A retórica das teorias pedagógicas: uma introdução ao estudo da argumentação

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A retórica das teorias pedagógicas: uma introdução ao estudo da argumentação 22ª Reunião Anual da ANPEd GT - Filosofia da Educação - Mini Curso 26 a 30 de Setembro de 1999 Professores: Tarso Mazzotti e Renato José de Oliveira – UFRJ Sendo a argumentação um constructo teórico-prático que visa predispor os indivíduos à ação, ela se faz presente nos mais diferentes campos da existência humana. Segundo a abordagem desenvolvida por Perelman e Olbrecths-Tyteca (1996), a necessidade de argumentar se coloca a partir do momento em que se estabelecem controvérsias sobre determinados objetos (teorias científicas, visões filosóficas, normas éticas, concepções pedagógicas, etc.), as quais não podem ser resolvidas por meio de demonstrações formais que permitam chegar a soluções inequívocas, capazes de se impor a todos os seres racionais. O orador (aquele que fala ou escreve) deve, pois, persuadir um auditório (de ou-vintes ou leitores), tendo clareza de que não está lidando com tabulae rasum e sim com indivíduos complexos cujas reações combinam elementos racionais e passionais, os quais são inseparáveis no homem. No contexto da persuasão, é preciso conhecer as teses, as convicções, os valores admitidos por cada auditório e, a partir daí, reforçá-los ou não. Em um certo sentido, na argumentação, “as carnes não são preparadas para o paladar dos cozinheiros, mas para o dos convivas” (idem, p. 27). Isso não significa que o discurso do orador deixe de expressar suas convicções e pontos de vista para refletir somente o que o auditório deseja ouvir ou ler, como poderia parecer à primeira vista. Significa, em um sentido mais amplo, que nenhum discurso é persuasivo por si mesmo, ou seja, somente o conteúdo apresentado não basta para ganhar a adesão do auditório. É preciso haver interação entre as partes envolvidas, sem o que as mais con-sistentes propostas caem no vazio. Por outro lado, o nível de adesão dado por um auditório é variável, sendo o convencimento incondicional algo muito difícil de ser obtido. Perelman e Olbrecths-Tyteca, em seus estudos sobre as práticas argumentativas, salientam que a posição do auditório é semelhante à de um juiz que decide após ter pesado ou estabelecido o confronto entre os diferentes argumentos que lhe foram apresentados. Na medida em que as decisões são sempre tomadas em um espaço e em um tempo definidos, podem ser posteriormente revistas, assim como os processos jurídicos podem ser reabertos. Isso mostra que a argumentação tem caráter não coercivo, sendo as verdades hoje sancionadas apenas as melhores verdades (cujas provas a favor foram as mais convincentes em um dado contexto histórico-social) e não verdades absolutas, eternas, atemporais.

O campo da argumentação Feitas essas considerações preliminares, cabe agora examinar os principais aspectos do que Perelman e Olbrechts-Tyteca situam como o campo da argumentação. Segundo aqueles autores, todo processo argumentativo se desenvolve a partir de premissas que podem ser consideradas como preparação para o raciocínio do ouvinte. Este, na condição de auditório, dá ou não seu assentimento a tais premissas. A recusa pode ocorrer pela percepção do caráter unilateral das mesmas, pela identi-ficação de um certo caráter tendencioso, ou pelo não compartilhamento daquilo que o orador considera objeto de acordo comum. Um exemplo interessante é fornecido por Perelman e Olbrechts-Tyteca (p.17) acerca do diálogo entre a personagem Alice e o papagaio, na clássica fábula de Lewis Carroll. A menina insiste em perguntar a idade do animal (pois considera o fornecimento de tal informação um objeto de acordo perfeitamente adequado a um diálogo), mas o papagaio não vê nenhum sentido na pergunta e, por isso,

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se recusa a responder, pondo um ponto final na conversa. Na medida em que sem acordos prévios não é possível construir qualquer argumentação, os autores dividem os objetos desses acordos em duas grandes categorias: a dos que pertencem ao campo do real e a dos que pertencem ao campo do preferível. Na primeira, situam os fatos, as verdades e as presunções, os quais têm pretensão de serem validados por um auditório universal1. Na segunda, situam os valores, as hierarquias e os lugares. 1 O auditório universal é antes O universo dos fatos é, sem dúvida, bastante amplo, não se reduzindo aos chamados eventos objetivos (a morte de alguém, a cor de determinado utensílio etc) que, em princípio, poderiam ser atestados por qualquer humano não portador de deficiências (mentais ou físicas). Do ponto de vista da argumentação, suposições ou convenções também possuem estatuto de fatos, mas este nunca é definitivo porquanto os acordos que os sancionam podem ser questionados e até mesmo rompidos. Além do mais, o que é reconhecido como fato por determinados auditórios pode não ser admitido por outros. Assim, para um auditório de crentes, a existência de Deus é um fato incontestável, ao passo que para um auditório ou de ateus ou de agnósticos tal não se coloca.

uma construção do orador do que um quantitativo de pessoas. Essa construção não é apenas fruto da visão de mundo do orador, mas a encarnação de um ideário historico, social e culturalmente situado (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 144).

Com respeito às verdades, Perelman e Olbrechts-Tyteca assinalam que estas podem ser definidas como sistemas mais complexos que correspondem a ligações entre fatos, contudo fazem questão de frisar que o problema filosófico da distinção entre o que se apresenta ou como verdade ou como fato não se acha consensualmen-te resolvido. Em outras palavras, um fato pode enunciar uma verdade assim como uma verdade pode enunciar um fato. No primeiro caso, podemos exemplificar com a seguinte consideração: se todos os seres vivos são mortais (fato), a inexistência da imortalidade é uma verdade. No segundo, se uma teoria científica é admitida como verdadeira (o peso de um corpo é o produto de sua massa m pela aceleração da gravidade, g), dela se podem enunciar fatos: na Lua, onde a aceleração da gravidade é inferior à da Terra, um mesmo corpo trará, para quem o ergue do solo, a sensação de ser mais leve. Se, por um lado, fatos e verdades têm naturalmente posição de destaque, por outro as presunções são muitas vezes o tipo de raciocínio invocado para persuadir um auditório. Presumir algo é, via de regra, se valer de uma indução que se assenta sobre a verossimilhança, a qual, entretanto, ganha força de verdade consentida. Exemplificando: a natureza do ato praticado revela a natureza da pessoa, portanto se determinado crime é bárbaro, o criminoso é um monstro. Logicamente não existe relação de identidade entre o ato e a pessoa, contudo uma argumentação que se baseie nesse tipo de presunção (sobretudo se arrola vários casos particulares que sustentam a indução) pode ser extremamente efetiva e obter a adesão dos auditórios aos quais se dirige. Isso se dá porque a boa presunção toma sempre por referência o que é admitido como normal. É importante salientar, porém, que o normal não é definível estatisticamente, representando, outrossim, um modo de comportamento. Este, por sua vez, é ditado por um grupo de referência nem sempre claramente explicitado. Em vista disso, mudanças na caracterização do grupo de referência (os sensatos se comportam assim mas os apaixonados, não) podem operar mudanças no que tange à definição do normal, de sorte que toda presunção —a exemplo de toda argumentação— goza de certa instabilidade: o que em dado contexto (social, cultural, psicológico) era presumível, em outro pode não passar de uma inferência ridícula. Na discussão que fazem dos valores, Perelman e Olbrechts-Tyteca destacam que estes (sejam referentes a objetos, seres ou ideais) exercem determinada influência sobre as ações humanas,

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embora não sejam necessariamente compartilhados por todos os homens. Para os referidos autores, se as discussões são de natureza científica os valores se situam na origem e na conclusão, mas não no desenvolvimento do raciocínio. Isso, porque os elos, ou passos, seguidos pela razão se interligam de forma necessária, independente do julgamento que o cientista faz, por exemplo, da relevância do objeto estudado ou da beleza da formulação final obtida. Todavia, se as discussões se dão nos campos jurídico, político, ético ou filosófico os valores intervêm durante todo o processo de construção dos raciocínios. Em outras palavras, os passos seguidos dependem substancialmente das valorações (positivas e negativas) atribuídas aos raciocínios adotados. Naturalmente, quando se referem a valores, os interlocutores buscam ser genéricos e universalistas: o bem é sempre preferível ao mal; o justo ao injusto; o belo ao feio etc.. Assim, bem, justo e belo, tanto quanto seus contrários, parecem ser valores universais, contudo tal universalidade se esfuma a partir do momento em que se torna necessário exprimir seus conteúdos concretos. Dito de outro modo, as noções de bondade, justiça e beleza não são sempre as mesmas para todos os povos em todas as épocas. Perelman e Olbrechts-Tyteca observam que ao terem seus conteúdos definidos, os valores universais se reduzem a objetos de acordo próprios de auditórios particulares, o que sem dúvida alimenta a controvérsia e o debate. Entretanto, para que isso seja possível é preciso que um interlocutor reconheça nos valores que deseja combater o estatuto de valores, pois a desqualificação sumária interdita a polêmica, abrindo espaço para a intolerância e para a violência. No âmbito da teoria da argumentação desenvolvida por Perelman e Olbrechts-Tyteca, as hierarquias admitidas pelos auditórios são mais significativas que os próprios valores em si. Isso porque dificilmente um auditório reduz determinado valor à condição de tabula rasa mas, com frequência, o situa em posição superior ou inferior a outros. Assim, por exemplo, nas chamadas hierarquias concretas, os seres se acham ordenados conforme os graus de importância a eles atribuídos: as pessoas (entes animados) são comumente consideradas superiores às coisas (entes inanimados). Já nas hierarquias abstratas, um valor como o justo pode ser situado como superior ao útil. Sem dúvida, alguns princípios intervêm nos processos de hierarquização dos valores e, dentre eles, o princípio da quantidade é um dos mais bem aceitos: atribui-se a determinado valor um grau superior em função da maior abrangência que possui em relação a outro. Entretanto, como justiça e utilidade, por exemplo, não são compreendidas da mesma maneira pelos diferentes auditórios, as hierarquias e os princípios que as sustentam não estão fixados para sempre, sendo suscetíveis a mudanças. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, essa ausência de rigidez é fundamental para garantir a pluralidade das opiniões, pois do contrário imperaria o dogmatismo fomentado por um monismo dos valores. Por sua vez, as diferentes hierarquias de valores se constituem a partir de lugares (tópoi) que podem ser definidos como “baús”, ou “depósitos”, de argumentos. No estudo que faz em seus Tópicos e em sua Retórica, Aristóteles apresenta uma minuciosa classificação dos diferentes lugares argumentativos. Perelman e Olbrechts-Tyteca partem daquela abordagem mas procuram fixar-se nos lugares que Aristóteles chamou “do acidente”. Entre estes, dão maior destaque aos lugares da quantidade e aos da qualidade. Os primeiros permitem sustentar a superioridade de algo em função de razões quantitativas, tanto no que se refere à positividade quanto à negatividade de certos valores. Por exemplo: um maior número de bens (materiais e/ou espirituais) é superior a um número mais reduzido; um mal passageiro é preferível a um duradouro. Os lugares da quantidade fornecem, além disso, suporte para certas concepções de democracia nas quais as opiniões majoritárias são sempre vistas como mais acertadas que as opiniões minoritárias. Critérios como estabilidade (o estatuto de uma opinião deve se manter por bastante tempo) e utilidade (a adoção de determinado ponto de vista deve per-

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mitir a muitos e não a poucos usufruir de benefícios comuns) costumam também matizar os argumentos que se apoiam sobre os lugares da quantidade. Buscando, inversamente, constestar a supremacia do número, os lugares da qualidade invocam o que é singular, único, irrepetível e que —uma vez perdido— ja-mais poderá ser recuperado. O ideal agonístico, que presidia a educação do homem grego nos tempos homéricos, se fundava sobre um lugar desse tipo na me-dida em que propunha: “mais vale, para o grande herói, morrer após um minuto de glória do que cultivar toda uma vida de insignificâncias”. Também a expressão latina carpe diem (aproveitem o dia), encampada por certas filosofias de cunho existencialista, indica que o gozo momentâneo do que se deseja é superior às previsíveis conseqüências desagradáveis que o usufruto do objeto do desejo trará. Em linhas gerais, os lugares da quantidade são mais utilizados pelo chamado espírito clássico (que aposta na conservação de um dado existente tal como é), enquanto os lugares da qualidade são preferidos pelo espírito romântico (cujo ímpeto é questionador e, em certas situações, propõe alternativas revolucionárias para a transformação do existente). Todavia, Perelman e OlbrechtsTyteca chamam a atenção para o fato de que tal tipificação não é rígida, podendo perfeitamente um lugar da qualidade sustentar opiniões conservadoras e vice-versa. Uma vez discutidos os principais objetos de acordo que constituem o campo da argumentação, passaremos ao exame de um dos mais importantes instrumentos utili-zados nas argumentações científicas, filo-sóficas e pedagógicas: a metáfora.

Metáfora, figura argumentativa prototípica, na Educação Perelman e Olbrechts-Tyteca (p. 192) definem figura argumentativa e figura de estilo pela funcionalidade no discurso. Uma figura será argumentativa caso seu uso apareça como normal para uma nova situação, favorecendo ou realizado a adesão do auditório; caso o auditório não aderira àquela figura, ela será considerada de estilo. Uma mesma figura pode, então, produzir adesão de um dado auditório e ser de estilo para outro, o qual, eventualmente, a considerará estética, ornamental. Perelman e Olbrechts-Tyteca mostram, assim, que não há como decidir se uma figura —como a metáfora, por exemplo— é de estilo ou argumentativa, uma vez que seu caráter é explicitado no contexto de enunciação. Exemplificam com a figura alusão que só pode ser reconhecida em seu contexto, uma vez que sua estrutura não é nem semântica, nem gramatical, por se referir a algo que não é objeto imediato do discurso. Por certo, a alusão é relevante na argumentação por expressar algo com o qual o grupo tenha acordo. Após esta breve caracterização das figuras, salientando suas características funcionais na argumentação, nossos autores tomam a figura metáfora por protótipo da exposição do movimento do discurso. Ao exporem o caráter das metáforas introduzem uma limitação importante: … para ser percebida como argumenta-tiva uma figura não deve necessariamente acarretar a adesão às conclusões do discurso, bastando que o argumento seja percebido em seu pleno valor; pouco importa se outras considerações se oponham à aceitação da tese em questão. (Perelman e Olbrechts-Tyteca, p. 193.) A não aceitação da tese conduzida por uma metáfora, como é o caso da MÃO INVISÍVEL, faz com que ela seja apresentada como uma figura de estilo, negando-se-lhe qualquer valor filosófico, quando é considerada por seu valor literário, estilístico, ou retórico. Exatamente por isto, Perelman e Ol-brechts-Tyteca mostram que não há como fixar uma figura, uma vez que seu valor ou argumentativo ou estilístico depende do auditório. Adotam, então, uma concepção flexível sobre as figuras, considerando que o critério para se estabelecer o seu caráter ou argumentativo ou estilístico é dado pela adequação ao contexto (ibid, p. 194). Esta adequação, por sua vez, faz

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com que a figura fique oculta, como ocorre com as roupas que se usa de maneira correta segundo a ocasião. Muito mais adiante, Perelman e Obre-chts-Tyteca (p. 453), assinalam que a fun-ção argumentativa da metáfora decorre da analogia, retomando as posições de Aris-tóteles e seus sucessores, que considera-ram a metáfora uma analogia condensada (p. 453). Uma evidência deste caráter encontra-se na maneira pela qual se pode ‘despertar’ uma metáfora: basta desenvolvê-la a partir da analogia que lhe deu origem. Exemplificam este procedimento por meio de uma argumentação apresentada por Bossuet para a metáfora adormecida na frase “levado por suas paixões” : Vede aquele insensato na beira do rio que, querendo passar para a outra margem, espera que o rio tenha escoado; e não percebe que ele corre sem cessar. É preciso passar por cima do rio, é preciso caminhar contra a torrente; resistir ao curso de nossas paixões! e não esperar ver escoado o que jamais escoa totalmente. (Bossuet, apud Perelman e Olbrechts-Tyteca, p. 460.) Uma vez que a metáfora é uma analogia condensada, aquele que a critica recorre à explicitação da relação analógica com vistas a rejeitá-la. Perelman e Olbrechts-Tyteca recupera-ram o lugar das figuras na argumentação, as quais não se reduzem às formas ornamentais, como pretendeu a tradição iniciada no século XVII. As figuras argumentativas têm uma função cognitiva, o que, em nossos dias, tem ficado cada vez mais presente aos semioticistas, lingüistas e filósofos da linguagem, por exemplo. Estes especialistas consideram que metáforas, metonímias e sinédoques são esquemas, ou formas, cognitivas que ‘carregam’ sentido de um contexto para outro. Estas investigações têm reorientado a análise do discurso, com base na lingüística funcional, ou de orientação cognitiva, devida a George Lakkof (1981; 1987), Mark Johnson (1987) e Eve Sweetser (1991). Aqueles pesquisadores sustentam que as metáforas têm origem nos processos cognitivos decorrentes de esquemas corporais. Para Lakkof e Johnson as metáforas são um ‘modelo cognitivo corporificado” , o qual está: … fundado na corporeidade em relação a seu conteúdo, ou ligado a modelos corporais. O modelo cognitivo estrutura o pensamento e é utilizado para formar categorias e para raciocinar. Em sua maioria os modelos cognitivos se constituem corporalmente, por pressões de uso, e por isso soam naturais. Os que ainda não estão incorporados são utilizados conscientemente, e com esforço notável. (Votre, 1995, p. 66.) A teoria proposta por Lakkoff e Johnson (1981) e Johnson (1987), está claramente exposta na definição acima. Por ela, as metáforas convencionais não são proposicionais, logo não podem ser assimiladas a um processo analógico, como querem Pe-relman e Olbrechts-Tyteca. De fato, Johnson (1987, p. 22), indica que o esquema proposicional “se B está em A, então seja o que for que se encontre em B está em A. Se eu estou na cama, e minha cama está em meu quarto, então eu estou em meu quarto”. Este encadeamento recorre ao que Johnson e Lakkof de-nominam ‘imagem-esquemata’, própria da metáfora CONTINENTE2 (CONTAINER). Esta metáfora expressa nossa experiência corporal: 2 Notação recomendada somos limitados por nossa pele, que nos dá a noção —imagem esque- pelos semiologistas e linmata— de DENTRO e FORA (cf. Lakkof e Johson, 1981, p. 97 guístas que estudam metáe seguintes; Johnson, 1987, p.18 e seguintes). Este encadeamento, foras e norma requerida ainda que possa ser expresso proposicionalmente, não é proposicio- pelo periódico Metaphor nal, mas diretamente decorrente da experiência corpórea, daí dize- and Symbol (cf. Instruções aos colaboradores daquele rem que são ‘corporificadas’. No entanto, Engestrøn (1999, p. 59) critica a posição de Lakkoff e

periódico).

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de Johnson dizendo que mesmo as “metáforas conceituais convencionais são proposições de identidade”, pois estabelecem uma relação de equivalência, podemos dizer de analogia, entre as partes. Para Engestrøn, sua “proposta permite que uma metáfora sentencial seja vista como expressando uma metáfora conceitual convencional” (Idem). Engestøn, mostra que os esquemas são proposicionais, ainda que partam de experiências, de ações experienciadas pelos sujeitos, o que foi melhor desenvolvido por Dorthe Berntsen (1999). Este autor mostrou que as qualidades sensório-motoras referenciam-se concretamente com o mundo imediato, dessa maneira ‘mole’ e ‘moleza’, por exemplo, são espontaneamente relatáveis, tanto a um auditório, como por escrito, uma vez que as pessoas têm este tipo de experiência. Por essa via, Berntsen, procura relativizar o caráter encarnado, ou corpóreo, das metáforas cognitivas assinalando que os esquemas originam-se das atividades sensório-motoras, dando origem a proposições. Berntsen apóia-se, sem explicitar, na teoria proposta por Piaget sobre a origem dos esquemas, bem como considera, também implicitamente, que as metáforas são analogias condensadas. Isto porque, os processos analógicos são proposições que estabelecem similitudes entre proposições, por exemplo a SELE-ÇÃO NATURAL das espécies. Charles Darwin estabeleceu uma analogia entre a seleção de animais e plantas realizada pelos homens com vistas à produzir espécimens que lhes interessavam, e o processo de aparecimento de novas espécies sem que haja qualquer outra interferência, a não ser a das condições vitais. A metáfora SELEÇÃO NATURAL é uma analogia da ‘seleção produzida pelos homens’, ou ‘artificial’, salvo em um aspecto crucial: ela não é intencional. Há, neste caso, uma clara transferência de significados, pois as qualidades próprias da seleção de animais e plantas realizadas pelos homens são transferidas à SELEÇÃO NATURAL, suprimindo-se um aspecto da primeira. Caso se restitua o caráter intencional na metáfora SELEÇÃO NATURAL, então a teoria darwiniana perde seu caráter e se torna finalista e criacionista, cabendo perguntar quem fez e faz e com qual intenção a ‘SELEÇÃO NATURAL’. Basta examinar livros didáticos de Biologia para verificar que a intencionalidade no processo de SELEÇÃO NATURAL foi restituído, alterando significativamente a teoria da origem das espécies proposta por Darwin.

Crítica das metáforas, caminho para a eficácia da educação escolar Para o psicólogo social e muitos outros cientistas sociais, não se apresenta o problema da correção dos raciocínios apresentados pelas pessoas, uma vez que as ‘representações sociais’, as ‘representa-ções coletivas’, as ‘ideologias’ etc. são ‘verdadeiras’ para o grupo social que as produz. No entanto, para os educadores, aquela maneira de ver é imprópria, pois a tarefa mesma da educação é transformar, modificar as cognições dos educandos. De fato, a premissa modal das teorias pedagógicas refere-se à possibilidade de se modificar as crenças, atitudes e valores dos educandos, tendo por orientação a instauração de atitudes, valores e crenças ou melhores ou superiores àquelas apresentadas pelos educandos (cf. Mazzotti, 1998c). A crítica das metáforas constitui-se em uma das tarefas contínuas e centrais nas ciências e filosofias, tanto que Booth (1992), mais preocupado com a ética do que com a ciência, afirma que o: estudo da metáfora (…) seria apenas uma parte da prática de duas críticas éticas: das pessoas e das sociedades que fazem as pessoas. Mas há ainda uma verdade importante sobre nossa sociedade que torna a metáfora uma parte ainda mais importante de tal crítica para nós do que para culturas do passado. Pela primeira vez na história, uma sociedade acha-se na posição de oferecer imensas recompensas a um vasto número de ‘metaforistas’ remunerados para fazerem metáforas para atingirem certa finalidade, independentemente do que dizem sobre nosso caráter ou fazem a ele. Propagandistas são contratados para fazer a posse de algum objeto de consumo representar a felicidade ou bem-estar. (p. 72.)

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Cabe assinalar que Booth apenas se refere aos propagandistas dedicados ao mercado de objetos de consumo, deixando de lado todos os demais, aos quais cabem críticas semelhantes. Tomemos um exemplo: a partir da investigação sobre as representações sociais de ‘problema ambiental’ (Mazzotti, 1996) verificamos que os ambientalistas sustentam uma teoria econômica análoga à dos economistas clássicos. Com base naquela pesquisa, cabe examinar a chamada ‘ética ambientalista’ e criticá-la (Mazzotti, 1998d), mostrando que ela é um novo cientismo. De fato, a metáfora MÃO INVISÍVEL encontra-se na biologia, via Darwin, e retorna à economia como ‘equilíbrio estável’ dos ecossistemas, o qual é, de fato, um renascimento do finalismo aristotélico, substituindo-se Deus pela Natureza e as finalidades humanas do desenvolvimento econômico (da economia clássica) pela manutenção do ‘equilíbrio natural’; e, a RIQUEZA DAS NAÇÕES é substituída pela RIQUEZA NATURAL, ou biodiversidade. Esta maneira de ver, que se quer para além das classes sociais e das ideologias, é um novo cientismo que disputa, nas escolas, a adesão das nossas crianças e jovens. O procedimento de crítica das representações sociais, particularmente das metáforas que as sustentam, é tarefa necessária particularmente aos educadores que têm por função social desenvolver a criticidade de seus alunos3. No 3 A pertinência desta afiressencial, Booth tem razão ao afirmar que a investigação das metá- mação pode ser veri-ficada foras integra a crítica ética, sendo preciso acrescentar um aspecto no escrito de Paulo Fernado descu-rado pelo autor: a crítica das metáforas impróprias é uma das de Almeida Saul que leu e tarefas de toda e qualquer argumentação filosófica e científica. Esta comentou o artigo “Uma tarefa não pode ser deixada de lado quando se trata da educação critica da ética ambientalista”, cujo texto o anteescolar. cede. Saul, declaradamente

Note-se, no entanto, que a crítica das metáforas não pretende que ambientlista, diz ter tomado sejamos capazes de estabelecer enunciados desprovidos de alguma consciência dos problemas figura argumentativa, ao contrário, busca mostrar que as metáforas apresentados e o fez, ao que inadequadas devem ser substituídas, conscientemente, pelas adequa- parece, porque as metáforas das. A história das ciências e das filosofias está repleta de modifica- em jogo foram explicitadas ções produzidas pela crítica de metáforas. Recordemos uma delas, anotada por Quine (1992), que ocorreu quando da formulação da teoria molecular dos gases. Na ocasião em que se propôs esta teoria utilizou-se uma metáfora na qual um gás foi comparado a um enxame de corpúsculos terrivelmente pequenos. A metáfora era tão oportuna que foi literalmente aceita como verdade e tornou-se, de imediato, uma metáfora morta: os imaginários corpúsculos passaram a ser entendidos como reais e a palavra ‘corpúsculo’ passou a designar todos eles (Quine, 1992, p. 161). Este exemplo expressa o papel organizador e persuasivo de uma metáfora, tão valiosa que se tornou literal, seria melhor dizer: objetivada, materializada, ou reificada. Por certo, a crítica daquela metáfora fez com que a teoria ganhasse maior consistência. Para Quine, então, o processo de metaforização é um passo inicial na aquisição do conhecimento que deve sofrer críticas com vistas ao seu refinamento, pois, para ele A metáfora, ou algo semelhante, governa tanto a aquisição quanto o desenvolvimento da linguagem. O que vem a seguir como refinamento é mais um discurso cognitivo, no seu sentido mais literal. Os avanços internos da ciência, cuidadosamente elaborados, constitu-em um espaço vazio na floresta tropical, criado com a eliminação dos tropos. (p.162.) Caso consideremos que o processo de re-finamento conceitual das ciências é o da busca inatingível do “espaço vazio na floresta tropical, criado com a eliminação dos tropos”, então as ciências procurariam realizar o grau zero de metaforização. Esta posição é indefensável, uma vez que os

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‘modelos’ usuais nas ciências são, de fato, metáforas, como mostra Ricoeur (s/d) ao comentar o trabalho seminal de Max Black intitulado Models and Archetypes: O argumento principal é o de que a metáfora está para a linguagem poética como o modelo está para a linguagem científica, quanto à relação com o real. Ora, na linguagem científica, o modelo é essencialmente um instrumento heurístico que visa, por intermédio da ficção, destruir uma interpretação inade-quada e abrir caminho a uma nova interpretação, mais adequada. (p. 357.) No entanto, no desenvolvimento de seus ensaios, Ricoeur explicita um paradoxo nas teorias da metáfora, pois: … não há discurso sobre a metáfora que não se diga numa rede conceptual engendrada, ela própria, metaforicamente. Não existe lugar não metafórico de onde se perceba a ordem e a clausura do campo metafórico. A metáfora diz-se metaforicamente. (…) é impossível um princípio de delimitação da metáfora, uma definição cujo definidor não contenha o definido; a metaforicidade é absolutamente não-controlável. (p. 436.) A solução seria reconhecer o papel da ação, mas ela é rejeitada por Ricouer uma vez que “ver todas as coisas como acções não será igualmente vê-las como ‘humanas, demasiado humanas’ e, por aí, atribuir ao homem um privilégio abusivo?” (p. 468.) Abusivo por apresentar as coisas como r-sultado de uma obra de arte, de uma técnica, que põem sob nossos olhos artefatos. A rejeição do artefato, do simulacro, da produção originada das mãos, expressa a metafísica defendida por Ricoeur que, na esteira de Heidegger, busca uma fundamentação para além do ‘humano, demasiado humano’. No entanto, caso desconsideremos aquela metafísica, apoiando na que afirma que as obras humanas resultam de suas ações, tal como defendem os epistemólogos contemporâneos, por exemplo, então a limitação posta por Ricoeur deixa de ter sentido. Certamente, Ricoeur tem razão ao assi-nalar que “não há discurso sobre a metáfora que não se diga numa rede conceptual engendrada, ela própria, metaforicamente”, o mesmo se pode dizer de qualquer teoria sobre qualquer outro objeto. Isto porque todo objeto o é para uma teoria, é uma interpretação, que é alterada ao longo da história da filosofia e da ciência, tendo por resultado um sistema de correções de interpretações e de metáforas utilizadas para condensar significados. A posição que acabamos de expor implica considerar que entre o senso comum e o filosófico e científico, que se distinguem pelas estruturações que efetivam4. Dizendo melhor, a lógica fomalizada, sistematizada, metódica, a ciência lógica é a consciência dos processos lógicos usuais, tendo por base os mesmos silogismos empregados por todo e qualquer humano. Eis porque a metodologia da ciências e da filosofia expõe um repertório de insucessos, bem como modos de proceder para evitar as falácias, os enganos, os erros, de evitar fracassos, daí ela ser o meio pelo qual nos libertamos de procedimentos inadequados tanto para conhecer quanto para comunicar. Certamente os cientistas e filósofos cometem tantos enganos, erros, falácias e fraudes como qualquer humano. O coletivo dos cientistas só pode garantir alguma legitimidade em seus procedimentos e modos de pensar caso consiga estabelecer acordos em torno de procedimentos explícitos e legitimados, aqueles tentados ao longo da história do pensamento. O que

há uma continuidade funcional Esta posição é a corrente entre os que con-sideram as proposições de Jean Piaget, G. G. Granger e Raymond Boudon. A estes pode-se agregar, ainda, os teóricos norteamericanos que têm tratado das “metáforas cognitivas” para os quais estas são fundamentais para o pensamento, não sugerindo que exista um abismo intransponível entre o senso comum e o científico, entre eles Max Black (1988), Lakoff & Johnson (1980), John R. Searle (1988); e, em outro registro, Da Costa (1980; 1987), por exemplo. 4

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diferencia os cientistas dos não-cientistas é, de fato, o modo de operar daquela comunidade: a atenção permanente aos deslizes metodológicos, uma vez que não há qualquer diferença funcional entre os sistemas cognitivos dos cientistas e os dos demais homens (cf., por exemplo, Boudon, 1990; Mazzotti, 1999.) Podemos sustentar que as metodologias de investigação científica e filosófica constituem um conjunto de regras que buscam favorecer o pensamento mais correto possível e factível em determinado momento da história humana. Dessa maneira, uma educação geral das crianças, dos jovens e dos adultos só tem sentido se eles puderem apreender aquelas metodologias. E, estas, tematizam as representações correntes, sendo que nelas encontram-se as metáforas cognitivas, e outras figuras argumentativas, as quais precisam ser criticadas para que ocorra a sua superação.

A metáfora CURVATURA DA VARA em Saviani e suas implicações pedagógicas O livro ESCOLA E DEMOCRACIA de Dermeval Saviani tem sido uma referência importante para os educadores em geral e para os professores de filosofia da educação em particular. Os textos que iremos discutir —”Escola e Democracia I, a teoria da curvatura da vara” e “Escola e De-mocracia II, para além da teoria da curvatura da vara”— foram originalmente apresentados pelo autor na 1ª CBE, realizada em São Paulo em março de 1980. A abordagem de Saviani (1988, p. 69-70) se desenvolve a partir de três teses centrais, que estruturam a chamada “teoria da curvatura da vara”, quais sejam: 1- “Do caráter revolucionário da pedagogia da essência e do caráter reacionário da pedagogia da existência. 2- “Do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos” 3- “De como, quando menos se falou em democracia no interior da escola mais ela esteve articulada com a construção de uma ordem democrática; e quando mais se falou em democracia no interior da escola menos ela foi democrática”. Como frisa o próprio autor, a “teoria da curvatura da vara” foi tomada de empréstimo a Lênin. Este a utilizou para dar apoio à tese de que nos embates ideológicos as classes revolucionárias devem assumir posicionamentos opostos aos da classe dominante, pois do contrário não será possível superar a luta de classes, colocando a “vara” (que em última análise simboliza o curso da história e se acha “curvada” na direção dos interesses da burguesia) na posição reta. Para Saviani, as chamadas pedagogias da existência, particularmente a pedagogia da escola nova, representam a curvatura da “vara” escola na direção dos interesses burgueses. Em vista disso, as classes trabalhadoras devem vergá-la na direção oposta (a da pedagogia tradicional) a fim de lograr a superação dialética de ambas. Observa-se que o uso da metáfora não é apenas ornamental, mas, fundamentalmente argumentativo, possuindo forte poder de persuasão. Em primeiro lugar porque trabalha com a idéia de que, havendo uma distorção lesiva aos interesses das classes oprimidas, é preciso desfazê-la. A posição vertical da vara simboliza a justiça (retidão) que se opõe à curvatura (erro) e, portanto, precisa ser restaurada. Em segundo lugar porque se vale do princípio da mecânica newtoniana segundo o qual “a toda ação sempre corresponde uma reação em igual intensidade e em sentido contrário”. Assim, para fazer a vara retornar à verticalidade é preciso antes curvá-la, na mesma medida, para um ponto oposto àquele para o qual ela foi flexionada. Por hipótese, se a vara foi curvada 60 graus para a direita devemos vergá-la 60 graus para a esquerda. À primeira vista, essas idéias parecem muito consistentes, contudo é possível questionar as bases

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sobre as quais se assentam. Pode-se perguntar, por exemplo: por que para toda e qualquer vara a posição vertical é preferível às posições oblíquas? Não há casos em que varas curvadas se mostram muito mais úteis, como instrumentos, do que varas retilíneas? Se somente a posição vertical fosse admissível para todas as varas, como praticar a arte da pesca com molinete, linha e anzol? Outra questão seria: em que medida a história, a sociedade e a escola são comparáveis a varas mecânicas? Como encontrar o ponto de inflexão oposto, 60 graus para a esquerda, por exemplo, no âmbito das teorias pedagógicas? Que instrumento de aferição teríamos para determinar esses “ângulos”? Na medida em que a “teoria da curvatura da vara” não responde a essas questões, somos levados a pensar que se trata de uma má metáfora, ou de uma metáfora imprópria. Mas há outros aspectos que precisam ser discutidos em relação à três teses que Saviani apresenta. A pedagogia nova não é a antítese (em termos hegelianos) da pedagogia tradicional. Em termos lógicos, é totalmente sem sentido afirmar que se a segunda é A, a primeira é NA (não-A). Considerando, por exemplo, a questão dos fins da educação, encontramos objetivos comuns pois ambas se propõem a formar o homem para a construção de uma sociedade harmoniosa, na qual a justiça e o bem-estar se façam presentes. E ambas falham ao perseguir esse fim porque harmonia e bem-estar social não são valores que gozam do consenso entre os homens. Ao contrário, são objetos de controvérsia e o papel da educação escolar deve ser o de preparar os indivíduos para intervir no debate, não o de direcioná-los para esse ou aquele fim pré-determinado. A segunda tese afirma serem os métodos tradicionais científicos e os métodos novos pseudocientíficos. Mas que visão de ciência está em jogo? A da ciência moderna, baseada no método experimental que tem raízes em Francis Bacon. Mas, não foram os métodos desta ciência questionados pelas mecânicas relativística e quântica? Por que seriam então os métodos novos pseudocientíficos? Por terem a ousadia de inovar? Por outro lado, mesmo quando propõem que o aluno seja um educando ativo, responsável direto por sua aprendizagem, e não passivo, entregue totalmente à responsabilidade do professor, os métodos novos não se propõem a fazer do estudante um novo descobridor do saber científico. Em outras palavras, não fazem do legado cultural e dos sabares socialmente sancionados tabula rasa nem da escola o espaço da “reinvenção da roda”. Por fim, a terceira tese faz uso de um lugar da quantidade para desqualificar a escola nova e sobrevalorizar a escola tradicional. Aqui também é possível perguntar: o que representam o mais e o menos em termos de democracia? O fato de que a pedagogia tradicional tem por reduto a escola pública (voltada para os filhos dos trabalhadores) e a pedagogia nova a escola privada (voltada para os filhos da burguesia)? Tal raciocínio é reducionista na medida em que não considera a real complexidade da educação brasileira. Em apoio a essa consideração, nada melhor do que o testemunho de um dos mais fervorosos escolanovistas brasileiros, Anísio Teixeira (1989, p. 448): As escolas refletiram, assim, de acordo com o velho estilo, o dualismo social brasileiro, entre os “favorecidos” e os “desfavorecidos”. Por isso mesmo, a escola comum, a escola para todos, nunca chegou, entre nós, a se caracterizar, ou a ser de fato para todos. A escola era para a chamada elite. O seu programa, o seu currículo, mesmo na escola pública, era um programa e um currículo para “privilegiados”. Toda a democracia da escola pública consistiu em permitir ao “pobre” uma educação da qual ele pudesse participar da elite”. Como se pode constatar, o problema da democracia na escola se projeta para além dos métodos pedagógicos e da natureza da instituição de ensino (pública ou privada). O fato que Saviani parece não dimensionar devidamente é que as próprias elites não viram com bons olhos o abandono da pedagogia tradicional em favor da pedagogia nova e nem tampouco abriram mão de

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direcionar e de ocupar espaços na escola pública: Entre nós, porém, apesar de havermos tido o cuidado de criar o sistema de educação “popular”, distinto do sistema de educação da elite, a classe dominante, mais dominante do que rica, ocupou até muito recentemente a própria “escola primária pública”, dando-lhe a ela própria o caráter de escola de classe, no que muito a ajudou, sobretudo nas grandes cidades, o recrutamento do magistério primário na classe média e, às vezes, até na superior”. (idem, p. 449) A metáfora CURVATURA DA VARA e as teses que Saviani arrola para aplicá-la ao campo da educação, trazem implicações pedagógicas que nos causam grande apreensão. Se a utilização do modelo mecânico (a vara) é criticável pelas razões já apontadas, os argumentos desenvolvidos são, por sua vez, de uma unilateralidade que limita a reflexão dos educadores. Se raciocinar dialeticamente é lidar com a polêmica e com o conflito, inclusive e especialmente no próprio pensar, em que medida estes aparecem nas teses fornecidas, fechadas em afirmações categóricas como mônadas leibinizianas? Se o trabalho do educador é contribuir para a mudança dos hábitos, atitudes e crenças dos educandos, fornecendo-lhes instrumentos para pensar e criticar a realidade que os cerca, vale a advertência de Perelman (1987, p. 262): Não esqueçamos, com efeito, de que toda a argumentação, todas as razões que se fornecem a favor de uma tese, é o índice de uma dúvida, de que as teses que nos encontramos a defender obrigatoriamente não parecem acima de qualquer contestação. Querendo fundálas, arriscamo-nos a perturbá-las.

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