓLICA DA IDENTIDADE CUBANA O contrapunteo define o cubano, a partir do cubano, em um discurso cubano e mediante uma metodologia cubana Roberto Gonzaléz Echevarría

Ainda que possa parecer enfática a afirmação do crítico cubano Roberto González Echevarría, permite ilustrar a justificativa ao título proposto no presente capítulo. Tomo a liberdade de denominá-lo contrapunteo, em um intento de aproximar-me do sentido que tal palavra adquiriu no contexto musical. O vocábulo contrapunteo se apresenta como um cubanismo do termo contrapunto e denomina a técnica musical através da qual se combinam partes ou vozes simultaneamente, resultando em uma textura harmônica. Assim sendo, pretende-se associar o sentido original da palavra, que se refere ao conteúdo verbal de uma disputa, à sua conotação musical para transformar tal expressão em uma metáfora do processo de criação poética de Nicolas Guillén. Ao embalar o passado histórico e cultural de seus ancestrais, Guillén não faz menos que figurar ponto contra ponto os elementos que, entrelaçados, apresentam-se como em um contraponto musical (balada 9) na tessitura simbólica da identidade cubana. Com o fim de discorrer sobre o tema da construção da identidade, analisaremos a composição poética “Balada de los dos abuelos”, publicada em West Indies no ano de 1934. Composição cujos referenciais nos remetem a elementos próprios de diversas culturas, com a intencionalidade histórica de representar em seus versos o processo que desencadeou no fenômeno transculturador. Também será objeto de análise a composição poética “Tengo”, publicada em 1964, do poemário homônimo que se apresenta como uma 9

Mus: composição musical de caráter épico; Lit: poema em estrofes que ger. narra uma lenda popular ou uma tradição histórica, podendo ser acompanhada por instrumentos musicais. In: HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa, 2001

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encantadora mostra da experiência de um povo em revolução. Para encerrar o presente capítulo, analisar-se-á a poesia que plasma em versos o sentimento de solidariedade de Cuba frente ao desastre da Guerra Civil Espanhola: em “España” (Poema en cuatro angustias y una esperanza). Nesta última composição em análise, Guillén retoma o tema da identidade coletiva vislumbrado em “Tengo”, porém agora em uma dimensão extracontinental.

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1. Transculturação: história e ampliação de um conceito

La verdadera historia de Cuba es la historia de sus intrincadísimas transculturaciones Fernando Ortíz

Para dar continuidade aos estudos propostos no presente item, cabe situar no tempo e no espaço, as condições em que se instituiu o conceitochave que o fundamenta. O termo transculturação, proposto pelo antropólogo e músico Fernando Ortiz foi publicado, primeiramente, em 1940. Neste ano, entra em vigência na ilha de Cuba a Nova Constituição da República. Nascido como um conceito pertinente ao campo etnográfico, o termo transculturação seria, segundo Ortiz (2002: 260), o vocábulo mais adequado para [...] expressar melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica a voz angloamericana acculturation, mas sim que o processo implica também, necessariamente, a perda ou desarraigo de uma cultura precedente, o que se poderia denominar uma parcial desculturação e, além disso, significa a criação de novos fenômenos culturais que foram denominados neoculturação. Por fim, como bem sustenta a escola de Malinowski, em todo abraço de culturas sucede o mesmo que na cópula genética dos indivíduos: a criatura sempre possui algo de ambos os progenitores, porém é sempre distinta de cada um dos dois. Em conjunto, o processo é uma transculturação e este vocábulo compreende todas as fases de sua parábola.

Mais que consagrar um neologismo, e substituir várias expressões correntes como “câmbio cultural” ou “osmose de cultura”, o antropólogo cubano desejava com a publicação de Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (2002) apresentar um estudo do nacionalismo econômico e seus reflexos na sociedade cubana e fazer dele uma nova sugestão para o estudo de seu país e suas peculiaridades históricas”. No entanto, a difusão do conceito proposto por Ortiz foi muito além da análise sociológica da realidade estudada. Tomou

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proporções continentais e abarcou não só a história, mas também a compreensão da temática literária latino-americana. O crítico uruguaio Ángel Rama (2001:22), em seu livro Transculturación narrativa en América Latina, aplica o termo transculturação ao campo dos estudos culturais com o fim de “neutralizar os efeitos nocivos ou alienantes causados pela modernização”. De tal modo, Rama pode vislumbrar que o processo transculturador se compunha através de algumas etapas: uma parcial desculturação, aplicável tanto à cultura como ao exercício literário, ocorrida em diversos graus e capaz de afetar várias zonas; a incorporação de elementos próprios da cultura estrangeira e, finalmente, o intento de recompor os elementos de ambas as culturas em uma nova concepção da mesma. Tem-se, portanto, a partir de Rama, a possibilidade de trabalhar com o conceito fundado por Fernando Ortiz também no contexto literário. Tal ampliação causou um significativo impacto nos estudos culturais da época. Tornou-se até, em análises pouco densas, um sinônimo para mestiçagem ou hibridismo. Termos que nomeiam apenas o resultado do processo que implica a mescla de etnias, diferente do termo de Ortiz que contempla o acontecimento de maneira mais ampla. Contudo, no que concerne ao estudo de Cuba, não é possível aplicar o vocábulo transculturação como um simples cognato do produto de uma mescla de etnias. Em conformidade com o acima exposto temos a seguinte afirmação de Ortiz (2002: 255): Em todos os povos a evolução histórica significa sempre um trânsito vital de culturas em ritmo mais ou menos lento ou veloz; porém em Cuba foram tantas e tão diversas, em posições de espaço e categorias estruturais, as culturas que influenciaram na formação de seu povo, que esse imenso amestiçamento de raças e culturas sobrepõe, de maneira transcendente, a qualquer outro fenômeno histórico.

A poesia de Nicolas Guillén, como expressão de vida do povo cubano, alcança perfeitamente o intento de Ortiz (2002: 254) ao propor o conceito de transculturação, afirmando que este vocábulo expresaria

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Os variadíssimos fenômenos que se originaram em Cuba através de complexas transmutações de cultura que lá se verificam, sem as quais se torna impossível entender a evolução do povo cubano em todos os níveis sociais

Como exemplo inicial do que foi afirmado nas linhas anteriores temos a análise da primeira poesia proposta na introdução. No par de versos que inicia o poema “Balada de los dos abuelos” contemplam–se duas sombras, vistas unicamente pelo sujeito do poema, a escoltá-lo: Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos

Após tal consideração observa-se a composição imagística de cada um desses ancestrais: o avô branco e a avô negro. Cada um em seu território, com suas peculiaridades culturais que futuramente seriam transformadas. Desvela-se primeiro a imagem do avô materno. Lanza con punta de hueso, tambor de cuero y madera: mi abuelo negro.

Os elementos “lanza”, “punta de hueso” e “tambor” conotam a origem do guerreiro africano. A lança é empunhada por heróis. Ao descrevê-la como um artefato pontiagudo, confere poder a quem a detém. A ponta de osso confirma a origem do combatente: trata-se de um líder guerreiro e herdeiro das tradições africanas. O tambor, além de ressaltar a influência africana, atua como símbolo de arma psicológica; seu ruído se aproxima ao do trovão e ao do raio, desfazendo internamente toda a resistência do inimigo. Sua presença também sacraliza o acontecimento da guerra, já que se utiliza o tambor para invocar a descida das bênçãos celestes em favor das causas de um povo. Em seguida, temos a caracterização da figura do avô paterno:

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Gorguera en el cuello ancho, gris armadura guerrera: mi abuelo blanco.

Este se encontra com sua “gris armadura guerrera” e sua “gorguera”. Ao atribuir ao pescoço de seu avô branco o adjetivo “ancho”, o poeta constrói tal figura como detentora de extensa força vital. Tal hipótese pode ser baseada no fato de os likoubas e likoualas do Congo considerarem o pescoço a morada primeira das articulações do ser humano. Nela circula a energia geradora, por meio do jogo das articulações

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.

O sujeito do poema representa o resultado da fusão de duas fortes lideranças. Descende de dois guerreiros que parecem desempenhar, em seus territórios, posições de poderio e realeza. Em seu avô branco, vislumbra-se uma armadura que protege o seu corpo dos males; já o avô negro aparece, como se verá em seguida, despido, o que pode torná-lo mais vulnerável em um confronto. Os versos seguintes dão continuidade à descrição iniciada na primeira estrofe do poema. O eu – lírico destaca o corpo de seu avô negro: Pie desnudo, torso pétreo los de mi negro;

O “pie desnudo” sugere um maior contato do guerreiro africano com a sua terra. Já o tronco recebe o adjetivo “petreo” com o intuito de atribuir ao corpo do guerreiro africano a resistência de uma pedra, simbolizando também o marco de uma civilização. Quando a descrição se refere ao avô branco o sujeito poético ressalta o olhar que se mostra com “pupilas de vidrio antártico”, possível alusão ao mar, espaço que possibilitou a chegada dos conquistadores e, posteriormente, dos escravos vindos da África. Um mar azul como as pupilas do avô branco,

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Entende – se que as articulações permitem a ação, o movimento, o trabalho. Simbolizariam, segundo tais crenças dos povos do Congo, as funções necessárias à passagem da vida à ação. In: CHEVALIER & GHEERBRANT,2003.

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através das quais se descortinou um novo campo de visão: a terra a ser colonizada. Pupilas de vidrio antártico las de mi blanco!

O poema de Guillén trata de duas vozes cansadas e caladas pelo triste espetáculo da guerra. Vozes que ecoam na memória de um indivíduo, cujos ancestrais travaram longos combates em um passado distante. Em um mesmo lugar cada figura experimenta uma sensação diferente. Para respaldar a afirmação anterior, temos o estudo de Kevin Lynch em seu livro A imagem da cidade. O autor discorre que as imagens ambientais são as resultadas de um processo bilateral entre o observador e seu espaço. Deste modo, cada pessoa depreende, organiza e confere significado singular ao que é visto. Lynch (1982:1), afirma também que “[...] a cada instante há mais do que o olho pode enxergar, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados” Nada seria vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem à lembrança de experiências passadas. Comprova-se a assertiva com o seguinte fragmento: África de selvas húmedas y de gordos gongos sordos... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) Aguaprieta de caimanes, verdes mañanas de cocos… --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) Oh velas de amargo viento, galeón ardiendo en oro… --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) ¡Oh costas de cuello virgen engañadas de abalorios…!

Fig 2,1

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--¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.)

Perpetuam-se no sujeito poético as impressões de um “abuelo negro” que morre com o duelo e de um “abuelo blanco” que se cansa em territórios a serem conquistados por seu povo. A memória do avô negro registra uma paisagem de “selvas húmedas” de onde parte um “galeón ardiendo en oro”. Este metal tão apreciado pelos colonizadores, considerado pela tradição como o mais precioso, enriqueceu os cofres e as construções europeias graças ao trabalho da mão escrava. Neste contexto contemplativo, o verbo “morir” empregado nas linhas acima como resultado de um combate, podem também denotar

o

deslumbramento do personagem diante da paisagem. Em contrapartida temse, um cansado avô branco que contempla “costas de cuello virgen” e “verdes mañanas de coco”. Do duelo travado entre o sangue negro e o branco este último sai como vencedor, ainda que fatigado pela guerra e pela distância que o separa de sua pátria. ¡Oh puro sol repujado, preso en el aro del trópico; oh luna redonda y limpia sobre el sueño de los monos!

O “puro sol repujado” e a “luna redonda y limpia” são espectadores oniscientes desse cenário. Contemplam a dor e o cansaço de cada ânsia. Escutam as preces de todos os personagens desse capítulo da história de dois povos. História que se eterniza no corpo e na memória de um poeta. Memória que surge graças às reminiscências que fundam a cadeia da tradição, transmitindo os acontecimentos de geração em geração. Por ela se dá a propagação da memória. O ouvinte pode então participar do que foi vivido, confirmando as acepções de Walter Benjamin (1995:213,. ao enunciar que “[...] quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia.” Assim sendo, uma voz segue o canto relatando o

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passar dos dias na terra colonizada e todo o horror presenciado nos navios negreiros. Qué de barcos, qué de barcos! ¡Qué de negros, qué de negros! ¡Qué largo fulgor de cañas! ¡Qué látigo el del negrero! Piedra de llanto y de sangre, venas y ojos entreabiertos, y madrugadas vacías, y atardeceres de ingenio, y una gran voz, fuerte voz, despedazando el silencio. ¡Qué de barcos, qué de barcos, qué de negros!

Voz que pode ser entendida tanto como a expressão do colonizador, quanto como a voz que surge da dor e da rebeldia em face de tal situação. Encerra-se, no poema, a gênese da mestiçagem. A estratégia de Guillén insere os elementos que compõem esse processo: a imigração branca com o propósito de colonizar; a forçada imigração negra; a produção açucareira como base da economia colonial; a escravidão. O par de versos que aparece no início do poema é retomado para aproximar as duas imagens. Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos

Tal recurso confirma o título dado ao poema. Ao atribuir à composição o título de balada, o poema de Guillén aproxima-se à acepção dada ao termo. Além de possuir um estribilho, como na definição histórica, assemelha-se ao conceito atribuído recentemente ao mesmo vocábulo. Por influência anglo-saxônica, o sentido da palavra ampliou-se, passando a designar também uma canção que conta a vida de uma pessoa ou alguns fatos precisos.

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Em seguida temos o início da integração entre as duas tradições: a africana e a europeia. É o prenúncio do fim das diferenças entre os guerreiros. “Don Federico”, que grita, e “Taita Facundo”, que cala, sonham “en la noche”. Noite pode denotar tanto a ideia de escuridão e morte quanto referir-se à noite ancestral, a instauração do não-tempo, perpetuando a ideia de eternidade. O eu-lírico afirma que seus antepassados seguem por essa noite a sonhar, o que pode corroborar com a ideia de morte como redenção do indivíduo. Don Federico me grita y Taita Facundo calla; los dos en la noche sueñan y andan, andan.

O corpo do eu-lírico é o elemento que permite a síntese desses dois guerreiros em um só corpo: “Yo los junto”. Nele se mesclam sangue e cultura de povos que duelaram em tempos anteriores, mas que agora coexistem com a existência do sujeito poético. Os quatro versos que encerram o poema tratam de uma série de ações a serem realizadas pelos dois guerreiros: gritan, sueñan, lloran, cantan. Sueñan, lloran, cantan. Lloran, cantan. ¡Cantan!

A ausência de uma conjunção aditiva entre o penúltimo e o último verso da referida estrofe sugere uma união, que se mostra eternizada pelo uso de vírgulas ao enumerar tais ações. Combinado com o recurso poético da aliteração essa união, traz à poesia uma conotação fonossemântica importantíssima, confirmando ainda mais o título da composição e contribuindo com a musicalidade. Segundo Walter Benjamin (1995:207) [...] a ideia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Morrer era um episódio público na vida de um indivíduo e possuía caráter altamente exemplar. É no momento da morte que a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida assumem pela primeira vez uma forma transmissível.

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Ainda que mortos, a história de cada avô do sujeito poético permanece viva no coração de seus descendentes e na memória de cada um que pôde tomar conhecimento de suas experiências. O que se contempla perfeitamente se considerarmos a seguinte afirmação de Benjamin (1995:205): Contar história sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido

Assim como o eu-lírico, Guillén possui um passado marcado pelos dois lados da história da colonização na América. História que pode ser transmitida através dos versos de Nicolás Guillén.

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2. Hispanidade imaginada: Guillén, tecelão de identidades

Mais que inventadas, nações as ‘imaginadas’, no sentido que fazem sentido para a‘alma’ e constituem objetos de desejos e projeções. Benedict Anderson

Tomamos a questão identitária, abordada aqui segundo os estudos dos sociólogos Benedict Anderson e Zygmunt Bauman, como fio condutor na tessitura simbólica da identidade antilhana, vislumbrada através de duas composições de Nicolás Guillén. No poema “Tengo”, cujo poemário em que se insere compreende toda a poesia beligerante dos primeiros cinco anos da Revolução cubana e em “España (poema en cuatro angustias y una esperanza)” que possui como tema principal a Guerra Civil espanhola. Em ambas pode-se observar a recorrente utilização da memória como elemento de construção poética, dialogando com os acontecimentos históricos que delineiam o meio em que se insere o poeta cubano. Vale ressaltar, antes da análise poética, alguns conceitos pertinentes à discussão sobre a temática identitária. As noções de identidade flutuam no tempo e no espaço de acordo com as circunstâncias que conduzem os acontecimentos ao longo da história. Ao preconizar a necessidade de se entender a identidade como uma tarefa a ser realizada, faz-se necessário destacar também o traço plural que contém tal conceito. A identidade chega como um elo que permite a construção do que se chamará nação. Perante a qual seus integrantes devem atuar de modo a demonstrar sua fidelidade a ela, o que poderá ser nomeado nacionalismo. Tal processo só ocorrerá se acontecer em uma comum unidade, ou seja, desde que seus integrantes se unam em prol de uma causa comum a todos. Quem bem discorre sobre este processo é Benedict Anderson (2008: 32), em seu livro

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Comunidades imaginadas O autor sustenta que uma comunidade11 se apresenta como imaginada: [...] porque seus membros nunca conhecerão todos os demais; na mente de cada indivíduo reside uma imagem da comunidade da qual participam. Ou seja, ainda que os limites de uma nação não existam empiricamente, seus indivíduos são capazes de criar e imaginar tais fronteiras, criando e imaginando seus membros.

Sua explanação segue para sustentar que além de imaginada, uma comunidade também se configura como limitada em suas fronteiras por outros territórios. Característica, segundo ele, fundamental para sustentar a ideia de nacionalismo, já que seria inviável consolidar um sentimento nacionalista que abarcasse toda a humanidade, dada a pluralidade de seus indivíduos. Também é soberana, pois o surgimento do nacionalismo, segundo Anderson, relacionase ao declínio dos sistemas tradicionais de governo – monarquia na Europa, ou administração colonial nas Américas – e à construção de uma nacionalidade baseada unicamente na identificação étnica ou geográfica. A soberania nacional, sustentada pelo modelo referido no parágrafo anterior, se configuraria como um símbolo de liberdade frente às estruturas de dominação antigas – gerando novas estruturas de poder, como a administração estatal, a divisão intelectual do trabalho, o capitalismo editorial e o surgimento de práticas de controle estatal (censo para a população, mapas para o território). Assim configurada, a nação permite a consolidação de uma sociedade. Os mecanismos são semelhantes, porém cada nação possui idiossincrasias que a torna diferente das demais. No presente estudo, trataremos de delinear o perfil de uma nação específica: a cubana. Em comum a todas da América Latina, Cuba possui um passado ligado às tradições herdadas com a colonização europeia. Diferente de todas sustenta, até os dias atuais, um sistema político bastante distinto dos demais aplicados no continente americano. O domínio espanhol sobre Cuba durou quatro séculos até que no ano de 1898, a invasão americana dá fim à 11

[...] porque uma nação é concebida enquanto estrutura horizontal na sociedade. Ou seja: é possível membros de diferentes classes sociais, em diferentes posições sociais, ocuparem um mesmo âmbito nacional e estarem vinculados por um projeto em comum. (ANDERSON 2008: 34)

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soberania espanhola, para iniciar um governo militar na ilha sob o comando dos Estados Unidos, através do Tratado de Paris. A partir daí o governo estadunidense começou a criar propostas econômicas que promoviam apenas benefício próprio. O sentimento de revolta e exploração continuou a ser alimentado. A única diferença era que o novo monopolizador pertencia ao mesmo continente. Diversos movimentos em prol da total libertação de Cuba foram colocados em prática, porém o único que obteve um resultado concreto foi o que todos conhecemos como Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro em 1959. Para retratar poeticamente, o momento revolucionário vivido em Cuba, seguiremos com a análise da composição poética “Tengo”, de acordo com a análise proposta pela pesquisadora Mariluci Guberman em seu artigo “ El mar y La montaña” . Em seguida à análise de España (poema en cuatro angustias y una esperanza) como mostra da solidariedade latino-americana com as gerações que vivem nas terras de onde partiram os colonizadores do Novo mundo.

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2.1 Revolução cubana: do literal ao literário

O poema se inicia com a enunciação de um eu-lírico que volta seus olhos para si: Cuando me veo y toco Yo Juan sin Nada no más ayer, y hoy Juan con Todo, y hoy con todo vuelvo los ojos, miro, me veo y toco Y me pregunto cómo ha podido ser.

Em “Tengo” é possível perceber o envolvente jogo fonomelódico ¹ de um eulírico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionária. Musicalidade que se apresenta ao longo do poema para embalar o canto de celebração da Revolução Cubana. Consideremos o seguinte verso:

[K]uan[d]o [m]e [v]eo y [t]o[k]o

A composição fonética da estrofe inicial faz uso do jogo entre consoantes oclusivas [k,d,t] que sustentam o verso juntamente com a nasal e a fricativa [v] com o fim de reforçar o ritmo poético desde o início da poesia. Vale esclarecer, que uma oclusão se caracteriza pela obstrução momentânea de uma abertura produzindo um som denominado explosivo. No poema “Tengo” esse efeito entra em conformidade com as características do Son cubano que, segundo José Urfe apresenta-se como uma das manifestações mais representativas da identidade cultural cubana, pois possui suas raízes surgidas “de la entraña popular”. Além disso, o efeito “explosivo” causado pelas consoantes oclusivas nos remete à sensação do estalar causado pelos acontecimentos ocorridos na ilha de cuba.

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O uso de maiúsculas evidencia uma mudança significativa do eu-lírico que se pode notar externamente, assim que ele volta seus olhos para si e se toca: Yo Juan sin Nada no más ayer [...] y hoy Juan con Todo

Ao utilizar maiúsculas nos vocábulos “Nada” e “Todo” o autor transforma o par de adjetivos em uma significativa antítese, que envolve dois momentos vividos pelo povo cubano. Juan sin “Nada” em um momento passado, marcado pelo advérbio “ayer”, em contraposição a um Juan con “Todo” inserido em um momento presente, confirmado pelo uso do advérbio “hoy”. Por extensão de sentido, o substantivo “sobrenome” está definido como elemento que caracteriza uma pessoa ou objeto. Dessa forma entende-se perfeitamente o intento de personificar em Juan o sentimento coletivo da ilha atribuindo-lhe como sobrenome, ora o adjetivo “Nada” para marcar um momento de renúncias e misérias e ora o adjetivo “Todo” com o fim de manifestar o sentimento de esperança renovada com o êxito da Revolução liderada por Fidel Castro como tratamos no capítulo I. Em seguida, tem-se o desenvolvimento desta descoberta interna que o eu-lírico inicia na primeira estrofe. Assim como o indivíduo passa a descobrir o que possui, também a nação cubana volta os olhos sobre a realidade, exaltando suas belezas, como em: Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de andar por mi país, dueño de cuanto hay en él, mirando bien de cerca lo que antes no tuve ni podía tener […] y un ancho resplandor de rayo, estrella, flor.

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E também de exercer o direito de expressar-se na língua que escolheu como afirma em: […] tengo el gusto de ir (es un ejemplo) a un banco y hablar con el administrador, no en inglés, no en señor, sino decirle compañero como se dice en español.

Nota-se, com isso, um representativo jogo do poeta com a memória individual e coletiva da população cubana. Segundo Walter Benjamin a memória configura-se como a busca do passado no momento presente; sendo assim, o poeta busca em sua memória um acontecimento passado com o fim de valorizar o momento presente. Ao afirmar que não necessita mais comunicar-se “en inglés”, Guillén faz uma alusão à relação de dependência vivida por Cuba em tempos de regime imperialista sob o controle dos Estados Unidos. As conquistas alcançadas com a Revolução liderada por Fidel Castro têm especial destaque nos seguintes fragmentos: Tengo, vamos a ver, Que siendo un negro Nadie me puede detener a la puerta de un dancing o de un bar. […] Que no hay guardia rural que me agarre y me encierre en un cuartel, ni que me arranque y me arroje de mi tierra al medio del camino real.

Antes da revolução, o desemprego atingia uma grande parte da força de trabalho. Segundo dados fornecidos pela UNESCO, antes de 1959, o analfabetismo atingia 35% da população. As terras estavam concentradas nas mãos de latifundiários e empresas norte-americanas. Depois da tomada de poder, empresas estrangeiras e a burguesia foram expropriadas, a reforma

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agrária foi realizada e implantou-se também uma forte política de combate ao analfabetismo no país. Por muitos anos a taxa de desemprego foi menor que a dos países considerados desenvolvidos. Cuba também conquistou avanços significativos em setores como educação e saúde pública. Essa série de acontecimentos elevou o sentimento nacionalista da população, levando-os a crer na “redenção de Cuba”, por meio do líder da revolução, Fidel Castro. Uma mostra desse sentimento está presente no seguinte fragmento: Tengo vamos a ver, que ya aprendí a leer, a contar, tengo que ya aprendí a escribir ya a pensar y a reír

A revolução Cubana se apresenta historicamente como um dos fatos políticos mais significativos e que maior impacto causou na América Latina, ao longo do século XX, não por seu caráter heroico e romântico, mas sim por exprimir dramaticamente as contradições não resolvidas entre os Estados Unidos e os demais países da região. Os atos da revolução, como a reforma agrária, destoavam da política empreendida pelos Estados Unidos, que não reconhecia os princípios da soberania nacional e autodeterminação dos povos. Com o bloqueio econômico à Ilha, as ideias de Fidel Castro vão se aproximar às existentes na política vigente na União Soviética. Encontramos no livro De Martí a Fidel, publicado pelo historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira (2008:184) uma citação presente no jornal El Mundo no ano de 1959 que permite uma melhor compreensão do processo revolucionário cubano: A ideologia de nossa revolução é bem clara: não só oferecemos aos homens liberdades, mas também oferecemos pão. Não oferecemos somente pão, mas também liberdades. Nossa posição ideológica é clara e terminante. Nosso respeito para todas as ideias, para todas as crenças, porque não tememos nenhuma ideia, porque temos

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confiança em nosso próprio destino e porque temos a concepção também de que democracia não admite flexão.

Processo cujos resultados se vislumbram nos versos a seguir: […] Tengo que como tengo la tierra y el mar, No country, No high life No tennis y no yacht, Sino de playa en playa y ola en ola, Gigante, azul abierto democrático: En fin, el mar.

Outro aspecto interessante a destacar na estrofe é a simbologia contida no vocábulo “mar”. O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Pelas águas chegaram os conquistadores europeus para colonizar; por elas também chegaram os escravos para trabalhar duramente na exploração da cana de açúcar em Cuba. Ao afirmar que o mar encontra-se “Gigante, azul abierto democrático”, Guillén associa a natureza transitória das águas marinhas às realidades vivenciadas em Cuba numa possível tentativa de explicitar o processo de mudança entre as possibilidades ainda incipientes. A situação de ambivalência concluiu-se, no plano simbólico, beneficamente. Encerra-se a composição poética com uma síntese da observação iniciada pelo eu-lírico na primeira estrofe. Tengo que ya tengo donde trabajar y ganar lo que me tengo que comer. Tengo, vamos a ver, tengo lo que tenía que tener.

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Com as reformas implementadas pelo regime revolucionário de Fidel Castro, é possível afirmar que os cubanos alcançaram condições de trabalho, estudo, saúde que lhe garantiam uma sobrevivência ainda não experimentada. O sentimento de satisfação com as conquistas está marcado na estrofe que encerra o poema, que em todos os seus versos, esteve em consonância com o que dizia o poeta nicaraguense Rubén Darío sobre a maneira como o mesmo compunha seus escritos: “al componer sus versos [...] obedecía al divino imperio de la música, música de las ideas, música d.;el verbo”.

2.2 “ESPAÑA”: a imagem do caos

Existe muito de vida em toda manifestação artística. No entanto, para que a primeira se justifique como arte é necessário todo um trabalho de eternizar o fato como um evento; de trazer o real para o campo polissêmico da verossimilhança. O acontecimento da Guerra Civil se caracteriza, como um fato que abalou o mundo. Nele estiveram presentes todos os elementos militares e ideológicos que marcaram o século XX. De um lado posicionaram-se representantes do nacionalismo e do fascismo, que estabeleceram aliança com classes e instituições tradicionais da Espanha (O Exército, a Igreja e o Latifúndio) e, em oposição, a Frente Popular que compunha o Governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da democracia. Inúmeros segmentos da sociedade retomaram, e seguem retomando, o tema da Guerra Civil espanhola, mas não como um exemplo a ser seguido e sim como um doloroso episódio que deve ficar eternamente marcado na memória de todos para que o caos provocado por essa guerra nunca volte a acontecer. Literariamente, Guillén transforma a história real em poesia. Transporta o cenário triste e desestabilizador da guerra para o

palco das

letras, do papel e da inspiração criadora. Em seu sentido primeiro, a guerra constitui-se como imagem da calamidade universal, do triunfo da força cega. É a força que permite a

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consolidação do caos. Nesse estágio, observa-se uma total desestruturação das formas, no entanto é simplista afirmar que a destruição e o caos tenham relação direta com uma realidade estática e imutável. Propõe-se, no presente estudo, apresentar o caos como início de um processo que culmina em renovação. A palavra caos simboliza uma situação anárquica, que precede a manifestação das formas. Ao aliar tal conceito com à criação simbólica do fim do caos, sugere a ideia de contemplar a guerra como um espaço dúbio em que se encontra lugar para a vida e a morte; para o começo e para o fim. O poema composto pelo cubano Nicolás Guillén, objeto que conclui as análises de nosso capítulo, divide-se em cinco poesias que serão analisadas a seguir: Angustia Primera: Mirada de metales y de rocas

Em Angustia primera temos “miradas de metales y de rocas” que aludem figuras presentes no cenário da Colonização da América de língua espanhola. O sentido-chave desse momento poético é o da visão. Através dos versos de Guillén, vemos “hombres rudos saltando el tiempo”. Faz-se menção a importantes símbolos que figuraram em um embate anterior ao vivido na Espanha do século XX numa tentativa de resgatar o passado de disputas vivido nos anos de expansão europeia. Neste cenário não se encontrará mais “Pizarro” ou “Cortés” – conquistadores espanhóis eternamente presentes na memória coletiva das nações – tampouco existem “Aztecas” ou “Incas” – termos que nos remetem às civilizações que viviam na América antes da conquista espanhola. Tem-se no momento descrito, um grupo de “milicianos” que recebem o adjetivo de “remotos” para ressaltar que é através de suas “callosas, duras manos” que conseguem “Aquí, con sus escudos” se unir como “cercanísimos hermanos” em favor do fim da guerra , na qual “ Soldado, obrero, artista las balas cogen para sus ametralladoras”.

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No Cortés, ni Pizarro (aztecas, incas, juntos halando el doble carro). Mejor sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos. Aquí, con sus callosas, duras manos; remotos milicianos al pie aquí de nosotros, clavadas las espuelas en sus potros; aquí al fin con nosotros, lejanos milicianos, ardientes, cercanísimos hermanos.

Ainda sobre a referida estrofe, cabe destacar a afirmação do sociólogo Zygmunt Bauman (2008: 17-18) sobre a questão da identidade: [...] o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidas para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorrre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.

Esses homens “rudos” de mãos “callosas” são apenas “lejanos”, “remotos milicianos”, tal realidade não faz parte de suas vidas, não foi esse o caminho que escolheram percorrer, no entanto os valores pessoais que envolvem seus conceitos sobre o pertencimento a uma nação os irmanam em uma comunidade de destino12. Na estrofe a seguir temos muitos elementos que representam o poderio bélico imperialista. Símbolo de um poder que se funde em “aguas quemadoras”. Ainda sobre a escolha vocabular da segunda estrofe temos a informação, de acordo com os estudos do historiador Eric Hobsbawn, que o palco armado na Guerra Civil espanhola serviu para testar armas de destruição e novas técnicas de guerrilha, a serem adotadas logo a seguir tanto na Alemanha nazista, quanto na Itália fascista na 2ª Guerra Mundial. Sendo assim

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Comunidades de destino são aquelas nas quais os indivíduos se fundem unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios. In: Bauman 2005

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Guillén, em seus versos, retrata esse tenebroso laboratório do caos, como confirmam os seguintes versos: Los hierros tumultuosos de lanzas campeadoras; las espadas, que hundieron su punta en las auroras; las grises armaduras, los ingenuos arcabuces fogosos, os clavos y herraduras de las equinas finas patas conquistadoras; los cascos, las viseras, las gordas rodilleras, todo el viejo metal imperialista corre fundido en aguas quemadoras, donde soldado, obrero, artista, las balas cogen para sus ametralladoras

O poeta nos convida também a olhar a “España rota”. A vislumbrar seu cenário de dor, existem “pájaros volando sobre ruínas”; “faroles sin luz en las esquinas”. Todo o horror expresso em “gritos que se asoman a las bocas”; ante a “miradas de metales y de rocas” que compõem o cenário captado por “ojos coléricos, abiertos, bien abiertos.” ¡Miradla, a España rota! Y pájaros volando sobre ruínas, Y el fachismo y su bota, Y faroles sin luz en las esquinas, Y los puños en alto, Y los pechos despiertos, Y obuses estallando en el asfalto Sobre caballos ya definitivamente muertos Y lágrimas marinas, saladas, curvas, chocando contra todos los puertos; y gritos que se asoman a las bocas y a los ojos coléricos, abiertos, bien abiertos, miradas de metales y de rocas.

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Tem-se na presente estrofe, uma sucessão de flashes que nos mostram todo o horror vivenciado. O poeta nos convida a olhar o resultado deste acontecimento, porém provoca vários dos sentidos vitais com suas imagens poéticas.

O estalar dos “obuses”, o gosto salgado das “lágrimas

marinas” contemplados em “miradas de metales y de rocas”.

Angustia Segunda: Tus venas, la raíz de nuestros árboles

Para dar continuidade à composição temos Angustia segunda. A vida que corre e morre é representada nesse momento poético. Não só a existência humana, mas toda forma de criação da natureza participa do intento integrador, que se apresenta como traço marcante na poética do cubano Nicolás Guillén. No fragmento “La raíz de mi árbol, de tu árbol” está “ bebiendo sangre”, está “húmeda de sangre”, figura-se o sangue dos combatentes que jazem no chão. Que tiveram esvaziadas suas veias, perdendo suas vidas “en lo más hondo de mi tierra”. La raíz de mi árbol, retorcida; la raíz de mi árbol, de tu árbol, compañero de todos nuestros árboles, bebiendo sangre, húmeda de sangre, la raíz de mi árbol, de tu árbol.

Yo la siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, la siento clavada en lo más hondo de mi tierra, clavada allí, clavada, arrastrándome y alzándome y hablándome, gritándome. La raíz de tu árbol, de mi árbol.

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Como pode ser observado na estrofe anterior e reiterado na estrofe que se lerá a seguir, o eu – lírico envolve-se totalmente com a nação espanhola ao dizer que sente a raiz dessa árvore. Árvore que o próprio sujeito poético afirma estar “clavada” em sua terra, inserindo-se como parte desta comunidade: En mi tierra, clavada, con clavos ya de hierro, de pólvora, de piedra, y floreciendo en lenguas ardorosas, y alimentando ramas donde colgar los pájaros cansados, y elevando sus venas, nuestras venas, tus venas, la raíz de nuestros árboles.

A árvore é símbolo de vida em eterna evolução e em ascensão para o céu; suas raízes sempre exploram as profundezas. No caso da poesia em estudo estão “clavadas” “bebiendo sangre”. É ela o veículo que eleva este sangue derramado no solo “de pólvora, de piedra” e o carrega em “sus venas” ao longo do seu tronco que encaminha para suas folhas e frutos, permitindo uma aproximação com outra realidade: o céu. Por esse elemento da natureza é dada a conexão entre homem e natureza e quando este primeiro jaz sem vida, em terra, é a arvore que conduz seu sangue, seu sopro de vida para a esfera celestial. Angustia tercera: Y mis huesos marchando en tus soldados.

A morte, enquanto símbolo, o aspecto finito e destrutível da existência. Indica aquilo que deixa de existir na evolução irreversível das coisas. Pode ser considerada como revelação e introdução. Em Angustia tercera, a figura da morte, que aparece disfarçada, se mostra para anunciar o fim de um dos poetas mais representativos do cenário literário hispânico:

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La muerte disfrazada va de fraile. Con mi camisa trópico ceñida, pegada de sudor, mato mi baile, y corro tras la muerte por tu vida.

Guillén sai de sua recorrente musicalidade, essencialmente oral, de ritmo envolvente e inebriante em busca do amigo-poeta. Ao matar seu “baile”, o poeta assume que não medirá esforços para correr “tras la muerte” em busca da vida de seu amigo desaparecido. O sangue é novamente evocado. Porém agora sua simbologia se encaminha para conotar o sangue como elemento orientador da busca pelo poeta até então desaparecido. Este sangue, que vem do poeta desaparecido, se irmana ao que se encontra em Guillén, pois “Las dos sangres de ti que en mi se juntan”, e reclamam “por tus llagas fúlgidas” alimentando o desejo em fazer justiça, em ver “secos a los hombres que te hirieron”. Como se pode comprovar nos versos que se seguem: Las dos sangres de ti que en mi se juntan, vuelven a ti, pues que de ti vinieron, y por tus llagas fúlgida, preguntan. Secos veré a los hombres que te hirieron.

Na estrofe seguinte, Guillén faz uso de alguns símbolos para figurar em sua composição poética os participantes do combate espanhol. O eu – lírico

assume,

claramente, sua posição político-ideológica frente

aos

acontecimentos. Como pode ser lido nos versos: Contra cetro y corona y manto y sable, pueblo, contra sotana, y yo contigo, y con mi voz para que el pecho te hable. Yo, tu amigo, mi amigo; yo, tu amigo.

É possível chegar a tal dedução se observarmos a seleção vocabular e a associação a ela feita. O sujeito poético afirma estar “Contra cetro y corona”,

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que representam objetos do poder central e podem ser relacionados à postura tirana assumida pelo General Francisco Franco. Está também contra o “sable” que possivelmente se apresenta como uma associação à guerra. O sabre, arma branca que se associa à espada, pode apropriar-se também de sua simbologia que nos remete ao estado militar e seu poderio. Outro aspecto relevante a ser destacado é a indignação, demonstrada na poesia, em relação à indiferença assumida pelos então dirigentes da Igreja Católica diante do contínuo massacre ocorrido na Guerra Civil espanhola. Essa contrariedade se vê expressa ao enunciar, em seus versos, que estaria contra “sótana”.13 A voz que clama na poesia está com o povo. Povo que está contra todas as forças ideológicas que resistem ao fim do martírio vivido pela Espanha. O eu – lírico se une então ao povo e usa sua voz para seguir na busca por justiça. Busca por “montañas grises”, “sendas rojas” e “caminos desbocados”. A montanha poderia representar o símbolo de ligação entre a terra e o céu, dada a sua extensão, conotando a dimensão da procura. Os caminhos vermelhos e “desbocados” conduzem o leitor a vislumbrar o furor destrutivo que arrasa todo o país. En las montañas grises; por las sendas rojas; por los caminos desbocados, mi piel, en tiras, para hacerte vendas, y mis huesos marchando en tus soldados.

Esse amplo enfrentamento ideológico, revelado na penúltima estrofe, fez com que a Guerra Civil deixasse de ser um acontecimento puramente espanhol para tornar-se uma prova de força entre as lideranças que disputavam a hegemonia do mundo. De alguma maneira, muitas nações manifestaram sua solidariedade à causa vivida pelos espanhóis, o que nos faz

13

Subst:Vestimenta utilizada pelos sacerdotes. In: Señas: diccionario para la enseñanza de la lengua española para brasileños. Tradução de Eduardo Brandão, Claudia Berliner. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2001

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compreender o porquê do poeta enunciar que em seus “huesos” marchariam “tus soldados”.

Angustia cuarta: Federico

A quarta e última angústia composta por Guillén anuncia a morte de Federico Garcia Lorca. O poeta nasceu em Fuentevaqueros (Granada) no ano de 1898 e foi assassinado em Viznar (Granada) em agosto de 1936. O fato de Garcia Lorca, muito querido por todos, ter sido umas das primeiras vítimas fatais do regime de Franco colocou-o durante longo tempo como uma figura simbólica no combate à opressão, fazendo com que vários poetas e escritores viessem a render-lhe homenagens. Uma de suas inúmeras obras de notório reconhecimento é o Romancero Gitano (1928), composto por dezoito poemas nos quais se encontram os motivos andaluzes, um tema de destaque na poética de Lorca. A referida obra representa uma grande síntese entre poesia popular e erudita. Trata de representar, de maneira metafórica e mítica, Andalucía e o mundo cigano. Na presente análise, nos apropriaremos de alguns símbolos recorrentes no “romancero” de García Lorca, com o fim de estabelecer um diálogo entre as composições literárias selecionadas de forma substancial. Ao longo da poesia do poeta cubano, pode-se notar o uso da linguagem fática. O diálogo estabelecido em Angustia Cuarta dá continuidade e consistência à busca iniciada em Angustia tercera. Como se observa nos seguintes versos: Toco a la puerta de un romance. -¿No anda por aquí Federico? -Un papagayo me contesta: -Ha salido.

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O sujeito poético inicia sua busca batendo à porta de um romance14 É a primeira referência à memória de Federico García Lorca. Ao longo da poesia, Guillén evoca a figura do poeta espanhol utilizando-se de vários elementos que compõem o universo poético do compositor do Romancero Gitano. Quem está por trás da porta e responde à pergunta do sujeito poético é uma ave. Em grego o vocábulo que designa ave, pássaro, era considerado sinônimo de presságio e de mensagem do céu. Aliada a esta informação, temse de considerar também uma característica pertinente à espécie escolhida por Guillén para responder sobre o paradeiro do poeta García Lorca. Ao escolher um papagaio para figurar a cena, é inegável ressaltar uma especial habilidade desta ave: a de simplesmente repetir algo dito por terceiros. Por uma denúncia anônima, García Lorca foi detido, e as investigações sobre seu paradeiro nunca tiveram consistência suficiente. Dizse que o poeta foi enterrado em uma cova comum e anônima em um lugar não determinado. Tantas incertezas acerca de um mesmo acontecimento só podem ser justificadas se pensarmos na maneira como os fatos ocorreram e principalmente como percorreram o tempo e o espaço. Nenhuma prova contundente. Apenas ecos, repetições de discursos sem rosto e sem nome. Na estrofe seguinte, parte-se para uma porta de cristal. O material do qual se compõe a porta pode nos remeter à ideia de que o cristal, por sua transparência, permite que se veja através dele. Desta forma sua propriedade material se reestrutura para sustentar a sua simbologia de constituir-se como representação intermediária entre o visível e o invisível. Aos associar tal significação aos acontecimentos retratados na poesia, pode-se compreender melhor a resposta da voz, que tem apenas mão, ao dizer que Federico “está en el rio”. Como corrobora a seguinte estrofe:

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O romance é em poema característico da tradição literária ibérica, composto usando a combinação métrica homônima. Característico da tradição oral se populariza no século XV, no qual se recolhem pela primeira vez escritos em “romanceros.” Os romances são geralmente poemas narrativos, com uma grande variedade temática, segundo o gosto popular do momento e de cada lugar. In: Señas: diccionario para la enseñanza de la lengua española para brasileños. Tradução de Eduardo Brandão, Claudia Berliner. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Toco a una puerta de cristal. -¿No anda por aquí Federico? Viene una mano y me responde: -Está en el río

Rio que tanto pode representar o curso da vida, se nos detemos a sua figura como um todo, como o seu fim, já que o curso das águas é a corrente da vida e da morte. A terceira estrofe dedicada ao poeta Federico García Lorca, alude à figura do cigano (Gitano). Personagem-chave em sua reconhecida obra “Romancero Gitano”. Porém, desta vez “Nadie responde, no habla nadie...” O cigano,

constantemente

marginalizado

por

uma

sociedade

que

não

compreende seus códigos e crenças, vive em constante partida, sempre à margem da sociedade dominante. Ao identificar-se com os ciganos e com ideologias diferentes das impostas pelo poder vigente, Lorca passa também a ser um perigoso ícone que deveria ser expurgado da realidade. Como mostra a estrofe que se segue: Toco a la puerta de un gitano. -¿No anda por aquí Federico? Nadie responde, no habla nadie... -¡Federico! ¡Federico!

As estrofes seguintes tratam de intensificar o ritmo desesperado na procura por notícias. A casa escura, vazia, as cores negro e verde, a vegetação. Todos esses elementos, assim como no Romancero de García Lorca, circundam um cenário de morte. O vento que no poeta andaluz significaria o erotismo masculino está “rojo” no poeta cubano. Vermelho de sangue agitando-se entre “las ruínas”, como se pode verificar nos versos: La casa oscura, vacía; negro musgo en las paredes; brocal de pozo sin cubo,

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jardín de lagartos verdes. Sobre la tierra mullida caracoles que se mueven, y el rojo viento de julio entre las ruinas, meciéndose. ¡Federico! ¿Dónde el gitano se muere? ¿Dónde sus ojos se enfrían? ¿Dónde estará, que no viene!

As perguntas, que encerram a estrofe que acaba de ser lida, têm sua resposta em forma de canção quando uma voz enuncia: Salió el domingo, de noche, salió el domingo, y no vuelve. Llevaba en la mano un lírio, llevaba en los ojos fiebre; el lírio se tornó sangre, la sangre tornóse muerte.

O lírio, quando associado ao simbolismo das águas, da lua e dos sonhos tornase a flor do amor, de um intenso amor, mas que na sua ambiguidade pode ficar irrealizado, reprimido ou sublimado. Ao converter-se em sangue, o amor de García Lorca foi reprimido, porém sua sublimação ocorre após sua morte como veremos adiante. Em seu “Momento en García Lorca”, o poeta encerra a sua procura, narrando o modo como acredita ter se dado o fim do poeta espanhol ao enunciar: Soñaba Federico en nardo y cera, Y aceituna y clavel y luna fría. Federico, Granada y Primavera […] “¡Federico!”, gritaron de repente, Con las manos inamóviles, atadas, Gitanos que pasaban lentamente.

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¡Qué voz la de sus venas desangradas! ¡Qué ardor el de sus cuerpos ateridos! […] Caminaban descalzos los sentidos. […] Alzóse Federico, en Luz bañado. Federico, Granada y primavera. Y con la luna y clavel y nardo y cera, los siguió por el monte perfumado.

La voz esperanzada: Una canción alegre en la Lejanía

La voz esperanzada encerra o cantar de Nicolas Guillén apresentando primeiramente uma Espanha personificada, destruída pelos horrores da guerra, mas que se mantém de pé. Representando uma nação lutadora, mesmo estando “sangrienta, desangrada, enloquecida!” se levanta. Bachelard em seu livro O ar e os sonhos (2001) destaca a importância da imagem da verticalização na construção do poema: A valorização vertical é tão essência, tão segura, sua supremacia é tão indiscutível, que o espírito não pode esquivar-se a ela depois de tê-la reconhecido uma vez em seu sentido imediato e direto. Não se pode dispensar o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, chegaremos a esta convicção: toda valorização é vertical.

O campo semântico do fogo aparece em todas as partes da poesia. Guillén dá a sua composição o tom vermelho, o calor da brasa queimadora que se abranda somente com o ecoar das canções entoadas. ¡ Ardiendo, España, estás! Ardiendo Com largas uñas rojas encendidas; A balas matricidas Pecho, bronce oponiendo, Y en ojo, boca, carne de traidores hundiendo Las hojas uñas largas encendidas. Alta, de abajo vienes,

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A raíces volcánicas sujeta; Lentos, azules cables con que tu voz sostienes, Tu voz de abajo, fuerte, de pastor y poeta. (…) Sales de ti; levantas La voz, y te levantas Sangrienta, desangrada, enloquecida, Y sobre la extensión enloquecida Más pura te levantas, te levantas.

A origem mestiça do poeta é um assunto recorrente em suas obras; no entanto, o elemento que se objetiva destacar com tais recursos é a afirmação da identidade. Em nenhum momento rechaçar sua origem, mas sim afirmar a todo instante a pluralidade que nasce ao entender identidade como um conceito de estado em constante evolução. O filósofo mexicano Leopoldo Zea (2002:39), exemplifica bem o conceito que se pretende expor no referido item: Todos os homens e povos são iguais pelo fato de serem distintos; por contar com uma personalidade e uma individualidade singulares. Encontramo-nos ante seres humanos concretos que lutam para fazer patente sua identidade, por intervir como pares junto aos demais. Afirma-se a igualdade, a partir das filiações peculiares e sem desmedir o entendimento mutuo.

Yo, Hijo de América Hijo de ti y de África […] Corro hacia ti, muero por ti. […] Yo, que amo la libertad con sencillez, […] Yo os grito con voz de hombre libre que os acompañaré Camaradas; Que iré marcando el paso con vosotros, Simple y alegre, Puro, tranquilo y fuerte,

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A partir desse conceito congregador de identidade, Guillén convoca os combatentes, vindos de todas as partes, praticantes de todas as artes. Numa só canção se unem “mulero”, “cantinero”, “ minero”: Para cambiar unidos las cintas trepidantes de vuestras ametralladoras […] Otra vida sencilla y ancha, Alta, limpia, sencilla y ancha, Sonora de nuestra voz inevitable.

É recorrente na poética de Guillén a presença da musicalidade. Muito mais que um recurso estilístico que confere ritmo e emoção à composição poética, é um importantíssimo elemento integrador. Esse artifício já era utilizado na cultura pré-hispânica e na antigüidade oriental e ocidental. Guardiã e Wierzeyski (1876: 729) confirmam o acima exposto ao afirmar que: A poesia, [...], é a expressão musical do pensamento. Nasce do sentimento, do ritmo e da harmonia a cujas leis se acomoda a palavra. A música, [...] que empresta à poesia um dos seus dois elementos essenciais, tem por si própria um caráter mais definido.

É o que vemos expresso, nos versos: Nos perderemos a lo lejos… se borrará la oscura masa De hombres, pero en el horizonte, todavía Como en un sueño, se nos oirá la entera voz vibrando: […] Todos el camino sabemos; Están los rifles engrasados; Están los brazos avisados: ¡ Marchemos!

Junto a tal intento, tem-se também o canto como a esperança que faz crer em um amanhã renovador. Como se vislumbra nos versos seguintes:

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Nada importa morirse al cabo, Pues morir no es tan gran suceso; Muchísimo peor que eso Es estar vivo y ser esclavo! […] … El camino sabemos… … los rifles engrasados… … están los brazos avisados… Fig 3

Y la canción alegre flotará como una nube sobre la roja lejanía.

Deixando no ar a ideia de uma vida além do plano material, que possui a morte como trilha e a eternidade como estação final.

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Conclusão

O estudo analítico-crítico das composições poéticas de Nicolás Guillén em diálogo com outras criações artísticas, como a canção do Trio Matamoros, o poema de José Zacarias Tallet e os elementos utilizados no Romancero Gitano de García Lorca, permitiu delinear o resultado da práxis poética de Guillén como uma metáfora de Cuba. Ao privilegiar a exposição da questão identitária cubana, buscou-se apresentar os possíveis desdobramentos dos pontos abordados ao longo dos capítulos: a marcada influência do contexto literal na produção literária do século XX; a relação entre o pensamento artístico (manifestado na poesia e na música) e o processo de conformação de visões do nacional em Cuba; o papel dos intelectuais na construção de imagens do país e o conceito de transculturação como paradigma do nacional, que não se limitou à fronteiras geográficas. Assim sendo, foi possível observar que desde o século XIX, tentou-se articular um sentido de unidade, nascido da heterogeneidade, na definição do que seria o nacional no mundo antilhano, em especial, no cubano. Tentativa que se vislumbra no corpo do sujeito poético de “Balada de los dos abuelos” em uma perspectiva nacional

ou em “España” desde uma

mirada

extracontinental. A nova dimensão dada às manifestações populares se apresenta como uma tentativa dos letrados de articular visões do outro para dar corpo e alma à nação imaginada. Já que a Guillén foi destinada a tarefa de reconhecer as essências nacionais do “povo”, redefinindo-as e projetando-as dentro de uma nação moderna, porém não sob o rótulo de mescla, mas sim de acordo com as premissas propostas pelo conceito de transculturação. Essências que se vislumbram em composições como “Rumba” e “Secuestro de La mujer de Antonio” Nas composições poéticas de Nicolás Guillén se observa que há espaço para o popular e o erudito. Não se preconiza um estilo, um autor, um

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ritmo; contempla-se a habilidade em traduzir os anseios de um povo em fervilhante processo de amadurecimento. Alia de forma brilhante os queixumes das décimas às narrativas do romance espanhol, os ritmos de origem africana à diversidade do cancioneiro popular sem deixar de obter como resultado o reflexo da nação cubana. A partir das análises propostas, sobretudo, nos capítulos Um olhar sobre a práxis musical e poética em versos de Nicolás Guillén e O contrapunteo de Guillén na tessitura simbólica da identidade antilhana, é possível afirmar que as discussões em torno das manifestações artísticas em Cuba, aqui representadas pelos poemas de Nicolás Guillén, estariam marcadas pelas preocupações em torno da integração do nacional, o que estaria em conformidade com o que afirma Benítez Rojo (1989:119 e 122) sobre a poesia de Guillén, quando enuncia que esta seria: [...] a tentativa de impregnar a sociedade da libido do negro transgredindo os mecanismos de censura sexual impostos a raça pelo Plantation [...] desinflar a agressividade do Plantation pela reinterpretação das origens nacionais.[...] Construir, ainda que simbólicamente, um espaço de coexistência racial, social e cultural.

O estreito vínculo entre a oralidade e a escrita em Cuba faz das produções artísticas da ilha, desde as décimas camponesas até os tempos de Nicolás Guillén, um canal expressivo de comunicação repleto de significação cultural. Comprovando a hipótese de que nos versos de Guillén, contempla-se o figurar de um processo que consiste em resgatar os valores da cultura local e encontrar no embate entre cultura dominante e cultura marginalizada o cerne de uma nova cultura. Do exposto, Guillén é prova viva de que história e poesia, em Cuba, representam a expressão nacional sempre que se trate de um poeta genuíno. Desde que tenha suas veias atreladas às raízes de sua gente, seja por seu avô negro ou seu avô branco, seja pela solidariedade expressa à causa espanhola. Sempre que estas veias se nutram mutuamente em uma mescla de sangue e seiva, se revelará a importância de uma obra como a de Nicolás Guillén

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CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. ELIADE, Mircea. Le Chamanisme et les tecniques archaïques de l’extase, Paris: 1951 GRIMAL, Pierre. Diccionaire de la mythologie greque et romanie, prefacio de Ch Picard. 3ªed ; corregida. Paris, 1963. GUARDIA, J. M. & WIERZEYSKI, J. Historie de la Langue Latine, Paris 1876. In: GARIBAY K. Ángel María. Historia de la literatura náhualt. 3ªEdição. México: Porrúa, 5v. p. 60-61. SILVA, Thais Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 2002. Figuras utilizadas

Figura 1- Disponível em: http://www.tiendaboricua.com/media. Acessado em: 01/11/2010 Figura 2 - Aquelarre en Cartagena, 1982 (fragmento) – Mural en acrílico in: Huellas: Revista de la Universidad del Norte. Nº16, Barranquilla, 1986. Figura 2.1 – TANAKA, Beatrice: A história de Chico Rei: um rei africano no Brasil. Ilustrações da autora, São Paulo: Edições SM, 2010 (Pág:11) Figura 3: Disponível em: www.imagenesdeposito.com/guerra.Acessado em 15/07/2007

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Anexo

La Rumba

Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! ¡Cómo baila la rumba la negra Tomasa! ¡Cómo baila la rumba José Encarnación! Ella mueve una pierna, ella mueve la otra, él se estira, se encoge, dispara la grupa, el vientre dispara, se agacha, camina, sobre el uno y el otro talón. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Las ancas potentes de niña Tomasa en torno de un eje invisible, como un reguilete rotan con furor, desafiando con rítmico, lúbrico disloque, el salaz ataque de Ché Encarnación: muñeco de cuerda que, rígido el cuerpo, hacia atrás el busto, en arco hacia’lante abdomen y piernas, brazos encogidos a saltos iguales de la inquieta grupa va en persecusión. Cambia e’paso, Cheché; cambia e’paso, Cheché. Cambia e’paso, Cheché; cambia e’paso, Cheché. La negra Tomasa, con lascivo gesto, hurta la cadera, alza la cabeza, y en alto los brazos, enlaza las manos, en ellas reposa la ebónica nuca y, procaz, ofrece sus senos rotundos, que, oscilando, de diestra a siniestra, encandilan a Chepe Chacón. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Frenético el negro se lanza al asalto

y, el pañuelo de seda en sus manos, se dispone a marcar a la negra Tomasa, que lo reta, insolente, con un buen

vacunao. “¡Ahora!”, lanzando con rabia el fuetazo, aúlla el moreno. (Los ojos son ascuas, le falta la voz y hay un diablo en el cuerpo de Ché Encarnación). La negra Tomasa esquiva el castigo y en tono de burla lanza un insultante y estridente “¡No!” y, valiente se vuelve y menea la grupa ante el derrotado José Encarnación. ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bomgó! Repican los palos, suena la maraca, zumba la botija se rompe el bongó. Y las cabezas son dos cocos secos en que alguno con yeso escribera, arriba, una diéresis, abajo un guión. Y los dos cuerpos de los dos negros son dos espejos de sudor. Repican las claves, suena la botija, se rompe el bongó. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, chariqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, chariqui! Llega el paroxismo, tiemblan los danzantes y el bembé le baja a Chepe Cachón; y el bongó se rompe al volverse loco, a niña Tomasa le baja el changó. ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan! ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!

Al suelo se viene la niña Tomasa, al suelo se viene José Encarnación; y allí se revuelcan con mil contorsiones, se les sube el santo, se rompió el bongó. ¡Se acabó la rumba, con-con-co-mabó! ¡Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca! ¡Pam! ¡Pam! ¡Pam!

Jose Z. Tallet

Rumba

La rumba revuelve su música espesa con un palo, Jengibre y canela.... ¡ Malo ! Malo, porque ahora vendrá el negro chulo Con Fela. Pimienta de la cadera, grupa flexible y dorada: rumbera buena, rumbera mala. En el agua de tu bata todas mis ansias navegan: rumbera buena, rumbera mala. Anhelo de naufragar En ese mar tibio y hondo: ¡ Fondo del mar ! Trenza tu pie con la música el nudo que más me aprieta; resaca de tela blanca sobre tu carne trigueña. Locura del bajo vientre, aliento de boca seca; el ron que se te ha espantado, y el pañuelo como riendas. Ya te cogeré domada, ya te veré bien sujeta, cuando como ahora huyes,

hacia mi ternura vengas, rumbera buena; o hacia mi ternura vayas rumbera mala. No ha de ser larga la espera, Rumbera Buena;

Ni será eterna la bacha, Rumbera Mala; Te dolerá la cadera, Rumbera Buena; Cadera dura y sudada, Rumbera Mala... ¡ Último trago ! Quítate, córrete, vámonos... ¡ Vamos !

Nicolás Guillén

SECUESTRO DE

Secuestro de la mujer de Antonio

Te voy a beber de un trago, como una copa de ron; te voy a echar en la copa de un son, prieta, quemada de ti misma, cintura de mi canción. Záfate tu chal de espuma para que torees la rumba, y si Antonio se disgusta, que se corra por ahí; ¡la mujer de Antonio tiene que bailar aquí! Desamárrate, Gabriela. Muerde la cáscara verde, pero no apagues la vela; tranca la pájara blanca, y vengan de dos en dos, ¡que el bongó se calentó! De aquí no te irás, mulata ni al mercado, ni a tu casa; aquí molerán tus ancas la zafra de tu sudor: repique, pique, repique repique, pique, repique,

pique, repique, repique, ¡pó! Semillas las de tus ojos darán sus frutos espesos; y si viene Antonio luego que ni en jaranta pregunte cómo es qué tú estás aquí... Mulata, mora, morena, que ni el más tonto se mueva, porque el que más toro sea saldrá caminando así; el mismo Antonio si llega, saldrá caminando así; todo el que no esté conforme, saldrá caminando así... todo el que no esté conforme, saldrá caminando así... Repique, repique, pique, repique, repique, ¡pó! ¡Prieta quemada en ti misma, cintura de mi canción!

Nicolás Guillén

Balada de los dos abuelos

Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos. Lanza con punta de hueso, tambor de cuero y madera: mi abuelo negro. Gorguera en el cuello ancho, gris armadura guerrera: mi abuelo blanco. Pie desnudo, torso pétreo los de mi negro; pupilas de vidrio antártico las de mi blanco! Africa de selvas húmedas y de gordos gongos sordos... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) Aguaprieta de caimanes, verdes mañanas de cocos... --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) Oh velas de amargo viento, galeón ardiendo en oro... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) ¡Oh costas de cuello virgen engañadas de abalorios...! --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) ¡Oh puro sol repujado, preso en el aro del trópico; oh luna redonda y limpia sobre el sueño de los monos! ¡Qué de barcos, qué de barcos! ¡Qué de negros, qué de negros! ¡Qué largo fulgor de cañas! ¡Qué látigo el del negrero!

Piedra de llanto y de sangre, venas y ojos entreabiertos, y madrugadas vacías, y atardeceres de ingenio, y una gran voz, fuerte voz, despedazando el silencio. ¡Qué de barcos, qué de barcos, qué de negros! Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos. Don Federico me grita y Taita Facundo calla; los dos en la noche sueñan y andan, andan. Yo los junto. ¡Federico! ¡Facundo! Los dos se abrazan. Los dos suspiran. Los dos las fuertes cabezas alzan; los dos del mismo tamaño, bajo las estrellas altas; los dos del mismo tamaño, ansia negra y ansia blanca, los dos del mismo tamaño, gritan, sueñan, lloran, cantan. Sueñan, lloran, cantan. Lloran, cantan. ¡Cantan!

Nicolás Guillén

Tengo

Cuando me veo y toco yo, Juan sin Nada no más ayer, y hoy Juan con Todo, y hoy con todo, vuelvo los ojos, miro, me veo y toco y me pregunto cómo ha podido ser.

O bien en la carpeta de un hotel gritarme que no hay pieza, una mínima pieza y no una pieza colosal, una pequeña pieza donde yo pueda

Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de andar por mi país, dueño de cuanto hay en él, mirando bien de cerca lo que antes no tuve ni podía tener.

Tengo, vamos a ver, que no hay guardia rurque me agarre y me

Zafra puedo decir, monte puedo decir, ciudad puedo decir, ejército decir, ya míos para siempre y tuyos, nuestros, y un ancho resplandor de rayo, estrella, flor. Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de ir yo, campesino, obrero, gente simple, tengo el gusto de ir (es un ejemplo) a un banco y hablar con el administrador, no en inglés, no en señor, sino decirle compañero como se dice en español. Tengo, vamos a ver, que siendo un negro nadie me puede detener a la puerta de un dancing o de un bar.

descansar.

encierre en un cuartel, ni me arranque y me arroje de mi tierra al medio del camino real. Tengo que como tengo la tierra tengo el mar, no country, no jailáif, no tennis y no yatch, sino de playa en playa y ola en ola, gigante azul abierto democrático: en fin, el mar. Tengo, vamos a ver, que ya aprendí a leer, a contar, tengo que ya aprendí a escribir y a pensar y a reír. Tengo que ya tengo donde trabajar y ganar lo que me tengo que comer. Tengo, vamos a ver, tengo lo que tenía que tener. Nicolás Guillén

ESPAÑA, Poema en cuatro angustias y una esperanza

ANGUSTIA PRIMERA Miradas de metales y de rocas

No Cortés, ni Pizarro (aztecas, incas, juntos halando el doble carro) Mejor sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos. Aquí, con sus callosas, duras manos; remotos milicianos al pie aquí de nosotros, clavadas las espuelas en sus potros; aquí al fin con nosotros, lejanos milicianos, ardientes, cercanísimos hermanos. Los hierros tumultuosos de lanzas campeadoras; las espadas, que hundieron su punta en las auroras; las grises armaduras, los ingenuos arcabuces fogosos, los clavos y herraduras de las esquinas finas patas conquistadoras; los cascos, las viseras, las gordas rodilleras, todo el viejo metal imperialista corre fundido en aguas quemadoras, donde soldado, obrero, artista,

las balas cogen para sus ametralladoras. No Cortés, ni Pizarro (incas, aztecas, juntos halando el doble carro). Mejor, sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos. ¡Miradla, a España rota! Y pájaros volando sobre ruinas, y el fachismo y su bota, y faroles sin luz en las esquinas, y los puños en alto, y los pechos despiertos, y obuses estallando en el asfalto sobre caballos ya definitivamente muertos; y lágrimas marinas, saladas, curvas, chocando contra todos los puertos; y gritos que se asoman a las bocas y a los ojos coléricos, abiertos, bien abiertos, miradas de metales y de rocas.

ANGUSTIA SEGUNDA Tus venas, la raíz de nuestros árboles

La raíz de mi árbol retorcida; la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, bebiendo sangre, húmeda de sangre, la raíz de mi árbol, de tu árbol. Yo lo siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol. Yo la siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, la siento clavada en lo más hondo de mi tierra, clavada allí, clavada, arrastrándome y alzándome y hablándome, gritándome. La raíz de tu árbol, de mi árbol. En mi tierra, clavada, con clavos ya de hierro, de pólvora, de piedra, y floreciendo en lenguas ardorosas, y alimentando ramas donde colgar los pájaros cansados, y elevando sus venas, nuestras venas, tus venas, la raíz de nuestros árboles.

ANGUSTIA TERCERA Y mis huesos marchando en tus soldados

La muerte disfrazada va de fraile. Con mi camisa trópico ceñida, pegada de sudor, mato mi baile, y corro tras la muerte por tu vida. Las dos sangres de ti que en mí se juntan, vuelven a ti, pues de ti vinieron, y por tus llagas fúlgidas preguntan. Secos veré a los hombres que te hirieron. Contra cetro y corona y manto y sable, pueblo, contra sotana, y yo contigo, y con mi voz para que el pecho te hable. Yo, tu amigo, mi amigo; yo, tu amigo. En las montañas grises; por las sendas rojas; por los caminos desbocados, mi piel, en tiras para hacerte vendas, y mis huesos marchando en tus soldados.

ANGUSTIA CUARTA Federico

Toco a la puerta de un romance. --¿no anda por aquí Federico? Un papagayo me contesta: --Ha salido. Toco a una puerta de cristal. --¿No anda por aquí Federico? Viene una mano y me señala: --Está en el río. Toco a la puerta de un gitano. --¿No anda por aquí Federico? Nadie responde, no habla nadie... --¡Federico! ¡Federico! La casa oscura, vacía; negro musgo en las paredes; brocal de pozo sin cubo, jardín de lagartos verdes. Sobre la tierra mullida caracoles que se mueven, y el rojo viento de julio entre las ruinas, meciéndose. ¡Federico! ¿Dónde el gitano se muere? ¿Dónde sus ojos se enfrían? ¡Dónde estará, que no viene! (Una canción) Salió el domingo, de noche, salió el domingo, y no vuelve. Llevaba en la mano un lirio, llevaba en los ojos fiebre;

el lirio se tornó sangre, la sangre tornóse muerte. (Momento en García Lorca) Soñaba Federico en nardo y cera, y aceituna y clavel y luna fría. Federico, Granada y Primavera. En afilada soledad dormía, al pie de sus ambiguos limoneros, echado musical junto a la vía. Alta la noche, ardiente de luce arrastraba su cola transparente por todos los caminos carreteros. «¡Federico!», gritaron de repente, con las manos inmóviles, atadas, gitanos que pasaban lentamente. ¡Qué voz la de sus venas desangradas! ¡Qué ardor el de sus cuerpos ateridos! ¡Qué suaves sus pisadas, sus pisadas! Iban verdes, recién anochecidos; en el duro camino invertebrado caminaban descalzos los sentidos. Alzóse Federico, en luz bañado. Federico, Granada y Primavera. Y con luna y clavel y nardo y cera, los siguió por el monte perfumado.

LA VOZ ESPERANZADA Una canción alegre flota en la lejanía

¡Ardiendo, España, estás! Ardiendo con largas uñas rojas encendidas; a balas matricidas pecho, bronce oponiendo, y en ojo, boca, carne de traidores hundiendo las rojas uñas largas encendidas. Alta, de abajo vienes, a raíces volcánicas sujeta; lentos, azules cables con que tu voz sostienes, tu voz de abajo, fuerte, de pastor y poeta. Tus ráfagas, tus truenos, tus violentas gargantas se aglomeran en la oreja del mundo; con pétreo músculo violentas el candado que cierra las cosechas del mundo. Sales de ti; levantas la voz, y te levantas sangrienta, desangrada, enloquecida, y sobre la extensión enloquecida más pura te levantas, te levantas. Viéndote estoy las venas vaciarse, España, y siempre volver a quedar llenas; tus heridos risueños; tus muertos sepultados en parcelas de sueños; tus duros batallones, hechos de cantineros, muleros y peones. Yo, hijo de América, hijo de ti y de Africa, esclavo ayer de mayorales blancos dueños de látigos coléricos; hoy esclavo de rojos yanquis azucareros y voraces; yo chapoteando en la oscura sangre en que se mojan mis Antillas; ahogado en el humo agriverde de los cañaverales; sepultado en el fango de las cárceles; cercado día y noche por insaciables bayonetas;

perdido en las florestas ululantes de las islas crucificadas en la cruz del Trópico; yo, hijo de América, corro hacia ti, muero por ti. Yo, que amo la libertad con sencillez, como se ama a un niño, al sol, o al árbol plantado frente a nuestra casa; que tengo la voz coronada de ásperas selvas milenarias, y el corazón trepidante de tambores, y los ojos perdidos en el horizonte, y los dientes blancos, fuerte y sencillos para tronchar raíces y morder frutos elementales; y los labios carnosos y ardorosos para beber el agua de los ríos que me vieron nacer, y húmedo el torso por el sudor salado y fuerte de los jadeantes cargadores en los muelles, los picapedreros en las carreteras, los plantadores de café y los presos que trabajan desoladamente, inútilmente en los presidios sólo porque han querido dejar de ser fantasmas; yo os grito con voz de hombre libre que os acompañaré, camaradas; que iré marcando el paso con vosotros, simple y alegre, puro, tranquilo y fuerte, con mi cabeza crespa y mi cuerpo moreno, para cambiar unidos las cintas trepidantes de vuestras ametralladoras, y para arrastrarme, con el aliento suspendido, allí, junto a vosotros, allí donde ahora estáis, donde estaremos, fabricando bajo un cielo ardoroso agujereado por la metralla, otra vida sencilla y ancha, limpia, sencilla y ancha, alta, limpia, sencilla y ancha, sonora de nuestra voz inevitable. Con vosotros, brazos conquistadores ayer, y hoy ímpetu para desbaratar fronteras; manos para agarrar estrellas resplandecientes y remotas, para rasgar cielos estremecidos y profundos;

para unir en un mazo las islas del Mar del Sur y las islas del Mar Caribe; para mezclar en una sola pasta hirviente la roca y el agua de todos los océanos; para pasear en alto, dorada por el sol de todos los amaneceres; para pasear en alto, alimentada por el sol de todos los meridianos; para pasear en alto, goteando sangre del ecuador y de los polos; para pasear en alto como una lengua que no calla, que nunca callará, para pasear en alto la bárbara, severa, roja, inmisericorde, calurosa, tempestuosa, ruidosa, ¡para pasear en alto la llama niveladora y segadora de la Revolución! ¡Con vosotros, mulero, cantinero! ¡Contigo, sí, minero! ¡Con vosotros, andando, disparando, matando! ¡Eh, mulero, minero, cantinero, juntos, aquí, cantando! (Una canción en coro) Todos el camino sabemos; están los rifles engrasados; están los brazos preparados: ¡Marchemos! Nada importa morir al cabo, pues morir no es tan gran suceso; ¡malo es ser libre y estar preso, malo, estar libre y ser esclavo! Hay quien muere sobre su lecho, doce meses agonizando, y otros hay que mueren cantando con diez balazos sobre el pecho. Todos el camino sabemos;

están los rifles engrasados; están los brazos avisados: ¡Marchemos! Así hemos de ir andando, severamente andando, envueltos en el día que nace. Nuestros recios zapatos, resonando, dirán al bosque trémulo: «¡Es que el futuro pasa!» Nos perderemos a lo lejos... Se borrará la oscura masa de hombres, pero en el horizonte todavía como en un sueño, se nos oirá la entera voz vibrando: ...El camino sabemos... ...Los rifles engrasados... ...Están los brazos avisados... ¡Y la canción alegre flotará como una nube sobre la roja lejanía! Nicolás Guillén

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