A RUA NA DIMENSÃO DA HISTÓRIA

June 13, 2017 | Autor: Claudio Silva | Categoria: História Da Cidade
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III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014

EIXO TEMÁTICO: ( ) Ambiente e Sustentabilidade (X ) Crítica, Documentação e Reflexão ( ) Habitação e Direito à Cidade ( ) Infraestrutura e Mobilidade ( ) Patrimônio, Cultura e Identidade

( ) Espaço Público e Cidadania ( ) Novos processos e novas tecnologias

A rua na dimensão da história Streets through history Calles en la historia

DA SILVA, Claudio Oliveira (1)

(1) Doutorando, Universidade de Brasília, PPG/FAU/UNB, Brasília, DF, Brasil; [email protected]

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arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014

EIXO TEMÁTICO: ( ) Ambiente e Sustentabilidade (x) Crítica, Documentação e Reflexão ( ) Habitação e Direito à Cidade ( ) Infraestrutura e Mobilidade ( ) Patrimônio, Cultura e Identidade

( ) Espaço Público e Cidadania ( ) Novos processos e novas tecnologias

A rua na dimensão da história Streets through history Calles en la historia RESUMO Este artigo lança um olhar sintético e panorâmico sobre algumas das representações da rua ao longo da história das cidades. Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica e sistematizados os resultados segundo períodos estipulados entre o tempo das aldeias primitivas e o da cidade contemporânea. O objetivo almejado foi constituir um referencial teórico sobre o tema, em especial sobre as funções utilitárias e demais características da rua enquanto espaço público. PALAVRAS-CHAVE: ruas, cidades, história

ABSTRACT This paper takes a synthetic and panoramic look at some of the representations of the street along the history of cities. To this end, a literature review was carried out and systematized the results according to stipulated periods between the time of primitive villages and the contemporary city. The goal was to provide a theoretical framework on the subject, particularly on the utility functions and other characteristics of the street as public space. KEY-WORDS: streets, cities, history

RESUMEN: En este texto hacemos un vistazo panorámico de las representaciones de la calle a lo largo de la historia de las ciudades. Con este fin, una revisión de la literatura se llevó a cabo y sistematizó los resultados de acuerdo a los períodos estipulados entre el tiempo de los pueblos primitivos y la ciudad contemporánea. El objetivo deseado fue proporcionar un marco teórico sobre el tema, sobre todo en las funciones de utilidad y otras características de la calle como espacio público. PALABRAS-CLAVE: calles, ciudades, historia

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1 INTRODUÇÃO O conteúdo que se apresenta neste artigo se insere no âmbito da pesquisa de doutorado cujo título provisório é: “Ruas do Rio de Janeiro (1763-1960)”, na qual é necessário definir o que se pode entender como rua. Como primeira estratégia nesse sentido, buscamos conceituar o tema propondo o entendimento de três dimensões básicas da rua: material, utilitária e histórica. Seguiremos a leitura segundo a periodização que se inicia no tempo das primeiras aldeias, entre 10000 e 1750 a.C., transcorre pelas cidades clássicas gregas e romanas, até 500, pelos períodos da Idade Média, Renascimento e Barroco, até 1700, pela cidade moderna, até 1960, e culmina na cidade contemporânea.

2 DA ALDEIA ÀS PRIMEIRAS CIDADES A missão de contar a história da rua pode ser confundir com a de contar a história da própria cidade, ou das cidades. Já que por certo, como coloca François Ascher (2010): “é a rua que faz a cidade”. Então é de se esperar que ao estudar a história das cidades encontremos referências mais ou menos precisas sobre o nosso tema de pesquisa. Por outro lado, as referências bibliográficas sobre esse tema estão quase sempre dispersas e embutidas em publicações com outros escopos, existindo poucas compilações específicas as quais se possa recorrer. Na obra de Lewis Mumford (1998) demos início ao nosso retorno no tempo na tentativa de interpretar o que se pode associar como origem, variações e transformações da rua ao longo da história das cidades. Ele nos lembra que “antes da cidade, houve a pequena povoação, o santuário e a aldeia; antes da aldeia, o acampamento, o esconderijo, a caverna, o montão de pedras; e antes de tudo isso, houve certa predisposição para a vida social [...]” (MUMFORD, 1998, p. 11). Tal lembrança nos faz considerar que a predisposição para a vida social pressupôs, ou integrou, tanto as necessidades de movimentação como as de interação que havia entre os habitantes dos primeiros agrupamentos humanos. Ambas as necessidades poderiam ter sido realizadas no espaço da rua, antes mesmo do aparecimento das primeiras cidades. Mas, seriam então as ruas anteriores às cidades? Nas aldeias primitivas antecessoras das primeiras cidades haviam por toda parte “pequenos agrupamentos de famílias, [...]. Falando a mesma língua, encontrando-se sob a mesma árvore ou à sombra da mesma pedra empinada, andando ao longo do mesmo caminho batido pelo seu gado [...]”. Por essa descrição podemos conjecturar que o porte dessas aldeias e seu caráter reconhecidamente pouco complexo e estável não devia apresentar, para além dos caminhos, algo parecido como o que podemos chamar de rua. Mas, em complemento, o mesmo autor defende que “a estrutura embrionária da cidade já existia na aldeia. Casa, oratório, poço, via pública, ágora [...] tudo isso tomou forma primeiro na aldeia [...]” (MUMFORD, 1998, p. 25-6, grifo nosso). Em Kostof (1999, p. 190) vimos que havia sim um tempo de aglomerações “proto-urbanas” 1 no qual não se pode falar em existência de ruas, apesar de haverem edificações. Como no 1

“Proto-urbano” também é uma expressão usada por Mumford, que define assim as primeiras cidades fruto da união entre a cultura neolítica e uma cultura paleolítica mais arcaica, período anterior a 3.000 a. C.

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agrupamento complexo de Take Çatal Hüyük, Ásia Menor, 7000 a.C., onde a movimentação de pessoas se dava de maneira aleatória sobre os telhados das casas e a interação social acontecia nos pátios internos. Para ele, a primeira rua da história estava em Khirokitia, 6000 a.C. (Fig.1). Essa era intencional porque era pavimentada, elevada do chão, ladeada por cabanas e bem delimitada e artificialmente marcada em meio ao espaço aberto. As escavações de Ur, cidade-estado da Suméria em 3000 a.C, sugerem que a circulação acontecia na “viela estreita e tortuosa, bem protegida por sombras contra o tórrido sol, era o canal comum do tráfego, mais bem adaptado ao clima do que uma artéria de largas dimensões”. Desenho típico das atuais cidades islâmicas. Quando havia artérias largas, essas eram destinadas, provavelmente, a procissões sagradas e desfiles de tropas. Mas também, segundo traduções da escrita cuneiforme para a palavra “bulevar”, essas podiam ser uma rua “[...] onde era possível dar-se passeio ao anoitecer, ver as plantas, ouvir música, ou encontrarse para os mexericos, [...]”. Ainda em Ur, encontra-se referência na literatura a “rua do mercado”. Mumford exemplifica que a função de mercado pode ter sido situada em sua forma mais antiga dentro do recinto do templo, constituindo assim um monopólio dos deuses e de seus sacerdotes. Mas sugere que “as duas formas clássicas de mercado, a praça aberta ou o bazar coberto, e a rua de barracas ou de lojas, possivelmente já tinham encontrado sua configuração urbana por volta de 2000 a.C, a mais tardar.” (MUMFORD, 1998, p. 85-7, grifo nosso). Em Ur, pela primeira vez, encontramos uma alusão a funções utilitárias da rua distintas daquela exclusiva da circulação. Figura 1: A primeira rua da história: Khirokitia, 6.000 a.C.

Fonte: (KOSTOF, 1999, p. 190).

Em Beycesutan, na atual Turquia (1900 – 1750 a.C.), reside um dos primeiros exemplos de diferenciação viária. A rua que separava os dois montes era a “maior artéria” e as outras em áreas residenciais eram as “locais”. Em Kültepe (2000 – 1900 a.C.) temos o mais antigo exemplar de duas vias principais entrecruzadas, anterior mesmo ao Cardo e Decumanos das cidades de origem romana, a norte-sul era mais larga e tinha calçadas ou pavimentos destinados a pedestres em ambos os lados. (KOSTOF, 1999, p. 190-1)

3 GRÉCIA E ROMA Ao descrever a forma das cidades gregas Lamas (2004, p. 139) nos faz perceber o papel da rua nelas. Na cultura grega a estrutura urbana não se dava pelo traçado, pelas ruas, mas pela

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alocação dos grandes edifícios e equipamentos de caráter público em condição de predominância e grande visibilidade nas áreas centrais. Já nas áreas residenciais a “arquitetura da rua era de grande simplicidade”, entre uma mistura de traçado regular e irregular (LAMAS, 2004, p. 139). No sentido religioso, os templos gregos eram erigidos não para serem habitados, mas para serem vistos. Para tanto, as ruas que levavam até eles eram organizadas em percursos sinuosos e em diferenças de nível fazendo com que o observador pudesse descobrir aos poucos o edifício e sentir aos poucos o efeito da sua monumentalidade. Descrendo a Acrópole de Atenas, Mumford diz que “os cortejos religiosos, subindo sinuosamente aquelas elevações tinham a experiência da terra e do céu, do mar distante e da cidade próxima, como acompanhamento do seu ritual físico” (MUNFORD, 1998, p. 152). No período helenístico, 323 a 146 a. C., as cidades gregas adotam o uso de perspectivas elaboradas, em nome de seus efeitos cênicos, e as ruas adquirem um valor decorativo por meio das colunatas e pórticos instalados entre elas e os edifícios, ou pela introdução de esculturas e arcos nos seus eixos. Lamas (2004, p. 134) sugere que o esquema geométrico enquanto traçado foi aplicado em novos assentamentos pressupondo, em certos casos, a existência de uma autoridade e servindo como instrumento de afirmação do poder. Como era o caso do Império Romano ao qual se atribui o fato de espalhar pelo mundo o traçado em xadrez - lógico, claro e simples - na fundação de suas cidades. Mas Mumford alerta que “o plano regular de ruas, [...] todas essas coisas o escavador as encontra nas ruínas de Mohenjo-Daro e volta a encontrar, com variações menores, na espraiada Ur ou na pequena Lagash” (MUMFORD, 1998, p. 87). Também, sabe-se que o Império Romano foi responsável na verdade por reproduzir a configuração ortogonal anterior, hipodâmica, que refletia a primazia da razão elaborada na cultura grega (Fig.2). Figura 2: Plano de Mileto, Ásia Menor, 479 a.C.

Fonte: (LAMAS, 2004, p. 142).

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Havia também o sentido religioso, a exemplo da Acrópole, no plano da cidade romana. Mas dessa vez associado ao traçado ordenado e ortogonal de ruas: A delimitação do perímetro da cidade e o seu traçado obedeciam a um ritual religioso, a uma ordem sagrada. [...]. A cidade orienta-se de este a oeste – no sentido do nascer ao pôr do sol -, interligando-se a uma ordem cósmica e universal. Os dois eixos principais – o Decumanus maximus, O/E; e o Cardus, N/S – encontram-se no centro, lugar geométrico da área construída. O traçado de dois eixos fundamentais é um gesto “quase cósmico” de ocupação do território e que perdurará no modo de desenhar cidades em épocas posteriores. (LAMAS, 2004, p. 144)

Ferreira (2002, p. 14) informa que na Roma Antiga havia tanto tráfego ao ponto de o acesso de carroças nas ruas ser proibido durante o dia. Diz também que havia nessas ruas uma gama variada de pessoas exercendo distintas atividades, como barbeiros, mascates, vendedores de salsicha, professores e alunos, encantadores de serpentes, ociosos etc. Percebe-se que mesmo antes da introdução dos transportes motorizados já havia confusão, sujeira, congestionamentos e perigo de acidentes em algumas cidades. Isso levou à necessidade de se de separar fluxos, como é testemunho a introdução das calçadas cujos vestígios podem ser encontrados na antiga Pompéia (Fig.3). Figura 3: Calçadas em Pompéia, 100 d.C.

Fonte: (KOSTOF, 1999, p. 210).

4 IDADE MÉDIA, RENASCIMENTO E BARROCO As ruas da cidade medieval eram o elemento base do espaço. Preenchiam quase todo o interior do perímetro urbano e ligavam-se aos edifícios como extensão do mercado, das lojas que havia no nível térreo. Na cidade medieval as ruas eram tão animadas quanto aquelas da cidade romana, “o mesmo apinhamento, atividade, barulho, cheiro e cor [...]” (FERREIRA, 2002, p. 15). Mas havia na

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cidade medieval uma condição distinta. A confusão e a sujeira de suas ruas eram críticas e ainda agravadas pelo trânsito e permanência de animais domésticos, como porcos e galinhas, que por ali se alimentavam de lixo. Sabe-se que era comum nessas ruas, além do lixo, a presença de esgoto correndo em valas a céu aberto. Entretanto, “Kostof” nos adverte que sempre existiu a preocupação do embelezamento por parte de autoridades municipais e na forma dos regulamentos. Como no exemplo de Viterbo, em meados de 1300 d. C., onde foram proibidas as construções de escadas externas porque essas “prejudicavam a aparência das ruas” (KOSTOF, 1999, p. 213). Em períodos de “urbanismo alto-consciente” a tarefa de dotar de integridade e beleza as ruas era atribuída a oficiais especiais. Nos domínios da antiga Roma, nos anos 1200 d.C., existia o escritório Maestri dele Strada incumbido de limpar, reparar e fiscalizar ruas e estradas. Depois desse século, em 1349, havia em Florença os oficiais da Ufficiali dela Torre incumbidos de manter limpas, ordenar demolições em casos necessários e imputar critérios de desenho. Aliás, nessa mesma Florença, mais para o final da Idade Média na Toscana, a rua veio a ser entendida pela primeira vez depois da antiguidade clássica como unidade básica da urbanização, segundo os critérios de “pulchrae, amplae et rectae” (beleza, largura e retidão) que passaram a ser as principais instruções para construção de ruas. (KOSTOF, 1999, p. 213) Lamas descreve o papel da rua no desenho urbano do Renascimento e Barroco dizendo que “pela primeira vez” ela se constitui como “eixo de perspectiva, traço de união e valorização de elementos urbanos”. Então, os efeitos de cenografia e monumentalidade de cidades gregas e romanas seriam reinterpretados pela perspectiva axial monumental. Aparentemente uma diferença de escala e de noção de conjunto da cidade. As ruas renascentistas eram elaboradas em função da estética e também da circulação. Haja vista que na época as ruas predecessoras da cidade medieval, tortuosas e estreitas, não se prestavam mais ao uso generalizado de carroças e coches. Na rua renascentista destaca-se a importância enquanto sistema de circulação geral, na barroca destaca-se seu aspecto cenográfico para as grandes movimentações, procissões, cortejos e paradas. (LAMAS, 2004, p. 172-4) Para Kostof (1999), a partir da renascença a primazia de prédios isolados foi perdendo sua importância de forma gradativa até o período Barroco em favor da continuidade e uniformidade das fachadas principais. Deste momento em diante a preocupação com a construção dos volumes dos edifícios ficou tão importante quanto a construção dos vazios das ruas. Mas esse dilema, que o autor chama de conflito entre a continuidade das fachadas e a integridade dos edifícios, não desapareceu por completo e foi retomada inicialmente pelos planejadores Neoclássicos e celebrada nos trabalhos do arquiteto francês Claude Nicolas Ledoux. Nos esquemas urbanos desse período a cidade era tomada como terra aberta onde os edifícios eram introduzidos como objetos ensimesmados, uma antecipação clara às predileções da arquitetura moderna, sejam nos modelos da Cidade-Jardim, Cidade Linear ou Cidade Industrial, todas dissolvendo formas urbanas tradicionais pela reconstituição de “paisagens de casa de campo”.

5 A CIDADE MODERNA Para Pereira (2010, p. 141), “os diversos papéis que as ruas desempenham na organização das cidades passaram a ser analisados de modo sistemático desde o final do século XVIII”. Mas foi

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com o “nascimento do urbanismo como campo disciplinar” na passagem do século XIX ao XX que “seu protagonismo se afirma definitivamente”. Na França do final do século XVIII residem exemplos de preocupação com a rua por parte de diferentes tratadistas. Ela passa a ser observada no plano horizontal, não só pelo desenho em planta, mas também pelo aproveitamento do subterrâneo para alocação de infraestruturas. No plano vertical tomava-se a preocupação com o alinhamento e continuidade das fachadas, bem como com as alturas dos edifícios para prover as ruas de boa iluminação e ventilação. Segundo Kostof (1999), logo após a Revolução as larguras das ruas começaram a ser codificadas em Paris em função das suas hierarquias. “Ferreira” menciona o caráter de individualização da sociedade e a consequente fuga das relações sociais que até a Idade Média se materializavam nos espaços públicos, inclusive no espaço da rua, convergindo a partir de então em direção aos espaços privados. Foi então que: Os movimentos do século XIX, de crítica à cidade industrial, analisam as tendências da cidade contemporânea e começa, também, a voltar a atenção para a rua. [...] O desejo de ordem contraposto à “desordem” era a ideologia dominante. A cidade precisava ser reformulada, saneada. [...] A rua é abolida em nome da higiene e por representar a desordem circulatória. O tráfego é ordenado, criam-se trechos autônomos para a circulação de pedestres. As ruas tortuosas, porém animadas e propícias aos encontros, são substituídas por longas e largas avenidas. (AZEVEDO, 1992, p. 11 appud FERREIRA, 2002, p. 18)

Esse é um momento crucial da história do urbanismo no século XIX que pode ser muito bem exemplificado pelas renovações urbanas acontecidas em Paris sob auspícios do barão Haussmann. A transformação de Paris, levada a cabo entre 1840 e 1860, foi uma dessas intervenções de sobreposição de traçado regulador sobre o traçado irregular. Mas essa em um contexto de modernização das cidades lançando as bases para afirmação do capitalismo industrial, com fortes intenções de controle sobre as “contradições das relações de produção capitalistas”. As intenções de Napoleão III e do prefeito Haussmann eram: [...] fazer desaparecer a imagem da cidade antiga, velha e insalubre, facilitar a circulação multiplicando as ligações entre as diferentes partes da cidade, assegurar a valorização dos monumentos colocando-os no eixo de uma perspectiva, possibilitar a manutenção da ordem em caso de rebelião (DUARTE, 2006, p. 60)

Esse contexto corroborou com a introdução do automóvel. Duarte (2006, p. 29) explora o processo de “especialização funcional e tecnológica da circulação urbana” segundo o qual as ruas da cidade já estavam sendo preparadas para a lógica de circulação veloz e hierarquizada introduzida pelos novos meios de transporte. Esse processo, segundo ele, se iniciou antes, no século XIX, quando as principais capitais já haviam sido remodeladas e suas malhas urbanas ampliadas. A conjunção desses dois momentos implicou na violenta transformação do conceito de rua e na destruição massiva da espacialidade herdada da cidade tradicional (DUARTE, 2006; PEREIRA, 2010). Em 1910 o Royal Institute of British Architects (RIBA) realizou uma grande conferência em Londres sobre planejamento urbano. Esse pode ter sido um marco recente na história da rua por ter sido predecessor e menos celebrado que os CIAM’s, mas não menos importante. O Congresso reuniu três importantes escolas de pensamento que sumarizavam novas ideias em um mundo em constante crescimento e mutação. Technocrats led by German planners like Joseph Stübben and the city architect of Paris, Eugène Hénard, stressed the technicalities of modern urban traffic and engineering of street construction, [...]. Chicago’s Daniel Burnham brought along spectacular exhibits of City Beautiful design [...] which sought recast familiar urban prospects in terms of the newborn American skyscraper. The British contingente, led by

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Raymond Unwin, emphasized gardem cities, and arranged trips to Hampstead Garden Suburb and Letchwork, both inaugurated a few year earlier. (KOSTOF, 1999, p. 231)

Nessa conferência destacou-se a participação de Unwin por ser um grande conciliador. “Sua concepção de rua era moderna, não modernista. Nem os arranha-céus nem os automóveis foram apreendidos como presságios de revolução na função da rua.” (KOSTOF, 1999, p. 231). Le Corbusier, como todo seu desprezo a referências tradicionalmente contextualizadas, propunha o extremo oposto de Unwin com sua cidade contemporânea para três milhões de habitantes, em 1922. Nela prevalecia a rua corredor, separada dos edifícios e adaptada ao desempenho da velocidade do automóvel. A sucessão variada de percepções visuais de Unwin era então substituída pela percepção de uma paisagem regular e distanciada dos olhos. Na Carta de Atenas a rejeição à rua como lugar das pessoas e da expressão de comunidade ficou ainda mais marcada e nesse contexto surgiram as propostas modernistas de especialização da circulação, assim como se propunha especializar as outras funções da cidade. Le Corbusier, por exemplo, utilizou e difundiu a hierarquização viária, théorie des 7v, de acordo com as velocidades e em nome da fluidez e rendimento da circulação. Para Schetino (2013), a necessidade cada vez maior de separar fluxos resultou em duas linhas básicas de segregação aplicadas até hoje: uma na construção de cidades novas e outra na construção de ruas de pedestres em centros já consolidados. Nesse último caso, a gênese se deu quando “passagens em níveis distintos foram propostas para Nova York em meados do século XIX, e a galeria comercial para pedestres Victorio Emmanuelle, talvez a mais representativa e conhecida, foi inaugurada em Milão em 1867”. (SCHETTINO, 2013, p. 2). Após o que, o comércio começou a emigrar com maior recorrência para passagens, galerias, centros comerciais e, finalmente, ruas de pedestres em centros urbanos (Fig.4). Muitos exemplos de ruas de pedestres figuram em cidades norte-americanas e europeias a partir dos anos 1920, na Europa mais em países como Holanda, Inglaterra e Alemanha. Figura 4: Em Lijnbaan, Roterdam, uma rua de pedestres ladeada por lojas térreas.

Fonte: (KOSTOF, 1999, p. 241).

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6 A CIDADE CONTEMPORÂNEA Mas na metrópole o caminho vira rua, depois se transforma em avenida, e nesse ponto da história das formas de apropriação da cidade, a rua deixa de ser a extensão da casa para se contrapor a ela. (CARLOS, 2007, p.52)

Carlos se refere a São Paulo e, apesar de afirmar que dentro dessa cidade coexistem diferentes tipos, reconhece que as ruas, no geral, estão se transformando tão somente em lugares de passagem. Herança da Cidade Moderna. Mas, como nos adverte Kostof, “se na história moderna da rua as décadas de 1920 e 1930 as condenavam à morte, as décadas de 1960 e 1970 podem ser consideradas como aquelas da sua ressurreição” (KOSTOF, 1999, p. 239). Para Ascher (2010), o ponto de inflexão que nos trouxe aos dias de hoje teve as três seguintes principais motivações: primeiro, as condições de arranjar espaço para construção de mais vias em zonas adensadas e a inércia da população a respeito dos efeitos negativos do tráfego motorizado já não eram mais as mesmas; segundo, os comerciantes dos centros comerciais e ruas de pedestres já entendiam que era necessário entrar em contato com os fluxos de circulação motorizada para atrair transeuntes; e, terceiro, agregou-se mais uma vez, com profundas raízes históricas, ao imaginário da rua as características de mistura, variedade e da possibilidade de exercício da coexistência. Em 1963 o governo da Inglaterra comissionou o Relatório Buchanan cujos resultados referenciavam de uma maneira muito substancial como as cidades inglesas estavam sendo deterioradas pelo aumento do tráfego motorizado. Era inovador e passou a ser referência. Explicado assim nas palavras de Colin Buchanan: The central problem was “to contrive the eficiente distribution, or acessibility, of large numbers of vehicles to large numbers of buildings, and to do it in such a way that a satisfactory standard of environment is achieved” (APPLEYARD , 1981, p. 152)

A principal proposta de Buchanan eram as áreas ambientais, zonas homogêneas da cidade reservadas ao tráfego local. Tal concepção pode parecer semelhante com os pressupostos da unidade de vizinhança que também objetivava eliminar o tráfego de passagem em áreas residenciais, mas agora com a diferença de não ser mais a motivação da interação social a meta principal, mas o desenvolvimento de áreas protegidas. As ideias de Buchanan foram aplicadas não só na Inglaterra, mas em outras partes do mundo. Schettino acrescenta outros modelos às áreas ambientais de Buchanan: Já no último terço do século XX, formularam-se conceitos que reinterpretaram o espaço viário e questionaram as regras físicas, econômicas e sociais da tradicional engenharia de tráfego, favorecendo o pedestre e valorizando as relações pessoais no espaço público. As “áreas de coexistência” e as “zonas 30” são alguns exemplos. (SCHETTINO, 2012, p. 7)

Uma valiosa iniciativa de retomar as ruas para o pedestre, humanizá-las melhor dizendo, veio da Holanda, notadamente pelo protótipo de ruas residenciais chamadas woonerf. Em meados de 1970 elas foram adotadas nesse país em escala nacional. Com as prerrogativas de dar prioridade dos pedestres por meio de sinalização, pavimentação, mobiliário e ambiência urbana, esse conceito se espalhou pela Alemanha e Áustria, e, em meados de 1970, até pelos EUA. Em função dos diferentes contextos de cidades, a ideia de coexistência foi sendo implantada com certa variedade de condições formais e reguladores. Tendo isso em mente o autor nos

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apresenta três tipos de ruas muito difundidas atualmente entre diferentes graus de coexistência por parte de veículos e pedestres. As ruas e zonas de pedestres são aquelas de uso exclusivo de pedestres. Tal como aquelas norte-americanas e europeias dos anos 1920. Ruas de preferência de pedestres são aquelas nas quais 0a prioridade dos pedestres sobre os veículos está garantida por meio de sinalização específica. Nelas os veículos são obrigados a circular em velocidades mais compatíveis. O terceiro tipo são os shared spaces ou naked streets. São aquelas ruas nas quais prevalece a ideia de negociação sobre a de regulamentação, ou seja, nelas não existe qualquer tipo de sinalização, desníveis e outros dispositivos de separação física.

7 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS O indivíduo humano, em geral, nasce com a condição inata de se mover, mas tal prerrogativa nem sempre se desenvolveu nas ruas. Vimos em Da Aldeia às Primeiras Cidades que os deslocamentos nos primeiros agrupamentos humanos aconteciam em caminhos e vias públicas, não necessariamente em ruas, tal como definidas por Spiro Kostof, enquanto espaços artificiais bem delimitados em meio a paisagem. Em Grécia e Roma vimos a difusão do traçado regular de ruas como aspecto recorrente na fundação de cidades, ainda que não possam ser atribuídas a essas duas civilizações as primeiras referências a esse tipo de traçado na história da cidades. Nas cidades desse período revela-se o uso intenso da rua, tanto em volume quanto em diversidade de atividades. Os gregos apreciavam os espaços abertos e Roma tinha tantos habitantes que não é possível imaginar a vida na cidade sem o congestionamento. Em Idade Média, Renascimento e Barroco vimos que a profusão de pessoas, as condições precárias de higiene e a natureza tortuosa e estreita das ruas na cidade medieval ensejaram os primeiros cuidados de “embelezamento” que culminaram com as propostas viárias monumentais do Renascimento e Barroco. Em A Cidade Moderna vimos que o crescimento das cidades, em termos de aglomeração e complexidade, levou, primeiramente, ao arranjo das ruas em nome da manutenção da ordem, e, depois, à especialização da circulação urbana como função autônoma perante as outras. Tais fatos ensejaram a substituição massiva de ruas tradicionais, na forma e no uso, por ruas amplas, largas e apressadas que perduram ainda hoje como modelos. Em A Cidade Contemporânea vimos reações ao esgotamento do modelo anterior. Apesar de continuarem crescendo as cidades, surgiram as primeiras respostas de conciliação entre o imperativo da circulação motorizada e a qualidade dos ambientes urbanos. Entrou em cena o “modelo de performance” visando restringir a acessibilidade de veículos e o compartilhamento do espaço com respeito e prioridade efetiva ao pedestres. A periodização proposta não deve ser entendida como uma sequência de tempos estanques e superpostos. Pelo contrário, ela nos mostra que certos aspectos, como, por exemplo, os traçados regulares persistiram em quase todos os períodos. Outrossim, existem lacunas e descontinuidades entre um e outro período que por razões de espaço não puderam ser melhor interpretadas neste artigo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLEYARD, Donald. Livable Streets. Berkeley: Universidade da Calfórnia, 1981. ASCHER, François. As duas formas de compartilhar uma rua. In: BORTHAGARAY, Andrés (Org.). Conquistar a Rua! Compartilhar sem Dividir. São Paulo: Romano Guerra, 2010. p. 18-21. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Labur Edições, 2007. DUARTE, Cristovão F. Forma e movimento. Rio de Janeiro: Viana & Mosley; PROURB, 2006. FERREIRA, Willian R. O espaço público nas áreas centrais: a rua como referência. 2002. 327 f. Tese (Doutorado em geografia) - Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. KOSTOF, Spiro. The City Assembled: the elements of urban form through history. Boston: Bulfinch, 1999. LAMAS, José Manuel Ressano G. Morfologia urbana e desenho da cidade. 3. ed. Porto: Galouste Gulbenkian, 2004. MUMFORD, Lewis. A cidade na história. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. PEREIRA, Margareth da Silva. A reconquista das ruas. In: BORTHAGARAY, Andrés (Org.). Conquistar a Rua! Compartilhar sem Dividir. São Paulo: Romano Guerra, 2010. p. 140-5. SCHETTINO, Mateus Porto. Moderação de tráfego e a nova cultura da mobilidade em áreas de valor histórico e cultural. Texto apresentado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, 2013.

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