A retórica do verdadeiro em Marcelino Freire

September 4, 2017 | Autor: Miguel Conde | Categoria: Literatura brasileira, Literatura Brasileira Contemporânea, Marcelino Freire
Share Embed


Descrição do Produto

A retórica do verdadeiro em Marcelino Freire1 Miguel Conde

Já no prefácio ao primeiro livro de Marcelino Freire, Angu de sangue, o crítico João Alexandre Barbosa formulou concisamente os pontos que desde então vêm servindo de coordenadas fundamentais da recepção crítica ao escritor pernambucano, e que fazem de sua obra uma referência central para as discussões sobre a relação entre a escrita literária e a crítica política no Brasil de hoje. A qualidade e influência desse comentário acabam fazendo com que ainda hoje seja difícil pensar os contos de Marcelino Freire sem sua interlocução. Talvez, aliás, essa dificuldade não se explique apenas pela relação que o prefácio estabelece com os textos apresentados, ou pela maneira como seu quadro de leitura vem sendo reaproveitado, mas indique também uma dificuldade posta pelos próprios textos, que se desdobra disfarçadamente e como que por antecipação no prefácio. Sendo este o caso, ela poderia passar de obstáculo a porta de entrada para uma tentativa de diálogo mais direto com eles, hipótese que só pode ser examinada a partir de uma reconstituição dos pontos centrais do argumento original. Para formular mais precisamente a suspeita inicial que orienta este texto, minha impressão é que o prefácio de Barbosa tem o mérito de identificar e descrever habilmente uma certa concepção de crítica social implícita nos contos de Freire, mas dá como resolvido de saída o problema de avaliar em que medida os próprios contos concretizam o projeto crítico que sugerem. Ao fazer isso, o comentário de Barbosa mantém impensado um aspecto fundamental da obra de Freire, que o obrigaria a reconsiderar todo seu quadro de leitura. Os efeitos desta lacuna se desdobram em leituras 1

Texto publicado no livro Possibilidades da nova escrita literária no Brasil, de Beatriz Resende e Ettore Finnazzi-Agró (orgs.). Rio de Janeiro: Revan, 2014. E na revista Letterature d’America. Número 145, 2013.

subsequentes feitas por outros críticos, e no limite têm resultado no apagamento (por omissão ou negação) daqueles aspectos da obra de Freire não exatamente em acordo com o modelo interpretativo que passo agora a descrever. O sentido geral do juízo de Barbosa, formulado sem hesitação no prefácio a Angu de sangue, é o reconhecimento dos textos apresentados ali como algo de novo na história da literatura brasileira, particularmente em relação à maneira como procuravam exprimir na própria forma as desigualdades do país. O eixo dessa apreciação inaugural é a tentativa de explicar o teor da novidade por meio da combinação de duas figuras: o “desventrar de uma condição”, contraposto à simples denúncia, e a “cuidadosa imbricação de narrativa e linguagem”, pois “a voz que narra é a mesma que experimenta, e sofre, o narrado”. A vinculação histórica mais particular dessa forma era precisada pelo crítico na definição do “narrado” que tal voz narrativa sofria: “por um lado, a violência da existência urbana em que se agitam as personagens e, por outro, a violência de adaptação a que são forçadas essas mesmas personagens”, entendidas por Barbosa como “restos (no sentido literal e no figurado) da experiência rural” (BARBOSA, In: Freire, 2000. Pp 12-15). Pensado como um princípio original de elaboração crítica dessa violência na composição do texto ficcional, o “desventrar de uma condição” pode ser distinguido da denúncia em dois sentidos. Por um lado, ele não aponta para um estado de coisas, mas é ele mesmo a própria exposição de uma experiência individual em sua situação precária. Na formulação do crítico: o que se denuncia não é “um objeto distanciado”, “mas todo um mundo de atividades que parecem com as humanas e por onde ainda é possível reconhecer a existência de seres que restaram por entre as desigualdades sociais” (Idem, p. 14). Em segundo lugar, completando a ideia, sua

perspectiva não é a de quem observa de fora aquilo que narra, mas de quem vive a experiência nas próprias entranhas. Isso tem uma implicação importante no modo como será compreendida a linguagem dessas histórias, já que não se trata portanto de remeter o leitor a uma situação externa, mas de integrá-la por assim dizer ao corpo do texto. Por isso Barbosa identifica uma dimensão “metalinguística” dessas narrativas, em que “a sensibilidade do autor para com a linguagem termina por ser a matéria substancial da narrativa” (Idem, p. 15). Esse quadro interpretativo complexo se completa então pela constatação de uma inversão fundamental de valores, pois, ao ser elaborada linguisticamente, a experiência precária ganha uma dimensão afirmativa. Ela não se define mais em relação àquilo que lhe falta, mas pelos termos intrínsecos de sua condição, concretizada (e assim afirmada) na presença do texto em que ela se diz. O tom não será portanto o da compaixão nem o do escândalo, mas antes o de uma “alegria possível da carência” (BARBOSA, p. 13). Dizendo de outra maneira, aquilo que o texto diz não pode ser separado de seu modo de dizê-lo (isso é, não pode ser dito de outra maneira). Daí que se acentue na escrita a consciência da forma e da materialidade do signo, que se exprime pela recorrência de recursos como o trocadilho, a rima e a aliteração. O problema que traça o desenho da obra irrompe, também, na filigrana da escrita. Uma incapacidade constitutiva – o texto não pode dizer senão aquilo que diz – torna-se afirmação de autonomia (definição feita em termos próprios, tidos por insubstituíveis e assim valorizados). O texto se aproxima aí do poema, diz Barbosa, numa comparação que parece próxima ao que Gadamer constata ao observar que “A poesia é a emergência do próprio fenômeno linguístico e não uma mera travessia em direção ao sentido”, pois nela o sentido “ganha corpo” (grifo meu) “por meio de uma constante ressonância conjunta da apreensão do sentido com a manifestação sonora” (GADAMER, 2010, p. 120).

Essa inversão de valores tem correspondência temática em muitas das histórias de Freire, nas quais os personagens afirmam sua autonomia a partir do reconhecimento e da valorização da precariedade (“O pobre só precisa ser pobre”; “Deixa eu, aqui no meu canto”; “A gente não quer outra coisa senão esse lixão para viver”), e contra as suposições generalizantes de um ouvinte ou interlocutor geralmente silencioso e não identificado (“Não quer dentadura, não quer. Não quer porra nenhuma o Zé”; “Não quero aprender, dispenso”; “Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha”). Essa oposição ao olhar de fora é o pressuposto mais ou menos explícito do “desventrar de uma condição”. Aquilo que está de fora é dispensado e, da mesma maneira, quem está de fora é desautorizado em sua tentativa de entender o outro (“Quer saber por quê? Quer entender por quê? Pergunta pra tua mãe”; “Por que o senhor matou a sua neta? ... Nunca irão entender”; “O que a lei sabe sobre o amor?”). À afirmação da autonomia precária corresponde, em resumo, o que se poderia qualificar como uma retórica da legitimidade. Ao desautorizarem o olhar de fora, com suas presunções generalizantes, para afirmarem a singularidade da própria condição (incorporada na linguagem), os contos assumem um ar de autenticidade. Como se de fato refutassem a mistificação do discurso geral por meio do acesso à verdade de uma experiência individual. É curioso que a leitura de Barbosa passe por cima desse ponto crucial. O que está em jogo aqui não é afinal apenas mais um aspecto a ser adicionado ao quadro geral da leitura, mas um procedimento retórico cujo reconhecimento obrigaria o crítico a botar todo esse quadro entre parênteses. Não é que a descrição seja imprecisa, mas que aquilo que era dado como resultado da obra deve passar a ser visto como reivindicação. Ao desautorizar os discursos genéricos e o olhar externo, a obra de Marcelino Freire está se afirmando por contraponto como espaço de “desventramento” feito de dentro e, por isso, mais verdadeiro. Mas é isso de fato o que encontramos na

leitura? Que a noção de verdade surja com força aqui, que os textos pretendam exprimir em sua torção idiossincrática a singularidade de uma experiência existencial, esse é um nó dado pela obra de Marcelino Freire que o comentário de Barbosa aperta, em vez de tentar desatar. O crítico observa que a “hábil utilização do discurso direto evita (...) traços demagógicos de uma denúncia” (BARBOSA, Op. Cit., p. 14), mas claramente “evita” é um verbo que não dá conta da relação conflitiva estabelecida pelos textos com a denúncia demagógica. O que eles realizam, mais propriamente, é uma denúncia da denúncia. O fato de que isso não seja notado no texto de Barbosa talvez possa ser explicado pela circunstância de sua publicação. Dirigido apenas ao primeiro livro de Freire, onde esse viés conflitivo talvez ainda não seja tão evidente (embora certamente esteja presente), o texto já de saída se avisava incapaz de esgotar os elementos a serem considerados “no espaço de um prefácio, a que o decoro obriga a ser curto” (Idem, p. 11). É impressionante, aliás, como esse texto de fato breve consegue ir longe em sua análise, a melhor já feita sobre a obra de Freire. O problema que ele deixa por ser resolvido, porém, é o de uma avaliação crítica das reivindicações da obra.2 Seja qual for sua causa, esse ponto cego cria uma ambiguidade em relação ao próprio estatuto dos textos. Tudo se passa como se de fato presenciássemos na leitura a manifestação de uma verdade individual que expõe a insuficiência ou inadequação das generalizações sociológicas, jornalísticas, políticas a respeito do ser humano. Como se a fala se realizasse sem mediações, e o discurso escapasse às relações de poder que definem cotidianamente quem está autorizado a falar, quais falas possuem a autoridade

Nesse sentido, há uma segunda maneira de entender como as circunstâncias de publicação podem ter determinado a feição do comentário. Ao ser publicado como prefácio, o texto de certa maneira já se coloca depois do problema da avaliação. Ele é mais uma exposição dos motivos do endosso do que uma reflexão sobre sua pertinência. Já no primeiro momento, portanto, a dúvida sobre a reivindicação está dada como resolvida. Crítico consagrado, Barbosa empenhava ali seu prestígio e talento na valorização de um escritor àquela altura desconhecido, assumindo em relação a seus escritos uma posição de simpatia e estima sem ressalvas. 2

necessária para circular, e mesmo o que se é capaz de dizer. No limite, é como se estivéssemos diante de uma sequência de testemunhos, e não de textos ficcionais criados pelo autor do livro. Obviamente, Barbosa não desconsidera que os textos são construções discursivas (pelo contrário, a força de sua leitura está na sensibilidade para perceber como é feita essa construção) mas seu texto mantém no ar a impressão de que eles de algum modo correspondem a experiências reais. Ou, no mínimo, que forjam um olhar mais verdadeiro do que o da denúncia. Para que esse efeito de verdade seja entendido como uma estratégia retórica, é preciso atentar sobretudo para esse “como se”, que dá ao texto seu estatuto de obra de ficção. É essa cláusula fundamental que parece ser rasurada ao ser reduzida a uma forma de ressalva (a meu ver, o problema da leitura de Paulo Roberto Tonani do Patrocínio)3, ou apagada de modo mais decisivo quando se pretende identificar na obra de Freire algo como a formulação de um “testemunho entoado” (TEIXEIRA, 2008, p. 135). Os dois autores que melhor souberam desdobrar os apontamentos da leitura de Barbosa, acrescentando intuições próprias e articulando teoricamente as questões levantadas, Teixeira e Patrocínio mantêm impensado, no entanto, o ponto cego do prefácio. O problema chega a ser reconhecido meio de passagem por Flávia Unbehaum Ferraz, que ao tentar resolvê-lo cita a aproximação entre testemunho e ficção proposta por Beatriz Sarlo, numa leitura que parece, no entanto, inverter o sentido do questionamento feito pela crítica argentina.4 A ênfase sobre o “como se” é importante não apenas para que se possa reconhecer as estratégias de construção da “cuidadosa imbricação de narrativa e linguagem”, mas também para que seja possível avaliar em que medida elas

Ver PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. “Contos negreiros: a escrita como forma de aproximação do outro”. In: DEALTRY, Giovanna; LEMOS, Masé e CHIARELLI, Stefania. (orgs.). Alguma prosa – ensaios sobre literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. 4 Cf. FERRAZ, Flávia Unbehaum. “Testemunho e oralidade nos contos de Marcelino Freire”. In: Terra roxa e outras terras, volume 15. Pp. 28-35. 3

correspondem à reivindicação retórica (de revelação do singular) feita pela obra. Isso demanda uma alternância dos níveis de análise. Do corpo a corpo com o texto realizado de modo conciso, porém meticuloso por Barbosa, é preciso dar um passo atrás para compreender como o espaço de enunciação criado pela obra de Freire se constrói num jogo constante de contraposição ao clichê. Num segundo movimento, é a leitura em detalhe do texto de Freire que deve expor a insuficiência de certas generalizações feitas a partir do quadro criado por Barbosa. Se reconhecermos que esse quadro aperta um nó dado pelo próprio texto, como procurei demonstrar, talvez se possa apontar aí algo como um feitiço se voltando contra o feiticeiro, um pacto que realiza certo desejo da obra, mas cobra dele o preço da desconsideração daqueles seus aspectos que não se conformam ao modelo explicativo. O “desventrar de uma condição” (aqui já entendido como efeito retórico) se realiza na obra de Freire por meio da aproximação do escrito com o oral, que não deve ser entendida, no entanto, como prosaísmo da enunciação ou falta de elaboração do texto. Pelo contrário, o modo como se dá essa relação faz pensar antes numa teatralização do escrito. Essa relação é evidenciada, aliás, pelo talento performático demonstrado por Freire em suas leituras públicas, em que padrões de ritmo e correspondências sonoras inscritas no texto ganham relevo, e as histórias parecem tornar-se menos o desenvolvimento de um enredo do que de uma certa forma peculiar de dizer as coisas. O tom impostado remete ao mesmo tempo à determinação precisa e à plasticidade da palavra falada. Esse duplo movimento resulta numa imbricação entre escrita e figuração, em que o personagem, em vez de ser descrito ou apresentado simplesmente por meio de uma cadeia de ações, se revela num certo modo de dizer (dele próprio ou do narrador que o descreve). Os textos de Freire são conduzidos pela própria cadência do discurso, por um certo registro que determina a composição do todo, construindo o ritmo e fixando o tom do que se diz. Eduardo Araújo Teixeira descreve esse

efeito como um “fluxo sonoro (...) que parece orientar o próprio fluir da narração”, sobrepondo-se à trama (2008, p. 141). Outros leitores reconhecem em seus textos uma “oralidade que ganha ares de musicalidade” (PATROCÍNIO, 2007, p. 195) e um “ritmo associativo próprio da poesia” (ANDRADE, 2007, p. 72). Como sugere o comentário de Teixeira, porém, em Freire a voz, mais do que traço estilístico, funciona como um princípio de composição, que estabelece de imediato uma certa postura do narrador, definindo-o ou ao personagem de quem ele fala.5 A essa especificidade do modo de dizer corresponde a contraposição mais ou menos explícita do que é dito aos clichês e generalizações. É ao realizarem essa contraposição, porém, que as histórias acabam se moldando inesperadamente à feição das representações sociais desautorizadas. É como se o texto se tornasse uma espécie de signo invertido, que, ao invés de prescindir do senso comum, se remetesse a ele repetidamente, porque dele depende para constituir-se como seu oposto. Num texto sobre Kafka, Blanchot associa o gênio do escritor a uma “indiferença congênita pelas ideias feitas”6. Em Marcelino Freire, pelo contrário, o chavão é quase sempre o ponto de atração central, ao qual são dirigidos os trocadilhos e as contestações. É assim que, em vez de bênção, a maternidade vira maldição (Filho do puto, Jéssica); de abominável, a venda do filho passa a ato humanitário (O caso da menina, Darluz); de exploração, o casamento entre o velho rico e a (o) jovem pobre vira um arranjo de benefícios mútuos (Os atores, Meu homem de estimação, Troca de alianças, Os casais, Sentimentos); em vez de pedir ajuda, os pobres a recusam (Muribeca, Leão das cordilheiras, Totonha). Ao se colocarem como um contradiscurso, os contos de Marcelino Freire não raro se aproximam de réplicas já bem conhecidas, com espaço

A exploração mais detalhada das implicações dessa relação entre voz e subjetividade nos contos de Freire é feita em ALMEIDA, Geruza Zelnys. “Oralidade e improviso em Marcelino Freire”. In: Signum: estudos linguísticos, número 13/2. Páginas 43-58. 6 Ver BLANCHOT, Maurice. “A leitura de Kafka”. In: A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Páginas 9-18. 5

demarcado de antemão. Em Esquece, por exemplo, a fala do assaltante que associa a violência à injustiça social do país, à indiferença dos abonados e à hostilidade do meio urbano, mas não aos seus atos, termina abafada pelos clichês que sustentam sua argumentação e “explicam” ao leitor a situação. O acontecimento que poderia perturbar acaba domesticado como argumento, discurso ideológico a ser recebido no conforto distanciado do assentimento ou da objeção. Violência é o carrão parar em cima do pé da gente e fechar a janela do vidro fumê e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhaço de gravata para não perder a hora ele olha o tempo perdido no rolex dourado. Violência é a gente naquele sol e o cara dentro do ar condicionado uma duas três horas quatro esperando uma melhor oportunidade de a gente enfiar o revólver na cara do cara plac. Violência é ele ficar assustado porque a gente é negro ou porque a gente chega assim nervoso a ponto de bala cuspindo gritando que ele passe a carteira e passe o relógio enquanto as bocas buzinam desesperadas.7

O discurso no plural – “a gente” – exprime uma generalização já invocada na epígrafe de Marcelo Yuka, “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Contos negreiros realiza com mais frequência do que qualquer outro livro de Freire esse tipo de generalização ao avesso. Nesses textos de interpelação, até aqui os mais valorizados pelos leitores de Marcelino Freire, a experiência de leitura acaba sendo regulada por essas contra-afirmações que funcionam como a lição da fábula, determinando o sentido daquilo que se diz. Isso permite à crítica reduzir a obra do escritor ao seu próprio quadro geral de leitura da realidade brasileira. A operação não está completamente em desacordo com esse ímpeto proselitista do texto, mas tem resultado no esquecimento daqueles aspectos dos contos de Freire que não se ajustam tão docilmente à generalização. Daí vai se produzindo uma leitura fechada da obra, que toma a parte pelo todo, a ponto de se dizer algo 7

FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. Página 31.

como “Marcelino Freire não desloca suas narrativas para o passado, trabalha exclusivamente no tempo presente” (TEIXEIRA, Op. cit., p. 134), o que simplesmente não é verdade. Note-se, como sinal desse fechamento, a escassez de comentários sobre certos motivos recorrentes da obra de Freire, em particular aqueles que conduzem a narração para situações incômodas, em que a deformação moral, ligada a uma certa patologia do desejo, não pode ser totalmente explicada por referência às deformações da sociedade. O caso mais flagrante, aqui, são as histórias de relações sexuais entre adultos e menores de idade, talvez a única situação que reaparece em todos os livros de Marcelino Freire, de “Socorrinho” em Angu de sangue, a “Vestido longo” e “Declaração” em Amar é crime. Mas um contraponto mais direto à ênfase dada aos textos de interpelação talvez passe pelo reconhecimento da recorrência na obra de Marcelino Freire dos momentos de resignação, que se concentram em (mas não se limitam a) histórias de prostitutas, travestis e homossexuais, nas quais (ainda o confronto com o clichê, nesse caso com a figura do gay histriônico) tudo assume um tom menor. Aí, predominando sobre a estridência que caracteriza boa parte de sua obra, encontramos uma concentração de lirismo e melancolia vinculada à descrição de elementos prosaicos do cotidiano. Nessas histórias, a revolta se transforma numa aceitação triste da falta, e o olhar se contenta em demorar-se sobre o que estão à mão, mesmo que vulgar e barato. O que se revela então não é exatamente o cotidiano epifânico de uma autora como Adriana Lisboa, que revela a potência do pequeno, mas propriamente a pequenez do pequeno. Não o miúdo redimido, mas uma poética do chinfrim, contemplado em sua vulgaridade particular. A “bicha”, segundo definição própria, que lamenta a perda do seu amor em “Coração”, recorda um encontro com ele numa sucessão de imagens (“ki-

suco de morango”, “omelete”, “chiclete de uva-maçã-verde”) que reforçam a impressão de não-acontecimento dada ao episódio: Aí o bofe tomou um ki-suco de morango, comeu um omelete, conversou pouco e nada. Não rolou nada naquele dia, acredita? Ele travou, não sei. Não-me-toque, eu não toquei. E assim a gente ficou. Ele saiu chupando um chiclete de uva-maçã-verde. Eu amarelei.8

De maneira semelhante, em “Junior”, agora acentuando uma inusitada intimidade doméstica entre um travesti e seu cliente: Senta aí. Sentou. Meu pai foi colocar água para esquentar. E o sol também começou a borbulhar em algum lugar. E meu pai trouxe biscoitos. E pôs manteiga no prato. Perguntou se o travesti queria um pouco de ovo. Quero sim. O quê? Quero sim, obrigada.(...) Aqui está. Uma xícara colorida e outra xícara colorida. O café até que estava cheiroso. Os biscoitos também. (...) O travesti olhando a xícara e as migalhas. Correndo as unhas nas migalhas. Olhando os desenhos dos pratos. Os pinguins desconfiados. Os panos dobrados.9

Em “Mulheres trabalhando”, já não se trata de um encontro, mas de imagens espalhadas pela narração que compõem um painel da vida simples e das ferramentas modestas de trabalho de um travesti: “um buraco de apartamento”, “gilete”, “um leite de colônia, creme para não ressecar, uma pomada para os dedos do pé”, “batom rosa-bombom”10. Nessas investidas por uma concretude chinfrim, Marcelino Freire descobre uma dor silenciosa, distinta do estrépito da parte maior e mais visível de sua obra, e que também se nota, por exemplo, na solidão da narradora de “Vaniclélia”: Agora que valor me dá esse belzebu? Quanto vale ele ali, na praça? Pergunta, pergunta. A vida dele é me chamar de piranha e vagabunda. E tirar sangue de mim. Cadê meus dentes? Nem vê que eu tô esperando uma criança. Agora, disso ninguém tem ciência. Ninguém dá um fim. Mulher como eu ser tratada assim.11 Idem. “Coração”. In: Contos negreiros. Página 60. Idem. “Junior”. In: Rasif: mar que arrebenta. Páginas 51 e 52. 10 Idem. “Mulheres trabalhando”. In: BaléRalé. Páginas 19-24. 11 Idem. “Vanicléia”. In: Contos negreiros. Página 42. 8 9

Esse registro se expande nos contos de seu quarto livro, Rasif: mar que arrebenta, em que os versos de Manuel Bandeira servem de fecho e comentário sugestivo de um novo olhar, talvez um pouco mais cético, sobre a própria produção: “Não faço versos de guerra/ Não faço porque não sei./ Mas num torpedo-suicida/ Darei de bom grado a vida/ Na luta em que não lutei”. As fórmulas recorrentes não são abandonadas, mas ganham um travo novo de tristeza e cansaço. Por exemplo, em “Da paz”, que parece seguir o modelo da interpelação desafiadora, mas termina num gesto de recolhimento. Ainda que aqui mais uma vez o desejo de contraposição ao clichê acabe resultando no endosso de um outro clichê (em vez do apoio à campanha pela paz, a crítica que a define como má-fé burguesa), o conto representa uma novidade na obra de Marcelino Freire por realizar seu antagonismo discursivo não por meio de um clamor, mas justamente contra o clamor, aproximando-se da dor privada e silenciosa da mãe que perdeu o filho: Quem vai ressucitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado da polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor. Dor. A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava todo mundo, pode ter certeza. Mas a paz é que é culpada. Sabe? A paz é que não deixa.12

Saudade é a palavra-chave aqui. Em vez da presença teatral, a linguagem agora é um sinal apontando para algo que está fora do alcance, em

12

Idem. “Da paz”. In: Rasif: mar que arrebenta. Páginas 27 e 28.

outro lugar. O sentimento é invocado mais abertamente no conto que fecha o volume, “O futuro que me espera”: Tenho saudades da pitomba. Da canjica. Saudades da macambira. Saudades da bodega. Saudades da pacaia. Da trepeça. Daquela bangalafumenga. Saudades da banguela. Daquela coisa brega. Chinfrim. Saudades de Quixeramobim. De Paulo Afonso. Saudades da pirraia. Do bruguelo. De Dona Carminha e seu Antônio. Do cobogó e da cocada. Tenho saudades de uma noite de festa.13

O conto termina com uma promessa de reencontro, “Saudades do futuro que me espera”, inversão do percurso do migrante que sai do Nordeste para São Paulo, mas o leitor tem motivos para desconfiar do aceno, que parece antes mais uma concessão ao método da inversão do senso comum. “O meu homem bomba”, narrado por “um pederasta europeu em desgraça”, também se organiza como evocação, mas, aqui sim, de algo irrecuperável. O mote do amor à primeira vista por um homem bomba, que se explode pouco depois do narrador descer do ônibus, é desenvolvido num tom meio plácido, estilização de uma resignação melancólica que dá origem a um devaneio onde o erotismo do breve encontro se confunde com imagens bíblicas. A tristeza se desmancha no tom casual da narração, que apesar da imagem dramática de amor retorcido assume um ar casual, talvez porque a “desgraça” do narrador o tenha deixado afinal um tanto calejado. Aqui então o narrador não fala apenas da distância de algo ou de alguém, mas antes se afasta de si mesmo para transformar a perda num experimento estético, forjando um erotismo religioso kitsch. Meu rapaz. Indica-me, amor de minha vida, onde agora pastoreias? Onde faz repousar teu rebanho ao meio-dia? Não estranhes a minha cor. Branco eu sou nesse sol de fim de mundo. Apocalíptico.

13

Idem. “O futuro que me espera”. In: Rasif: mar que arrebenta. Páginas 121-123.

Como era bonito aquele Anjo do Senhor. Escolhido na tribo de Zabulon. Maravilha de outro tempo. Uma graça. Não é invenção meu esquecimento.14

Como para o Kyoto de “E sombra”, conto de BaléRalé sobre um revelador de fotografias que se apaixona por uma cliente e acompanha sua vida pelos negativos entregues, o vivido agora é algo que acontece em outro lugar, lembrança perdida que dá lugar à revelação da escrita, ao mesmo tempo enterro e vida nova. Referências bibliográficas ALMEIDA, Geruza Zelnys. “Oralidade e improviso em Marcelino Freire”. In: Signum: estudos linguísticos, número 13/2. Páginas 43-58. ANDRADE, Janilto. A arte e o feio combinam? Pernambuco: Fasa editora, 2006. FERRAZ, Flávia Unbehaum. “Testemunho e oralidade nos contos de Marcelino Freire”. In: Terra roxa e outras terras, volume 15. Pp. 28-35 BLANCHOT, Maurice. “A leitura de Kafka”. In: A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. FREIRE, Marcelino. : Angu de Sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000 _____________________. BaléRalé. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. _____________________. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. _____________________. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008. _____________________. Amar é crime. São Paulo: Edith, 2011. GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. “Contos negreiros: a escrita como forma de aproximação do outro”. In: DEALTRY, Giovanna; LEMOS, Masé e CHIARELLI, Stefania. (orgs.). Alguma prosa – ensaios sobre literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. TEIXEIRA, Eduardo de Araújo. “Marcelino Freire: entre o rap e o repente”. In: Protocolos críticos. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2008.

14

Idem. “O meu homem bomba”. In: Rasif: mar que arrebenta. Páginas 31-34.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.