A revolução cruza o Atlântico: Aproveitando-se da frouxa vigilância, franceses fizeram circular ideais libertários no fértil terreno da sociedade baiana

July 3, 2017 | Autor: Luiz Villalta | Categoria: Enlightenment, History of Political Thought, Colonial Brazil, Bahia
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A revolução cruza o Atlântico Aproveitando-se da frouxa vigilância, franceses fizeram circular ideais libertários no fértil terreno da sociedade baiana Luiz Carlos Villalta 1/7/2015

O alerta foi disparado pela Intendência Geral de Polícia de Lisboa, em 1792: uma expedição francesa estava a caminho do Brasil com o objetivo de “republicanizar a colônia portuguesa na América”. Expediuse então uma Ordem Régia de D. Maria ao governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal e Castro, recomendando-lhe vigilância sobre o navio Le Diligent, que teria sido armado para “introduzir nas colônias estrangeiras o mesmo espírito de liberdade” que reinava na França e “dividir as forças dos soberanos do Novo Mundo”. A embarcação, que passaria pelo Rio de Janeiro e pela Bahia, trazia a bordo a Constituição francesa traduzida em espanhol e em português. D. Fernando, no entanto, tinha fama de frouxo e inepto, governante de poucas realizações. Não agia com prevenção e não desenvolvia a contento as funções repressivas que lhe cabiam para refrear as rebeldias dos escravos e a quebra da disciplina entre os militares. Nas tropas, reinavam a dissolução dos costumes e o desrespeito. Na administração A riqueza das nações, de da justiça, o governador atuava sempre em defesa dos interesses dos Adam Smith. O padre desembargadores da Bahia. Tal inércia facilitaria a propagação das Francisco Agostinho Gomes ideias francesas de revolução nos anos seguintes. era leitor do economista liberal e lamentou que o seu Em 30 de novembro de 1796, chegou à capitania o comandante da nau “sistema” não fosse seguido francesa La Preneuse, Antoine René Larcher. Bem recebido pelo alto no Brasil. (Imagem: escalão do poder em Salvador, Larcher encontrou-se com jovens da elite Reprodução) baiana ativos e radicais do ponto de vista político, livres das “velhas superstições” e ávidos na leitura de livros franceses. Supõe-se que, em serões secretos na casa do farmacêutico João Ladislau Figueiredo de Melo, o comandante francês tenha desfiado a filosofia dos enciclopedistas e suas teorias políticas diante de pessoas como o padre Francisco Agostinho Gomes, o cirurgião Cipriano Barata de Almeida, o aristocrata canavieiro Inácio Siqueira Bulcão e o professor Francisco Moniz Barreto. Essa movimentação escandalizou a maior parte da elite local. O tenente Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja, escalado para vigiar o francês, chegou a ser repreendido pelo governador em razão do seu excesso de entusiasmo com o visitante. Larcher partiu da Bahia em janeiro do ano seguinte. Em agosto, submeteu à aprovação do Diretório, que dirigia a República francesa, um projeto de invasão de Salvador. Ele havia recolhido informações sobre os recursos de defesa da cidade, como munições e a localização dos fortes. Afirmava existir um poderoso sentimento antiabsolutista em parte da elite local, traçando um projeto de aliança política entre luso-americanos e franceses, que contaria com a sublevação de parte da tropa aquartelada na Bahia. Os franceses cuidariam da proteção da capitania até a organização do aparelho de Estado soberano em moldes republicanos, ao que se seguiria a independência. Deste lado do Atlântico, o coronel José de Mattos Ferreira e Lucena alertava o governador baiano sobre a ocorrência de conversas sediciosas. A providência de D. Fernando foi advertir os participantes sobre os perigos que corriam, fazendo com que alguns deles saíssem de circulação. Em outra atitude tolerante,

satisfez-se em chamar a atenção do tenente Hermógenes Pantoja por seu envolvimento em conversas sediciosas, que por isso ficou recolhido em casa e foi dado como doente. Em maio de 1798, o governador escreveu para a Corte mostrando-se tranquilo quanto à situação da capitania. Dizia que a “lição de papéis públicos” – como as gazetas inglesas, que não eram proibidas – estimularia a curiosidade de algumas pessoas – “especialmente entre a mocidade menos cordata e leve de entendimento”. Elas ficavam animadas para falar com “mais alguma liberdade ou leveza” sobre os acontecimentos europeus, sem que com isso se introduzissem, porém, “princípios Jacobinos” ou se dessem “ajuntamentos perniciosos”. A postura tolerante do governador comprova sua inépcia política – ou dá margem para que hoje se pense em seu possível envolvimento com a ebulição insurgente. Embora o governo francês tenha refutado a proposta de invasão da Bahia, não desistiu de acompanhar o que se passava na Cipriano Barata, outro envolvido que América portuguesa, onde continuou a atuar para desenvolver o contrabando e semear a revolta. Nessa iniciativa, contava com estava em dia com as novidades parceiros internacionais: agentes privados e alguma cobertura da europeias. (Imagem: Fundação embaixada da Espanha em Lisboa. Segundo a Intendência de Biblioteca Nacional) Polícia portuguesa, madame Joana Entremeuse, que estava entre os passageiros trazidos por Larcher em 1796, fez depois repetidas viagens ao Brasil, “talvez por ser encarregada de fazer algumas indagações ou dispor os ânimos de alguns habitantes daquelas duas Cidades [Rio de Janeiro e Salvador] e ganhar amizades com algumas famílias para outros fins” – ou seja, misturava atividades de contrabando com espionagem. O governo português parecia ter consciência do perigo, ainda que não pudesse radiografá-lo com precisão. Em junho de 1798, o governador D. Fernando recebeu um ofício de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro do príncipe regente D. João, com uma avaliação negativa a respeito de sua gestão, criticando-lhe e falta de firmeza. As críticas do ministro prosseguiram mesmo depois que o governador ordenou a investigação sobre os pasquins afixados em Salvador, em agosto daquele ano. Em outubro, mencionou os murmúrios que haviam chegado a Lisboa sobre o comportamento e as ideias de figuras importantes da sociedade soteropolitana, que estariam afetadas por “abomináveis” princípios franceses. Era o caso do padre licenciado Francisco Agostinho Gomes. Nascido em Salvador, filho de um rico comerciante, ele foi enviado cedo para Portugal a fim de abraçar a vida eclesiástica. Com a morte do pai, herdou uma fortuna, voltou ao Brasil e passou a se dedicar à ciência, particularmente à botânica. Na biblioteca de Agostinho em Salvador havia títulos em francês e inglês, sobretudo de história natural, economia política, viagens e estudos de filosofia. Ao viajante inglês Thomas Lindley, o padre elogiou a História da América, de William Robertson, que critica a colonização europeia no continente. Quanto a A riqueza das nações, de Adam Smith, lamentou por “quão pouco do seu sistema” ser “observado no Brasil”, possivelmente referindo-se ao monopólio comercial e à defesa do livre-comércio. De acordo com Lindley, Agostinho Gomes estava familiarizado com as disputas políticas do mundo anglo-saxão, pois discorreu sobre os estudos de Thomas Paine, enfatizando, ao que parece, a defesa da independência da América inglesa. Percebe-se o quanto o padre se afinava com as ideias mais radicais do Iluminismo, uma perspectiva crítica que se somava ao seu profundo interesse pela ciência – segundo Lindley, ele era uma exceção no panorama intelectual do Brasil em pleno século das Luzes. Em sua vida privada, o padre licenciado não seguia as regras estabelecidas pela Igreja: mantinha relações ilícitas com uma viúva, com a qual teve sete filhos, e foi acusado de promover jantares de carne em dias de preceito religioso. Nos anos de 1797 e 1798, Agostinho envolveu-se nas discussões relacionadas à conjuração que eclodiu na Bahia.

Vista de Salvador por Luís dos Santos Vilhena, em 1801. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)

Outro suspeito de D. Rodrigo era o cirurgião Cipriano Barata, que retornou à Bahia no fim do século XVIII após estudar na Universidade de Coimbra. Segundo documentos da Inquisição, o médico articulou proposições heréticas e de sedição num sistema coerente de ideias. Fazia uso de manuscritos trasladados, copiados por letrados e postos em circulação entre os rústicos, com argumentos contra as autoridades religiosas e monárquicas. “Afirmam e mostram crer que (...) não há Inferno, nem Purgatório; que a morte do homem é igual à de outro qualquer Bruto e que, por isso, aquele pode usar livremente da sua vontade e gozar das delícias que o Mundo produz; que tudo o que se vê criado sobre a Terra se deve ao Homem, e não a Deus”, registrou a Inquisição sobre Cipriano Barata e Marcelino Veloso, companheiro de sedição. Para o comissário da Inquisição de Lisboa, João Lobato de Almeida, essas “francesias” disseminavam desobediências. E o governador da Bahia continuava omisso. Quando a rainha mandou que D. Fernando prendesse o padre Agostinho e seus amigos, ele não cumpriu a ordem. Abriu uma devassa, que se limitou a ouvir pessoas que nada sabiam. Luiz Carlos Villalta é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações (Fino Traço, 2015). Saiba mais JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo/Salvador: Hucitec/UFBA, 1996. MOTTA, Carlos Guilherme. Ideia de Revolução no Brasil (1789-1801): estudo das formas de pensamento. Petrópolis: Vozes, 1979. RUY, Affonso. A Primeira Revolução Social Brasileira (1798). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. TAVARES, Luís Henrique Dias. História da sedição intentada na Bahia em 1798: a conspiração dos alfaiates. São Paulo: Pioneira, 1975.

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