A representação entre a mediação e a violência simbólica. In: Carmo, Claudio Marcio. (Org.). Textos e práticas de representação. Curitiba: Editora Honoris Causa, 2011, p. 121-145.

June 29, 2017 | Autor: Daniel Silva | Categoria: Semiotics, Pragmatics, Linguistic Anthropology, Mediation
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Capítulo de livro publicado: SILVA, Daniel Nascimento (2011) A representação entre a mediação e a violência simbólica. In: Carmo, Claudio Marcio. (Org.). Textos e práticas de representação. Curitiba: Editora Honoris Causa, 2011, p. 121-145.

A representação entre a mediação e a violência simbólica

Daniel do Nascimento e Silva

Nos dias em que vivemos, passados quase dez anos do reconhecido marco histórico que foram os ataques do Onze de Setembro, numa época em que o “real” do evento foi exibido ao vivo em escala mundial, mais e mais se fala, no contexto do ataque ao radicalismo religioso e a outras formas de sensibilidade não-modernas e não-liberais, no papel “objetivo” de uma ciência “secular”, na “verdadeira” fé ou na representação “autêntica” dos fatos pela mídia. Resumidamente, o que perpassa esses atos de fala tão familiares aos nossos ouvidos é a reivindicação de uma representação “na escala de um para um”, a ser alcançada por uma instância representativa que se afaste do fanatismo religioso que levou grupos extremistas a explodir símbolos do capitalismo e da modernidade norte-americanos. Em nome de uma representação “objetiva”, posicionaram-se, basicamente, instituições modernas e seculares como a ciência e o jornalismo como as francas “representantes” da verdade. Era como se, de um lado, discurso jornalístico e científico estivessem “constatando” os fatos e divulgando uma visão “transparente” do real e, de outro, a política militar norte-americana reagisse, em nome do Bem, contra as atrocidades do Mal, um argumento que ainda hoje tem custado muitas vidas em cidades tão distintas quanto Kabul, Bagdad ou Londres. Não se trata, obviamente, de defender a ação que levou a milhares de mortes naquela horrenda manhã de setembro. Tampouco de justificar a fala que se transformou em ação na chamada Guerra ao Terror. Nessa explosão contemporânea de violência, mais e mais os modos de significar parecem se aproximar dos modos de agir – e de legitimar certos atos como moralmente aceitáveis e condenar outros como cruéis. Num interessante ensaio sobre o terrorismo suicida, Talal Asad (2007) nos pergunta por que, no contexto desses conflitos, o terror é associado a sensibilidades e subjetividades não-modernas e não-

liberais ao passo que a violência de estado promovida por nações liberais é concebida como moralmente justificável. Além disso, Asad questiona por que sentimos isso. Ou seja, por que nossa estrutura de afetos parece legitimar certos modos de violência, mas não outros? Talvez ensaiando uma resposta, Judith Butler afirma “que o que sentimos é em parte condicionado pelo modo como interpretamos o mundo ao nosso redor; que o modo como interpretamos o que sentimos pode e na verdade altera o próprio sentimento” (2009, p.41). Neste capítulo, não é de meu interesse exatamente discutir a política de responsabilidade moral atrelada à violência de estado liberal e ao dito terrorismo nãoliberal. Gostaria, no entanto, de discutir uma questão de epistemologia linguística que perpassa os modos como essa política de afetos é informada e que no Brasil assume suas próprias formas e significados. Mais especificamente, meu objetivo aqui é discutir os desdobramentos dos modos de pensar a representação que herdamos da tradição filosófica e que, num âmbito político-pragmático, servem de sustentação à reivindicação de um acesso direto e transparente à Verdade e ao Bem. A noção de signos desencarnados, produzidos por sujeitos cuja capacidade de agir racionalmente independe de suas contingências corpóreas e de suas emoções, remonta à tradição racionalista de que Descartes é um dos precursores e está na base de discursos moderno-liberais que reivindicam uma moralidade superior à de sensibilidades nãomodernas (como as dos ditos terroristas). Problematizarei, inicialmente, a própria noção de signo que a tradição representacionista nos legou. Caminharei, em seguida, em direção a uma noção mediada de uso de signos no mundo, que se situa em franca oposição à possibilidade de espelhamento em que essa mesma tradição se situa. Finalmente, discutirei dados da investigação que tenho realizado sobre a representação do Nordeste na mídia brasileira (cf. Silva, 2010) e que testemunha esse movimento da representação entre a mediação semiótica e a violência na linguagem. Signos e representação Nas Investigações Filosóficas (doravante, IF), Wittgenstein denuncia um modo dominante de falar sobre um conceito em Filosofia – a essa forma tradicional de conceituar ele dá o nome de “sublimação filosófica”. Do mesmo modo que no

mundo físico, onde a sublimação consiste na transformação de matéria no estado sólido para o estado gasoso, a sublimação de um conceito consiste, segundo Wittgenstein, na perda da concretude do corpo na atividade de conceituar, algo que se dá em nome de um certo apontar abstrato ou espiritual. Quando “não podemos especificar nem mesmo uma ação corpórea a que chamamos apontar para a forma”, denuncia Wittgenstein, “dizemos que uma atividade espiritual [mental, intelectual] corresponde a essas palavras” (IF, §36, colchetes e grifo de Wittgenstein). Quero argumentar que os modos de pensar a linguagem que herdamos da tradição insistem nesse apontar espiritual, uma forma de sublimação filosófica que comparece em muitos argumentos de cunho “racional” ou “secular”. Espero demonstrar aqui que a desconstrução dessa forma sublimada de pensar a linguagem vai ao encontro de um princípio importante da filosofia wittgensteiniana, segundo o qual “o corpo humano é a melhor figura da alma humana” (IF, p.152e). Dito de outro modo, em vez de esquecermos a concretude do corpo (e, sobretudo, das práticas sociais que acompanham, desde sempre, a ação desse corpo) na reivindicação do modo como compreendemos e significamos o mundo, precisamos tomar a concretude e a materialidade de nossas práticas simbólicas (Keane, 2005) para a reivindicação de qualquer alma ou de qualquer significação. Encontramos certamente em Descartes o cerne da concepção sublimada de filosofia – aquela que, na seara da reflexão sobre a linguagem, fundamentará a elaboração da célebre Gramática de Port-Royal, publicada em 1660 por Antoine Arnauld e Claude Lancelot. A separação entre mente e corpo é cara à filosofia cartesiana. A crença de Descartes era a de que nossas experiências e sensações são tão fugidias e fragmentadas que não seriam capazes de ser a base de uma mente substantiva e essencial. Tanto é que Descartes atribui ao cogito, isto é, à nossa capacidade de raciocinar a garantia de nossa existência. As ideias, na visão cartesiana, têm naturezas verdadeiras e imutáveis. Assim, por exemplo, quando imagino um triângulo, embora talvez possa não existir uma figura assim em nenhuma parte do mundo fora do meu pensamento, nem jamais ter existido, ainda assim a figura não pode deixar de ter uma certa natureza determinada... ou essência, que é imutável e eterna, que não inventei e que não depende de maneira nenhuma da minha mente (Descartes, apud Gardner, 1996, p.64, grifos meus).

Essa res cogitans – a mente –, em oposição à res extensa – o corpo –, tem portanto uma natureza imaterial e guia o homem em sua capacidade racional de decidir. O pensamento cartesiano é um caso prototípico do fundacionalismo e essencialismo em filosofia. A crença fundacional é justamente a de que há categorias universais, no pensamento ou na mente, que são anteriores e independem das contingências de nossas práticas sociais e culturais (Martins, 2002) – ou, nos termos de Descartes, de nossas sensações e experiências tão fragmentadas e fugazes. A essência de uma categoria matemática como um triângulo não “depende de maneira nenhuma de minha mente”. Ou seja, as categorias do pensamento são essenciais e fundacionais, independentes do corpo. A concepção dualista de signo que Arnauld e Lancelot proclamam em seu famoso estudo ampara-se nessa separação racionalista entre mente e corpo. Na concepção clássica de signo, tem-se uma parte imaterial (o significado, na terminologia saussuriana) e outra material (o significante, nessa mesma terminologia), que, a exemplo de mente e corpo, se unem por meio de uma força misteriosa (Lahud, 1977). A espiritualização na concepção de signo acontece na medida em que se eleva sua contraparte imaterial ao status de franca representante da capacidade superior e unicamente humana de “representar”. Vejamos como os gramáticos de Port-Royal elaboram o lugar da união, na faculdade de representar, entre um elemento material e outro imaterial: Até aqui consideramos na fala apenas aquilo que ela tem de material, e que é comum, pelo menos quanto ao som, aos homens e aos papagaios. Resta-nos examinar o que ela tem de espiritual, que faz uma das maiores vantagens do homem sobre todos os outros animais, e que é uma das maiores provas da razão: é o uso que dela fazemos para significar nossos pensamentos, e essa invenção maravilhosa de compor a partir de 25 ou 30 sons essa variedade infinita de palavras, as quais não têm nada nelas mesmas de semelhante àquilo que se passa em nosso espírito, mas que nem por isso deixam de revelar aos outros todos os segredos desse último e de transmitir àqueles que nele não podem penetrar tudo o que conhecemos, e todos os diversos movimentos de nossa alma. Assim, pode-se definir as palavras: sons distintos e articulados, dos quais os homens fizeram signos para significar seus pensamentos. (Arnauld e Lancelot, apud Lahud, 1977, p.28-29)

O excerto acima, que é uma instanciação, nas palavras de Lahud, da “maior parte, se não [da] totalidade, da reflexão linguística do classicismo”, nos ensina que o caráter material e corpóreo da linguagem nada tem de especial. Afinal, compartilhamos desses mesmos sons materiais com os papagaios. O que distingue nossa capacidade superior de representar, segundo os gramáticos em questão, e que constitui nossa vantagem “sobre todos os outros animais”, é a capacidade de articular essas unidades materiais de modo a comunicar pensamentos. Tais pensamentos, por sua vez, são substanciais e superiores, contrariamente aos sons, tão inferiores que podem ser emitidos inclusive por outros animais. Eis a espiritualização da capacidade de comunicar. Parte-se da contingência corpórea e primitiva do som para a função superior de representar, isto é, espelhar, espiritualizar, sublimar. Em Saussure, esse saber sobre a linguagem que separa o caráter ideacional da significação de sua contraparte física eleva-se ao status de científico. Na teorização sobre o signo, a radical separação do signo ideacional do mundo material constitui “um dos legados mais duráveis” do Curso de Linguística Geral (doravante, Curso) de Saussure (Irvine, 1989, p.248). Como é sabido, Saussure reconhece o caráter social da língua. Mas é precisamente sua adesão a pressupostos sublimadores (para usar a metáfora wittgensteiniana) que o faz, de um lado, distinguir a langue (a língua como elemento exterior ao sujeito e como ideal, abstração) da parole (o lado material da comunicação linguística, interior ao sujeito, a fala) e, de outro lado, elevar a langue ao estatuto de objeto da linguística, em detrimento da parole. Esta última, por sinal, a exemplo da assimetria na dicotomia mente/corpo, é desprezada, uma vez “que é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor” (Curso, p.21). A soberania do sujeito sobre o próprio corpo ou, na reflexão saussuriana, sobre a própria fala é bastante sintomática da forma mesma como o sujeito é idealizado nessa tradição que pretendo desconstruir. Formulações como as de Foucault, para quem “não se tem o direito de dizer tudo, (...) não se pode falar tudo em qualquer circunstância, (...) qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa” (1999[1970], p.9) ou de Judith Butler (1997, p.15), para quem a fala “está sempre, de algum modo, fora do controle” situam o sujeito que fala numa posição desafiadora dessa soberania do falante saussuriano. Saussure parte de uma ética sublimada de acordo com a qual o sujeito toca sua própria consciência – ou, já que estamos tratando de comunicação, a consciência de um falante toca a consciência do outro. É exemplar,

a esse respeito, o modo como o linguista suíço representa o “circuito da fala” (Figura 1).

Figura 1 – Circuito da fala, Curso, p. 19

O famoso desenho acima, que Saussure utiliza em suas explicações iniciais sobre a natureza descontextualizada e abstrata da langue, ilustra a comunicação facea-face de dois falantes. Embora sejam corpos o que se enxergue na ilustração, não é a contingência do corpo e sua vinculação aos processos do corpo, tais como pertencimento geográfico, político ou racial, que comparece em sua explicação do circuito da fala. Pelo contrário, trata-se precisamente da comunicação de consciências, responsáveis pela tarefa de representar. Nas palavras do próprio Saussure, O ponto de partida do circuito se situa no cérebro de uma [das pessoas], por exemplo A, onde os fatos de consciência, a que chamaremos conceitos, se acham associados às representações dos signos linguísticos ou imagens acústicas que servem para exprimi-los. (Curso, p.19)

Essa comunicação de “fatos de consciência, a que chamaremos de conceitos” é o cerne do legado durável de Saussure a que se refere Irvine e que reatualiza a divisão cartesiana entre res cogitans e res extensa. Na versão saussuriana, aquela dá lugar à língua e esta, à fala. A língua, nessa visão, é de natureza imaterial e “não constitui (...) uma função do falante; é o produto que o indivíduo registra passivamente”

(Curso,

p.22).

Recebendo

“passivamente”

essa

propriedade

desencarnada, o sujeito, na mais franca atitude liberal, representa o mundo, transparentemente,

a

partir

da

fala,

“um

ato

individual

de

vontade

e

inteligência”(id.ibid.). O legado de Saussure consiste, então, na crença de que a faculdade de representar depende de signos ideacionais que, apesar de terem uma contraparte

corpórea, superam a contingência do corpo ao se sublimarem num sistema exterior aos indivíduos. A estranha ligação entre significado e significante, aliás, seria produto desse sistema diferencial – não um trabalho social. Saussure e a tradição representacionista que reatualiza seu legado insistem nesse mistério, numa instância exterior aos indivíduos, que promoveria a colagem das duas partes do signo. Como todo mistério, trata-se de algo invisível e nebuloso, carente de corpo. Nos termos de Lahud (1977), Saussure delega o mistério da significação – isto é, por que o tecido social vem a empregar certos significantes para falar de certos significados? – à psicologia social, cabendo a ela “e apenas a ela, resolver” (p.35). Nas palavras do autor, Percebe-se, portanto, que o que garante a comunicação linguística é essa exterioridade social e coercitiva da língua que elimina, no momento da decodificação dos enunciados, todas as marcas individuais da atividade expressiva dos sujeitos. Mas como essas representações se imprimem na “consciência coletiva” dos falantes, impondo-se assim a todos os membros da comunidade? Quais os mecanismos responsáveis por essa cristalização nos “cérebros” dos indivíduos? Mistério... (Lahud, 1977, p. 35)

Nos termos da lógica do Curso de Linguística Geral, o mistério da comunicação teria de ser respondido, pois, por uma compreensão durkheimiana de fato social. Caberia então à sociologia e não à linguística a resposta a essa misteriosa articulação entre significado e significante. Esse modo dicotômico de pensar a significação permanece – de forma hegemônica – no pensamento sobre a linguagem. É importante lembrar que Chomsky também julga ser misterioso o fato de sermos capazes de dominar “um sistema de regras que relaciona sons e significados de um modo definitivo” já nos primeiros anos de vida (2006, p.91). Insatisfeito com a contingência e a fragmentação de nossa experiência linguística, Chomsky, numa evidente postura platônico-cartesiana, atribui “ao estudo abstrato da competência lingüística” a verdadeira tarefa da linguística (p.99). A visão sublimada de linguagem de Chomsky o faz defender que “permanecemos tão incapazes como nunca de entendermos o problema central da linguagem humana” (p.88) – isto é, por que somos capazes de produzir sentenças infinitas a partir de um conjunto finito e fragmentado de experiências. Nesse sentido, estamos diante, nos termos do linguista americano, de uma “misteriosa habilidade” (id.ibid.). Nos termos da lógica gerativista, caberia a uma psicologia de ordem

biológica explicar essa estranha ligação entre competência e performance. Afirma Chomsky: Vista desse modo, a Linguística é simplesmente uma parte da psicologia humana: o campo que procura determinar a natureza das capacidades mentais e como essas capacidades são colocadas em funcionamento. (Chomsky, 2006, p.90)

Nessa breve incursão nos pilares do pensamento sobre a linguagem da tradição representacionista, fica evidente que temos uma herança dicotômica e sublimada diante de nós. Na medida em que consistem em teorias hegemônicas e poderosas, não restam dúvidas de que somos constantemente levados a ver a linguagem e o mundo por essas lentes. Gostaria, não obstante, de perguntar quais os ganhos teóricos e políticos de uma visão de linguagem e mundo que desconfie de um “fundo” motivador das contingentes formas linguísticas com as quais dizemos as coisas. Em outras palavras, e se os significantes e corpos que temos, para além de representação (como espelhamento) do real, fossem vistos como as ferramentas com as quais construímos o universo simbólico ao nosso redor? Conhecimento é prática social Os empreendimentos saussuriano e chomskyano e o seu legado para o pensamento moderno sobre a linguagem são, assim, uma retomada do fundacionalismo de Descartes. É como se houvesse, nas premissas desse pensamento, a possibilidade de uma totalização a priori da língua, algo que o sujeito, tomado por algum mistério de ordem social (na visão saussuriana) ou biológica (na visão chomskyana), vem a atualizar na atividade individual e soberana da fala. É essa mesma crença fundacional ou essencialista, segundo a qual a língua ou conhecimento ou as categorias do pensamento independem do trabalho do sujeito, que motiva a ideia de linguagem como representação. Rorty (1994) nos alerta para a visada de Wittgenstein. Nos termos de uma filosofia ultra-pragmática e, portanto, nãoessencialista como é a wittgensteiniana, “a noção de conhecimento como representação acurada, tornada possível por processos mentais especiais e inteligível através de uma teoria geral da representação, deve ser abandonada” (Rorty, 1994, p.21). Em vez de olhar para a natureza transcendental da língua, algo a que os sujeitos

teriam acesso por meio de alguma misteriosa habilidade, o convite aqui é que se parta da “superfície”, isto é, das práticas culturais, as quais acontecem numa arena ao mesmo tempo temporal e social. O conhecimento, em especial o conhecimento da linguagem, prescinde de uma preocupação com exatidão de representação (Rorty, 1994, p.176). Procurar por uma langue ou por quaisquer outras categorias transcendentais, a-históricas e universais que motivem o modo como dizemos o mundo é incorrer no grosseiro equívoco da sublimação filosófica que Wittgenstein veementemente denuncia. O conhecimento é antes uma questão de conversação e prática social (Rorty, 1994; Marcuschi, 2002). Ao falar, em vez de espelhar a natureza, tomamos uma posição diante da natureza. Pensar na possibilidade de espelhar a natureza – uma reivindicação que acompanha diversos discursos de ordem “racional” – é ignorar a realidade mediada de nosso acesso ao mundo. É por meio de jogos de linguagem que somos capazes de conhecer o mundo. Praticamos tais jogos de linguagem com nossos corpos. A recusa do espelhamento do mundo e do caráter imaterial da significação, nos termos de uma visão pragmática, significa que o cerne da significação é o visível ou o audível. Não falamos porque espelhamos significados transcendentais, nossas palavras não são a instanciação de princípios inatos programados em nossos cérebros. A “alma” da significação não é, portanto, uma entidade imaterial que “licencia” o corpo da fala. A figura da alma é a própria figura corpo, como anuncia Wittgenstein. Mediação semiótica Iniciei este capítulo argumentando que discursos racionalistas e liberais, muito comumente, ao criticarem subjetividades subalternas ou marginais, clamam por uma representação transparente, por um espelhamento do real. Mostrei na seção seguinte que esse espelhamento se alinha à espiritualização ou sublimação filosófica – um modo de pensar a linguagem na tradição filosófica que, em última instância, é um dos pilares em que esses mesmos discursos racionalistas e liberais se sustentam. Essa visada filosófica, que grosseiramente rotulo aqui de “cartesiana”, carrega em seu intuicionismo a postulação da “existência de uma cognição não-mediada (portanto, não-semiótica)” (Parmentier, 1985:35). Gostaria de discutir nesta seção um modo de entender a significação que é radicalmente contrário a essa possibilidade “não-

mediada” de conhecer. Refiro-me ao que Lúcia Santaella (2004) tão sinteticamente condensa no título de seu livro, o Método Anticartesiano de Charles S. Peirce. Tal visada anticartesiana, vale ressaltar, pode nos ajudar não apenas a perceber formas não-dicotômicas e não-sublimadas de pensar a linguagem, mas também a entender como os signos funcionam, nesses mesmos argumentos liberais, de forma a dissimular a materialidade e a própria violência na designação do Outro, especialmente aquele que representa a raça, a região ou o gênero que não se quer habitar. Peirce assume que o signo envolve uma relação triádica entre um representamen, um objeto e um interpretante. O representamen é o signo como veículo, algo, nos termos de Peirce, “que significa algo para alguém em algum respeito ou capacidade” (1955, p.99). O representamen, segundo Peirce, é interpretado nos termos de outro signo; em outras palavras, o representamen cria “na mente da pessoa um signo equivalente, talvez um signo mais desenvolvido” (id.ibid.). A esse tipo de ato cognitivo, ele mesmo um signo, Peirce dá o nome de interpretante. O signo, além disso, significa algo, o que Peirce chama de objeto: “ele significa aquele objeto, não em todos os respeitos, mas em referência a um tipo de ideia, que eu frequentemente tenho chamado de fundamento [ground] do representamen” (id.ibid.). Um aspecto importante dessa visão tricotômica do signo é que não há a possibilidade de díades separadas no processo de significação: por exemplo, representamen e interpretante – dois aspectos do signo que, grosso modo, corresponderiam a significante e significado na visão saussuriana – não se relacionam sem a “presença” de um terceiro, nesse caso, um objeto. Peirce é enfático a respeito da inseperabilidade dos elementos da tríade: “[a] relação triádica é genuína, isto é, seus três membros estão atrelados uns aos outros de modo a não haver lugar para nenhum complexo de relações diádicas” (p.100, grifo do autor). Se a hipótese que mencionei acima – de uma imagem acústica ou representamen e um conceito ou interpretante se unirem sem a presença de um objeto – é de partida descartada na lógica peircena, isso quer dizer que a atividade de significar, isto é, de usar um signo, é, conceitual e praticamente, uma forma mediada de agir no mundo. Um Terceiro (interpretante) está sempre entre um Primeiro (representamen) e um Segundo (objeto), formando uma tríade genuína, isto é, que não se divide em dicotomias. Nos termos do vocabulário que venho criticando neste capítulo, podemos dizer que a união de uma

forma “física” (como uma imagem acústica ou um representamen) e uma forma “espiritual” (como um conceito ou um interpretante) não se dá sem a inelutável presença de um terceiro. No modelo de significação de Peirce, a relação genuína estabelecida entre os três membros da tríade do signo aponta para uma semiose infinita. Dito de outro modo, ao significar, o signo requer sempre um terceiro, que por sua vez forma outra tríade, e “assim infinitamente” (p.100). Gostaria aqui de propor uma aproximação entre essa “série infinita de estados de ‘diálogo’ mental (...) e interação com objetos” (Parmentier, 1985, p.24) com a noção de différance desenvolvida por Derrida (1997[1967]). Segundo o filósofo franco-argelino, o signo nos promete uma “presença” que, no entanto, só se dá como promessa. O signo está no lugar de uma coisa sobre a qual falamos e, assim, temos a ilusão de que o signo traz até nós o objeto. Mas, submetido do jeito que é a cadeias de diferença (ou, nos termos de Peirce, a um terceiro signo), o signo só consegue significar porque difere – aqui Derrida utiliza-se de uma inferência semântica: differer em francês significa tanto diferenciar(-se) como adiar, o mesmo ocorrendo em português. Ou seja, o signo, por sua entrada numa cadeia diferencial, é para sempre adiado como pura presença. O pensamento da différance é, assim, uma forma de entender a mediação semiótica. Tanto é que Derrida parte de autores igualmente anticartesianos, desconstrutores da metafísica, como Heidegger, Nietzsche e Freud, para formular esse conceito sob rasura1. Gayatri Spivak, em sua introdução à Gramatologia para o inglês, comenta que, nos termos da leitura derridiana de Freud, noções como percepção e temporalidade assumem funções de uma escrita cujos “traços no aparato psíquico impedem qualquer possibilidade de percepção imediata” (Spivak, 1997[1974]: xliii, ênfase acrescida). A própria grafia do conceito (différance), em que um ‘a’ é erroneamente grafado em lugar do ‘e’, marca o adiamento – e portanto a mediação como impossibilidade de pura presença – que estamos tratando aqui. “O ‘a’ serve para nos lembrar que, mesmo dentro da estrutura gráfica, a palavra perfeitamente grafada é para sempre ausente, constituída por uma série infinita de erros de grafia” (id.ibid.).                                                                                                                 1

Sob rasura (sous rature) é uma marca de uma escrita que, apesar de sua inexatidão, se faz necessária. Comenta Spivak (1997[1974]:xiv) que, nos termos de Derrida, colocar sob rasura é “escrever uma palavra, riscá-la e exibir tanto a palavra como seu apagamento. (Uma vez que a palavra não é acurada, ela é riscada. Uma vez que é necessária, permanece legível).”

Peirce procede a uma complexa classificação de signos em tricotomias. Para os propósitos deste texto, debruçar-me-ei na segunda tricotomia de signos, segundo a qual os signos são classificados de acordo com a relação que estabelecem com o objeto. Assim, um signo pode partilhar de uma semelhança física com seu objeto (ícone), pode ter sido, contextualmente, afetado pelo objeto (índice) ou pode se conectar com o objeto por alguma lei ou convenção (símbolo). Segundo Peirce, o ícone é um signo que possui “iconicidade” mesmo que o objeto seja destruído. Assim, um gráfico que exiba a relação velocidade x tempo de um automóvel, em que as partes do gráfico-como-signo são construídas de acordo com o movimento do automóvel, continuaria sendo um gráfico mesmo sem a existência de um automóvel representado. Obviamente, esse desaparecimento do objeto é apenas hipotético, uma vez que, como acabamos de discutir, o signo, na lógica peirceana, impede qualquer possibilidade de dicotomia. O índice, nos termos de Peirce, “é um signo que se refere ao Objeto que denota pelo fato de ter sido afetado pelo objeto”(1955, p.102). Uma pegada, por exemplo, é um símbolo na medida em que foi afetada pelo pé que a transformou em signo – ambos, representamen e objeto, necessariamente, partilharam de uma contiguidade contextual. Peirce aventa a hipótese de que um índice continuaria sendo um índice mesmo que o interpretante não existisse, mas não sem a existência do objeto. O símbolo, por seu turno, é aquele signo que não existiria sem um interpretante – o símbolo adquire sua “simbolicidade” por uma lei e precisa ser cognitivamente reconhecido como signo a partir de uma convenção. “Todas as palavras, sentenças, livros e outros signos convencionais são símbolos” (Peirce, 1955, p.112). Poder-se-ia supor que o movimento de Peirce nessa classificação de signos – da similaridade e contiguidade entre signo e objeto (presentes no ícone e no índice, respectivamente) para a genericidade (do símbolo) – seria uma forma de sublimação. Afinal, a direção seria de uma materialidade visual e espaço-temporal para uma espiritualidade. No entanto, não somente Peirce rejeita os postulados cartesianos, nos quais se atualiza fortemente a noção de um acesso i-mediato e sublimado ao real, mas também a direcionalidade dessa tricotomia pressupõe um ziguezague que subverte a lógica sublimadora. Isto é, o símbolo, apesar de seu caráter genérico e descontextualizado, carrega em si, por definição, características de ambos o ícone e o índice. Os excertos abaixo de definições de Peirce são esclarecedores a esse respeito:

Qualquer coisa, seja uma qualidade, um indivíduo existente ou uma lei, é um ícone de algo, na medida em que é como a coisa e usada como signo dela. (p.102) O símbolo irá indiretamente, por associação ou outra lei, ser afetado por tais instâncias [as instâncias em que o símbolo se determina, no universo imaginário em que for possível]; assim o símbolo envolverá uma espécie de índice, embora se trate de um índice de tipo peculiar. (p.102-103)

Nesse sentido, o símbolo pressupõe iconicidade e indexicalidade em relação a um objeto, mesmo que se trate de uma iconicidade e uma indexicalidade de um certo tipo, como nos alerta Peirce. A inferência que eu gostaria de extrair, útil para uma visão crítica e não-representacionista da linguagem, é que não se pode perder de vista essa materialidade perceptivo-visual e espaço-temporal que o ícone e o índice carregam e que se disseminam para o símbolo, “as palavras, sentenças e livros” que são o reconhecido objeto dos linguistas. Os símbolos que empregamos em nossa comunicação contemporânea, altamente genérica e convencional, são situados icônica e indicialmente em contextos de uso, apesar do não incomum movimento de apagamento desse rastro contextual. Não obstante a materialidade fundamental que orienta a atividade linguística e que embasa a interessante noção de indexicalidade (e.g. Silverstein, 2003), o desreconhecimento dessa faceta material da significação é, como venho mostrando desde o início deste texto, uma poderosa estratégia racionalista, que, em última instância, legitima um violento processo de representação do Outro. José Serra e a mídia sobre as eleições 2006 Como vimos, a significação, se vista sob uma ótica pragmática e nãorepresentacionista, é eminentemente material e situada. Nosso acesso ao mundo se dá pela inelutável mediação de signos. No entanto, alguns discursos insistem em que a significação é precisamente o oposto disso. Os significados seriam, assim, unívocos e transparentes, o que, conforme discutimos, é endossado por uma visão sublimada da significação. Pretendo discutir aqui que essa visão sublimada, ao insistir num espelhamento do mundo pelo discurso e, assim, escamotear a feição material e mediada do uso da língua, efetua uma forma de violência. Nos termos de Judith Butler, é exatamente a

partir de um acúmulo e de uma dissimulação de condições históricas que o discurso que fere adquire sua força de ferir (1997:51-52). Vejamos esse funcionamento no contexto da polêmica afirmação de José Serra, em sua então campanha a governador de São Paulo em 2006, sobre as causas do mau desempenho de São Paulo no Exame Nacional da Educação Básica (Saeb). No dia 16 de agosto de 2006, José Serra, em entrevista à SPTV, rede afiliada da Rede Globo no interior de São Paulo e sul de Minas, relacionou o baixo rendimento dos estudantes de São Paulo no Saeb às intensas migrações para o Estado. Eis o destaque dado a essa fala no jornal Folha de S. Paulo, na seção Frases de 18 de agosto de 2006: PROBLEMA     Diferentemente   dos   Estados   do   Sul,   que   são   os   que   têm   melhor   situação   [nos   exames],   São   Paulo   tem   muita   migração.   Muita   gente   que   continua   chegando,   este   é  um  problema       JOSÉ  SERRA     candidato  do  PSDB  ao  governo  do  Estado  de  São  Paulo,  ontem  na  Folha  

Após a divulgação da entrevista de Serra, instaurou-se uma polêmica na mídia. A oposição imediatamente associou o dizer à histórica migração nordestina e o utilizou em sua campanha contra José Serra. O então candidato do PSDB, poucas horas depois, tentou reformular seu dizer, como informa O Globo: À   tarde,   o   candidato   tucano   tentou   amenizar   o   que   dissera   afirmando   que   São   Paulo   é   um   estado   muito   mais   dinâmico   em   relação   à   migração,   o   que   ampliou   muito   as   exigências   do   ensino.   (“Serra   continua   sendo   alvo   dos   petistas   em   programa  eleitoral”,  O  Globo,  17/08/2006)  

A “guerra” em torno da polêmica afirmação de Serra, de acordo com o vocabulário que estamos discutindo no presente capítulo, pode ser resumida do seguinte modo: (1) José Serra e seus partidários, ao perceberem que a declaração havia se tornado, imediatamente, uma ofensa contra os nordestinos, trataram de defender uma visão representacionista da linguagem, segundo a qual o dizer do candidato “reflete uma análise das características do ensino em SP” (Site de José Serra, Folha de S. Paulo, 18/08/2006)

(2) Aloizio Mercadante e a oposição petista insistiram no caráter situado do signo “migrante”; usar o símbolo “migrantes” em São Paulo iconiza o movimento histórico de trabalhadores do Nordeste ao longo do século XX para o Sudeste; além disso, esse símbolo indicia um conjunto de estereótipos e preconceitos em torno desse ‘migrante’ (por exemplo, a já cristalizada imagem do retirante nordestino migrando no caminhão pau-de-arara). No excerto da reportagem “Lula acusa os tucanos de ‘vomitarem’ preconceito” (21/10/2006), que reproduzo abaixo, temos um exemplo de como o argumento representacionista e, portanto, violento da Folha de S. Paulo se desdobrou:

Figura 2 – Folha de S. Paulo, 21/10/2006

O próprio titulo do apêndice (“[+] saiba mais”), “Serra não citou nordestinos em entrevista”, já é uma negação da feição icônico-indicial das palavras de Serra. Ou seja, o jornal, em sua “explicação” ao leitor, desreconhece, de um lado, a profunda ancoragem desse dizer no contexto histórico da migração nordestina para São Paulo (isto é, sua indexicalidade) e, de outro, o caráter icônico do termo migrante, sinônimo, por exemplo, de ‘retirante’, um termo que não se aplica a outras subjetividades regionais a não ser as nordestinas. Além desse desreconhecimento, Folha transfere o preconceito para o PT, remetendo os leitores, no último parágrafo, às eleições municipais de 2000. Ali o jornal topicaliza o nome de Lula (“o próprio Luiz Inácio

Lula da Silva”) e usa o verbo “flagrar” nessa construção gramatical. Assim, se “o próprio Lula que acusa foi flagrado” é porque tinha intenção, ao contrário de Serra, que “sequer citou a origem dos migrantes”. O jornal está, nesse sentido, mediando a fala de José Serra. Essa mediação se dá por uma certa seleção de recursos linguísticos e pela indicação de como esses recursos linguísticos devem ser interpretados. Estou aqui me referindo a uma forma específica de entender a mediação semiótica. Trata-se do recente conceito de ‘comunicabilidade’, proposto pelo antropólogo Charles Briggs (2007). Utilizando o vocabulário de Briggs, podemos afirmar que a Folha de S. Paulo constrói um mapa interpretativo que determina uma metapragmática específica para o modo como a fala de José Serra deve ser interpretada2. Assim, de acordo com a notícia em questão, “[e]mbora o tucano não tenha citado a origem da migração, o PT explorou a frase como demonstração de preconceito contra nordestinos” (grifos meus). Em outras palavras, Mercadante, nos termos da Folha, transformou as palavras de Serra em algo que elas não seriam, um ataque aos nordestinos. O termo ‘migrantes’, de acordo com essa construção metapragmática, não espelharia o termo ‘nordestinos’. A metapragmática do discurso é um fator central para a construção desses mapas interpretativos que, em última instância, guiam nossos modos de caminhar e enxergar certo lugar. A mediação semiótica é uma ponte para nosso acesso ao possível. “A comunicabilidade”, nos termos de Briggs (2007:332), “sugere que o discurso público posiciona precisamente a pragmática à vista do público – imaginando sua própria emergência de modo seletivo e estratégico”. Essa construção metapragmática não é inocente nem inócua. Pelo contrário, essa metapragmática “torna algumas dimensões visíveis e as interpreta de certos modos, apaga outros e projeta as subjetividades, relações sociais e formas de agência requeridas para circulação e recepção” (ibid.:332-333). Assim, nessa construção ideológica e metapragmática, a Folha de S. Paulo funciona exatamente como uma media – interpondo-se entre leitor e “fato”, determinando modos de ver e entender. Ao recontextualizar o discurso de Serra, a                                                                                                                 2

Emprego o termo ‘metapragmática’ nos termos que a Antropologia Linguística dele se vem utilizando (Silverstein, 2003; Briggs, 2007; Signorini, 2008). Não se trata de ir além da pragmática (o que seria impossível), mas de se debruçar, na interação, sobre a pragmática da interação mesma. Os usuários da língua estão constantemente falando sobre o próprio dizer e sobre os modos como se usa esse dizer. Pragmática e metapragmática são indissociáveis: “a pragmática, o modo como os signos são posicionados no mundo, anda de mãos dadas com a metapragmática, o modo como os signos representam o seu próprio estar-no-mundo” (Briggs, 2007:332).

Folha insiste numa visão representacionista da linguagem – de forma a colocar uma máscara constativa na constitutiva performatividade do dizer (cf. Austin, 1975[1962]). O jornal, no dia 18/08/2006, divulga uma notícia sobre o desrespeito do PT a um acordo com a Rede Globo, que reproduzo abaixo:

Figura 3 - Folha de S. Paulo, 18/08/2006

  Ao fim da notícia, a Folha cita um pronunciamento no site de José Serra. Tendo em vista que a citação conclui o texto da notícia, seu funcionamento nessa mediação ideológica visa, sobretudo, a reforçar a metapragmática representacionista e constativa segundo a qual o jornal “representou” o dizer de José Serra. Assim, “a resposta [de Serra] reflete uma das características da rede estadual de ensino” (grifo meu). Ou seja, o proferimento de Serra deveria ser visto tão-somente como um enunciado constativo, algo que descreveria um estado de coisas pré-existente e independente da linguagem que o nomeia. Além disso, a pura e inocente fala constativa de Serra “bastou para que o PT distorcesse os fatos e mentisse”. A performatividade, por outro lado, estaria na fala do PT, que “distorce fatos e mente” (grifo meu).

A ideologia da assessoria de imprensa de Serra, aparentemente endossada pelo jornal, é a de que o falante racional e moderno embala um significado unívoco no significante, enquanto o falante pré-moderno engana e mente ao enxergar multiplicidade nesse significado. Tal ideologia alinha-se a um dos fundamentos da epistemologia linguística da modernidade, a saber, o pensamento de John Locke (Bauman & Briggs, 2003:29-69). Conforme comentam Bauman & Briggs, Locke procura estabelecer a linguagem como um fundamento seguro para a construção da modernidade ao purificá-la, isto é, livrá-la de sua dependência do contexto e da sociedade. “Purificar a linguagem da sociedade envolveu [para Locke] um processo complexo de redefinir a linguagem de tal modo que a sua vinculação ao social poderia ser interpretada como periférica, patológica ou suprimível, o que implicava, ao mesmo tempo, que um núcleo purificado poderia ser elevado ao status do modo privilegiado de gerar conhecimento” (p.36). Esse “núcleo purificado” consiste justamente numa língua absolutamente convencional e arbitrária, independente de relações contextuais, históricas ou afetivas. A assessoria de imprensa de Serra, nas palavras citadas pela Folha de S. Paulo, itera o modo como Locke condenou a polissemia das palavras. O filósofo inglês chama isso de “evidente engano e abuso”: O estabelecimento de uma rígida correspondência um-para-um entre som e significado é, de acordo com Locke, requisito para a comunicação: “É evidente engano e abuso, quando eu faço [as palavras] significarem em um momento uma coisa e noutro momento outra coisa” (Locke, John, An Essay Concerning Human Understanding, apud Bauman & Briggs, 2003:37)

Se é a materialidade dos contextos em que é enunciada que confere à linguagem sua eminente feição icônico-indicial (portanto, pragmática), a Folha de S. Paulo tenta conter esse caráter material e situado ao insistir numa ideologia modernista segundo a qual a fala é o produto de uma mente racional, livre de contexto e, principalmente, livre da história e da memória das palavras. Para encerrar, é oportuno apontar que, em sua atual campanha a presidente, José Serra lança seu discurso de candidato atribuindo aos seus adversários de esquerda a visão de que ele estaria tentando “dividir o Brasil entre pobres e ricos” (“Serra acusa PT de dividir o Brasil e cultuar impunidade”, Folha de S. Paulo, 11/04/2010). A Folha de S. Paulo cita as palavras de Serra: "É deplorável que haja gente que, em nome da política, tente dividir o nosso Brasil. Não aceito o raciocínio

do nós contra eles. Não cabe na vida de uma nação". O jornal se refere a oposições que Serra faz entre “nós contra eles”, “pobres e ricos” e “Sul contra Norte”, as quais não estariam presentes em sua ação política; isso seria a representação falsa do PT. Note-se que o movimento aí não é diferente do que se dá na sublimação de um conceito: a afirmação que fez Serra sobre o dito papel dos migrantes no mau desempenho da educação paulista – um uso material da língua, que testemunhou sua atitude diante do Nordeste e da educação pública de São Paulo – dá lugar, em seu discurso de campanha quatro anos depois, a oposições uma forma espiritualizada, como “pobres e ricos”. O próprio jornal, na mesma edição, publica uma notícia sobre a educação pública em São Paulo, que “continua ruim [...] provavelmente devido à maior inclusão de alunos de baixa renda” (“Educação melhorou um pouco, mas continua ruim”, Folha de S. Paulo, 11/04/2010). Ou seja, a associação anterior entre migrantes e desviantes é completamente apagada ou espiritualizada, em nome de uma vaga referência à pobreza. Uma língua puramente arbitrária e convencional, como almejava Locke e a tradição representacionista que o seguiu, só é possível pela exclusão de sua inelutável ancoragem em contextos materiais de uso. Resta-nos a tarefa crítica de entender a violência que emerge no apagamento desse rastro icônico-indicial. Referências bibliográficas Asad, Talal (2007) On suicide bombing. Nova York: Columbia University Press. Austin, John (1975 [1962]) How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press. Bauman, Richard & Charles Briggs (2003) Voices of Modernity. Language ideologies and the politics of inequality. Cambridge: Cambridge University Press. Briggs, Charles (2007) Anthropology, interviewing, and communicability in contemporary social life. Current Anthropology, 48(4):551-580. Butler, Judith (2009) Frames of war. When life is grievable? Londres & Nova York: Verso. Butler, Judith (1997) Excitable speech: a politics of the performative. London and New York: Routledge.

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