A representação do negro na crônica de Machado de Assis

May 27, 2017 | Autor: Greicy Bellin | Categoria: Brazilian Literature
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A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM UMA CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE

Prof. Dra. Greicy Pinto Bellin (UFPR/UNIANDRADE)


Em crônica de 19 de maio de 1888, portanto seis dias após a assinatura da Lei Áurea, Boas-Noites afirmava o seguinte sobre a abolição dos escravos:
Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. (ASSIS, 1997, p. 12).

Seria óbvio afirmar que o jantar dado por Boas-Noites é exemplar do exibicionismo e da locupletação da elite em cima do processo abolicionista, que acabou, ao fim e ao cabo, não se revelando como solução ideal para o problema da inserção do negro da sociedade brasileira oitocentista. Também é óbvio afirmar que tal inserção, ao contrário do apregoado ao longo de décadas e décadas de fortuna crítica, não passou despercebida a Machado de Assis, e não apenas por sua condição de mulato livre em uma ordem escravocrata, e sim pelo seu poder inegável de análise crítica dos processos emancipadores em uma nação onde as ideias, para usar a célebre expressão de Roberto Schwarz, estavam fora de lugar em relação ao seu centro europeu. O referido travejamento vem expresso na fala do próprio Boas-Noites:
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que, acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. (ASSIS, 1997, p. 12).

A opção pela expressão "golpe do meio" ao invés do galicismo coup du milieu é reveladora da tão comentada obsessão em copiar o que vinha da França, algo aparentemente refutado por Boas-Noites, ainda que tal refutação venha a parecer contraditória tendo em vista o caráter mistificador assumido pela libertação do escravo Pancrácio, agora escravizado de uma outra maneira:
Um ordenado pequeno, mas que há de crescer (...) Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais do que uma galinha. Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. (ASSIS, 1997, p. 13).

A ironia expressa pela comparação de Pancrácio a uma galinha, considerando a existência de um contexto onde o escravo tinha pouca ou nenhuma importância, bem como a problemática situação do negro liberto em um contexto pós-abolição, torna-se ainda mais evidente no trecho a seguir, em que Boas-Noites revela, sem o menor pudor, a existência de uma falsa igualdade entre senhor e ex-escravo:
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; eleitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. (ASSIS, 1997, p. 13).

Sobressai-se uma ironia ainda mais contundente, que considera natural e quase divina uma liberdade adquirida e construída por uma elite que estava, na realidade, muito pouco preocupada com a condição do negro escravo. A percepção oposta é, aliás, bastante problemática no âmbito da fortuna crítica machadiana, caracterizada por um contumaz anacronismo na análise da representação do escravo na obra de Machado de Assis, percebendo, em tal representação, componentes que seriam próprios de visões sustentadas hoje em dia a respeito dos negros, da negritude e da abolição da escravatura. Urge, portanto, recuperar a weltanschauung de Machado, na medida em que sua obra traz a visão de uma época, e não as opiniões e juízos críticos sustentados ao longo de anos de fortuna crítica, muitas vezes responsável pela insistência em polarizações que muito pouco ou quase nada explicam as representações presentes nos textos do Bruxo.
Superada a ideia de anacronismo que por anos rondou os escritos machadianos, segundo a qual o escritor não estaria preocupado com o entorno social e por extensão, com a representação do negro em sua obra, entrou-se na era do imperativo categórico de ordem sociológica, representado pelas análises de John Gledson e do já citado Roberto Schwarz. Gledson, por exemplo, afirma que "Pai contra mãe" marcaria o momento no qual Machado, já estabilizado em seu cargo de burocrata do império, teria tido a coragem necessária para explorar todos os travejamentos e consequências nefastas da escravidão no contexto brasileiro. Tais aspectos, contudo, já haviam sido explorados com maestria no conto "Mariana", publicado em 1871 no Jornal das Famílias, em que Machado, bastante lúcido em relação às anomalias geradas pelas ideias fora do lugar, investe no absurdo ao criar a figura de Mariana, mucama que se destaca em seu meio pela educação esmerada e até mesmo, pela fluência em francês, língua que aprendera com a sua sinhazinha:

A sua educação não fora tão completa como a das minhas irmãs; contudo, Mariana sabia mais do que as outras mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe foram ensinados com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos quinze anos teve desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência e felicidade, que em pouco tempo Mariana ficou sabendo tanto quanto ela. (ASSIS, 2008, p. p. 1009).

A romantização da negra escrava, que atinge seu ápice em um inverossímil suicídio motivado pela suposta e efetivamente não declarada rejeição de Coutinho, é mais do que perceptível na narrativa, denunciando o anacronismo de uma elite marcada pela hipocrisia, que tentava dar ao escravo um tratamento não condizente com a sua posição. Isso não quer dizer que Machado fosse escravocrata e muito menos, racista, e sim que estava atento aos problemáticos contornos assumidos pela escravidão em um contexto que percebia o negro como instrumento de poder, percepção esta expressa na fala de Boas-Noites, conforme já analisado, e na fala de Coutinho ao relatar os sentimentos nutridos por Mariana em relação a ele: "Antes e depois amei e fui amado muitas vezes; mas nem depois nem antes, e por nenhuma mulher fui amado jamais como fui (...) por uma cria de casa." (ASSIS, 2008, p. 1008). Observa-se que a narrativa lança mão de um arsenal romântico alimentado e ao mesmo tempo, desconstruído por Coutinho enquanto membro da elite fluminense, o que se torna claro no último parágrafo do conto:

Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade. (ASSIS, 2008, p. 1019).

Narrativas como essa nos levam à conclusão de que Machado, já em 1871, e talvez em resposta à homologação da Lei do Ventre Livre neste mesmo ano, problematizava a representação do negro escravo não em chave abolicionista e protecionista, mas de forma a revelar as incongruências geradas por apropriações literárias equivocadas da figura do negro, e, no caso específico de Mariana, da mulata enquanto objeto de satisfação sexual dos homens pertencentes à elite, como bem aponta Gilberto Freyre em seu célebre Casa grande e senzala. Machado, enquanto contestador de uma doxa polarizada em percepções que oscilavam entre os extremos de se considerar o escravo como vilão, como fez Joaquim Manuel de Macedo em Simeão, o crioulo, ou como vítima de um sistema opressor e excludente, posição geradora do anacronismo que caracteriza a leitura de sua obra, possui um olhar desconfiado que não se locupleta com sistemas ideológicos e por isso mesmo, não se permite analisar dentro de um viés ideológico que simplesmente percebia a escravidão como nefasta ou como vantajosa. Nesse sentido, torna-se possível afirmar que o escritor lançava mão de um recurso semelhante ao de Baudelaire, conforme apontado por Roberto Schwarz: "ao invés de você falar em nome próprio, com lirismo ou reflexões sinceras, você identifica o seu eu-lírico com o lado mais abjeto da classe dominante." (SCHWARZ, p. 63). A narração em primeira pessoa de Boas-Noites, assim como a história relatada por Coutinho são sintomáticas desta posição, revelando não necessariamente a abjeção da escravidão como instituição e realidade social, mas a abjeção daqueles que lançavam mão dela para se afirmar como membros de uma elite subserviente e incapaz de articular verdadeiros ideais de liberdade e igualdade tanto para si mesmos quanto para os outros.
Em suma, não seria exagerado afirmar que Machado de Assis lançava mão da representação do negro, mais especificamente do negro escravo, para expor os travejamentos característicos de uma nação e, porque não dizer, de uma literatura periférica e consolidada em referenciais europeus encabeçados pelo movimento romântico, e que pouco ou nada correspondiam à construção de uma realidade efetivamente brasileira. Entende-se aqui por realidade brasileira não as representações ufanistas de nação sustentadas pelos românticos, mas a realidade do dia a dia, da luta por uma sobrevivência que, conforme expresso em "Pai contra mãe", fundamentava-se em contradições inexoráveis com base nas quais o filho da negra escrava era abortado no meio da rua para que o filho do capitão do mato urbano, ele mesmo um escravo da necessidade econômica, pudesse se salvar da roda dos enjeitados. Contradições semelhantes saltam aos olhos nas representações de Pancrácio e Mariana, produtos de uma sociedade e de uma cultura que, ao fim e ao cabo, não respeitavam a real condição do negro e tentavam maquiar tal condição com um verniz mais apropriado às classes dominantes. A condição de mulato livre e inserido em um contexto teoricamente "branco" talvez tenha conferido a Machado de Assis a lucidez necessária para perceber o travejamento e transformá-lo em matéria de literatura. Obrigada.

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