A RUA DAS TRINCHEIRAS: de vitrine da belle époque paraibana às ruínas atuais

June 15, 2017 | Autor: Marina Goldfarb | Categoria: Arquitetura e Urbanismo, Centros Históricos, Jane Jacobs, Paraíba
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A RUA DAS TRINCHEIRAS

DE VITRINE DA BELLE ÉPOQUE PARAIBANA ÀS RUÍNAS ATUAIS

Marina Goldfarb de Oliveira LPPM, Departamento de arquitetura e urbanismo, PPGAU Universidade Federal da Paraíba, UFPB [email protected]

Denise Alves de Lemos LPPM, Departamento de arquitetura e urbanismo,PPGAU Universidade Federal da Paraíba, UFPB [email protected];

Raissa Gonçalves Monteiro Arquiteta, Secretaria Municipal de Habitação, SEMHAB Prefeitura Municipal de João Pessoa, PMJP [email protected]

RESUMO: Este trabalho pretende discutir sobre as causas da decadência da Rua das Trincheiras, uma das áreas residenciais mais valorizadas da cidade de João Pessoa no início do século XX, antigo reduto da elite paraibana, que se encontra atualmente abandonado. Seus antigos casarões estão em estado de arruinamento (mesmo sendo inclusos no perímetro tombado como patrimônio histórico estadual), as calçadas foram reduzidas e deram lugar aos carros e sua vitalidade torna-se cada vez mais escassa ao percorrê-la. Palavras-chave: Rua das Trincheiras. Decadência. João Pessoa.

ABSTRACT: This article intends to discuss what factors caused the decadence of Trincheiras Street, located in the city of João Pessoa, state of Paraíba. What used to be one of the most valorized residencial areas in town around the beginnning of the 20th Century - home of the state’s high society - is now abandoned and misused. Its beautiful old houses are laying in ruins, despite the fact that they are inside of the state’s protected historic patrimony perimeter. In addition to that, the sidewalks have been reduced and the asphalt streets enlarged, what ended up privileging the cars over the pedestrians and slowly endangering its vitality. Keywords: Trincheiras Street. Decadence. João Pessoa.

1 SURGIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DA RUA DAS TRINCHEIRAS A Rua das Trincheiras, localizada no bairro de mesmo nome, na porção sul da cidade de João Pessoa (capital da Paraíba), possui cerca de 1 km de extensão, ligando o centro da cidade aos bairros de Jaguaribe e Cruz das Armas. Está inclusa na zona de delimitação do Centro Histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP), como Área de Preservação Rigorosa, mas foi excluída do perímetro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Sua ocupação iniciou-se no final do século XVIII, mas começou a se constituir como locus urbano em fins do século XIX, quando ocorre o primeiro surto da produção do algodão, proporcionando um grande acúmulo de capital no Estado. Nesse período, os grandes proprietários rurais do algodão começam a se instalar na Cidade da Parahyba (atual João Pessoa), escolhendo a Rua das Trincheiras que vai deixando aos poucos o seu caráter rural (TINEM, 2006: 227). Um importante fator de fixação da população e valorização da Rua das Trincheiras foi a implantação do primeiro sistema de bondes movidos a tração animal, no governo de Álvaro Machado (1892-1896). O percurso dos bondes passando pela Rua das Trincheiras demonstra a importância que esta rua passa a ter para a cidade. Nela foram se instalar, além dos ricos “senhores do algodão”, comerciantes abastados e profissionais liberais, que deixavam as partes mais antigas da cidade, para morar nessa nova área, que tinha espaço suficiente para construir suas mansões e oferecia uma boa infra-estrutura urbana. Essas imponentes residências, dotadas de refinamento estético seguindo os moldes europeus, possuíam preocupação com um maior conforto e higiene, apresentavam jardins e as fachadas mostravam uma composição arquitetônica eclética com elementos e diversos ornamentos de influencia historicista e também do art nouveau. No início do século XX, essa foi uma das áreas residenciais de maior prestígio da cidade.

2 A DECADÊNCIA E SUAS RUÍNAS Atualmente, a degradação da Rua das Trincheiras é perceptível. Em seu percurso, é possível identificar muitos imóveis fechados, abandonados e alguns em processo de ruínas. Várias edificações históricas que

estão sendo habitadas passaram por intervenções mal sucedidas, que prejudicam a unidade estética da construção. Suas estreitas calçadas se apresentam mal cuidadas e sujas, principalmente as que ficam em frente aos imóveis desocupados (Figura 01). Tal grau de abandono ocorre mesmo com a rua estudada pertencendo ao perímetro de preservação rigorosa do IPHAEP, mas o descaso com tal situação talvez seja resultado de uma antiga desvalorização por parte dos órgãos de preservação, da arquitetura construída no período da primeira república, principalmente arquitetura da eclética, em detrimento da arquitetura colonial, e da salvaguarda de um conjunto edificado e paisagístico ao invés de grandes monumentos isolados. Figura 1 – Edificações em ruínas, ocupações e intervenções mal sucedidas na Rua das Trincheiras.

Fonte – Acervo pessoal de Marina Goldfarb, 2012.

Devido às características distintas de uso do solo ao longo da Rua das Trincheiras, é possível dividi-la em duas partes, que se diferenciam em sua vitalidade. A diferença em número de construções desocupadas e em ruínas em cada trecho comprova tal dicotomia: o primeiro trecho apresenta quatro edificações fechadas, e três edificações em ruínas e um lote vazio. Já no segundo, mais degradado, observaram-se treze imóveis fechados e quatro em ruínas e dois lotes vazios. O primeiro trecho, que vai até a Avenida João Machado, possui maior concentração de edifícios públicos e de serviços que o restante, que é em sua maioria residencial, e tem por isso, maior movimentação de pedestres, atraindo vendedores ambulantes, e de automóveis. Entre os principais edifícios públicos e de serviços podemos citar a Câmera Municipal de João Pessoa, uma agência da Caixa Econômica Federal, duas creches, a Fundação de Educação Tecnológica e Cultura da Paraíba (FUNETEC), Laboratório de prática forense da UNIPÊ, o Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB (NAC), e a Igreja Matriz Nossa Senhora de Lourdes, que traz movimentação de fiéis em suas missas.

No segundo trecho, após a Avenida João Machado até seu fim, as edificações abandonadas se tornam mais freqüentes: quanto mais se afasta da Avenida João Machado, as quadras se tornam mais vazias, sem vitalidade. São freqüentes também, nesse segundo trecho, edificações postas à venda, ou aluguel, demonstrando o desejo da população de se transferir para outros locais. Os vários anúncios, tão assíduos na Rua das Trincheiras, de “Aluga-se”, “Quartos para hospedes permanentes e temporários”, “Vende-se”, são “as verdadeiras evidências do êxodo” que sofre este espaço, restando para os que aí vão se instalar “bairros monótonos e perigosos, cuja inadequação para a vida urbana repeliu moradores mais exigentes e capazes do que eles” (JACOBS, 2000: 305). O declínio da Rua das Trincheiras insere-se em um processo maior, de decadência dos antigos centros principais, que passa a ocorrer no Brasil a partir de meados do século XX, quando a população mais abastada, que ocupava as áreas centrais até então, passa a abandoná-las, como explica VILLAÇA (2001: 274) “As transformações dos centros principais de nossas metrópoles nas décadas de 1950 e 1960 são uma conseqüência de seu abandono pelas camadas de alta renda”. Para VILLAÇA (2001: 277), é justamente a migração das elites do centro para novas áreas que caracterizam o processo de decadência dessas áreas mais antigas. Esse processo pode ser verificado no caso da Rua das Trincheiras, que começou a entrar em decadência quando as abastadas famílias que a ocupavam, abandonam suas mansões, em direção às novas áreas de expansão da cidade, no sentido leste. Com o abandono da Rua das Trincheiras como local de moradia pela elite, esta localidade passa a ser ocupada por uma população de baixa renda. A antiga balaustrada, antes local de passeio onde se observava a bela paisagem da Ilha do Bispo, se degrada pela perda de vitalidade nesse trecho da rua e pela proximidade com a aglomeração subnormal que se instala na depressão ao qual a balaustrada protege, onde algumas moradias chegam à se apoiar, e até incorporar partes da balaustrada como parte de sua residência, vedando-a e subindo paredes sobre sua estrutura, ou usando de partes suas como um terraço. As camadas populares também ocupam as antigas mansões de arquitetura refinada, mas onde antigamente havia apenas uma família, passa a abrigar várias, ou sua planta interna é subdividida para transformar-se em quitinetes para alugar. Habitações construídas para proporcionarem grande conforto à uma só família,

tornam-se superlotadas, característica presente em “zonas de cortiços” (JACOBS, 2000: 307), resultante da pobreza, que faz as pessoas com menos condições serem forçadas a amontoar-se em áreas desprezadas. Na rua estudada, pode-se encontrar ainda uma grande ocupação, denominada “Ocupação Tijolinho Vermelho”, localizada no antigo Hotel Tropicana, edificação de três pavimentos construída na década de 1970, que estava abandonada há mais de dez anos. O edifício foi ocupado em abril de 2013, por cerca de 200 famílias de baixa renda com alta vulnerabilidade social, que são organizadas através do Movimento Terra Livre. Acredita-se que um dos motivos que fizeram a população com maior condição econômica abandonar a Rua das Trincheiras como lugar de moradia para residir em novas áreas de João Pessoa foi o anseio dessa parcela ao uso do automóvel. Segundo VILLAÇA (2001: 279- 280), a taxa de motorização das classes de alta renda motivou o abandono dessa parcela da população pelos centros principais, em busca de espaços urbanos que permitissem uma mobilidade coerente com os novos padrões voltados aos veículos. Sobre a influência do uso dos automóveis sobre o espaço urbano, LEFEBVRE (1999: 29) argumenta como sendo negativa à dinâmica da rua: “A invasão dos automóveis e a pressão dessa indústria, isto é, do lobby do automóvel, fazem dele um objeto-piloto, do estacionamento uma obsessão, da circulação um objetivo prioritário, destruidores de toda vida social e urbana”. A passagem na rua é reprimida, e perde-se seu sentido de encontro, tornando-se “lugar de passagem de pedestres (encurralados) e de automóveis (privilegiados). A rua converteu-se em rede organizada pelo/para o consumo.” (LEFEBVRE, 1999: 31). O impacto do uso do automóvel sobre a Rua das Trincheiras contribuiu de várias maneiras para sua atual degradação. Além de favorecer a migração da elite, teve suas calçadas encurtadas para receber duas faixas de carros o que prejudicou os pedestres, deixando-os até em perigo em certos trechos que as calçadas possuem menos de 1 metro de largura, obrigando-os a usar a faixa de veículos que recebeu asfalto e conta com grande fluxo de carros para se locomover. Com dificuldades impostas ao passeio, as ruas tornam-se vazias e com isso, sem vitalidade e perigosas. O uso do automóvel na Rua das Trincheiras também é responsável por muitas reformas mal-sucedidas em seu patrimônio arquitetônico e demolições.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao analisar a Rua das Trincheiras, e tentar compreender os motivos que fizeram com que esta localidade, tão valorizada no início do século XX, se tornasse abandonada atualmente, constata-se que o que lhe ocorre é reflexo de transformações maiores, que atingem as grandes cidades, a partir das transformações no processo de produção, onde o solo perde seu valor de uso e torna-se mercadoria. Tais transformações acarretam, entre outros fatores, mudanças no uso da rua, que passa a ser voltada para a circulação do automóvel, das mercadorias, e a “atenuação da sociabilidade” (CARLOS, 2007:52) que colabora para o esvaziamento dos espaços públicos. Como possíveis soluções para conter a degradação da Rua das Trincheiras e retomar sua vitalidade, podem ser a diversificação de usos em sua extensão, ocorrendo em diferentes horários, e para usuários de diferentes classes e idades, pois para JACOBS (2000: 267), “precisamos de todos os tipos de diversidade, intricadamente combinados e mutuamente sustentados. Isso é necessário para que a vida urbana funcione adequada e construtivamente (...)”. Seria também necessária uma maior valorização e monitoração por parte dos órgãos de preservação locais, pelo fato da Rua das Trincheiras não fazer parte do roteiro turístico de João Pessoa. Revitalizar a Rua das Trincheiras visando o turismo é uma possibilidade que, entretanto, corre riscos de tornar o espaço ainda mais segregado, expulsando a população de baixa renda que habita a rua atualmente, e tornando esse local um “produto de consumo” (LEFEBVRE, 1999:17) para os turistas, que irão usufruir das qualidades estéticas de seus edifícios históricos. O primeiro passo consiste em reconhecer o espaço, seus problemas e qualidades que resistem, e divulgá-los aos cidadãos.

4 REFERÊNCIAS CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. JACOBS, Jane. Morte e Vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, 1999. MAIA, Doralice Sátyro. Ruas, casas e sobrados da cidade histórica: entre ruínas e embelezamentos, os antigos e os novos usos. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 2630 de mayo de 2008. VILLAÇA, Flávio. Os centros principais. In: Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: 2009. p. 237. TINEM, Nelci (Org.). Fronteiras, Marcos e Sinais. João Pessoa: Ed. UFPB, 2005.

5 ANEXO I: OFICINA DE POESIA URBANO-SENSITIVA NA RUA DAS TRINCHEIRAS Como atividade para o Workshop, sugerimos uma oficina, que propõe uma “deriva”, tanto do corpo na cidade, como da mente para a criação poética. A primeira parte seria um passeio ao longo da Rua das Trincheiras com explanações sobre sua história (mostrando fotografias antigas impressas para comparar com o presente), evidenciando as contradições atuais, como as ruínas dos casarões e as ocupações. Durante o passeio, os participantes vão se familiarizando com o espaço urbano e sua arquitetura, tendo como objetivo escolher uma das edificações para “falar” por ela. A segunda parte é tentar imaginar o que a rua foi no passado, quem vivia ali, o que faziam, etc. para daí traduzir as observações e desenvolver poemas/estrofes/frases. O resultado seria uma intervenção “impressa” desses poemas (com spray ou tinta) em placas (de compensado ou outro material) e fixados nas respectivas edificações, como um elemento adicionado ao cotidiano daquele lugar que chame a atenção dos transeuntes /habitantes da região para que as olhem de outra forma. No final poderíamos gerar um mapa com o percurso poético marcando as edificações que sofreram intervenção. Ações principais da oficina: 1) “Desproteger-se”: sair a rua, andar a pé, entrar em contato com o outro. 2) Ocupar e observar: exercitar o flâneur que há dentro de cada participante. 3) Sensibilizar-se: Entrar em contato visual/ emocional com as edificações que surgirem durante o passeio, escrever o manifesto/frase/poema.

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