A Revolução Científica da Termodinâmica de Carnot

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CARNOT EM UM DEBATE ACALORADO: a mudança de paradigma no nascimento da termodinâmica

Rogério de Souza Teza

Rogério S. Teza

Carnot em um Debate Acalorado

1. INTRODUÇÃO Tal como aparece no romance “O Vermelho e o Negro” de Stendhal, a França nas primeiras décadas do século XIX foi palco de enfrentamentos. A Revolução Francesa, por exemplo, do ponto de vista econômico, começava a fazer despontar a industrialização que progresso científico do Iluminismo apenas prometera. Por outro lado, nesta época, a instabilidade política, fruto da revolução burguesa que apoiada pelo Iluminismo contra o ancien régime, era sensível. A epidemia de cólera de 1832 em Paris é uma amostra desse momento paradoxal. Além de completamente anacrônica tal calamidade, decorriam ironicamente das deficiências da implantação de tecnologias sanitárias. Matou quase 2% da população parisiense, dos quais muitos membros das classes mais abastadas. (DELAPORTE apud AVILA-PIRES, 1993, p. 396-8). Entre as vítimas da doença, encontrava-se um jovem chamado Nicolas Léonard Sadi-Carnot. Ele próprio um personagem que incorporava os contrastes da época era primogênito de um engenheiro importante personagem da política militar de Napoleão Bonaparte. Sadi Carnot seguiu os passos do pai, formou-se também, engenheiro pela École Polytechnique. E, apesar de admirador do enciclopedismo, passou ao serviço militar. Engajou-se no aprimoramento das máquinas a vapor e, em 1824, publicou seus estudos sob o título “Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres à développer cette puissance” (CARNOT, 1824). E, como o autor, a obra também se colocava em meio aos antagonismos da época, no embate entre duas teorias sobre o calor. É neste contexto que apareceriam, pela primeira vez, as duas leis fundamentais da Termodinâmica. Embora, por isso, Sadi Carnot se tornasse conhecido como “pai da Termodinâmica”, sua obra não é exatamente sobre a ciência, mas especialmente sobre a tecnologia. De qualquer maneira, depois dela, o conhecimento a respeito da natureza do calor avançou significativamente. Daí a se dizer que as “Réflexions” são o principal marco da superação de um longo confronto entre teorias rivais que alterou a própria imagem de ciência e de natureza. Um acontecimento dessa magnitude, sem dúvida, não pode ter se dado sem o envolvimento de muitos elementos extracientíficos, de inúmeros condicionantes que determinaram tal atitude cognitiva. No presente artigo, meu propósito é justamente partir de uma perspectiva historiográfica, em busca de elementos extrateóricos, a fim de 1

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compreender como a concorrência entre duas teorias podem levar ao surgimento de uma nova ciência, a Termodinâmica. Minha tese interpretativa é a de que, embora primeiramente os dois paradigmas se articularam influenciados pela concepção metafísica do mecanicismo, eles se afastaram e colocaram ambas concepções em xeque. A solução, pois, não poderia vir exclusivamente delas. Seria fundamental o papel dos valores extracientíficos, advindos da industrialização. Daí as razões para o surgimento da termodinâmica das mãos de um engenheiro francês. Com vistas a verificar essas hipótese, divido minha exposição da seguinte maneira. Inicio com uma breve exposição sobre o termo paradigma e as questões relativas às suas mudanças. Neste ponto, sirvo-me de “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de Thomas Kuhn (2011a). Em seguida, apresento o desenrolar dos acontecimentos científicos, sem perder de vista as articulações metafísicas de mundo e o desenvolvimento técnico das máquinas a vapor. As principais referências aqui são “A História da Termodinâmica Clássica” de Pádua, Pádua e Silva (2009) e “Modern Thermodynamics” de Kondepudi e Prigogine (1998), sem contar as próprias “Réflexions”. Através do olhar sobre esses acontecimentos, pôr-se-á em relevo os elementos dos dois paradigmas concorrentes e a irrupção da crise. Por fim, busco compreender como o novo paradigma emergiu com novos aspectos condicionados por questões extrateóricas e mesmo extracientíficas. 2.

PARADIGMAS E REVOLUÇÕES Para que a análise subsequente possa ser conduzida é importante primeiro

explicitar os pressupostos. Como anteriormente mencionado, ela se dará em termos de paradigmas e revoluções. Esta perspectiva de análise foi proposta por Thomas Kuhn no início dos anos 1960 em seu livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”. Kuhn apresenta uma imagem de ciência que não se desenvolve exclusivamente por critérios racionais e que, tampouco, pode ser descrita em termos de processo de acumulação contínua de conhecimentos. Em vez disso, Kuhn caracteriza o progresso científico por rupturas, nas quais o paradigma vigente, isto é, “aquilo que os membros de uma comunidade partilham” (KUHN, 2011a, p. 221), entra em crise e acaba substituído por outro que passa a orientar a atividade científica. Apesar de sua contribuição, as ideias de Kuhn foram alvo de inúmeras críticas entre historiadores e filósofos da ciência. Uma das principais acusações – e a que nos é 2

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crucial nesse trabalho – foi a de que o termo “paradigma” não era muito claramente definido. No posfácio acrescentado à obra sete anos após a primeira publicação o próprio Kuhn reconhece essa fragilidade no esquema proposto: Percebe-se rapidamente que na maior parte do livro o termo ‘paradigma’ é usado em dois sentidos diferentes. De um lado indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação [...] enquanto realizações passadas dotadas de natureza exemplar (KUHN, 2011a, p. 220)

A fim de evitar as mesmas críticas, é mister, portanto, deixar claro o que aqui se considera um paradigma. Kuhn esclarece que um paradigma pode ser entendido como uma “matriz disciplinar”. Segundo ele, essa matriz se compõe de elementos com os quais a comunidade científica se compromete. Buscaremos ao longo do artigo, portanto, esses elementos. Esses elementos se tratam de: (1) “generalizações simbólicas”’ (não apenas símbolos, mas também as fórmulas e expressões, empregadas pela comunidade como sendo “leis da natureza”); (2) “paradigmas metafísicos”, isto é, o modelo metafísico que se encerra por trás do mundo descrito pela teoria; e (3) os “valores”, quer cognitivos, quer sociais. Além disso, os paradigmas têm um segundo significado: os “exemplares”. Eles são os problemas típicos cujas soluções concretas melhor representam a aplicação do paradigma. Logo, são quatro os elementos que aqui se buscam nos eventos históricos para encontrar os condicionantes do nascimento da Termodinâmica. Para este trabalho também é importante compreender como um paradigma entra em crise e é substituído por outro. Os paradigmas entram em crise quando parece que “de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas” (KUHN, 2011a, p. 78). É quando um experimento apresenta um resultado anômalo, que não se encaixa aos compromissos que paradigma exige. Se a crise se aprofunda sem soluções ou com novas anomalias, soluções passam a ser buscadas fora do paradigma vigente. A presença de anomalias, porém, ainda não são suficientes para que um paradigma seja abandonado rompa, pois é necessário outro que o venha a substituir. As alternativas propostas precisam se mostrar capazes de propiciar as soluções. E, à medida que se tem maior sucesso e a confiança em uma alternativa aumenta, o paradigma anterior pode

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então começar a ser desacreditado. Quando finalmente se completam os ajustes e as anomalias desaparecem é se estabelecem os novos compromissos, um novo paradigma. Em suma, essa mudança, a chegada de novo paradigma trata-se, logo, não de apenas de uma nova teoria, mas mesmo um novo jeito de ver o mundo. É, assim, que se pode afirmar que “a transição para um novo paradigma é uma revolução científica.” (KUHN, 2011a, p. 122) 3. UM DUELO ACALORADO 3.1 CONCEPÇÕES PARA O CALOR NA ERA MODERNA Até o século XVI, manteve-se vigente, de modo geral, a concepção aristotélica para a ciência e para a natureza. Quanto às especulações acerca do calor, naõ foi diferente. O fogo era considerado um dos quatro elementos que compõe todas as coisas do mundo sublunar. Porém, uma nova imagem de ciência e de ciência começou a emergir. René Descartes, considerado figura chave nessa mudança, postulava uma nova metafísica e um novo método. Surgia o mecanicismo, que, em linhas gerais, tratava de descrever o mundo em termos de matéria e movimento. Antes, porém, de plenamente formulado, o mecanicismo já existia embrionariamente em especulações de reformadores da ciência. Francis Bacon, por exemplo, a respeito de nosso tema, o calor, dizia se tratar de “um movimento interno de pequeníssimas partículas que constituem o corpo, onde a temperatura depende da velocidade de movimento dessas partículas.” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 34) As teorias do calor formuladas subsequentemente respondem a esses compromissos. Robert Boyle, que descobrira a relação entre pressão e volume, e Robert Hooke, seu assistente, são casos ilustrativos desta posição. Ambos consideravam o calor como apenas agitação das partes da matéria. Hooke, que, por sinal, fez importante contribuição no campo da elasticidade e colisões, forneceu uma interessante explicação para o fenômeno da transmissão do calor. Concebeu que uma partícula sempre que tocada, receberia parte do movimento daquele que a toca, sendo assim, também agitada. (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 35). Sabe-se, contudo, essa posição não era unânime. Galileu Galilei (2000, pp. 222-3), por exemplo, acreditava que as “matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo” fossem também “uma multidão de pequeníssimos corpos”, mas “com 4

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determinadas figuras”. Embora seja importante notar que essas partículas também estavam “agitadas a velocidades altíssimas”, e o calor dependesse desse movimento, havia, em sua concepção, uma matéria própria do fogo, os “corpos ígneos”. Ainda assim, a posição de Galilei também se colocava em acordo com o mecanicismo. Logo, as duas visões compartilhavam que nada havia além de matéria e movimento. Porém, se no primeiro caso colocava-se o calor principalmente em termos de movimento, no segundo se supunha o calor como movimento associado a um tipo especial de partícula. Assim, apesar dos compromissos metafísicos se ajustarem tanto a uma hipótese quanto a outra, notam Pádua, Pádua e Silva (2009, p. 37) que no século XVII, ficaram delineadas duas hipóteses sobre a natureza do calor: uma de que ele era uma substância (Galileu era um de seus adeptos mais famosos – 1613) e outra de que ele estava associado ao movimento (entre seus defensores podemos destacar seu proponente Bacon – 1620, e Hooke – 1665). No entanto, ainda permaneceriam dúvidas sobre qual destas hipóteses era verdadeira e, também, não se tinha estabelecido uma distinção mais precisa entre temperatura e quantidade de calor.

Foi no século XVIII que ocorreu a articulação de cada uma das teorias e apareceram seus “exemplares” e “generalizações simbólicas”. Um dos casos mais destacáveis é o de Daniel Bernoulli. Em seu “Hydrodynamica”, publicado em 1738, ele precocemente intuía que a pressão de um gás podia ser obtida a partir da variação do momento linear de partículas ao colidirem com as paredes do recipiente. Assim, Bernoulli explicava a Lei de Boyle-Mariotte por meio da suposição de que à temperatura constante a velocidade média das partículas de um gás permanecia constante, reforçando por meio de exemplares da aplicação da teoria cinética dos gases. Não obstante, articulavam-se também as teorias que postulavam ser o calor uma substância. Em 1697, Stahl propusera a teoria do flogístico, um antecessor do calórico. Para ele, o flogístico era um elemento sem peso, presente em todos os materiais combustíveis (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 36). Os casos exemplares de aplicação se encontravam especialmente nos fenômenos da combustão e da oxidação. Dois experimentos ajudariam a desenvolver a futura teoria do calórico. Uma delas foi a observação feita pelo russo Richmann, em 1747. Enquanto estudava os 5

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fenômenos dos corpos se resfriando ou evaporando, ele observou diferentes taxas para as variações da temperatura de acordo com as diferentes substâncias, apesar de se encontrarem em mesmo estado de agregação. Podia, assim, concluir que a temperatura de um corpo não dependia apenas do grau de agitação (e, consequentemente, da distância) das partículas, haja vista o estado de agregação. Ademais, “isto era um indício de que o calor era diferente da temperatura” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 40). Em 1754, foi a vez de o meteorologista suíço Deluc observar que, durante a fusão, a temperatura do gelo não variava. Verificava-se, pois, a existência de um calor “latente”. Sozinho, o movimento não podia agora explicar as propriedades do calor, pois alterando o “movimento de cada uma das pequeníssimas partes, a temperatura podia se manter exatamente a mesma.” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 40). Foi, finalmente, em 1760 que Black propôs a teoria do calórico. Examinando os experimentos de Richmann e Deluc, e também por experimentos próprios, Black concluiu que o calor era uma substância, “um fluido expansivo”. Mas merece destaque que essa substância calórica ainda se adequava em algum grau aos compromissos mecanicistas. Pois as propriedades do calórico se deviam em “consequência da repulsão subsistente entre suas próprias partículas.” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 40). A consequência mais importante da teoria do calórico era que não podia ser criado nem destruído, sendo, portanto, necessariamente conservado. Assim, ao final do século XVIII, tinham-se duas teorias sobre o calor incompatíveis. Mas as duas ainda compartilhavam compromissos metafísicos próximos, atrelados à visão de mundo onde é possível descrever os fenômenos em termos de movimento e matéria, embora esta não seria mais necessariamente passiva, desafiando um mecanicismo tão ortodoxo. 3.2 BOTANDO LENHA NA CALDEIRA Para a análise do paradigma, há ainda outra questão. Sem embargo a presença de outros personagens, como Galileu. são Bacon e Descartes os protagonistas de outros compromissos que guiariam os avanços científicos no nosso campo de interesse. Com eles, não apenas a parte metafísica do paradigma , mas também seus valores eram concebidos. Pois, de acordo com Bacon (1991, p.25), o conhecimento só se “alarga [...] quando as suas observações, das coisas e do espírito, se prendem a natureza” e,

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completaria Descartes (1979, p. 63) com a finalidade de “nos tornar como que senhores e possuidores da natureza”. Se o mecanicismo, em seus fundamentos, supunha um funcionamento maquinal, os valores paradigmáticos do controle e domínio da natureza impulsionariam os homens a empreender a construção das máquinas a fim de aproveitar as virtudes prometidas por essa imagem mecânica da natureza. Para nosso caso, em particular, interessam os desenvolvimentos das máquinas a vapor. Em 1679, na França, Papin descobriu que a água quando aquecida em um recipiente fechado gerava enorme pressão. A partir desse princípio, projetou uma máquina com um cilindro e um pistão. Pouco depois, de forma independente entre si, os ingleses Thomas Savery e Thomas Newcomen construíram bombas a vapor para tirar água das minas de carvão (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 35-6). Sendo as máquinas de Savery e Newcomen úteis mas pouco eficientes, muitos, ainda que de forma amadora, se empenharam no seu desenvolvimento. Assim, ao longo de um século, adquiriram importância econômica e social à medida que se aperfeiçoavam e se aperfeiçoavam à medida que se tornavam ainda mais importantes. Em 1765, Watt modificou a máquina de Newcomen, adaptando-a a um condensador externo obtendo uma máquina a vapor mais eficiente e econômica. Com a proliferação das máquinas na Inglaterra, chegava-se ao cume: à Revolução Industrial. E tornava-se cada vez mais nítida a associação entre calor e trabalho mecânico. Isso propiciou na ilha que a teoria cinética do calor ganhasse mais adeptos, em relação a outros lugares. Kondepudi e Prigogine (1998, p. 32) expressariam as diferenças dessa diferença geográfica: Embora a distinção entre temperatura e calor fosse conhecida no século XVII em vista do trabalho de Joseph Black e outros, a natureza do calor não era claramente compreendida até meados do século XIX. Robert Boyle, Isaac Newton e outros detinham o ponto de vista que o calor era movimentos microscópicos de agitação das partículas. A visão oposta, que prevalecia na França, era que o calor era como um fluido indestrutível que era trocado entre os corpos. Esta substância era o calórico e era medido em caloria. De fato, figuras como Antoine-Laurent Lavoisier, Jean-Baptiste-Joseph Fourier, Pierre-Simon Laplace, SiméonDenis Poisson, todos eles defendiam a teoria do calórico. 7

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3.3 AS DUAS TEORIAS SE CHOCAM Próximo da virada do século, como bem reconheciam os franceses Lavoisier e Laplace, permanecia uma divisão da comunidade científica quanto à natureza do calor. Enquanto uns pensavam que se tratava de um fluido que penetra mais ou menos no corpo conforme a sua temperatura e a sua disposição para retê-lo; outros pensavam que o calor não era nada mais do que o resultado dos movimentos das moléculas da matéria (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 49). Apesar de o próprio Lavoisier “descobrir” o oxigênio e abrir caminho pra uma teoria atômica de Dalton, enfraquecendo, desta forma, a dependência da explicação dos fenômenos de oxidação e combustão em relação à teoria do flogístico n (KUHN, 2011a, p. 79-81), dois outros acontecimentos, decorrentes do processo de fabril industrial, viriam a desafiar também a teoria do calórico. Em 1798, Rumford notou que, durante o processo de perfuração na fabricação de canhões, a temperatura se elevava enormemente. Concluiu daí que uma quantidade muito grande de calor, aparentemente inesgotável, podia ser produzida pelo atrito de duas superfícies metálicas (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 45-6). Depois foi a vez de Davy desafiar a teoria do calórico. Com a temperatura abaixo do ponto de fusão, esfregou dois pedaços de gelo e observou as peças mesmo assim derretiam. (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 46) A teoria do calórico definitivamente não podia explicar tais resultados. Todavia, a teoria do calórico ainda tinha mais sucesso para questões envolvendo o limite para esta conversão. (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 49). Essas questões, então, constituíam anomalias para a teoria cinética. As duas teorias precisavam ser unificadas, mas o que acontecia é que entravam em choque. 3.4 UM NOVO PARADIGMA ACENDE A crise dos paradigmas, mesmo concretizada pelo choque das teorias e das anomalias expostas, apenas poderia se encerrar se houvesse a emergência de outro paradigma a altura para substituí-los. Neste âmbito foi especialmente importante fatores de ordem socioeconômica. Vimos que, nos anos finais do século XVIII, a Inglaterra passava por um momento de auge do florescimento industrial. E que, com a proliferação das máquinas pela ilha, tornava-se cada vez mais nítida a associação entre calor e trabalho mecânico. 8

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O interesse na convertibilidade apontava para uma importante modificação nos valores do paradigma vigente, uma vez que o valor de domínio e controle da natureza podia também ser formulado em termos de se compreensão daquilo que se fazia útil para a produção material fabril. Na França, por outro lado, ao mesmo tempo, eclodia a Revolução que a faria se enfiar nos problemas de ordem político-militar, dificultando a corrida para alcançar a Inglaterra nos anos subsequentes. O interesse no desenvolvimento não só econômico, mas também, e principalmente, militar cresceu enormemente em terras francas. É justamente pelas mãos dos homens que buscavam aperfeiçoar as máquinas militares que surgiria, então, as propostas para as soluções dos problemas sobre o calor, sobre seu limite e eficiência. Sadi Carnot, conforme dito anteriormente, era um desses homens jovem engenheiro militar que se interessava pelo rendimento das máquinas térmicas. Como um francês, concebia o funcionamento das máquinas sendo resultado de ação do calórico (KONDEPUDI; PRIGOGINE, 1998, p.32). As “Réflexions” de Sadi Carnot, como aparece nas primeiras páginas da obra, buscava compreender o potencial das máquinas térmicas. São, portanto, um tratado de engenharia, refletindo mais o comprometimento com o valor do controle, domínio e utilidade em vez da contemplação e teoria. Era um trabalho fruto da observação empírica que pouco especulava sobre os pressupostos teóricos (CARNOT, 1824, p. 1). Tendo em vista a ideia de escoamento do calórico compreendeu que, como a queda d’água impulsionava o motor d’água, a queda de temperatura impulsionava o motor térmico pela passagem daquele fluido calórico (CARNOT, 1824, p. 8-11). Esse é o passo inicial para descrição do funcionamento das máquinas térmicas. Na sequência da obra Sadi Carnot descrevia o funcionamento da máquina térmica. Apresentava como um ciclo que partia de um estado inicial se expandindo isotermicamente (nessa expansão, deveria absorver “calor” do ambiente). Depois a expansão continuaria sem troca de calor com o ambiente, e a temperatura diminuiria. Depois o sistema reduziria seu volume isotermicamente e entraria no quarto e último estágio, quando por compressão adiabática retornaria ao estágio inicial. (CARNOT, 1824, p. 17-8).

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Foi assim que Carnot, mais voltado para a tecnologia do que para a ciência, possibilitou o cálculo do dimensionamento dos motores térmicos, e apresentou o principal “exemplar” do novo paradigma. Em uma máquina térmica funcionando em condições ideais, escreve Carnot, “a uma certa quantidade de calor fornecido à caldeira corresponde um trabalho recolhido, independentemente dos agentes postos em ação para realizá-lo. Esse trabalho é fixado unicamente pelas quantidades de calor trocados entre o motor térmico e o ambiente” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 83). A questão da convertibilidade de “trabalho” em “calor”, entrementes, necessitava que se encontrasse uma espécie de denominador comum, que não podia se formular na metafísica do mecanicismo (KUHN, 2011b, p. 116). Por isso, Sadi Carnot partia da teoria do calórico. Mas depois precisaria desvinculá-lo da noção de substância. Seu primeiro princípio, o do estabelecimento quantitativo do calor conversível em trabalho, levaria à conclusão de que ambos precisavam ser reduzidos a quantitativos cinético e potencial da interação de partículas. (KONDEPUDI; PRIGOGINE, 1998, p. 32) A solução para tal problema era o surgimento do conceito de “energia”. Era também solução para a multiplicidade dos fenômenos térmicos, químicos e elétricos que estavam sendo investigados naquele tempo. Mostrava-se cada vez mais que havia uma grande teia de inter-relacionamentos entre os fenômenos do calor, da eletricidade, do magnetismo e da química (KONDEPUDI; PRIGOGINE, 1998, p. 31; KUHN, 2011b, pp. 115). E logo a comunidade científica apreenderia que a ideia que todos esses efeitos na verdade representavam a transformação de algo quantitativamente indestrutível. Esta lei da conservação de energia ficou conhecida como a Primeira Lei da Termodinâmica (KONDEPUDI; PRIGOGINE, 1998, p. 31). Se alguma na noção de dinâmica até então alguns raros exemplos tentavam incluir o conceito de força para complementar o mecanicismo e explicar a gravitação, no surgimento da Termodinâmica, o paradigma emergente substitua na parte metafísica um componente em lugar do movimento, a energia, para dar conta do movimento ao mesmo tempo em que mantinha uma matéria passiva (ABRANTES, 1998, p. 84). Os desenvolvimentos subsequentes ainda tomaram grande parte da história do século XIX na articulação da conservação de energia, quando se destacariam os trabalhos de Helmholtz, Joule, Mayer etc. na década de 1840 (KUHN, 2011b, p. 89).

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Além da conservação de energia, Sadi Carnot também contribuiu com a Segunda Lei da Termodinâmica. E aqui se vê novamente a influência do valor da utilidade e das questões sócio-históricas para o novo paradigma, já que ela é que responde às questões relacionadas à eficiência da indústria. Carnot percebera no ciclo descrito que um condensador externo incluído por Watt era indispensável, pois mantinha a diferença de temperatura, motor da máquina. Era nele que parte do calor que a caldeira fornecia, e que não se transformava em trabalho no pistão, era transferido. Mas, simultaneamente, representava uma ineficiência intrínseca e irremovível do processo. (CARNOT, 1824, p. 19). Inseria-se, porém, mais que a solução para os problemas de eficiência, um postulado empírico sobre a irreversibilidade dos processos, não presente na mecânica newtoniana. A Segunda Lei da Termodinâmica ficaria mais clara nas formulações subsequentes. Kelvin enunciaria em 1851 que “nenhum processo é possível em que o único resultado seja a absorção de calor de um recipiente e a sua completa conversão em trabalho” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 104). Com Clausius, em 1865, seria responsável por mais um conceito na Termodinâmica, a “entropia”, na fórmula seguinte: “a entropia do universo não diminui: não é afetada em processos reversíveis e cresce em processos irreversíveis.” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2009, p. 58) Com as duas leis da Termodinâmica, o paradigma se estabelecia com suas “generalizações simbólicas”. A parte metafísica também ganhava dois novos conceitos: “energia” (mais tarde subdividida em “entalpia” e “energia interna”). Ademais, ele também encontrava uma mudança do valor da empiria e do controle para o valor do poder explicativo para se fixassem então teorias. Não é em vão que a Termodinâmica se veria passar da aproximação empírica para a aproximação postulacional com Gibbs ainda no século XIX, e com Callen no século XX. (MOULINES, 1982, p. 137-9). Também o número de “exemplares” da Termodinâmica aumentaria e, enfim, e o poder explicativo se reproduziria a outros problemas, servindo até para uma teoria evolutiva (KONDEPUDI; PRIGOGINE, 1998, p. 3). Foi assim que, curiosamente, a Termodinâmica, nascida em “meio de questões tecnológicas [...], adquiriu rapidamente um caráter cosmológico” (PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2011, p. 58). Prova de que a obra de Sadi Carnot representou realmente um ponto de virada de todos os elementos da matriz disciplinar, apta a substituir o(s) paradigma(s) anterior(es) e uma nova maneira de ver as coisas, sendo marco de uma “revolução científica”. 11

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Para as considerações finais deste artigo, é importante recapitular que nosso

objetivo era analisar a importância da atitude cognitiva associada às descobertas das duas leis fundamentais da Termodinâmica. Se, por um lado, ela foi alvo de muitas reformulações desde as “Réflexions” de Sadi Carnot, por outro é inegável que a primeira formulação concreta se encontra nelas. Assim, nada mais natural do que chamá-lo de o pai da Termodinâmica. Mas ao longo deste artigo também foi exposto que as descobertas não aconteceram em meio a nada, ex nihilo. Vimos, portanto, que houve pressupostos extrateóricos que fundamentais que condicionariam o seu aparecimento. É o caso do valor da utilidade, com formulação do controle e domínio da natureza na era da Revolução Industrial. Dificilmente a Termodinâmica emergiria sem o trabalho de cientistas amadores da indústria como Savery, Newcomen, Watt e Joule. Como apontam Kondepudi e Prigogine (1998, p. 3), a invenção que convertia calor em energia mecânica impulsionou não apenas a Revolução Industrial, mas fez nascer também uma nova ciência que, diferentemente da newtoniana, cuja origem esteve nas teorias dos movimentos dos corpos celestes, surgia de um interesse mais prático. Também é curioso notar o surgimento de uma teoria a partir do choque entre outras duas. Tal como a questão dos padrões em competição, a resolução desse embate recebeu fortes insumos de critérios exteriores à ciência. Sadi Carnot, como mencionado, não podia prescindir inicialmente de um compromisso metafísico de fluxo de substância para compreender as máquinas térmicas. Como se descobriu mais tarde, em 1878, quando Hyppolite Carnot divulgou anotações de seu irmão Sadi Carnot, este havia abandonado antes da morte a teoria do calórico em prol de uma teoria cinética. Ou seja, o enfrentamento das duas teorias ocorria no interior dos próprios cientistas, e foi crucial para o surgimento do conceito de energia e na modelagem dos novos compromissos metafísicos e cosmológicos. Por fim, pode-se afirmar que olhar para os pressupostos extrateóricos ajuda a compreender as bases de onde brotou a Termodinâmica e sua nova visão de mundo. Justamente essa novidade evidencia a mudança de paradigma, pois como afirmaria Thomas Kuhn (2011a, p. 147): “durante as revoluções, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente.” 12

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