A Restauração na Bahia: querelas entre um Bispo e um Governador na década 1640

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A Restauração na Bahia: querelas entre um Bispo e um Governador na década 1640 Camila Teixeira Amaral1      

Primeiro governador nomeado pela dinastia brigantina para administrar o Brasil, Antonio Telles da Silva chegou a Salvador em 1642 trazendo consigo uma vasta experiência militar. Descendente de umas das famílias mais ricas de Portugal e típico filho secundogênito, ele deixou a carreira eclesiástica para seguir o caminho das armas. Participou da armada que veio à Bahia em 1625 para lutar contra os holandeses e dez anos depois partiu em uma jornada para Índia2 e em 1640 fez parte da aclamação de Dom João IV, lutando no Paço ao lado de outros restauradores.3 Chegou na cidade da Bahia em Agosto de 1642 focado principalmente nas questões militares e de defesa do território ocasionadas pela presença dos holandeses em Pernambuco e as constantes investidas em outras partes da costa nordestina. Nesse sentido, tão logo chegou na Bahia e observou sua defesa bastante vulnerável, Telles da Silva tratou de fazer objeção ao desejo da coroa de manter apenas dois mil homens na guarnição da cidade. Afirmou que mesmo que fossem dois mil homens em atividade na Praça da Bahia seriam necessários os três mil, para casos de doenças e impedimentos, e também porque grande parte atendia às outras partes da capitania.4 Há muitos exemplos que denotam os esforços de Telles da Silva em favor da defesa do Brasil, e principalmente o Nordeste, Salvador e seu recôncavo. Evaldo Cabral de Mello narrou a participação ativa do governador na guerra contra os holandeses em Pernambuco 5 . Segundo ele, Telles da Silva foi responsável por articular um levante contra o inimigo, e seu sucesso militar o manteve no posto após o fim do seu triênio.6 Após essa breve e necessária introdução contextual é possível afirmar que no que diz respeito à defesa do Brasil, destacadamente do Nordeste, Antonio Telles da Silva obteve algum êxito, embora as dificuldades econômicas oferecessem condições desfavoráveis. Entretanto, as suas relações com outras autoridades não foram tão zelosas.

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Doutoranda em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Bolsista da Capes, integra o projeto «Uma cidade, vários territórios e muitas culturas. Salvador da Bahia e o mundo Atlântico, da América Portuguesa ao Brasil República», financiado pelo programa CAPES-FCT (PPGH - Universidade Federal da Bahia; CHAM - Universidade Nova de Lisboa). 2 Virgínia Rau, “Fortunas ultramarinas e a nobreza portuguesa no século XVII”, in José Garcia Manuel(int. e org.), Estudos sobre história econômica e social no Antigo Regime, Lisboa, Editorial Presença,1984, p.30. 3 Cf. Luis de Meneses, Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. 1, Lisboa, Oficina de Domingos Rodrigues, 1759. 4 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 976 [23 de Setembro de 1642]. 5 Evaldo Cabral de Mello, O Negócio do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.42. 6 Idem p.48.

Sua administração foi marcada por conflitos e queixas dos seus desmandos, que serão o foco central deste texto. Já com um mês de governo, Telles da Silva reclamou dos seus predecessores ao Conselho Ultramarino. Contou ele que pouco antes de sua chegada à cidade a Câmara criou uma finta para ajudar a sustentar os soldados, que se encontravam numa situação periclitante. Porém, e sem nenhuma autorização real que permitisse tal ação, os governadores da junta provisória tomaram nove mil cruzados desta finta para seus ordenados e por tal motivo Telles da Silva tinha mandado notificá-los para que entregassem o dinheiro. O Bispo logo devolveu, mas os outros dois não seguiram o mesmo caminho.7 A questão foi pauta de mais correspondências entre o Governador e os conselhos da Coroa, mas tudo indica que só no início de 1643 a devassa foi concluída. De acordo com Affonso Ruy, o Bispo, “resguardado pelas leis canônicas”8, escapou de receber maior punição, ao contrário de Luiz Bezerra Barbalho e Lourenço de Brito Correia. O primeiro foi obrigado a deixar a Bahia (surgindo depois como governador do Rio de Janeiro), e o segundo foi preso em Lisboa.9 Contudo, se inicialmente houve uma relação amistosa entre o Governador e o Bispo, alguns meses depois o primeiro não poupou acusações ao clérigo – situação que se manteria daí pra frente. Dom Pedro da Silva e Sampaio assumiu o cargo de Bispo do Brasil em 1634 e permaneceu ali até sua morte, em 1649. Seu bispado, contudo, caracterizou-se pelas dificuldades provenientes da invasão da cidade pelos holandeses oito anos antes e a constante ameaça que eles representavam. À sua época a diocese estava numa situação bastante grave e segundo os eclesiásticos da Bahia não podiam se sustentar à base de farinha de pão com seus rendimentos.10 Também sofria o edifício da Sé, que após a invasão holandesa ficou num estado de penúria e seu saque pelos inimigos deixou-a sem prata, órgão, ornamentos, castiçais e até o livro do Coro.11 Dom Pedro da Silva foi um Bispo inegavelmente político, participando ativamente dos negócios do governo secular, sobretudo no governo provisório, em que ele predominou entre os outros dois participantes, assinando grande parte das correspondências. Mesmo antes, a propósito, ele já escrevia regularmente ao Rei sobre os mais diversos assuntos, inclusive sobre a guerra holandesa em curso. Segundo Pablo Iglesias Magalhães, o clero e os demais religiosos

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AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 970 [10 de Setembro de 1642]. Affonso Ruy, História Política e Administrativa, Salvador, Tipologia Beneditina, 1949, p. 187. 9 Idem ibid. 10 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 6, documento 682 [26 de Março de 1635]. 11 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 4, documento 474 [13 de Fevereiro de 1629]. 8

 

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funcionaram como um serviço de inteligência e contra-inteligência na guerra12 e o dito bispo não foi uma exceção, correspondendo-se com o Reino para noticiar sobre a guerra e emprestando dinheiro para as necessidades impostas pela luta contra os inimigos.13 Frei Manoel Calado do Salvador, em seu Valeroso Lucideno, tratou da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro e versou sobre a participação do prelado. Essa narrativa dá indícios da forte personalidade do Bispo e os diversos conflitos entre ele e o Governador Antonio Telles da Silva denotariam isso.14 No final de Janeiro de 1643 Telles da Silva escreveu à coroa dando notícias do Brasil. Falou sobre o estado de sua defesa, a falta de moeda e de escravos e também investiu uma denúncia contra Dom Pedro da Silva. Disse que Entre os ordenados que se pagam na folha ao Bispo deste Estado, leva cem mil réis que Vossa Majestade manda dar ao Vigário Geral de Pernambuco: leva mais duzentos mil réis cada ano que Vossa Majestade manda dar para a Sé havendo obras nela. Em tempo do Conde da Torre, se pôs dúvida a uma e outra coisa: e por se evitarem as excomunhões com que queria vir (por ter uma provisão de Vossa Majestade para ser executor de seus ordenados) se tomou por assento, que se desse conta a Vossa Majestade de que não tem ainda vindo resposta: E porque nem na Sé se faz obra alguma, nem em Pernambuco há Vigário Geral e o Bispo se fica com tudo15

No mesmo ano o Bispo também seria protagonista de duas outras contendas; em Junho durante, a procissão do Corpo de Deus, e em Agosto contra o contratador dos dízimos, Matheus Lopez Franco, que envolvia indiretamente o problema citado logo acima. Analisemos primeiramente o problema entre o prelado, a Câmara e o Governador durante a festa religiosa16. Queixosos, os camaristas escreveram: Por um grande excesso e insolência que na procissão de Corpos Christo deste presente ano fez o Bispo Dom Pedro da Silva saindo-se para fora da Sé sem dar tempo para sair a Procissão nem haver chegado a Câmara a acompanhar como é costume nem haver músicos ainda na Sé para irem nela nem gente da qualidade que convinha para levar o pálio tudo de propósito e sobre teima e por tanto que o mesmo Deão e outras pessoas eclesiásticas o advertiram que nem ainda era tempo de saírem nem havia os preparatórios convenientes para isso com tudo tomando o

                                                                                                                          12

Pablo Antonio Iglesias Magalhães, “Equus Rusus: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654)” (tese de doutorado), Salvador, PPGH-UFBA, 2010, pp.95-101. 13 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 7, documento 799 [12 de Junho de 1638]. 14 Frei Manoel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno e o triumpho da liberdade, volume 1, Lisboa, Oficina de Domingos Carneiro, 1668. 15 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1003 [31 de Janeiro de 1643]. 16 A procissão de Corpus Christi tem a data móvel, sendo sempre realizada onze dias após o Pentecostes. Criada no século XIII, logo ganhou corpo e tornou-se a mais solene de todo o Império português. Ela celebra a Divina Eucaristia, em memória ao sacrifício de Cristo, que após o Concílio de Trento constituiu o principal sacramento para os católicos. Sobre a procissão de Corpus Christi na Bahia ver Ediana Ferreira Mendes, “Festas e procissões reais na Bahia colonial (século XVII-XVIII)” (dissertação de mestrado), Salvador, PPGH-UFBA, 2011, pp. 47-51.

 

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Senhor nas mãos saiu tão antecipadamente escandalosamente que fez força com a pouca gente que havia sair a procissão com toda esta descompostura [...]17

As procissões eram organizadas, pela ordem do sagrado, da seguinte forma: eram presididas por um eclesiástico com maior dignidade em exercício, que deveria caminhar sob o pálio. Este era obrigatório se o Santíssimo Sacramento ou as relíquias do Santo Lenho fizessem parte da celebração. Primeiro estavam os instrumentos musicais, seguidos pelas irmandades, confrarias e ordens terceiras. Depois vinham os religiosos regulares e seculares, seguidos, por fim, pelos leigos.18 O festejo começava com uma missa e depois seguia com uma procissão pelas principais ruas da cidade, e foi nesta passagem da igreja para a rua que Dom Pedro da Silva protagonizou esta “vexação”. A querela, portanto, era em relação ao lugar do guião (estandarte) da Câmara no préstito. Dom Pedro da Silva, baseado numa provisão que recebera anos antes, afirmava que a bandeira deveria ir à frente de todas as cruzes. Após protagonizar esse episódio na comemoração do Corpo de Deus, Dom Pedro da Silva continuou a ser alvo das denúncias de Telles da Silva no que dizia respeito ao seu ordenado. O problema desta vez envolveu o contratador dos dízimos eclesiásticos Matheus Lopez Franco e estava, de certa forma, ligado à primeira acusação feita em Janeiro pelo Governador, de ficar com dinheiro que não o pertencia. Narrou Telles da Silva que Havendo se levantado a moeda neste Estado, e querendo o contratador Matheus Lopez Franco pagar um quartel que devia da folha eclesiástica; o Bispo lho não quis aceitar por ser no dinheiro cunhado que corria, obrigando-o sem censuras a que lho desse por cunhar. Já o tem declarado, e ameaça toda esta cidade sem interditos, e excomunhões, levado da ambição dos avanços que lhe podiam resultar; sendo eles de pouca consideração, e opinião de todas as pessoas doutas, que lhes não deve como de tudo informara a Vossa Majestade o Padre Francisco Pirez da Companhia de Jesus, que nesta ocasião envio a essa corte. A causa de o Bispo exceder em tanta demasia é uma provisão que em tempo D´El Rei de Castela se lhe passou para ser executor de seus ordenados, com poder, da qual faz estas vexações aos contratadores. E porque não haja quem por temer delas, se atreva a lançar nos dízimos, e por este respeito virá a perder muito a fazenda de Vossa Majestade me pareceu representá-lo a Vossa Majestade para que se sirva mandar considerar quanto convém que se lhe revogue a tal provisão [...]19

Os dízimos eclesiásticos foram tema de pouca atenção na historiografia brasileira. Eles eram a décima parte – ou outra porção pré-determinada – dos frutos ou dos lucros licitamente adquiridos, tributados para o auxílio do culto divino e dos ministros da

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Cartas do Senado, vol. 1, p. 18. Mendes, “Festas e procissões reais...”. pp. 82-83 19 AHU, Avulsos Bahia, caixa 1, documento 46 [21 de Agosto de 1643]. 18

 

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Igreja.20 A sua arrecadação pertencia à coroa, garantida pelo direito do padroado régio. Desse dinheiro eram pagas as côngruas do Bispo e do Cabido, bem como o ordenado dos párocos colados e as demais necessidades que existissem para a manutenção da Sé ou paróquias. Discorramos, de forma simples, sobre o processo de cobrança dos dízimos eclesiásticos. Havia um contrato, de valor estipulado pela coroa, que era posto em arrematação. Sabe-se que até 1735 todos os contratos da colônia eram rematados na Bahia e em geral eram trienais.21 Arrematado o contrato, cabia ao contratador a cobrança dos dízimos. Na Bahia, os proprietários de terra eram os principais taxados e o açúcar era o principal produto arrecadado.22 Recolhidas as décimas, os contratadores passavam à terceira etapa do processo: botavam os produtos em pregão e pagavam à Fazenda Real o valor que deviam do contrato, sendo deles o restante do lucro. Na prática nem sempre o processo se cumpriu rigorosamente e muitas vezes os contratos não eram devidamente pagos pelos contratadores. O problema ainda perduraria por mais alguns anos, apesar da insistência do governador sobre a necessidade urgente de resolvê-lo. Em 1644 Telles da Silva arrolou uma série de informações à coroa sobre as controvérsias de Dom Pedro da Silva e tornou a lembrar de que ainda não tivera resolução sobre tais casos. Ainda afirmou que o Bispo, assegurado pela provisão que tinha de executar seus ordenados “cobra por meio dela com tanta violência dos contratadores, que teve excomungado a Matheus Lopez Franco, e por este respeito, não há quem se atreva a lançar nos dízimos”. Disse também que o prelado tinha outra provisão pela qual podia confirmar nos benefícios as pessoas que ele mesmo nomeava, o que tocava aos governadores gerais por isto fazer parte da jurisdição real. Segundo o governador, Dom Pedro da Silva provia nos cargos da Sé “sujeitos incapazes de executá-los”.23 Por ordem real, na portaria de Outubro do mesmo ano, Antonio Telles da Silva ordenou ao Provedor Mor da Fazenda que arrecadasse logo os trezentos mil réis que todos os anos Dom Pedro da Silva tirava do ordenado do Vigário de Pernambuco e do dinheiro para as obras da Sé. 24 Dessa forma, Sebastião Parvi de Brito emitiu um despacho ordenando que o Bispo                                                                                                                           20

Dom Oscar de Oliveira, Os dízimos eclesiásticos do Brasil nos períodos da colônia e do império, UFMG, Belo Horizonte, 1964, p.15. 21 Idem, p.76. 22 Stuart Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 95. Para conhecer sobre a safra do açúcar e seu ciclo, ver especialmente o capítulo 5. 23 Idem. 24 Idem.

 

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Ponha as verbas necessárias no assento e folha por onde se faz pagamento ao Reverendo Bispo deste Estado Dom Pedro da Silva em como não pode haver pagamento dos cem mil réis que se lhe manda pagar ao Vigário geral das partes de Pernambuco e Paraíba pelo não haver nem se exercitar o tal ofício depois de ocupadas as ditas partes pelos holandeses e assim mais se pôr a verba no assento e folha dos duzentos mil réis aplicados da Fazenda Real para a fábrica das obras da Sé para de uma e outra coisa se não fazer pagamento até ordem de Vossa Majestade para o tempo atrasado o Reverendo Bispo dará satisfação com efeito ao que tem recebido da fábrica de que não fez obra do dia que tomou posse deste Bispado e começou receber, e dos cem mil réis do dia que a capitania de Pernambuco foi ocupada e começou a receber25

Entretanto Dom Pedro da Silva não acatou a ordem e recorreu ao Provedor mor afirmando que podia “mostrar dentro em meio dia [...] que sempre se fizeram obras e que se despendeu nelas mais do que se recebeu”. Disse ainda que ele não recebeu nenhum dinheiro e que isso ficava a cargo dos priostes26 e tesoureiros da Sé “e que de tudo deram conta e inteira satisfação e que a despesa foi feita com muita consideração e muito aproveito da Igreja e do serviço de Deus e Del Rei”.27 Por fim, assegurou que sempre houve Vigário geral em Pernambuco durante seu Bispado, e não um, mas dois, por serem extensas aquelas terras e que, embora os holandeses tivessem-na ocupado, “ha[via] lá muitos católicos e igrejas” e, portanto, não podia abandoná-los sem um governo espiritual.28 Contudo, a palavra de Dom Pedro da Silva não foi suficiente para convencer as autoridades da Fazenda Real. Logo o Provedor ordenou que as obras da Sé fossem avaliadas e comprovadas por ele ou por outras pessoas e que o Procurador da Fazenda faria o mesmo. 29 Alguns dias depois a Junta da Fazenda deu início as suas averiguações, nomeando duas pessoas para avaliarem as obras de carpintaria da Sé e outras duas para as obras de pedraria (Dom Pedro não quis nomear avaliadores). Estas tiveram uma soma total de oitocentos e cinquenta e sete mil e quatrocentos réis, enquanto os carpinteiros chegaram ao total de um conto cem mil e setecentos e vinte réis, perfazendo um montante de um conto novecentos e cinquenta e oito mil e vinte réis.30 Entre as pessoas que foram arroladas para estimar os gastos das obras da Sé foi consenso que tudo o que havia sido feito não seguiu o traçado elaborado por Domingos da Rocha, mestre de pedreiro, afirmando entre outras coisas que as paredes que existiam foram levantadas apenas para poder se rezar a missa. Disseram também que na construção quase nada era aproveitável,                                                                                                                           25

Idem. No dicionário de Bluteau encontra-se a seguinte descrição para prioste: o que cobra a renda da Igreja. Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1 27 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 28 Idem. 29 Idem. 30 Idem. 26

 

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apenas as pedras, e que havia quatro anos e meio que nenhuma obra era feita na igreja. Portanto, concluiu o Provedor mor, que devia o Bispo novecentos mil réis referentes ao tempo em que as obras estavam suspensas. Além disso, ele também tinha que devolver um conto de réis do dinheiro do Vigário geral de Pernambuco, já que, ainda que tentasse provar, não podia afirmar que o despendia corretamente. O prelado, não satisfeito por ter perdido a causa, enviou uma apelação indeferida pelo procurador da Fazenda, afirmando que não era de sua alçada e que ele era um “mero executor das ordens de Vossa Majestade e do Governador e capitão geral”, não podendo avaliar uma apelação de efeito suspensivo. Por fim, já em novembro de 44, decidiu-se por abater dos “ordenados do Reverendo Bispo vencidos e que forem vencendo” a quantia devida – que concluíram não ser mais de um conto e novecentos mil réis e sim um conto (do Vigário de Pernambuco) e quinhentos e quarenta mil réis, já que abateram oitenta mil réis cada ano, por quatro anos, despendidos na fábrica da sacristia.31 Entretanto, o problema ganharia outra dimensão. Dom Pedro da Silva, insatisfeito, enviou ao reino em 1645 o tesoureiro da Sé para dar conta de todos os desmandos que Telles da Silva andava fazendo contra ele e contra outros oficiais da administração. Ocorre que o Governador, ao passo que estava envolvido no processo contra o prelado, também entrou em litígio com os oficiais da Câmara e o Ouvidor geral Manuel Pereira Franco, do qual trataremos brevemente adiante. A tudo o que foi feito e dito acima pelo Governador, provedor mor e procurador da Fazenda refutou o Dom Pedro da Silva. Sua defesa foi assentada em duas partes, cada uma tratando de uma das acusações que o Governador do Brasil fez contra ele. Vale ressaltar, contudo, que o documento que acompanharemos aqui não foi escrito pelo próprio Dom Pedro da Silva, mas narra o que foi dito por ele em duas cartas de fins de 1644.32 No início da missiva contou-se que o Bispo foi notificado por conta do dinheiro do Vigário de Pernambuco e das obras da Sé e que, “informando contra a verdade”, não lhe foi dado nem meio dia para que ele apresentasse provas a seu favor.33 Por acusarem-no de não despender os trezentos mil réis como devia, suspendeu-se esse dinheiro, bem como não se pagou o seu ordenado, visando satisfazer o um conto e quinhentos e quarenta mil réis. E isso tudo era coisa tão escandalosa de toda aquela cidade, por saberem o contrário de que o dito Governador escreveu que se pôs em grande contingência a quietação daqueles

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Idem. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10 documento 1157 [26 de Outubro de 1644] e 1158 [17 de Outubro de 1644]. 33 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 32

 

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vassalos, e particularmente vendo que o dito Governador absolutamente trata mal a ele Bispo, procurando que com seus agravos use para sua defensa do remédio que lhe dá o direito, o que ele Bispo sofre e tem sofrido

Inúmeras razões foram relacionadas no documento contra tudo o que acusou Telles da Silva e seus “sequazes” (o procurador e o provedor). Embora a querela sobre o Vigário de Pernambuco tenha sido menos abordado no documento, não foi deixado de lado. Sempre depois que estava no Brasil tivera Vigário Geral e Provisor na Paraíba. E algumas vezes como de presente tinha outro em Sirinhaém, tudo em Pernambuco porque assim é na verdade, e consta do Instrumento que apresenta, e que lhe dessem pessoa sem suspeita para o ouvir, e não querendo foi com embargos; e porque são suspeitos a ele Bispo, e o Provedor sobredito por duas vezes o confessar em despachos seus, e se deitou de Juiz; teme que não alcançará justiça; e em Pernambuco há muitos católicos, e não podem estar sem Provisor e Vigário Geral, a que recorrer, e será grande dano de suas almas, e de nossa santa Sé católica; e o ordenado de Bispo é tão tênue que não lhe fica com que poder remediar isto.34

As nove testemunhas inquiridas sobre o tema – a maioria de ex-moradores de Pernambuco – corroboraram com o prelado. Contaram que, mesmo com a ocupação dos inimigos, sempre houve Vigários ali, e as vezes eram três, mas naquele ano de 44 eram dois: Manoel Rabello, de Sirinhaém, e Gaspar Ferreira, da Paraíba. Na obra de Frei Calado, aliás, esse último é citado diversas vezes, sendo também um desafeto do autor.35 Magalhães também cita Manuel Rabello no conteúdo de uma carta escrita do Bispo para ele que foi interceptada pelos holandeses.36 Desta forma, possivelmente Dom Pedro da Silva tivesse razão neste caso. No que tange a Sé da cidade da Bahia foi exposto Que vendo-se há muitos anos a Sé daquela cidade velha e arruinada se tratou de se fazer outra deixando a velha dentro para se dizer missa até se acabar a nova; e estando feito pouco mais que os alicerces; ocupando os holandeses a Bahia, e destruíram e roubaram a Sé, em forma que era grande indecência celebrarem-se nele os ofícios divinos; e as paredes eram umas taipas de barro; e o telhado de telha vã; e a sacristia uma logia [sic] que servia de Aljube; e o altar principal, e coro, muito apertado de baixo de uma abóbada, e a Sé em altos e baixos com entulhos, e totalmente indecente.37

Para pagar as contas desta obra foi utilizado o rendimento da imposição do vinho, que depois passou a ser utilizado para fins de sustentar o presídio da cidade.38 Quando da vinda de Dom Pedro da Silva para o Bispado do Brasil, lhe foi dada uma provisão oferecendo o pagamento dos duzentos mil réis para a manutenção e reforma da igreja, e                                                                                                                           34

Idem. Frei Manoel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno... op. Cit. 36 Magalhães, “Equus Rusus...”, p.150. 37 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 38 Segundo Bluteau, presídio significa “gente de guarnição; os soldados que estão em uma praça para a guardar e defender do inimigo”. Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1 35

 

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obras e ornamentos, ficando a critério dele quanto se gastaria em cada coisa. Mas ao chegar em Salvador o prelado percebeu que seria necessário muito mais dinheiro do que tinha e muitos anos para terminar a Sé nova. Portanto reuniu os oficiais dali e acordaram que “se fizesse agora como convinha a necessidade presente, e que não se tratasse de ir continuando as paredes [...] que com poucas fileiras de pedra se gastaria muito dinheiro”.39 Então, com ajuda de outras pessoas, as esmolas dos capitulares, com o ordenado da fábrica e mais sua fazenda ergueu ele a capela mor, a sacristia, o cruzeiro e a casa do Cabido. Quando o Governador passou a portaria para suspender o dinheiro da dita obra, o Bispo quis mostrar as contas das despesas que teve, mas o Provedor não quis vê-las e mandou seus avaliadores, como já narrado anteriormente. Finalmente, assegurou que vendo seus inimigos que não podiam prosseguir com as acusações, passaram a dizer que “as obras que se fizeram de madeira, e pedra não eram boas”.40 Embora acreditasse que não conseguiria alcançar a justiça, certamente sentindo-se perseguido por outros agentes reais (como era o caso do Governador e do Provedor Sebastião Parvi de Brito), Dom Pedro da Silva requereu lhe faça mercê mandar que as ditas verbas se levantem, e os embargos; e se dê a ele suplicante o que se lhe tiver levado e a Igreja; e que a Provisão dos duzentos mil réis da fábrica esteja em pé como nela se contém, e tudo o que ele Bispo levava pela provisão de seu ordenado, e que sejam restituídos, e o Bispo em tudo o que se lhes tiver levado, e logo, porque de outra maneira o aperto será grande, e o escândalo que já o é crescerá mais, e que Vossa Majestade seja servido mandar estranhar muito a quem semelhantes causas ordena, e que não dá verdadeira informação delas.

Os camaristas também se envolveram no conflito. Enviaram uma carta em Novembro de 1644 em nome dos moradores da cidade e do Recôncavo, onde escreveram: O Bispo com seu zelo, cuidado e com o seu [dinheiro], na forma em que podia ser, pôs mãos a obras. Proveu de cálices, livros e de outras coisas precisamente necessárias; e de ornamentos a sacristia – foi acudindo a despesa corrente da Igreja; e fazendo nela a Capela mor, a Sacristia com seus caixões, casa do Cabido, e cruzeiro e ladrilhando a Sé toda com forma que se consola agora a gente de entrar nela. E quando esperávamos e os moradores da cidade e do Recôncavo que Vossa Majestade havia de por os olhos nos muitos e qualificados serviços do Bispo; e deste cuidado e zelo da Igreja para lhe fazer mercê vemos que o Governador Antonio Telles lhe fez tomar seu ordenado todo, sem lhe deixar coisa alguma, até dali repor o que lhes parecesse [...] sem o querer ouvir, nem lhe admitir requerimento [...]41

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AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. Idem. 41 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1156 [17 de Novembro de 1644]. 40

 

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Os oficiais da Câmara, vale ressaltar, estavam também em litígio com o Governador. Acusavam-no de tomar e abrir cartas que seriam enviadas ao Rei por alguns deles relatando os excessos praticados por Telles da Silva contra o Ouvidor geral Manuel Pereira Franco.42 Ocorre que Franco, em duas sentenças, agiu a contra gosto de Telles da Silva e acabou preso e suspenso do seu cargo. Além dos vereadores, o Ouvidor e o Governador enviaram cartas relatando suas versões sobre o problema.43 Entretanto o Conselho Ultramarino, após analisar o caso, deu razão ao Ouvidor, mas apenas algum tempo depois uma carta régia suspendeu sua prisão e também o restituiu no seu cargo, além de advertir Telles da Silva, relembrando-o da sua obrigação em evitar discórdias entre eclesiásticos e seculares, “pelo mau exemplo que causavam a vista do gentio e dos hereges tão vizinhos” 44 Se a querela entre o Governador, a Câmara e o Ouvidor estava encerrada, o mesmo não se pode dizer em relação ao litígio entre o Bispo e o Governador. Uma consulta de 17 de Agosto de 45 e um requerimento feito em nome de Dom Pedro da Silva dão a entender que nada foi solucionado, ficando o prelado “sem ter coisa alguma que comer nem gastar”.45 Por certo a animosidade entre o Bispo e o Governador foi se construindo ao longo da convivência. Esse tipo de conflito entre a esfera secular e a eclesiástica é consequência da congruência de personalidades fortes nos cargos mais altos das duas hierarquias. As contendas vistas aqui ocuparam lugares sociais diversos e denotaram uma disputa de poder e de jurisdição muito comum na sociedade do Antigo Regime. Embora os dois fossem representantes do poder régio na colônia, e que normativamente sua relação deve ser colaborativa, os conflitos podem revelar melhor a existência de limites entre o governo da Igreja e a administração secular. Principalmente, demonstram que essas duas esferas, antes de qualquer coisa, eram constituídas de homens dotados de interesses próprios que geravam desafetos não tão excepcionais no Antigo Regime. A necessidade de distinção estimulava a disputa de poder e fazia parte do jogo político da época. Como afirmou Boxer, ainda que essas brigas não fossem estimuladas e não contribuíssem para uma harmonia administrativa, também não eram controladas pela coroa, posto que se encaixassem “no sistema colonial de verificações e balanços”, garantindo “a rápida

                                                                                                                          42

AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1094 [2 de Setembro de 1644]. a querela entre o governador e o ouvidor ver Érica Lôpo de Araújo, “De golpe a golpe: política e administração nas relações entre Bahia e Portugal (1641-1667)” (dissertação de mestrado), UFF, 2011, pp. 74-86.   44 Idem. 45 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1133 [sem data]. 43  Sobre

 

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chegada das notícias dos delitos e enganos cometidos”.46 Dessa maneira o rei português, representando a principal fonte solucionadora desses problemas, tentava manter mais ou menos sob o seu controle a governança do ultramar.

Bibliografia ARAÚJO, Érica Lôpo de. “De golpe a golpe: política e administração nas relações entre Bahia e Portugal (1641-1667)” (dissertação de mestrado), UFF, 2011. BOXER, Charles R, A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2000. CARRARA, Angelo Alves, Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2009. FIGUEIREDO, Luciano R. A., “O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII” in Júnia Furtado, Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português, Belo Horizonte, UFMG, 2001. IGLESIAS, Pablo Magalhães. “Equus Rusus: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654)” (tese de doutorado), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2010. LENK, Wolfgang. “Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração colonial na Bahia (1624-1654)” (Tese de doutorado), Unicamp, Campinas, 2009. MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2011. MENDES, Ediana Ferreira, “Festas e procissões reais na Bahia colonial (séculos XVII-XVIII)” (dissertação de mestrado), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2011. OLIVEIRA, Dom Oscar de. Os dízimos eclesiásticos do Brasil nos períodos da colônia e do império, UFMG, Belo Horizonte, 1964. PAIVA, José Pedro, “As relações entre o Estado e a Igreja após a Restauração: A correspondência de Dom João IV para o Cabido da Sé de Évora”, Revista de História das Idéias, vol. 22, 2001, pp. 107-174. ________________, “A Igreja e o poder” in Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal, vol.2, Circulo-Leitores, Lisboa, 2000.                                                                                                                          

46 Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2000, p.168.

 

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RAU, Virgínia. “Fortunas ultramarinas e a nobreza portuguesa no século XVII”, in José Garcia Manuel (int. e org.), Estudos sobre história econômica e social no Antigo Regime, Lisboa, Editorial Presença, 1984. RUY, Affonso, História política e administrativa da cidade do Salvador, Salvador, Tipologia Beneditina, 1949. SCHWARTZ, Stuart B.. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo, Companhia das Letras, 1988. VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

 

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