A Revolução, o Estado e as Igrejas

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A Revolução, o Estado e as Igrejas José Barreto (ICS-UL)

[Comunicação lida no I Curso Livre de História Contemporânea, Lisboa, Fundação Mário Soares (23 a 28 de Novembro de 1998). Texto publicado em: Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976), coordenação científica de Fernando Rosas. Lisboa: Edições Colibri, 1999, pp. 251-262.]

A Igreja católica portuguesa, muito especialmente a sua hierarquia, viveu uma longa lua-de-mel, se assim me posso expressar, com a ditadura de Salazar. O Cardeal Cerejeira — incontestado chefe ou figura tutelar dessa Igreja — rebateu sempre a acusação de que houvesse uma aliança ou um enfeudamento católico ao regime salazarista1 e preferia chamar-lhe uma relação de harmonia da qual a Igreja tinha tirado indiscutíveis benefícios. Dizer que foi uma relação de harmonia entre o Estado e a Igreja é apenas, a meu ver, uma forma diferente, algo eufemística, de dizer lua-de-mel. Salazar, quanto a ele, jactando-se sempre dos numerosos “benefícios” e “carinhos” de que rodeara a Igreja, usava por vezes a expressão frente nacional, pressupondo nela integrados os católicos e as autoridades eclesiásticas 2. Para o ditador, era esse o nome da base social e política de apoio do seu regime. Isso diz muito sobre o tipo de harmonia que segundo ele e segundo o Cardeal Cerejeira existia entre o Estado e Igreja. Em virtude dessa relação de harmonia, colaboração, carinho e benefícios mútuos, houve no seio do Episcopado e do clero em geral, sobretudo em determinados momentos do pós-guerra, um certo medo do que sucederia à Igreja se o regime caísse. Receio que se pode ter firmado ainda mais quando se teve notícia dos apuramentos de responsabilidades e das depurações que se fizeram no clero de vários países europeus pela sua colaboração com os regimes autoritários respectivos e até, quando foi caso disso, pela alegada colaboração com o ocupante estrangeiro. Em França, em 1945, o governo de Charles de Gaulle — não por gosto do general, mas porque a isso foi muito instado pelos católicos da Resistência — pediu ao Papa a destituição do Núncio e de mais 30 bispos pétainistas, entre os quais um cardeal 3. Embora Pio XII tivesse cedido apenas no núncio e em três ou quatro bispos, ficara um importante precedente criado. O medo das consequências da eventual queda do regime salazarista, apesar de ter sido um medo real ao menos para uma parte do clero português em alguns (raros) 1

Uma história sucinta dessas acusações, pelo prisma do principal acusado, encontra-se em D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Na Hora do Diálogo - Resposta a Muitas Questões, Lisboa, 1967, pp. 11-27, capítulo intitulado “Para a história dum mito”. 2

Veja-se, entre outros, o célebre discurso de Salazar na tomada de posse da comissão executiva da União Nacional, a 6 de Dezembro de 1958. 3

Michèle Cointet, L’Église sous Vichy, Perrin, Paris, 1998.

períodos nevrálgicos de agitação política, era todavia retoricamente empolado para servir de arma contra a oposição. Da homilia dominical e do jornal paroquial até às posições do Episcopado nacional, passando pela propaganda radiofónica e depois televisiva, traçavam-se de tempos a tempos quadros mais ou menos assustadores do que seria do País, da religião, das Igrejas, dos padres, etc., se a oposição socialista, comunista, maçónica e liberal tomasse conta do governo. Em 1961, concretamente, alguns pontos do programa político subscrito pela oposição não comunista intitulado Programa para a Democratização da República, pontos que preconizavam a neutralidade política da Igreja e a laicização do ensino público, foram aproveitados, em vésperas de campanha eleitoral e num dos anos de maior instabilidade para o regime, para uma reacção pública desproporcionada do Episcopado, visando de forma transparente alarmar os católicos, como na época observou o Bispo do Porto, então a viver no exílio para onde Salazar o enviara dois anos antes 4. Havia imagens mais terríficas para se conseguir esse efeito de alarme e prevenção dos católicos contra um regime de liberdade e democracia, imagens que se iam buscar ao baú de recordações da I República, por vezes exageradas e distorcidas, ou imagens coevas da perseguição bem real às Igrejas nos países comunistas ou, enfim, imagens que se pediam emprestadas à Guerra Civil de Espanha, com bispos e padres fuzilados, freiras violadas, igrejas profanadas, saqueadas e incendiadas. Uma frase alegadamente dita em 1912 por Afonso Costa numa reunião maçónica, segundo a qual a religião católica se extinguiria em duas gerações em Portugal graças à Lei de Separação e restante legislação republicana aprovada após o 5 de Outubro — frase essa de imediato desmentida pelo próprio Afonso Costa e outros políticos da República 5 — serviu durante 40 anos à propaganda do nacional-catolicismo, à Igreja e ao governo de Salazar, como um eficaz repelente de carácter religioso contra a oposição ao regime. Era fácil, com a ajuda da censura e dos media dependentes do governo e até dos da Igreja, como a Rádio Renascença — e sem 50 canais de televisão por cabo nem Internet, como hoje há — convencer muita gente de que Salazar era santo e os seus opositores demónios. O próprio Padre Abel Varzim, antes e depois de se incompatibilizar completamente com o regime, se referia em cartas que escreveu ao Cardeal Cerejeira (1947) e ao Bispo do Porto (1958) à possível catástrofe para a Igreja que se seguiria a uma queda do regime de Salazar, e até à chacina da qual ele, Padre Varzim, pensava que se arriscava a ser uma das primeiras vítimas. Ele, que foi um dos mais corajosos desmistificadores do corporativismo e um dos primeiros padres a lutar para que a Igreja se descomprometesse do regime... Um dia, quando na Assembleia Nacional o então deputado Padre Varzim uma vez mais havia denunciado a inutilidade para os 4

D. António Ferreira Gomes, Carta ao Cardeal Cerejeira (16 de Julho de 1968), Introdução e notas de José Barreto, ed. Publ. D. Quixote, Lisboa, 1996. 5

Eurico de Seabra, A Igreja, as Congregações e a República, Lisboa, 1914, 2.ª ed. com prefácio de Afonso Costa, pp. 695 e segs.

trabalhadores da organização corporativa portuguesa, um dos dirigentes máximos da União Nacional advertiu-o por escrito, num tom solene, que “quando as Igrejas arderem e a carne dos padres rechinar”, então é que se veria como eram correctas a doutrina e a política do governo de Salazar 6 (para quem não sabe, rechinar é o ruído que faz a gordura da carne a assar sobre as brasas). Por aqui se vê como não era só o clero que utilizava este tipo de argumentação para meter medo aos fiéis, mas também o governo para apavorar o próprio clero. Na verdade, não sei se é preciso dizê-lo, estas imagens terríficas e sanguinolentas eram puramente retóricas e pouco tinham a ver com a realidade portuguesa do século XX. Não consta que a República tenha feito uma só vítima mortal entre o clero, ao contrário, por exemplo, do reinado de D. José, em que se lançou à fogueira o Padre Malagrida por andar a agitar as consciências populares contra o governo. Existia, de facto, por parte do clero e de muitos católicos, um certo receio de origem mais racional porque havia uma noção nada abstracta de que o regime de Salazar comprometera a Igreja e esta se achava comprometida com o regime. Este comprometimento assumia variadíssimas formas e modalidades. Não poderia agora inventariá-las exaustivamente, mas lembro que em 1958, quando da célebre carta que o Bispo do Porto escreveu a Salazar e que acidental ou incidentalmente se transformou em carta aberta provocando forte comoção entre os católicos e um abalo político por todo o País, o leitmotiv da intervenção do Bispo era precisamente a necessidade de descomprometimento da Igreja em relação ao regime. E era-o, concretamente, porque nas eleições presidenciais de 1958 o poder uma vez mais quisera que a Igreja se empenhasse visivelmente a seu lado e insistira, em especial, com esse Bispo — o único que tinha fama de não apoiar Salazar — para que se deixasse conotar nos media com a candidatura de Américo Tomás 7. Na sua carta-memorando ao ditador, o Bispo do Porto inverteu habilmente os termos da acostumada chantagem com o papão anti-religioso, usado para assustar os portugueses à boca das urnas, elas próprias sempre viciadas. D. António Ferreira Gomes invocava na sua carta precisamente a iminência de uma “erupção anarco-socialcomunista” que, deixava implícito, fatalmente viria castigar também a Igreja, se esta se não divorciasse a tempo do salazarismo e não tratasse de se preparar de imediato para aguentar o embate futuro. E preparar-se, como? Muito simplesmente, segundo D. António — e foi o único membro destacado do clero a dizer algo semelhante em mais de 40 anos — encorajando os católicos a que, de uma forma livre, se exprimissem e se organizassem politicamente, adoptando o programa ou os programas (no plural, sublinhe-se) que muito bem entendessem. Embora já antes de 1958 estivesse a esboçarse um fluxo de dissidência política entre os católicos e no próprio clero, o Bispo do 6

“Duas cartas contraditórias?”, em Abel Varzim e os trabalhadores, nº especial de Educação e Trabalho, n.º 15, Jul./Set. 1980. 7

A candidatura de Humberto Delgado procedeu de modo simétrico, tentando conotar a Bispo com o campo oposicionista.

Porto temia que, dada a conhecida tendência para a radicalização da oposição nas circunstâncias dum regime monolítico e opressor, os católicos que em 1958 estavam a abandonar em massa o barco do Estado Novo — como se vira na campanha presidencial de Humberto Delgado — fossem sorvidos por esse processo de radicalização e captados facilmente por organizações marxistas. O seu receio era perfeitamente realista, porque o Bispo estava atento à realidade social e política e conhecia bem o poder de atracção das ideias comunistas sobre os jovens. Como durante muitos anos se previu ou se temeu, desde o princípio da Revolução de Abril de 1974 que houve, de facto, quem quisesse ver ajustadas certas contas com a hierarquia da Igreja, pelo apoio activo e cumplicidade do clero com o regime autoritário ou pelo sistemático silêncio, conformismo e subordinação em face do dito regime. Naqueles anos do princípio da década de 70 o acento acusatório incidia talvez mais claramente sobre o apoio da hierarquia da Igreja portuguesa à política colonial e consequentemente à guerra, em especial após a audiência de Paulo VI aos dirigentes dos movimentos de libertação das colónias. A particularidade que quero destacar é que, a seguir ao 25 de Abril, o ajuste de contas com a hierarquia da Igreja foi visivelmente desejado e reivindicado, em primeiro lugar, não por mações ou comunistas, mas por católicos — activistas e sacerdotes, a que podemos chamar aqui católicos das bases, por confronto com a hierarquia. Católicos esses que há muito se sentiam chantageados politicamente através da sua própria religião, defraudados e traídos pela atitude colaborante, falsamente apolítica do Episcopado, que se sentiam amordaçados pela dupla censura estatal e eclesiástica e porque queriam e exigiam uma Igreja nova, livre, arejada, plural, actualizada pelo espírito do Concílio, descomprometida com os poderosos e com o governo, mais próxima dos problemas e preocupações do povo. No mínimo, queriam que a Igreja deixasse de ser local de acantonamento das forças conservadoras. Penso que se não fosse a contestação do Episcopado levada a cabo por esse sector militante católico de base, à imagem do processo de contestação da autoridade que estava em curso em todos os sectores da sociedade portuguesa, se não fosse essa consequência da existência já de uma certa pluralidade política no seio da Igreja anteriormente à revolução, então sim, ter-se-ia talvez assistido a perseguições e, de novo, ao eclodir de uma questão religiosa, porque o ajuste de contas teria sido mais sério e teria vindo do exterior da Igreja, como no tempo do liberalismo e da República. Aqui residiu um evidente erro de cálculo dos conservadores alarmistas que, no passado, tinham agitado o papão jacobino e comunista perseguidor da Igreja. Contrariamente ao pombalismo, ao liberalismo e ao republicanismo, que expatriaram jesuítas e extinguiram ordens religiosas, que confiscaram bens, prenderam padres e retiraram poderes e benefícios à Igreja, o 25 de Abril apenas provocou uma onda de rebeldia e de contestação (apesar de tudo bastante suaves, diga-se em abono da verdade) de bases militantes católicas contra a hierarquia. Além disso houve meia dúzia de conflitos laborais, um deles grave, na Rádio Renascença, incentivados por católicos

esquerdistas e grupúsculos revolucionários, e ainda uma revisão sem drama da Concordata com a Santa Sé relativamente a um único ponto, que não ofereceu qualquer dificuldade, relativo à possibilidade de divórcio em caso de matrimónio pela Igreja. Ao lado desta contestação da hierarquia, mas em voz mais baixa ou em silêncio, pelo menos de início, houve outro sector da Igreja e outros católicos a culparem os sectores chamados progressistas da Igreja portuguesa, a culparem os padres contestatários da guerra colonial, missionários de África, dois ou três bispos rebeldes, a culparem o próprio Papa e a Cúria de Roma, pela ingratidão de terem todos contribuído, com a “perturbação dos espíritos tranquilos” (como um dia dissera Salazar) para o fim de um regime que “rodeou a Igreja de benefícios e carinhos” (idem). Perante os rumos tomados pela revolução e o grau de ingovernabilidade atingido em 1975, houve quem lembrasse acusadoramente ao Bispo do Porto a sua parte na tal perturbação das consciências. “Há quem me atribua os males da revolução. [Mas] é o imobilismo do Estado que determina a corrida a corta-mato da Revolução” — respondeu muito bem o Bispo. Pertenciam talvez a esse sector acusador boa parte dos bispos que chegaram ainda em vida ao 25 de Abril, capelães da guerra de África, certos brigadeiros bispos e os corifeus laicos do nacional-catolicismo que em 1972 tinham chegado a planear expulsar de novo o Bispo do Porto do País, desta vez “definitivamente”, por fazer prédicas e apelos públicos à paz e desdenhar das virtudes militares em sacerdotes, por lidar com gente da oposição, por ir a tribunal testemunhar a favor do padre contestatário Mário de Oliveira ou por ofender o Presidente Américo Tomás com uma falta de vénia numa cerimónia pública. Em 25 de Abril, o milagre — para usar um termo fatímico que o nacionalcatolicismo conotou habilmente com o governo de Salazar — o verdadeiro milagre da queda do regime velho de 48 anos tinha sido tão grande, por inesperado, fácil, pacífico e perfeito que o povo, na sua maioria, para mostrar que era ordeiro e merecedor de um regime novo, não só não perseguiu padres, nem ultrajou a religião como também abraçou os militares e passou a cumprimentar na rua os agentes da PSP. O poder saído da Revolução de 1974 não tardaria, aliás, a considerar os ultrajes à religião, juntamente com outras invectivas julgadas desestabilizadoras da nova ordem política, um novo tipo de delito, a “agressão ideológica”, embora essa expressão ressoasse a delito de opinião. Militares e políticos avisados, desejando mostrar sentido de responsabilidade e conhecendo talvez a história da 1.ª República e das origens do salazarismo, cumpriram com razoável rigor a directiva de não criar nem deixar criar uma questão religiosa no País. Mais, todavia, do que o produto da acção dos poderes públicos, cuja autoridade, como é sabido, se foi gradualmente esboroando até à anarquia, parece ter sido isso algo assegurado espontaneamente e consensualmente por parte da população em geral. E certamente que o mérito disso coube também à Igreja no seu conjunto, porque se ela fosse odiada pelo povo não era o MFA (ou os vários MFAs) que lhe iam valer em plena Revolução. Houve apenas casos pontuais de ameaça ou afronta pública à Igreja, depois invocados por sectores conservadores para tentar provar a existência de perseguição à

Igreja e, a partir daí, juntamente com a denúncia do arrastamento da greve e ocupação da Rádio Renascença em 1975, tentar fabricar uma questão religiosa explorável para fins políticos. Um desses casos foi uma manifestação de extrema-esquerda, motivada pela intransigência, aliás legítima, da Igreja no caso da Rádio Renascença, em frente do edifício do Patriarcado de Lisboa, que apesar do ambiente bastante ameaçador não teve consequências graves. Um milhar de católicos protegeu o edifício. É de recordar que o jornal República, que não podia ser suspeito de catolicismo, passou por transes idênticos. Outro caso, ainda no princípio da Revolução, foi uma paródia televisiva em que um figurante aparecia identificado por um letreiro como sendo o Cardeal Cerejeira, ao lado de outros figurantes encarnando políticos do salazarismo e agentes da PIDE. Era aquilo uma espécie de cegada teatral transmitida pela televisão directamente do Mercado do Povo em Belém, programa que o ministro da Comunicação Social do I Governo Provisório e destacada figura da maçonaria, Raúl Rego, mandou imediatamente cortar, ficando a emissão televisiva suspensa por três quartos de hora. Ora o facto de o governo — governo que, sublinhe-se, tinha ido logo ostensivamente após a sua tomada posse, por iniciativa do ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares, apresentar cumprimentos ao Núncio e ao Cardeal Patriarca D. António Ribeiro — ter decidido mandar cortar a emissão parece-me ser o facto mais assinalável de todo este episódio, pela sua prontidão, pelo carácter excessivo da decisão e sobretudo pela sua novidade absoluta, vinda dum ministro socialista catalogado como jacobino. Facto mais assinalável, em todo o caso, do que a realização duma cegada anticlerical em Portugal. Cegadas, por um lado, e anticlericalismo, pelo outro, são velhas tradições portuguesas, a segunda das quais tão velha como o seu oposto, o clericalismo. Claro que nos 17 anos de televisão anteriores ao 25 de Abril jamais um membro do clero tinha aparecido no pequeno écran como alvo de troça ou sequer da mínima crítica, política ou outra. A RTP apenas transmitira no passado a imagem, a informação, as posições, a linguagem, a estética e os valores morais do nacional-catolicismo no poder. O Episcopado entendeu a cegada na televisão quase como uma profanação de um local sagrado, quase como um sacrilégio, e por isso protestou junto do governo e do Presidente da República, publicando igualmente um comunicado sobre o caso, no qual exprimia a sua “viva indignação” pela emissão, omitindo porém qualquer referência ao facto de o governo a ter mandado suspender prontamente. Para se avaliar bem do pânico suscitado por essa emissão televisiva, basta ler as Memórias do então Bispo de Aveiro, D. Manuel Almeida Trindade 8, que tinha sucedido ao Cardeal Cerejeira na presidência da Conferência Episcopal em 1972. Com base nas anotações do seu diário pessoal, o Bispo descreve também muito fielmente o sentimento vizinho do terror que se apossou de si e dos outros bispos ao assistirem, na noite de 25 de Abril de 1974, ao primeiro telejornal da nova era política. Acho que vale a pena transcrever um trecho. Cito: “Dois locutores apareceram ao mesmo tempo no écran: um 8

Memórias de um Bispo, Gráfica de Coimbra, 2.ª ed., Coimbra, 1994

fumava enquanto outro falava. Expressão dum à-vontade a que se não estava habituado. O Doutor Marcelo Caetano ter-se-ia rendido às «forças armadas», com minúsculas e com aspas. Não se sabia, porém, quem eram essas «forças armadas»”. E logo adiante, sem mais detalhes, o comentário final: “Os bispos ficaram muito apreensivos com aquela edição do telejornal. Que virá aí, Santo Deus?” Num aparte, observo que quem lê estas Memórias lamenta que o Bispo seu autor não tivesse publicado de preferência o diário em que se baseou para as escrever. Em relação ao grave problema da Rádio Renascença, emissora que levava a voz da Igreja hierárquica ao conjunto do País num período crucial de instabilidade política e social, é de anotar que tal situação não nasceu de um propósito de perseguição à Igreja e que o seu arrastamento em 1975 se deveu antes de mais à situação geral de penúria ou mesmo falência técnica da autoridade do Estado. Convém ainda lembrar que todos os principais meios de comunicação social em Portugal tiveram situações de contestação interna das direcções, de luta entre facções pelo controlo da informação, de questões laborais a mascarar conflitos ideológicos, etc. Todavia, aquilo que, logo em Abril de 1974, dias depois da abolição da censura estatal que vigorava em Portugal havia 48 anos, mais contribuiu para criar de imediato um problema grave na Rádio Renascença foi a decisão da administração da emissora católica, bastante intolerante e inábil, de proibir que uma equipa de reportagem da emissora católica fizesse o acompanhamento em directo das chegadas a Lisboa, regressados do exílio, de Mário Soares e Álvaro Cunhal, acontecimentos que tiveram naturalmente a maior cobertura nos media nacionais e até nos estrangeiros. O facto provocou logo uma greve e a tentativa de tomada de controlo da informação pelos jornalistas e profissionais da emissora, que, na sua grande maioria ou totalidade, deviam ser católicos, note-se. No seu diário pessoal, o então presidente da Conferência Episcopal anotou que a atitude da administração da Rádio Renascença “foi considerada” pelos jornalistas como “uma limitação ao direito de informação e uma substituição da censura do governo deposto por uma censura interna”. Nas Memórias, D. Manuel Trindade transcreve esta anotação mas abstém-se de concordar ou discordar da acusação. Por outro lado, é de referir, para se ter uma noção do grau de desintegração da autoridade do Estado, que quando em Novembro de 1975, numa reunião conjunta do VI Governo Provisório com o Conselho da Revolução, se decidiu destruir à bomba o centro emissor da Buraca da Rádio Renascença como única forma de desalojar os elementos revolucionários e acabar de vez com a ocupação, houve dificuldade em conseguir o armamento necessário para a operação porque, como foi então dito por um membro do Conselho da Revolução, o Depósito de Beirolas, unidade militar que estava praticamente em autogestão, recusava ceder o material. Os grandes partidos de esquerda e os próprios militares do MFA, com excepção de um outro elemento a actuar por sua conta e risco, mas mesmo esses muito raros, não atacaram a Igreja, opuseram-se a que ela fosse atacada e defenderam-na até em algumas circunstâncias precisas. Há muito que a esquerda em Portugal estava decidida a não hostilizar a Igreja, convencida de que era muito mais útil a sua neutralidade ou mais

produtivo influenciá-la, cativá-la e contar com a sua colaboração voluntária. Para o PCP, a fé dos portugueses, o ascendente da religião e do clero sobre o povo português eram dados com que era preciso contar. O problema para o PCP, em 1974, era o de como atrair os católicos, não propriamente ao materialismo filosófico ou sequer ao partido, mas às suas organizações e iniciativas ditas unitárias, para que em união com o povo católico se fizesse a revolução. Os primeiros resultados dessa estratégia — que, diga-se, já vinha de trás — foram muito prometedores. No 1.º de Maio de 1974, e perante as primeiras tímidas tentativas de se encorajar a formação de uma corrente sindical cristã, surgiu um importante comunicado conjunto das organizações operárias católicas JOC e LOC masculinas e femininas, subscrito também pelos respectivos assistentes eclesiásticos nacionais, declarando considerar tais tentativas de divisionismo de carácter confessional um “atentado contra unidade do movimento operário”. O comunicado surgia obviamente em apoio da Intersindical, que estava já então a tentar orientar e tomar o controlo do movimento sindical nascente. Mas, em concreto, contra quem se posicionavam esses católicos? Nesse mesmo dia, um outro grupo de católicos, liderado por antigos dirigentes da JOC e LOC, igualmente emitiu um comunicado em que convidava “todos os trabalhadores cristãos” a reunirem-se “a nível local, regional e nacional com o objectivo de encontrar as formas apropriadas à sua intervenção [...] e o de participar na definição das reivindicações da classe trabalhadora”. Eram estes os presumíveis sabotadores da “unidade do movimento operário”. Não teve êxito nem repercussão a sua iniciativa, porque a posição pró-unitária dos primeiros venceu em toda a linha. Um pequeno episódio poderá ilustrar bem a atitude dos comunistas perante os católicos a seguir à revolução. A Eng.ª Maria de Lourdes Pintassilgo contou-me que, em Maio de 1974, comentando com o seu colega de governo Álvaro Cunhal o invariável afluxo de multidões a Fátima após o 25 de Abril, como se pudera ver pela transmissão da televisão, o dirigente comunista lhe perguntou, entre impressionado e pensativo, se não seria possível à Igreja fazer com que aquelas centenas de milhares de pessoas fossem mobilizadas para apoiar o programa do Governo Provisório — ao que a Eng.ª Pintassilgo respondeu, por sinal, que o Dr. Álvaro Cunhal tinha uma ideia um bocado antiquada da Igreja. Quanto ao Partido Socialista, Mário Soares rejeitara decididamente, logo na sua fundação, em 1973, a herança do perfil anticlerical do republicanismo e do socialismo à moda antiga. Soares queria ter no PS também um importante sector católico (e hoje sabemos bem que o conseguiu!), ao lado das famílias tradicionais de republicanos, marxistas e social-democratas. Como já afirmei, os verdadeiros contestatários da Igreja, foram os activistas católicos e sacerdotes (“e até frades e freiras!”, exclama nas suas Memórias o então presidente da Conferência Episcopal) que quiseram operar nela uma completa revolução de estruturas e de doutrina, que fizeram as críticas públicas e as denúncias mais

veementes ao Episcopado, que exigiram aos bispos — considerados em geral cúmplices com o anterior regime — que renunciassem, que exigiram a “demissão imediata” do bispo de Madarsuma, vigário-geral castrense, que exigiram a destituição do Núncio Apostólico ou a denúncia da Concordata e do Acordo Missionário. Estas foram apenas algumas das reivindicações aprovadas em Lisboa e no Porto por Assembleias Livres de Cristãos a que concorreram em média entre 500 e 1000 pessoas durante os meses de Maio e Junho de 1974. Outra exigência frequentemente formulada nestes primeiros tempos de revolução em reuniões e documentos de católicos era a de que o Episcopado fizesse penitência pública pelos pecados do passado, entendendo-se por aí uma espécie de autocrítica ou declaração de arrependimento pela sua colaboração com o salazarismo. O Episcopado não ligou muito a estas exigências dos contestatários. Nenhum bispo encontrou motivos para renunciar. O alvo preferido das reivindicações de demissão imediata, o Bispo de Madarsuma, apodado de fascista, foi mesmo eleito pelos seus pares em 1975 para secretário da Conferência Episcopal (veio a resignar só neste ano de 1998, como Bispo auxiliar do Patriarcado.) Até o Núncio, Monsenhor Sensi ficou uns anos mais no seu posto. Nas suas polémicas Memórias que já tenho citado, D. Manuel Almeida Trindade, qualifica de “ingenuidades da revolução dos cravos” as propostas aprovadas nas ditas assembleias contestatárias de Maio-Junho de 1974 e lembra que Frei Bento Domingues, que aponta como possível instigador das assembleias para “sanear” os bispos, era na altura apelidado de “pequeno Savonarola”. O Bispo não podia prever que o Vaticano hoje está a reabilitar Savonarola... Depois da publicação a 4 de Maio de 1974 de uma primeira nota do Episcopado bastante anódina, prudente e defensiva a propósito dos acontecimentos políticos, a Conferência Episcopal elaborou em Julho uma Carta Pastoral sobre o contributo dos cristãos para a vida social e política, publicada a 16 desse mês. Conta o então presidente da Conferência Episcopal, D. Manuel Almeida Trindade que, pela importância do documento, uma vez que se caminhava então para o auge da revolução, quis que o texto fosse aprovado unanimemente por todos os bispos. Isso obrigou a vários encontros ao longo de semanas, sobretudo para tomar em conta as objecções do Bispo do Porto, que queria e “fazia finca-pé” (estou a citar os termos precisos usados pelo autor) que se pedisse perdão ao povo português de alguma falta que o Episcopado tivesse cometido em anos pretéritos. Nas suas Memórias, o presidente da Conferência Episcopal afirma textualmente que “os Bispos aceitaram de bom grado a sugestão desse acto de humildade”. Lendo porém o texto com toda a atenção, não se pode senão concluir que não pediram nenhum perdão ao povo os Bispos portugueses. O que afirmaram, por palavras dificilmente compreensíveis, foi reconhecer que tinha de facto havido certos paralelismos evolutivos entre a Igreja e o Estado Novo, ocasionados por “correlações e coincidências de vária ordem” (sic), mas “sem prejuízo da clara distinção das respectivas competências” — e aqui acrescentavam oportunamente: “que é de desejar continuem a vigorar”. Mais à frente declaravam ainda “aceitar que tanto ao nível da hierarquia como do laicado, possam pesar sobre [a Igreja] responsabilidades por erros cometidos ou partilhados”, sempre possíveis, em todo o caso, em seres humanos

“sujeitos às vicissitudes e limitações da condição terrena”. Foi tudo o que em matéria de pedido de perdão D. António Ferreira Gomes conseguiu que os seus pares unanimemente subscrevessem em 1974. Permitam-me que diga que nunca li um pedido de perdão mais escorregadio do que este.

* * *

Para terminar, e já que iniciei este depoimento falando da lua-de-mel entre o Estado Novo e a Igreja, queria aqui fazer a leitura duma pequena carta que, melhor que muitas palavras, poderá ter a virtude de nos transportar quase instantaneamente para o ambiente que se vivia nas mais altas esferas do nacional-catolicismo em Portugal há 50 anos atrás. Ela dá bem a medida do exame de consciência que o Episcopado não fez em 1974 e até hoje ficou por fazer sobre um tempo, uma Igreja e um Estado que existiram de facto e não são apenas produtos da nossa imaginação. A carta que eu queria ler aqui foi enviada ao chefe do governo pelo Cardeal Cerejeira e data do dia 13 de Novembro de 1945, a poucos dias das primeiras eleições de deputados à Assembleia Nacional a que a oposição pôde concorrer, ainda que com enormes limitações práticas. Eram as tais eleições que Salazar, com uma frase que se tornou célebre, considerou irem ser “tão livres como na livre Inglaterra”. Eis a dita carta:

«Lisboa, 13-XI-945 António Nesta hora de tantas preocupações, desgostos e talvez dúvidas para ti, enviote este trecho de uma carta da Irmã Lúcia, a vidente de Fátima, que acabo de receber. Deve levar-te muita consolação e confiança. E se tu a lesses toda, mais consolado e confiado ficarias ainda. Escuso de dizer que isto que ela diz, o não diz dela mesma, mas por indicação divina (segunda ela deixa entender). Tenho pressa em to fazer chegar às mãos. Abraça-te afectuosamente o teu ex-corde Manuel»

Segue-se, em anexo, o referido trecho da carta de Lúcia, sob o título: “De uma carta da Lúcia, datada de Tuy, 7-11-1945”:

«…o Salazar é a pessoa por Ele (Deus) escolhida para continuar a governar a nossa Pátria, …a ele é que será concedida a luz e graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade. É preciso fazer compreender ao povo que as privações e sofrimentos dos últimos anos não foram efeito de falta alguma de Salazar, mas sim provas que Deus nos enviou pelos nossos pecados. Já o bom Deus ao prometer a graça da paz à nossa nação nos anunciou vários sofrimentos, pela razão de que nós éramos também culpados. E na verdade bem pouco nos pediu, se olhamos para as tribulações e angústias dos outros povos. Depois é preciso dizer a Salazar que os víveres necessários ao sustento do povo não devem continuar a apodrecer nos celeiros, mas serem-lhe distribuídos.»9

É pouco conhecido este documento existente no Arquivo Salazar. Creio mesmo não ter sido até hoje divulgado. Ele permite ligar de forma directa e flagrante a produção profética de Fátima à função de sustentação do regime e à tentativa de sacralização da ditadura de Salazar. Franco Nogueira não transcreveu este documento, nem se lhe referiu, nos seis volumes da biografia de Salazar em que divulgou em primeira mão várias das cartas do Patriarca para Salazar provenientes da mesma pasta do mesmo arquivo da Presidência do Conselho. Não se trata do chamado “Segredo de Fátima”, mas de um dos vários segredos de Fátima e da Igreja que importa dar a conhecer, analisar e interpretar. Não certamente para satisfazer curiosidades mórbidas ou caprichos de historiadores anticlericais, mas porque, como dizia o Bispo do Porto nas suas Cartas ao Papa, os documentos mesmo “pessoais” e “qualquer que seja o seu estilo”, relativos “ao tratamento dos negócios entre a Igreja e o Estado [...] não podem ser subtraídos à história de uma e outra instituições” 10.

Lisboa, 27 de Novembro de 1998

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Arquivo Salazar, Torre do Tombo, pasta da correspondência do Cardeal Cerejeira para Salazar. [NOTA de 2016: o excerto da carta de Lúcia, sabemo-lo hoje, provém de um carta enviada por Lúcia ao então bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, que este fez chegar às mãos do patriarca de Lisboa. O texto completo dessa carta de Lúcia ao bispo de Leiria não é ainda hoje conhecido do público.] 10

D. António Ferreira Gomes, Cartas ao Papa, Figueirinhas, Porto, 1986, p. 26.

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