A Santa Fugitiva: confluências étnicorraciais no catolicismo popular de Anadia/AL, no século XIX

July 25, 2017 | Autor: Irineia Franco | Categoria: Historia Social, Catolicismo Popular, Catolicismo, História das religiões e religiosidades
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“A SANTA FUGITIVA”: CONFLUÊNCIAS ÉTNICORRACIAIS NO CATOLICISMO POPULAR DE ANADIA/AL NO SÉCULO XIX Irinéia Maria Franco dos Santos1 O objetivo deste texto é debater certas confluências étnicorraciais no catolicismo popular da cidade de Anadia/AL durante o século XIX, através da análise temática de “lendas” e memórias locais relacionadas às práticas religiosas. Nelas seria possível perceber a presença de um “sincretismo afro-indígena-católico” que foi se transformando e ressignificando ao longo dos oitocentos. A hipótese levantada é que tais confluências serviriam como reforço para demarcar os lugares sociais dos diferentes grupos étnicorraciais e auxiliar na construção de uma memória histórica e identitária que, por um lado, se aproximaria do discurso oficial das elites intelectuais e, por outro, apontaria para um espaço popular próprio, articulador da dinâmica cultural. No geral, esta reflexão faz parte de uma pesquisa mais ampla, ainda em andamento, a respeito da formação histórica das religiões afrobrasileiras no território alagoano. No particular, auxilia na composição de um quadro de referências sobre o catolicismo e a experiência religiosa das classes populares no estado. A escolha desta abordagem articula-se a um esforço coletivo que vem ocorrendo nos últimos anos para se trazer à tona novas fontes, problematizações e análises a partir do ponto de vista da história social das religiões. O texto divide-se em: (I) a narrativa e descrição das lendas e memórias a partir de fontes bibliográficas e da imprensa; (II) a discussão teórico-metodológica que embasa esta reflexão e análise, (III) a tentativa de uma interpretação da problemática levantada e da hipótese inicial. Anadia é uma cidade alagoana localizada na região central do Estado, à margem direita do Rio São Miguel, ao pé de uma série de colinas, derivações da serra Pirangassú que a rodeia em semicírculo.2 O Almanaque do Estado de Alagoas de 1891 informava que nestes primeiros anos do período republicano: “parte da casaria e algumas ruas da villa, inclusive a matriz e o cemitério acham-se no declive do serro ou collina que lhe fica mais próximo, estendendo-se a outra parte por um solo baixo e plano que se dilata em direção ao norte”. Segundo os dados do Almanaque, a vila era “atrasada e pobre’, o que poderia ser medido pelas edificações particulares nela existentes. “De cerca de 300 ou mais habitações que formam as ruas bem poucas casas de tijolos e construção mais adiantada se nota, sendo o maior número de taipa, baixas, pequenas, velhas e mal conservadas”.3

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Professora Adjunta dos cursos de História, graduação e pós-graduação, da Universidade Federal de Alagoas. Contato: [email protected] 2 No final do século XIX Anadia fazia limite ao norte e noroeste com parte dos municípios de Pilar, Atalaia, Paraíba, Viçosa, Vitória e Palmeira dos Índios; ao Sul com o de Limoeiro; a leste com os de São Miguel dos Campos e Alagoas; ao oeste com o de Traipú e ainda com o de Palmeira dos Índios. Ref. Almanaque do Estado de Alagoas, 1891, p. 396. 3 Almanaque do Estado de Alagoas, 1891, pp. 396-397.

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(I) A Santa Fugitiva e outras histórias Nicodemos de Souza Moreira Jobim4 em sua História de Anadia conta que o povoado Campos do Arrozal de Inhanhuns era dedicado a São João Nepomuceno. O santo teria perdido o padroado no século XVIII, pelo achado de uma imagem de Nossa Senhora da Piedade, sobre uma pedra na Serra da Morena, “deixada por fallecimento de um dos fugitivos do Quilombo dos Palmares, que ahi vieram estabelecer-se e criarem-se em famílias” (JOBIM, 1880: 79). Em 1872 já havia publicado a “lenda anadiense” que “os velhos têm por verdadeira” no jornal Liberal, nº 20. Uma mulher, nascida no meiado do último século e fallecida há 16 annos, em suas recordações infantis nos contava, que alcançou nesta Villa, então nascente povoado, uma casinha coberta de palha, onde o Cura de S. Miguel vinha celebrar missa por contracto com os habitantes; e lembrava-se a boa da velhinha que sua mãe empoava-lhe de véspera os cabellos para na madrugada seguinte irem encontrar a procissão de N. S. da Piedade, cuja imagem fugia da casinha e ia ser achada junto a uma pedra na Serra da Morena (fronteira a Villa), onde morrera um dos descendentes dos fugitivos dos Palmares, que para ali conduzira a dita imagem. Os grandes festejos que se fazia, dizia a velha, com tiros, caixas e zabumbas, e ao mesmo tempo o desgosto, causado pelo desaparecimento da misteriosa imagem, deram lugar a uma formal promessa de edificar-se uma Igreja, mudando-se de Padroado, que era de S. João para N. S. da Piedade, e nossa Igreja adorar-se e glorificar-se a pequena imagem. José da Fonseca Barbosa e seu irmão Antonio Barbosa, homens mais ricos desse tempo, comprometeram-se a ser os primeiros condutores em seus carros das pedras e madeiras necessárias para a edificação da Capela de N. S. da Piedade se cessasse o maravilhoso desaparecimento. Se é supersticiosa esta nossa narração não sabemos – o que há de certo é, que na Serra da Morena, três milhas distante desta vila, ainda existe a descendência dos antigos habitadores dos Palmares, typos originaes de sua raça: ahi fora a sua primeira situação, depois de destruído o Quilombo da Serra do Barriga”. (JOBIM, 1880: 79)

Segundo Jobim, os primeiros serviços de edificação da matriz datam de 1765, como também os desejos da comunidade de criação da freguesia logo em seguida. Em 18 de novembro de 1801 foi mandado erigir a “Villa com a denominação de S. João de Anadia, em honra ao visconde de Anadia, ministro português, que referendou o Alvará de creação e a propôs”. Em 20 de dezembro do mesmo ano foi posto em execução e inaugurada: “aos 21 fez-se a divisão do termo, separando-lhe de S. Miguel e Atalaia”. Em 1803 fundiram-se os dois sinos que “foram doados a Matriz” e a devoção de S. João Nepomuceno, primeira invocação, desapareceu. A imagem de N. Senhora da Piedade foi substituída por outra de “vulto maior”. “A pequenina e antiga colocada ficou ao lado de Evangelho, esquecida...” Entretanto, diz Jobim, “foi ela quem despertou o povo na edificação de sua Matriz, anunciando-se no deserto para ser eterna mãe dos anadienses. Ingratidão!” Em 1846,

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Nicodemos de Souza Moreira Jobim (Anadia AL 29/11/1836 - Maceió AL 3/4/1913). Historiador, professor. Primeiras letras em sua terra natal. Foi, durante 28 anos, professor público primário, tendo de aposentado quando dava aulas em Maceió. Advogou na qualidade de rábula. Era membro correspondente do Instituto Archeológico e Geographico Alagoano (atual Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas), sendo, entre os fundadores, o último a falecer. Colaborou com a revista e é o patrono da cadeira 49 da instituição. Foi, ainda, colaborador do Diário de Alagoas, em sua primeira fase (1858). Obras: História de Anadia em Princípio Arqueológico, Contendo a Descrição Topográfica, Nomes de Todos os Funcionários Públicos, Biografia de Alguns de Seus Representantes, Anais da Igreja, Genealogia das Principais Famílias da Província, que Nela Tem Origem, Remontando-se ao Quinto Grau em Ascendência e Crônica Minuciosa de Todos os Acontecimentos Desde 1801, Maceió, Tip. Social de Amintas & Filho, 1881. Ref. O ABC das Alagoas, pp. 97-98.

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“sacrilegamente a furtaram da Matriz e achada (não queremos dizer aonde) restituída foi por D. Maria Rodrigues Leite”. (JOBIM: 1880, p. 79-80) Outra versão desta história foi publicada por Leite e Oiticica5 no jornal O Orbe6 de junho de 1885, dividida em diferentes edições em artigo intitulado Recordações da Província – Lendas e Crenças Alagoanas. Em cima da versão de Nicodemos Jobim, de quem teria ouvido pela primeira vez, Oiticica rememorava a sua passagem por Anadia e desdobrava a narrativa da lenda como um conto. Incluía nela informações numa versão mais colorida e detalhada da vida na vila e da região. Segundo ele, “em uma das primeiras visitas” que fez à igreja matriz junto com o Professor (Jobim), viu a canto, “no altar lateral, onde estava provisoriamente a imagem da padroeira, pois que a igreja estava em concertos, uma imagenzinha velha, sem cor”, que atraiu sua atenção. Diz que, “à primeira vista nada havia de notável nessa imagem pequena, de barro e com traços grosseiros”. Impressionou-o naquelas circunstâncias admirado que “fosse conservado tão feio espécime em um templo que possuía tão formosos modelos”. Notando a sua curiosidade, Jobim ter-lhe-ia contado “uma história muito interessante, que explicava o fato da mudança de nome da freguesia, da edificação da matriz e do motivo porque N. Senhora é hoje a padroeira deste lugar”. Eis sua narrativa: “Uns caçadores internados nas matas a meio caminho da vila aos engenhos Periperi e Imberibeira” encontraram em uma gruta, junto a umas pedras, “a pequena figura de barro de Nossa 5

OITICICA, Francisco de Paula Leite e (Engenho Mundaú, Santa Luzia do Norte AL 2/4/1853 - Rio de Janeiro DF 15/7/1927) Professor, deputado provincial e federal, senador federal, advogado. Filho de Manoel Rodrigues Leite e Oiticica e Francisca Hermínia do Rêgo Leite e Oiticica. Diplomado em Direito pela Faculdade do Recife (1872), com 19 anos, regressa a Alagoas, onde inicia sua vida pública. Foi promotor público da comarca de Anadia; deputado provincial na legislatura 1874-75; Juiz Municipal da comarca de Oliveira (MG), regressa a Maceió em 1884. Deputado federal de maio de 1891 a dezembro de 1893, tomando parte ativa nos debates da Constituição Republicana. Senador, em maio de 1894, na vaga de Floriano Peixoto, que assumiu a vice-presidência da República, permanecendo no Senado até janeiro de 1900. Quando, em 1906, tentou-se eleger J.J. Seabra senador por Alagoas, rebelou-se contra esta candidatura, tendo-se apresentado candidato e cujo resultado final foi a anulação do pleito. Membro fundador da AAL (Academia Alagoana de Letras) e primeiro ocupante da cadeira 38. Sócio do IHGA - do qual foi o 5º presidente, de 8/12/1922 até falecer, e constante colaborador na revista da instituição. Patrono da cadeira 52. Membro da Sociedade Alagoana de Agricultura. Professor catedrático de alemão no Liceu e professor no Liceu de Artes e Ofícios no Rio de Janeiro. Foi, também, Delegado e Chefe de Polícia em Alagoas no governo de Pedro Paulino da Fonseca, ou seja, no início do período republicano. Como Chefe de polícia inaugurou, em Maceió, em 15/5/1887, o primeiro asilo de loucos, do qual foi o primeiro diretor. Recebeu, em 1897, do intendente de Maceió, o apoio para o início da construção do Asilo Santa Leopoldina, também para alienados, agora em condições bem melhores daquelas do primeiro que havia inaugurado. Entre as várias Obras destaca-se aqui o elogio fúnebre “O Professor Nicodemos Jobim”, Revista do IAGA, v. V. n. 01, dez. 1913, p. 66-70. Ver ABC das Alagoas, p. 333. 6 ORBE, O. Fundado a 2/3/1879, publicado às quartas, sextas e domingos em Maceió, editado por José Leocádio Ferreira Soares, em sua Tipografia Mercantil. Em 1886 passou a sair diariamente, com formato maior. Tendo se iniciado sem manifestação partidária, posteriormente passa a ser órgão do Partido Conservador, quando então, passou a ser redigido por Manoel Baltazar Pereira Diegues Júnior. A publicação foi interrompida duas vezes, a primeira em 1880, voltando a circular em 12/3/1890, para logo depois ser novamente suspensa, só sendo retomada em 1896 e desaparecendo definitivamente em 1900, quando era redigido por Craveiro Costa. Em 7/3/1890 sua oficina foi destruída. Era órgão da imprensa oposicionista no Governo Pedro Paulino da Fonseca. Bibl. Nac. microf. Ano I n. 1 2/3/1879; ano XI n. 54, edição especial 13/5/1889 e ano XXI n. 98 29/7/1899. IHGA - 1879: março a dezembro; 1882: janeiro a junho; 1883 a 1886, janeiro a dezembro, de cada ano; 1887 – fevereiro a julho e setembro; 1889: março a junho e agosto a outubro. Ref. O ABC das Alagoas, p. 347. Hoje todas as edições da Biblioteca Nacional estão disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, http://hemerotecadigital.bn.br/.

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Senhora da Piedade”. A imagem entregue ao vigário teria sido posta no altar da matriz; no dia seguinte desapareceu. Pensaram primeiro que fora um roubo; fizeram as indagações de costume e não descobriram o que se passou. “Nem valia a pensa tanto incômodo por um santo de barro, pequenino e de tão feia cara”. Meses depois, “dois caboclos havendo-se internado nas matas, do mesmo lado para onde tinham ido os primeiros descobridores, encontraram no mesmo local onde fora achada da primeira vez, a mesma imagem roubada à igreja”. Sem respostas para saber quem teria levado a imagem para ali, “questões que se apresentavam muito sérias ao espírito, sempre crédulo, dos ingênuos filhos do povo”, atribuíram o fato a milagre e levaram a santa, “com muita azáfama” ao vigário. Este não teria dado atenção “ao milagre”, mas para impedir que um “gaiato se lembrasse de um segundo roubo”, celebrou uma missa pela volta de Nossa Senhora da Piedade. Como se pode esperar, no dia seguinte, o vigário se espanta com o sacristão que logo cedo o acordou para informar que “a santa lá não estava”! Publicado o fato, não houve quem não o atribuísse a milagre e não afirmasse que a santa estava direitinha em carne e osso, no mesmo lugar onde tinha entrado pela primeira e segunda vez; entretanto, coisa notável! Não houve uma só pessoa que se animasse a ir buscar a imagem ou ao menos ir verificar se ela estava no lugar primitivo. De feito, foram tantas as versões que apareceram que justificavam esse terror. Uma velha que residia perto da igreja tinha ouvido pela madrugada, um grande estrondo dentro da matriz e uma voz dizer: “não quero estar aqui, deixem-me”. Outra, tendo vindo, na noite antecedente, rezar um Padre Nosso a N. S. da Piedade, notou que a Santa estava com cara de choro e parecia estar ali constrangida; uma terceira contou que estando a rezar a coroa, às 2 da madrugada e com a janela aberta; viu sair pelo teto da igreja um coro de anjos, conduzindo em uma nuvem de ouro, uma imagem parecida com a que o senhor vigário tinha posto no altar; ela disse logo consigo que, no dia seguinte, a imagem não seria encontrada, como sucedeu. 7

O segundo sumiço foi “um alvoroço e ninguém tinha coragem para ir verificar se a santa estava no mesmo local de antes”. Um velho ofereceu-se para ir à mata e o vigário incumbiu-o de ir ver e informar aos outros. Neste dia “ninguém foi à roça”, a multidão apinhou-se em frente à igreja. O emissário voltou quase à noite, noticiando que N. S. da Piedade “lá estava no mesmo lugar mesmo”. Demonstrada a vontade da santa de “morar na mata”, muitos opinaram que se deveria construir ali mesmo uma capela. O vigário decidiu que no próximo domingo fariam uma procissão solene para ir buscar Nossa Senhora, “a qual talvez não tivesse querido ficar por não ter sido trazida com honras devidas”. A ideia “luminosa” deixou “o povo alvoroçado”, “ninguém mais trabalhou”. A vila encheu-se de pessoas, homens, mulheres, velhas e crianças que, já não cabendo nas casas, espalhavam-se pelas ruas. No dia combinado “o vigário disse missa de madrugada e pôs-se a caminho; o povo acompanhou-o em número de muitas mil pessoas, entre elas as mais gradas da freguesia”. No local onde se achava a santa entoaram ladainha e cânticos sagrados. O préstito voltou à vila à noite, “tendo em frente a proverbial música das festas de aldeias: um bombo, uma caixa de duas charamelas”. Na matriz, colocaram a imagem sobre o altar, incensada ao som da 7

O ORBE, junho de 1885 edições 71 a 73. Disponível em: Hemeroteca Digital Brasileira. Acesso: 20/05/2013.

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Ladainha e Salve Rainha. Repicaram os sinos e deu-se por fim a festa. Estavam todos convencidos que desta vez, “Nossa Senhora ficaria satisfeita”. No dia seguinte o sacristão admirou-se de ver o senhor vigário já acordado quando ele se levantou, apesar de o ter feito muito cedo; quando a nós nada há de admirar neste fato, quando soubermos que o vigário apesar da boa caminhada da véspera não pudera pregar olho toda a noite: Deixou a cama, passou-se para a rede, nesta ainda não pode dormir; deu duas vezes corda no relógio de parede e que quase arrebenta o velho relógio, orgulhoso de nunca ter ido a concerto, em suma passou a noite mais incomodado do que na véspera de ir a concurso para a freguesia. Aberta a porta da igreja voaram ao altar..... nada!.... A santa havia fugido. Desta vez o vigário ficou seriamente atrapalhado: olhou para o sacristão, este olhou para o vigário e ambos para o altar. O que fazer? Era evidente que N. Senhora não queria estar com eles, abandonava-os, desprezava-os. Que calamidade os aguardava, a que coisa atribuir tamanho desprezo aos seus paroquianos ou a si? Que fazer, meu Deus, em tão aflitivo transe?

A consternação do povo foi grande e todos aguardavam com “resignação uma série de calamidades”. “Até que, uma senhora rica do lugar8 teve uma lembrança feliz.” A igreja era uma pequena capela e sob invocação de São João Nepomuceno que “mal servia para satisfazer as exigências do serviço religioso”. A ideia foi que Nossa Senhora, “considerando indigna de si a capela de S. João, só ficaria na sede da freguesia, se lhe edificassem uma igreja sob a sua invocação”. Puseram mãos à obra: a tal senhora cujo nome não me ocorre, mas que não está esquecido; porque o professor o conserva fez a promessa solene de concorrer com o dinheiro necessário. Repetiu-se a cena da procissão, entretanto já N. Senhora, não para a capela de S. João, mas para a igreja de N. Senhora da Piedade, que deu o seu nome à freguesia. De então em diante, apesar dos sustos do vigário, a santa não fugiu mais e lá se conserva até hoje. Concluída a igreja mandaram fazer outra imagem de vulto maior.

Antes de se partir para a análise da lenda, vejam-se outras histórias e memórias da vida religiosa católica em Anadia, ainda contatas por Jobim e Oiticica. Algo que chama atenção na História de Anadia de Jobim é sua constante referência (direta e indireta) a conflitos e/ou tensões étnicorraciais na Vila, nestes anos dos oitocentos. Esse dado perpassa a obra, e se destaca na Terceira Parte – Annaes da Igreja e no Memorial Biográfico de Antônio José dos Santos, última parte do livro, na qual resume a trajetória do tenente-coronel do batalhão de milícias dos homens pardos e vogal da primeira junta de governo na província. (JOBIM, 1880: 175-178)9 Entre muitos 8

Relatório do Vigário Epaminondas Bomfim encaminhado ao Arcebispo D. Ranulpho Farias em 7 de março de 1940. Nele informa dados históricos e gerais das condições da paróquia e da população. Sobre a constituição do patrimônio diz: “Consta da tradição que o patrimônio aqui existente fora dada a N. S. da Piedade por D. Ana Dias. Naquele tempo os escritores tinham o cunho de particularidade sem nenhum valor jurídico na atualidade. Dizem, entretanto, que a escritura do patrimônio desta paróquia se acha transcrita em um dos livros de cartório da Velha Alagoas, atual Deodoro. ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DE MACEIÓ. Armário 3, Gaveta 1, Paróquias. Já Jobim informa que o nome da senhora fora D. Garcia de Araújo que em 14 de julho de 1755 mandou lavrar a escritura de doação em Santa Maria Madalena Alagoas do Sul (Velha Alagoas, atual Marechal Deodoro). Ele transcreve a escritura em seu livro, o que torna sua informação mais confiável. Cf. História de Anadia, p. 102. 9 Segundo Jobim, por sua “condição de sangue”, Antonio José dos Santos sofreu preconceitos e perseguições políticas quando graduado a sargento-mór em 1816; chegou mesmo a ter contestada em processo. “Esta gloria, que tantos procuram, foi comentada, discutida, admirada e depois de entregue aos hábitos diversos das disputas, rebatida em representação ao Governo Imperial, pedindo-se providencia para que não continuasse hombrear e ter parte nos Comícios governamentais um pardo sobre quem pesava o ferrete da escravidão com exclusão dos homens nobres”.

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outros temas, atentar-se-á aqui, à vida das irmandades religiosas. Os exemplos escolhidos são dos mais representativos: a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em capela filial. Segundo Jobim, como visto acima, Campos do Arrozal de Inhanhuns de São João Nepomuceno foi elevado a Villa e a freguesia em 18 de novembro de 1801. À falta de um padre residente fez com que se solicitasse ao Bispado de Pernambuco a criação de um “novo curato”. O pedido foi atendido pelo Bispo D. José Joaquim Cunha de Azevêdo Coutinho, no dia 2 de fevereiro de 1802, designando esta data para a “festa e guarda da padroeira”. Esta primeira festa deu-se com “toda a pompa e solenidade, assistindo a ella o Visitador [Padre Joaquim de Saldanha Marinho], o nobre Senado da Villa, Clero, nobreza, povo, principaes e peões e desta sorte por um novo Chrisma – freguesia de Nossa Senhora da Piedade e Villa de S. João de Anadia”. O padre Francisco Ignácio de Araújo, coadjutor da freguesia de S. Miguel, foi o primeiro nomeado para “reger o curato”. Diz Jobim que, “na sua administração” continuou os trabalhos da nova igreja matriz. Através de uma “subscrição dentre os proprietários” mandou buscar as imagens para o culto, os ornamentos e dois sinos. O interesse tomado “pelos mais ricos proprietários” foi tamanho que em 1805, sob a administração do Cura Francisco de Moura Lima, organizou-se a Irmandade do S. S. Sacramento. Esta funcionou regularmente até a eleição de sua mesa regedora em 1833. (JOBIM, 1880: 84-100)10 Nestes anos as poucas interrupções sofridas se deram por conta das guerras de Independência e da agitação política do período, em especial a Revolução Pernambucana de 1817 e Confederação do Equador de 1824.11 Vale destacar que em 1819, a Mesa realizou solenemente a festa das Endoenças12 da Câmara Municipal e de Corpo de Deus. Naquele ano a festa do orago foi feita pelo sargento-mór Antonio José dos Santos. Conta Jobim que teria sido “a festa de maior pompa e riqueza d’aquelle tempo”, porque “mandou vir a música de barbeiros da cidade da Bahia, e surprehendou os habitantes por duas horas da madrugada expondo-os a sobressalto porque era a primeira por elles vista.” É sabido que as irmandades do Santíssimo Sacramento, tradicionalmente, somente aceitavam entre os seus membros, os chamados “homens bons”. Pelas informações de Jobim, no entanto, a Irmandade de Anadia tinha entre seus membros nesta primeira fase, homens pardos. Não se sabe ao certo se compunham ou não a mesa regedora; estariam, porém, organicamente participando dela. Essa hipótese parece mais acertada ainda, quando Jobim afirma ter a S.S. Sacramento ficado de 1836 a 1851 sem atividades. O problema teria sido, na sua opinião, 10

Jobim faz um resumo com todos os nomes dos mesários, suas datas de eleição e decisões tomadas referentes às festas e ao patrimônio da Irmandade. 11 Foi durante a Revolução Pernambucana de 1817 que a região ao sul da capitania se tornou independente e surgiu a capitania das Alagoas, logo tornando-se província com a Independência em 1822. Alagoas sempre se destacou pelas lutas a favor da Monarquia portuguesa. No entanto, durante a Confederação do Equador (1824) houveram lutas em Penedo e Anadia entre tropas imperiais e revolucionários. 12 No calendário litúrgico católico é a Quinta-feira Santa que marca o fim da Quaresma e o início do Tríduo Pascal na celebração que relembra a última ceia de Jesus Cristo e os doze apóstolos.

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a falta de incentivo do pároco. Somente a visita do capuchinho Frei Henrique teria reanimado a vida religiosa local. Nos anos passados ali em missão, estimulou o conserto da Igreja (1855), e em 13 de abril de 1858 vários concordaram em restabelecer a Irmandade. Segundo Jobim “a iniciativa porém teria vingado se um anno depois de organizada d’entre os convidados ou membros não aparecesse o projecto de escolher-se brancos somente para irmãos do SS. Sacramento” (JOBIM, 1880: 98). Aparentemente, a SS. Sacramento de Anadia passou por um processo de “branqueamento” de seu “corpo” nessa segunda fase. Não se tem conhecimento do seu Compromisso13, mas tendo outros como exemplo, algumas das irmandades do Santíssimo Sacramento na região de Alagoas teriam sido compostas por pessoas de diferentes condições (brancas, pardas, negros livres), excetuando-se em todos os casos vistos, os escravos. As que mantiveram a regra de só se aceitar brancos como membros foram as da Freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres de Maceió e a de Pilar. Talvez a irmandade de Anadia procurasse se aristocratizar como essas últimas; ou essa decisão refletisse conflitos locais pelo avanço social e econômico de alguns homens pardos. Um último dado a respeito da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Anadia. Apesar da decisão de afastar da irmandade os “irmãos pardos”, o momento das festas abriria as brechas de confluência cultural e étnica. Sobre a festa do orago do ano de 1863, Jobim conta que fora organizada pelos juízes eleitos, o Dr. Manoel Rodrigues Leite Oiticica e sua irmã d. Thereza Querubina Leite da Costa. A festa teria sido grande! Solenidade com três padres de altar, missas cantadas nos 9 dias de novenas, ornada de rica armação em todos os altares e iluminada a grandes candelabros, aos cuidados do artista Jeronymo Costa. Reuniram-se as duas músicas de barbeiros de Maceió e Penedo e uma outra pastoril composta de pífanos e flautas, usada pelos camponeses do sitio denominado – Flexas. Pregou o sermão da festa o vigário Francisco Vital da Silva e depois da procissão acompanhada de guarda de honra prestada pelo batalhão 16 de guardas nacionais teve lugar o Te-Deum. A orquestra do maestro Benedito Effigenio do Rosário composta dos professores de música – oficial-maior Luiz Joaquim da Costa, chefe de seção José Lopes da Paixão, e empregados provinciais Affonso Effigenio do Rosário, Conrado Alves de Moura, padre José Candido, Joaquim Antonio de Almeira Crispim, Luiz Effigenio do Rosário, Antonio Simões de Souza, Valencio Romão dos Santos, Marcolino Noblat, Jose Lopos Filho, Antonio Joaquim Sabacú celebre cantor baixo e outros oficiou em toda a festa, e numa palavra faltou tempo para freqüência nas representações theatraes, Fandangos e Quilombos que durante a festividade foram representados.” (JOBIM, 1880: 98)

As bandas de barbeiros e os folguedos (pastoril, fandangos, quilombos) apresentados foram alguns dos espaços culturais nos quais os negros afirmaram sua presença nas Alagoas (SANTOS, 2014). Vale lembrar que o folguedo quilombo é uma dança dramática representando a guerra de Palmares; nela índios e negros quilombolas lutam em lados opostos. Se considerar as observações de Jobim como um indício da confluência buscada, o que ele conta a respeito da Irmandade de 13

Jobim informa que em 1807 o ouvidor José Joaquim de Castro por um provimento estabeleceu o modo como deviam ser eleitos os funcionários, atentando a sua “primeira organização ser formulada por uma lista simples com cláusulas de compromisso, garantida pela assinatura do vigário”. Em 1815 a mesa concordou com o requerimento do vigário que fosse impetrada a confirmação do Compromisso para serem canonicamente contempladas as disposições. História de Anadia, p. 89.

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Nossa Senhora do Rosário auxilia a completar este quadro. Segundo ele, nos livros da Capela do Rosário, consta que em 1824 a Irmandade foi criada “com fim único de sua erecção pelos pretos”. A imagem de Nossa Senhora do Rosário foi encomendada pelo Irmão zelador João Correa do Rosário, conhecido por João Venta, pela quantia de 110$000 com o pintor Marcolino de Jesus Jardim, da vila de Penedo. Em 1821 a Câmara Municipal determinou que a igreja fosse edificada “no lugar alto, ao lado do poente da matriz, e não junto a cadeia, por inconveniente” como era o desejo da Irmandade. Porém, seu patrimônio começou a ser composto desde 1806 a partir da doação de terras feita pelo capitão Antonio da Fonseca Barbosa e sua mulher d. Helena Maria da Cunha, moradores do sítio Cabeludo. Doações foram colhidas por seus irmãos nesses primeiros anos. Somente em 31 de Outubro de 1832 chegou a Virgem encomendada da Vila de Penedo. A festa foi solenizada como a primeira de sua Igreja e teve “carros triumphaes, fortalezas, arcos, fandangos, taieiras, tudo se poz em moda”. Em primeiro de novembro daquele ano depois da missa, “as pretas para esta festa elegeram em irmandade: Rei, José, escravo de Francisco Fernandes dos Cuvuões. Rainha, Anna, escrava do capitão Pedro de Barros Castro. Juiz, Joaquim, escravo de D. Izabel do Cabúta. Juíza, João, escravo de José de Sant’Anna (sic) (JOBIM, 1880: 114).14 Jobim procura sistematizar as informações a respeito da Irmandade. Entre suas notas percebe-se os revezes pelos quais passou esta confraria. Em 1844 durante a sedição (DIÉGUES JR, 2012: 195-227)15 o tenente-coronel Leandro Tolentino de Menezes “fez trincheira das paredes do templo, guardando até animaes durante os três dias de effectivo fogo”. Em 1845, este mesmo coronel, ao examinar os estragos feitos na igreja, que haviam deixado o templo interditado, foi surpreendido pelo “inesperado desabamento de todo o frontispício”; escapou pela “impulsão de ar que o atirou fora da área ocupada pelo montão dos tijolos”. Em 5 de agosto de 1853 o juiz de direito Corrêa Lima “em correição”, mandou dissolver a Irmandade do Rosário, suspendendo o seu compromisso “por falta de poderes competentes autorizados pelo artigo 46, parágrafo 1º do regimento de 2 de outubro de 1851 e nomeou a José Felippe da Motta Muricy para administrador interino dos bens que lhe pertenciam. Com a morte deste no ano seguinte, a igreja ficou em abandono até 1855, quando suas imagens foram transportadas para a matriz. Sua área havia sido destinada para Cemitério dos coléricos, “em virtude de muitas das principaes pessoas da villa se oporem ao enterramento dos seus no Cemitério provisório ou das estacas que a poente da mesma Igreja há 200 passos havida destinado o respectivo parocho e bento no dia 9 de setembro de 1862 14

Não se sabe porque um homem foi eleito como Juíza; talvez o número de mulheres fosse pequeno na Irmandade. Não parece ser erro tipográfico. Não há como verificar, uma vez que nenhum dos livros da irmandade foram preservados, até onde se sabe. 15 As lutas do período da Independência explodiram também em Alagoas entre os grupos políticos conservadores (“lisos”) e liberais (“cabeludos”). Muitas lutas foram travadas entre as famílias principais para o controle político da Província tendo seus momentos mais violentos em 1844. Em meio a isso ocorre ainda as lutas dos índios em Jacuípe contra senhores de engenho. Sobre este episódio conferir Dirceu LINDOSO. A utopia armada: rebeliões de pobres nas matas do tombo real. Edufal: Maceió, 2010.

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com o nome de Campo Santo” – por ocasião da segunda epidemia de cólera na cidade, e por “não haver outro edifício apropriado para semelhante fim”. Nesta altura, o próprio Jobim era o procurador da Irmandade! Teria nesta função conseguido em 22 de fevereiro de 1862 a quantia de 723$380 para um novo reparo em todo o edifício, quando “o juiz de capelas dr. Serapião Eusebio d’Assumpção ordenou seu recolhimento ao cofre e deu comissão ao capitão Martiniano José Leite para dele se encarregar”. Jobim teria se indignado com esta decisão. Diz: Assim em 2 de Novembro de 1863, por novo acordo demoliram todo templo, transportaram todo material para a frente da cadeia com o fim de junto a ella edificarem uma outra e nisso ficou! Os tijolos, fabricados sobre vigilância do novo comissionado tornaram-se em areia, os grossos esteios, telhas e taboas foram divididos vergonhosamente, e o que mais é, os altares sagrados ainda hoje servem de coche das estribarias dos ricos e as elegantes Imagens recolhidas à matriz como emigradas por um completo indiferentismo. (JOBIM, 1880: 116-117)

As poucas informações que se têm sobre o funcionamento e o triste fim desta irmandade, trazem questionamentos sobre o espaço social que os escravos puderam conquistar na vida religiosa de Anadia. Por outro lado, ajudam a entender algo mais da perspectiva de Jobim. Sua História de Anadia destaca com mais especificidade a relação “entre as pessoas principaes da Villa” e “os humildes”. Pela histórica presença de uma “população de cor” na região, território marcado com os nomes africanos em seus rios (Lunga) e povoados (Cafundó, Mucambo etc), a manutenção de uma memória da escravidão tem raízes mais profundas no inconsciente coletivo e na ressignificação religiosa estabelecida ali. Estaria impregnada na composição étnica e cultural de sua população. Jobim parece não ter problema em destacar o papel da “população de cor” na história da vila. Tende a indicar vez ou outra os preconceitos e injustiças sofridos por ela. Aparentemente, o funcionamento da Irmandade do Rosário foi permitida de modo negociado, em situação de subalternização. Por último, vê-se uma outra “história-memória” apresentada por Oiticica. Em seguida à lenda da Santa Fugitiva, inicia outro conto16 que teria ouvido durante sua estada em Anadia de um velho chamado Condongo. O exemplar neste conto é a descrição e caracterização que faz de Condongo. Estereótipos e preconceitos surgem claramente em seu texto. O velho Condongo é um antigo espécime dos pretos do outro tempo, aos quais os padres que os criavam, mandavam ensinar a ler e, depois de fazê-los decorarem as respostas que vêem nas últimas páginas das cartilhas com o pomposo título de método de ajudar na missa, punham-nos ao pé do altar e com pouco mais os tornavam os que tinham sobre quaisquer outros uma grande vantagem: morar com o vigário e, pois não fazer cerimônia separada, ficando todos os emolumentos da estola em casa.17

Oiticica caracteriza Condongo como uma figura pitoresca. Teria “por conta da cachaça tombado em seu espírito”, que já com “noventa verões passava um dia todo, ou doze horas a fio,

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O conto O rosário da alma do outro mundo faz parte da seção Lendas e Crenças Alagoanas, publicada por Oiticica no O Orbe e aqui mencionada. Infelizmente, na Hemeroteca Digital não se tem os números completos do jornal para se conhecer todo conto na íntegra. 17 Jornal O Orbe, junho de 1885, ed. 73. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.gov. Data de acesso: 01/03/2013.

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narrando-nos décimas em glosa de quadras, tomadas por tema, finalizando sempre com o motivo que o fizera tirar essas quadras”. Uma delas: Das três pessoas distintas, Uma delas hei de ser; Crio a quem me criou. Não sou Deus, mas posso ser.

Tratava-se, segundo Oiticica, “nada menos que do trigo, convertido em farinha, serve para manufaturar o pão, alimento para o homem que o criou, igualmente a hóstia, verdadeiro Deus depois de consagrada”. Uma característica de Condongo foi destacada por Oiticica. Seria uma “implicância singular: odiava o cheiro de arruda; quem quisesse vê-lo perder a tramontana e tornarse uma verdadeira fúria, esfregasse entre os dedos um galho de arruda”. No mais era um bom velho. Como era preto, costumava dizer que estava muito velho, pois quando já era homem feito, vira F... e F... molequinhos aí na rua. F... e F... era o comandante superior e major da guarda nacional, chefes de família de copa alta. Todos os domingos passava-se pela porta e, como ia à missa, recitava uma quadra ao divino; outras vezes, depois de beber um bom trago, o que acontecia depois de ouvir a missa, tornava-se maçante e era necessário esfregar arruda para pô-lo fora. 18

Oiticica conecta a Condongo o que seria, em suas palavras “o ridículo das crenças populares”, os “contos fantásticos desses tão comuns entre a gente do Norte, que os atribui, com ou sem razão, às influências desconhecidas ou sobrenaturais”.19 De Condongo teria ouvido a história do “rosário da alma do outro mundo”. Diz respeito ao “costume de se colocar sobre a sepultura de parentes defuntos na cruz do cemitério e nas paredes da igreja o rosário que o morto trouxe em vida no pescoço”. A esses rosários são atribuídos virtudes e poderes sobrenaturais. Quem de nós visitando um desses cemitérios, vir dependurado em uma cruz de pau esses emblemas da fé cristã, atribuirá o sentimento que experimentam à repulsão por um objeto que sabemos haver pertencido a um homem que está morto; os homens do povo, porém entendem que esse sentimento é devido a força oculta do rosário, considerando ato de heroísmo o apossar-se alguém dele. Entretanto, alguns mais afoitos, servem-se desse meio para conseguir revelações do próprio a quem pertenceu o rosário, muito embora já tenha morrido e o seu corpo esteja reduzido a simples e descarnados ossos. 20

Esse quadro descritivo foi necessário para se estabelecer os parâmetros da problemática. As experiências religiosas populares em Anadia, aparentemente, foram preservadas por estes escritores do século XIX como aspectos singulares e pitorescos. Neles algumas distinções de classe ficam evidentes. Mesmo as aproximações evocariam lugares diferenciados para cada grupo participante de uma mesma “vivência de fé”. É preciso avançar, então, nesta problemática.

(II). Problematizações e abordagens teórico-metodológicas Desde os anos 1960 pesquisadores das ciências sociais têm dado maior atenção às

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Jornal O Orbe, op. cit. Idem, op. cit. 20 Jornal O Orbe, junho de 1885, ed. 73. 19

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experiências históricas das classes populares. Para os historiadores a renovação historiográfica do início do século XX, o contato interdisciplinar, e o envolvimento orgânico com as questões políticas e sociais contemporâneas criaram nova disposição para enxergar nas experiências históricas populares objetos privilegiados para se conhecer e explicar a realidade social e cultural brasileira. Parte deste movimento, na historiografia, se deu a partir da práxis de uma “esquerda católica” que, dentro de suas preocupações pastorais, associou-se às transformações epistemológicas das ciências sociais e procurou aplicá-las na reescrita da história da cristianização na América Latina. O grupo de pesquisadores e historiadores do CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e Caribe) foi responsável pela elaboração e/ou ressignificação de alguns conceitoschaves utilizados na análise da realidade popular e de sua religião. Entre eles Romanização, Catolicismo Popular e Religiosidade Popular21. É marcante na produção inicial do CEHILA o uso da “autocompreensão” da Igreja Católica como chave de leitura que contrapunha e explicava duas perspectivas diferentes de vivência do cristianismo: a do catolicismo oficial e a do catolicismo popular. Dentro desta perspectiva Riolando Azzi trabalhou, especialmente, com a religiosidade popular. Em um artigo de 1979 procurou sistematizar um quadro de referências, “sob o ponto de vista histórico” que permitisse “analisar a evolução dos centros de devoção e romarias populares” (AZZI, 1979: 279-294). Para isso, partiu do pressuposto que o catolicismo foi trazido ao Brasil pelos lusitanos e estabelecido como “religião oficial, a serviço do projeto colonial português”; portanto, representava a “religião da raça e da classe dominante, à qual tiveram que submeter-se os indígenas e os africanos”. Para Azzi, não obstante a estrutura eclesiástica dos ritos oficiais, celebrados nas etapas mais importantes da vida e que vinculavam o povo na Cristandade Colonial, “as camadas economicamente inferiores da população”, mantinham a busca de “uma válvula de escape para exprimir com maior liberdade suas crenças religiosas”. O culto aos santos constituiria para ele, “uma das características dessa iniciativa popular”, e os centros de devoção e romaria seriam “os espaços privilegiados de sua autonomia religiosa” (AZZI, 1979: 279). Azzi divide em seis ciclos de evolução histórica para caracterizar as origens dos centros de devoção popular no Brasil. Seriam eles: (1) Ciclo Litorâneo; (2) Ciclo Bandeirante; (3) Ciclo Mineiro; (4) Lusitano; (5) Ciclo Sertanejo; e, (6) Ciclo Romano. Não cabe aqui descrever todos, mas quer-se indicar aspectos úteis das referências apresentadas por ele. A história das romarias no Brasil mostraria, a seu ver, “as fases de confronto entre a fé popular que quer expressar-se espontaneamente e a hierarquia eclesiástica que procura

A religiosidade popular seria entendida como: “espontaniedade, autonomia, fé, piedade de uma pessoa ou grupo diante do sagrado, experiência religiosa de comunidades pobres, socialmente oprimidas e culturalmente marginalizadas”. Ref. DICIONÁRIO DA RELIGIOSIDADE POPULAR, p. 891. 21

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submetê-la ao seu controle”. Seguindo o que ele chama de “mentalidade típica da Idade Média”, os centros de devoção principais no período colonial se “constituíam em lugares onde corria a fama de prodígios divinos”. A intervenção sobrenatural, confirmaria para os devotos, segundo Azzi, a autenticidade do seu culto. Todas as primeiras ermidas deste tempo, teriam sido construídas em “regiões habitadas pelos indígenas, fora da área de ocupada pelos colonizadores”. As romarias a estes lugares teriam constituído “o primeiro grande movimento de integração entre as duas raças, sobretudo a nível popular” (AZZI, 1979: 280-281). Azzi diferencia as romarias do século XVI e o ciclo paulista do século XVII e inícios do XVIII. Para ele, enquanto “as primeiras são incentivadas pelos religiosos, e têm desde o início uma finalidade missionária de catequese e evangelização, as romarias do interior, por outro lado, teriam brotado “espontaneamente da piedade popular”. Não obedeceriam à uma organização prévia, mas “vão se desenvolvendo com grande margem de liberdade de expressão por parte do povo”. Esse aspecto foi evidenciado por Azzi com as aparições de imagens milagrosas. A estátua do Bom Jesus de Iguape, por exemplo, teria sido encontrada por dois índios, e em seguida levada à ermida do povoado vizinho por uma família de moradores da região. A imagem de N. S. Aparecida seria encontrada nas águas do rio Paraíba por três pescadores, e continuou por vários anos a ser cultuada num pequeno oratório na casa de Anastácio Pedroso filho do pescador Felipe. A estátua de Bom Jesus de Pirapora foi encontrada por aventureiros que subiam o Tietê, “numa pedreira que aflorava num cotovelo do rio. (AZZI, 1979: 283)” A hipótese de Azzi é que “as antigas tradições orais, referentes às aparições milagrosas dessas imagens, diversas das quais brotam do seio das águas”, representaria “um esforço por parte dessas populações mestiças e caboclas de vincular o culto católico às suas antigas crenças sobre a divinização do cosmo e da natureza”. Tal daria a esses cultos aspectos de sincretismo bastante fortes. Finaliza comentando que “o aspecto milagroso da aparição da imagem constituiria a mais forte legitimação do culto popular”. Não sendo legitimados pela autorização dos poderes civil e eclesiástico, se “justificavam pela própria vontade divina que escolhera aqueles lugares para serem destinados ao culto.” Azzi aponta nessa caracterização que, em especial, a partir do processo de romanização22 do século XIX o controle eclesiástico sobre esses locais de culto deu-se sistematicamente, principalmente naqueles que alcançaram uma grande proeminência. O controle estabelecido O chamado processo de romanização no catolicismo é entendido como “um período de profundas mudanças no catolicismo praticado no Brasil, principalmente, mas não só, em seu aspecto institucional. Apontaria para uma inserção da estrutura hierárquica da Igreja Católica do Brasil na estrutura burocrática da Santa Sé. Essa inflexão levaria a uma clericalização e sacramentalização das práticas religiosas do catolicismo no Brasil sem precedentes, em substituição ao caráter laico, festeiro, regalista e devocional do catolicismo praticado até esse movimento que teria se iniciado no século XIX, mas que se fortaleceu, de fato, a partir do fim do padroado, em 07 de janeiro de 1890. Ref. Maurício de Aquino. Romanização, historiografia e tensões sociais: o catolicismo em Botucatu/SP (1909-1923). In Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, maio, junho, julho, agosto de 2011, vol. 8, ano VIII, n. 2, Disponível em: www.revistafenix.pro.br 22

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procurou depurar aqueles elementos mais explicitamente sincréticos encontrados nos diferentes cultos. Segundo Martha Abreu (ABREU, 2000: 56) é preciso refletir com cuidado o uso da “expressão/conceito religiosidade popular” por parte dos historiadores. Os motivos apresentados por Abreu são: (a) a impressão de continuidade que a expressão provoca, pois sugeriria “uma mesma e persistente religiosidade popular através dos tempos, em função das semelhanças formais e rituais de suas manifestações, tais como festas religiosas, procissões e romarias”; (b) “reunir um conjunto de comportamentos, sempre vistos em oposição (ou subordinados) a algo considerado correto e oficial. Existiria uma religiosidade popular em termos de uma religiosidade não oficial, erudita e resistente às iniciativas dos mais críticos ou de seus perseguidores”. A expressão também poderia “conter uma boa dose de etnocentrismo, ao definir a prática popular da religião como religiosidade, e não como religião”. Por fim, afirma Abreu que a utilização da expressão religiosidade popular na pesquisa histórica “traz o risco de se reduzir a complexidade do fenômeno religioso, simplificando a análise das relações entre religião e sociedade, religião e classes sociais, e finalmente, religião e história”. Conclui Abreu apontando que não se filia ao “grupo dos que proclamam a inexistência de uma forma popular de vivência da religião”, porém, tal expressão, assim como cultura popular, “não devem ser usados sem um profundo diálogo com o contexto temporal e social mais amplo”. Isto é, “compreender os significados que os setores populares conferem a uma determinada prática religiosa, mesmo que também seja partilhada com outros segmentos sociais”. Em que pese as críticas pertinentes que foram feitas, é inegável a importância da elaboração de uma história do catolicismo que privilegie os pobres como protagonistas e agentes de transformação social. Também vale mencionar que, no processo metodológico de elaboração de teorias explicativas gerais, tende-se a generalizações que, certamente, devem ser pontuadas na especificidade das experiências históricas. A importância de teorias que buscam a síntese de processos é a de contribuir para proposições projetivas de expectativas de mudança e transformações na sociedade brasileira. A História busca compreender o passado tendo em vista o presente. Ou seja, toda escrita da História está comprometida com projetos políticos mais amplos, no entendimento de que, não há produção do conhecimento neutra. Cabe aos historiadores refletir e esclarecer seus pressupostos e posicionamentos de pesquisa. Estes estão, necessariamente, vinculados a uma ontologia e a uma epistemologia. Saber a quais interesses o grupo CEHILA está engajado é indicativo de uma proposta histórica que destaca o conflito porque, em grande parte, os pobres continuam sofrendo os reveses de uma hierarquização das suas experiências religiosas. A vida religiosa dos pobres ainda é vista e apresentada como coisa exótica, folclore e/ou superstição. Tal quadro cria dificuldades políticas e materiais na afirmação de seus espaços sociais. Espera-se 13

que as pesquisas sobre este tema contribuam para a formação de uma consciência coletiva que leve, por exemplo, à superação da intolerância religiosa. Neste texto, interessa particularmente como alguns aspectos do catolicismo popular – agregador de elementos das religiões africanas, indígenas – podem ser entendidos na elaboração ideológica da hierarquização das contribuições culturais e religiosas de cada grupo étnicorracial para a afirmação de uma identidade anadiense. A lenda da Santa Fugitiva de Anadia, por um lado, faz parte de uma ampla estratégia de evangelização utilizada por missionários e sacerdotes católicos desde o período colonial. Pode-se, nesse sentido, destacar as semelhanças e as diferenças entre a lenda anadiense e outras no Brasil. Por outro lado, constituiu-se no tempo o mito fundador da identidade local. De tal modo que sua continuidade manteve-se, até o presente, como parte da vida religiosa católica na cidade. Como se teria dado a elaboração da lenda de Nossa Senhora da Piedade na qual, de modo tão claro, são associadas as “três raças fundadoras da identidade nacional”? Quem ou quais foram seus criadores? Qual o espaço da autonomia coletiva e da estratégia de evangelização? Até que ponto clero e povo entendem com distinção as experiências de “fé nos santos milagrosos”? Pode-se agora, por fim, comparar as histórias e versões de Jobim e Oiticica para identificar os pontos da problematização aqui destacada. Jobim e Oiticica cumpririam a tarefa de reforçar a identidade local destacando suas características peculiares. Os dois foram membros do IHGAL (Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas), fundado em 1869. O conjunto de histórias e memórias apresentadas por eles formariam um quadro de referências iniciais para o debate das identidades “formadas” ou “pretendidas” na província. Haveria, portanto, uma tarefa de escrita da história local, a partir da perspectiva do Instituto, parte do processo mais amplo de discussão de uma identidade nacional que se prolongou ainda até o século XX. Tanto Jobim como Oiticica trouxeram seus textos a público nos anos 1880 e 1885, respectivamente. As atividades do IHGAL já estavam consolidadas, com uma revista sendo publicada desde 1872. Duas análises podem ser apresentadas. (1) A perspectiva externa ou de contexto da produção e reprodução das memórias locais apresentadas como histórias e História da Província. Seria a partir da soma das histórias locais que se teria a História das Alagoas, específica, ligada a Pernambuco, mas, ao mesmo tempo, própria em si mesma, autêntica e distinta. (2) A perspectiva interna da história da Igreja Católica na província, em especial as elaborações e confluências do catolicismo popular que passava, nessa segunda metade do XIX, por mudanças advindas do impacto do processo de romanização que se iniciava. A “lenda” da Santa Fugitiva soaria como memória antiga, colonial, muito próxima das “superstições” que seriam posteriormente combatidas, mas possuindo um viés de catequização e doutrinação da fé muito forte. Aparentemente, em Alagoas, a identidade cultural (histórica) foi diretamente vinculada a 14

uma identidade religiosa católica. As publicações da Revista do IHGAL são exemplares para se perceber essa relação. Dadas no processo histórico de povoamento da região, a Igreja fortemente aparece nestes artigos como co-protagonista junto com os donatários e senhores de engenho. Claramente, têm-se a ideia de que o avanço da civilização significava o avanço da cristianização e afirmação do catolicismo como religião “oficial, única e verdadeira”. Nesse sentido, muitos padres foram membros do Instituto, assim como muitos “militantes católicos”. As elites intelectuais pareciam no século XIX estar entre o Catolicismo e a Maçonaria. Alguns flertaram também com o Espiritismo Kardecista recém-chegado da França. Poucos acompanhavam talvez com “curiosidade” os cultos afrobrasileiros. Quando desavisados, como parte da população, deles tinham conhecimento e experienciavam a influência afroindígena nos costumes domésticos, nas festas populares das irmandades religiosas, nos folguedos e carnaval. A identidade, portanto, estava longe de ser a ortodoxa romana no cotidiano popular. A diferença, porém, entre o vivido nas ruas e nas comunidades e o que foi glorificado nas academias e institutos refletiria o controle da memória oficial que se prolongou. Isto é, o lugar social objetivo das diferentes classes no modo de produção de então, e o que as elites projetavam como válido ou não (perigoso ou não) de suas contribuições na vida social e cultural. Na “lenda” da Santa Fugitiva, vê-se estas perspectivas. As duas narrativas pouco diferem. Mantém o mesmo núcleo duro: a imagem de N. Senhora da Piedade foi encontrada na mata sobre pedras, por ela fundou-se a vila, construiu-se a matriz, mudou-se o padroado. Participaram como personagens – além da santa – pessoas de todas as condições e classes. A união em torno da fé na imagem milagrosa teria proporcionado um tipo de sinergia coletiva essencial para a fortificação de uma identidade e das relações no grupo. Oiticica narra como se todas as decisões tivessem sido tomadas coletivamente entre o padre e o povo, mas com certas diferenças. Retira o dado de ter sido a imagem deixada na mata como um “legado” dos quilombolas. Jobim, por sua vez, considera esse dado o único que daria garantias da relação entre a “lenda” e a História, uma vez que no lugar mencionado por sua informante, próximo à Vila, ainda haviam descendentes dos “fugitivos de Palmares”, isto é, quilombolas. A igreja local muito ganhou – material e espiritualmente – com a fé animada do povo. Mobilizações foram feitas para a construção da matriz, irmandades foram criadas animando a vida religiosa e, consequentemente, a vida social e cultural. Na versão de Oiticica têm-se estratégias e atitudes variadas do povo e do padre em relação ao milagre e às formas de se resolver os sumiços da santa. A ideia da construção de uma capela para N. Senhora, no mesmo local em que foi encontrada e para o qual retornava foi imediatamente negada pelo padre, que insiste em levar a santa para a Igreja. A insistência na domesticação da santa é interessante. Não ficava bem uma “santa quilombola”, rebelde, fugindo da Igreja e vivendo nas matas!... Brincadeiras à parte, a passagem do 15

ciclo lusitano (colonial) para o ciclo romano (imperial), segundo Azzi, significou o controle dos locais e centros de devoção popular pelo clero. Se, porém, a estratégia do padre fosse fomentar a construção de uma nova matriz, a imagem milagrosa deveria, “por bem”, ficar na vila, no centro de controle da vida religiosa de Anadia. Controle também de possíveis influências das crenças africanas e indígenas, recorrentemente renovadas na crença popular. Nos cultos à jurema sagrada, no catimbó e nos xangôs, alguns orixás e entidades tem preferência pelas matas, ali são lugares de poder em que se realizam, por vezes, a iniciação dos seus membros. Essas aproximações poderiam ser consideradas perigosas... Em Alagoas, como em outras partes do Brasil, existe com vitalidade o sincretismo das várias Nossas Senhoras com Iemanjá. É preciso lembrar que o sincretismo (FERRETTI, 2013), é um processo de mão dupla. Isto é, a ressignificação dos elementos míticos e sagrados é feita tanto pelo catolicismo quanto pelas religiões africanas e indígenas. Na região alagoana Iemanjá é cultuada como Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora das Candeias. Na Bahia Iemanjá também é cultuada como N. Senhora da Piedade. Segundo Armando Vallado, no Brasil o culto às divindadesmães teria chegado por intermédio de Iemanjá. Outros orixás-mães são aqui cultuados com ela, a exemplo, Oxum e Nanã Burucu. Iemanjá, Oxum e Nanã tiveram uma “profunda inter-relação mítica com as sereias do paganismo europeu, com as diferentes denominações de Nossa Senhora e com as iaras ameríndias, as mães-d’água” (VALLADO, 2010: 1-3). Com o tempo, o papel de Iemanjá como mãe se fortaleceu, aproximando-se mais à mãe dos católicos, Nossa Senhora. Tanto que, as festas mais importantes deste orixá são comemoradas de acordo com o calendário litúrgico da Igreja romana. O âmbito mitológico funcionaria como aglutinador dos sentidos e das analogias estabelecidas entre as diferentes cosmovisões em contato. A mudança etimológica dos termos pode ajudar a perceber as transformações que vão sendo estabelecidas. Sabe-se que a lenda, do latim legenda, é uma “história popular” que narra experiências de pessoas ou acontecimentos reais do passado com personagens humanas e/ou sobrenaturais. Segundo o Dicionário de Religiosidade Popular, o termo teve seu sentido alterado ao longo do tempo – na Idade Média, significava a leitura para divulgar a vida do santo; atualmente, o termo tomou um caráter “anti-histórico”, sendo a “narração do maravilhoso”, uma espécie de “história sagrada”. Superstição, do latim superstitio, significaria originalmente a “sobrevivência de elementos ancestrais após a mudança para uma nova religião” (VAN DER POEL, 2013: 1042). O sentido pejorativo que foi agregado ao termo fez com que se perdesse esse sentido original que é bastante explicativo de certos processos de dominação religiosa. Parece bastante complexo distinguir no tempo as aproximações e distanciamentos que os diferentes cultos e cosmovisões sofreram. O sincretismo afro-indígena-católico tornou-se um dos temas mais estudados sob diferentes vieses desde Nina Rodrigues. 16

Como observado anteriormente, a lenda da fugitiva N. Senhora da Piedade de Anadia participa de uma ampla tradição brasileira conectada às tradições populares europeias, africanas e indígenas. Segundo especialistas a representação de Nossa Senhora da Piedade (Pietá) existe pelo menos desde o século XIV, em que há registros de miniaturas. Nela vê-se a Virgem Maria segurando o seu filho Jesus morto, após a crucificação. A representação comove por trazer tema tão humano – a mãe chorando o filho morto nos braços. O culto de Anadia à Nossa Senhora da Piedade tornou-se nacionalmente conhecido. Sua festa muito alegre mantém a tradição das procissões, com leilão, quebra-pote e pau-de-sebo. Sagrado e profano estão presentes, relação bastante conhecida nas festas populares. Ou seja, os “santos” e Maria tornaram-se na história do catolicismo os laços mais afetivos para o povo no culto. O avanço do catolicismo como religião imperialista, de viés universalista aglutinou os cultos agrários dos vários povos, tomando para si características específicas em diferentes lugares. As muitas deusas e Virgens rapidamente foram assimiladas ao culto de Maria. Os muitos heróis divinizados, deuses, gênios da natureza etc ganharam lugar no panteão católico. Tanta proximidade transpareceu, portanto, no culto às imagens. Segundo Francisco van der Poel “o povo acredita no santo vivo”. Possuem “fé na viva presença de santos e almas”, por isso, trata-os com familiaridade. Falam com santos em voz alta, pedem sua ajuda, deixam bilhetes. O santuário é, segundo van der Poel, entendido como “a morada do santo”. Na tradição popular, em Portugal e no Brasil, diversos santos milagrosos, escolheram o seu lugar de morada. Eles aparecem e insistem em que sua capela seja construída no sítio em que apareceu, se a imagem for retirada do local, eles voltam para lá. Nesse caso, “com a graça de Deus, os santos fazem milagres” (VAN DER POEL, 2013: 503; 967). Este pesquisador apresenta vários exemplos de santos fugitivos. Segundo ele, a história mais frequente é de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Porém, assemelha-se à santa fugitiva de Anadia a história de Nossa Senhora da Penha de Pitangui/MG que apareceu em cima de uma pedra em 1709, foi levada para a igreja matriz duas vezes, e nas duas vezes voltou para o lugar onde havia aparecido. Na terceira vez, Nossa Senhora apareceu com uma telha na cabeça. Foi então que o povo entendeu o recado e fez, naquele local, a capela onde a imagem está até hoje! A variedade de histórias de “santos vivos” e outros “fujões” no Brasil dariam conta de uma relação com o sagrado mais espontânea em comparação com o ritual oficial, estruturado e contido. Por outro lado, as coincidências nas histórias – as recorrências em temas, locais aonde as imagens surgem e o comportamento fugitivo – possuiriam raízes muito antigas, renovadas em período de intenso controle (ou tentativa) das populações indígenas e escravas na Colônia e no Império. Para uma população que convivia com a escravidão e a memória da Guerra de Palmares isso seria bastante significativo. A fuga apontava o caminho da liberdade. 17

(III). Considerações finais: em busca de uma síntese É trabalho difícil para o historiador distinguir processos complexos a partir de poucos indícios. Tendo em mente um problema do presente, busca-se lógicas de relação com algo que se entende passado e que possa ser significativo para a resolução da problemática levantada. A religião popular mantém uma vivacidade criativa e criadora que talvez seja a marca mais importante de um espaço autônomo, na medida sempre de uma dialética presente na realidade social entre grupos diferentes e entre indivíduos e coletivos. A vida religiosa de Anadia no século XIX deveria ter servido como exemplo para verificar essa hipótese. Anadia foi, como várias outras vilas, originalmente terra indígena ocupada por colonizadores brancos. Escravizados africanos e quilombolas fortemente marcaram presença ali. Com o tempo, um grupo de pardos teria alcançado proeminência na vila, principalmente após as lutas de independência e pelas atuações militares em milícias, adquirindo postos, terra e escravos. Essa ascensão social teria servido para garantir minimamente destaque nas irmandades religiosas e na vida política, apesar dos conflitos enfrentados. Serviram, mais importantes, para garantir um espaço na memória “mítica” da fundação da identidade da vila. Os anadienses são descendentes dos brancos, negros e indígenas. A lenda da Santa Fugitiva confirmaria isso. Tal não significa, um mesmo lugar de valor na elaboração dessa identidade e no espaço social. As memórias vistas parecem indicar que, pelo menos no olhar de dois intelectuais do período (Jobim e Oiticica), as “superstições” populares davam o colorido do quadro pintado, e separavam em suas perspectivas duas classes: “nós [os intelectuais, os “brancos”] e o povo”. O povo “ingênuo e crédulo” mantém a “fé nos milagres”, visto no seu comportamento e até mesmo no do padre em torno da santa quando tentam adivinhar-lhe os desejos e convencê-la por ritos e sacrifícios a estar com eles. Condongo apresentado como um “bom preto velho” guardaria nas entrelinhas traços de confluências mais antigas e mais sincréticas. A arruda23 que o afugentava ou o rosário usado como objeto para ativar poderes oraculares através dos mortos, aproximar-se-iam algo das práticas da chamada “feitiçaria”; mesmo não sendo mencionado por Oiticica, ou exatamente, por não ter sido mencionado. Para bom leitor, meia palavra basta! Esses indícios gritam uma influência africana sincretizada nas crenças populares católicas medievais que se mantinham naquele contexto. Não se toma aqui a narrativa da lenda como descrição do que teria acontecido, mas como indicação de modelos de comportamento que poderiam ser característicos. Os caboclos (índios) encontram uma imagem em terras de quilombolas, a senhora rica e outros proprietários financiam a construção da nova igreja. O “padre” inicialmente não leva a sério o dito “milagre” mas começa a 23

Esta planta possui um amplo uso na medicina popular e em âmbito mágico-religioso nas religiões afrobrasileiras e outras tradições servindo para proteção, afastar feitiços, contra doenças, quebranto e mau-olhado.

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ser convencido pelos desaparecimentos e pela fé do povo, procura se assegurar que o controle do sagrado não fuja das mãos da Igreja. Cada um neste esquema cumpriria uma função social e étnica. Esse momento fundante vai se perdendo no tempo, por vários motivos, epidemias, guerras e conflitos políticos e étnicorraciais que se refletiram na vida religiosa, principalmente, nos exemplos vistos das irmandades. Na percepção de Jobim e Oiticica, a fé popular motivou grandes feitos e uniu os diferentes no passado. A percepção das atitudes do clero, de modo geral, em relação à realidade do catolicismo popular sofreu mudanças no tempo dependendo das indicações pastorais dos bispos e orientações doutrinárias. Manteve-se, porém, como mecanismo de vivificação da fé católica, muitas vezes como o termômetro que marcava a aculturação. Os diferentes vigários em Anadia testemunharam os altos de baixos da vila e cidade. Já em 1940, o padre Epaminondas Bonfim, atendendo ao pedido de seu Arcebispo encaminhou um relatório sobre a história da paróquia. Nele dizia: No último recenciamento a sua população subia a mais de 6.000 habitantes: hoje, porém, é provável haver grande e sensível baixa em vista da extraordinária imigração de seus habitantes para o sul do país, máxima para São Paulo. A paróquia é pobre, não há quase capitalista nem grandes fazendas, nem usinas e fábricas. O número de engenhos de açúcar é resumidíssimo; também resumidíssimo é o número de pequenas montagens para o benefício do algodão. A não ser em anos favoráveis por abundância de chuvas. O povo vive a se estorcer em pobreza e vexames, motivo da fuga para outras paragens da nação. O único banco existente na cidade está falido. O comércio vai diminuindo a olhos vistos. A maior cultura agrícola é de algodão, fumo e mamona. Há regular criação de gado. O seu povo é trabalhador e ordeiro; traz no físico o que lhe caracteriza, a velhice prematura pelo excesso e canseira de insanos trabalhos, sem compensadores resultados. Sua religião é a católica. Não existe na paróquia outra religião ou seita. Está florescente, mercê de Deus. [...] Em meio de tudo isso o povo é bom e amigo de N. Senhora e do padre. Vivem os fiéis da freguesia como viveram os seus antepassados, beijando a cruz e cultuando a sua querida Padroeira com invulgar entusiasmo.24

No Almanaque do Estado de Alagoas de 1891 a população de Anadia foi contabilizada em cerca de 20 mil “almas”.25 Não se tem hipótese certeira sobre o porquê de uma diminuição populacional tão grande nessas primeiras décadas do século XX. É indicativo, no entanto, as informações do vigário a respeito da grave crise social e econômica. Aparentemente, o catolicismo popular participaria de uma teodiceia tradicional em que muitas vezes se justificava o mal e o sofrimento no mundo pela “vontade de Deus” (SANTOS, 2009). Quanto à informação de não haver na cidade outra religião ou “seita” também seria preciso maiores averiguações. As tensões no espaço alagoano em relação às religiões afrobrasileiras deixou traumas que, no período do relatório, estavam ainda latentes, na perseguição político-policial aos terreiros. Porém, é possível que em

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Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió, Armário 3, Gaveta 2, Paróquias. O bispado de Alagoas foi fundado em 1900, e o Bispado de Penedo em 1910, e o de Palmeira dos Índios em 1962. Por conta das mudanças dos limites das paróquias em função dos bispados, Anadia passou nesse período, então por sua posição geográfica, a pertencer à Diocese de Penedo. Há, portanto, poucos documentos a seu respeito no Arquivo Metropolitano. 25 No último censo do IBGE de 2010, a população foi contabilizada em 17.423 habitantes. Censo Populacional 2010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (29 de novembro de 2010).

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Anadia, qualquer experiência religiosa mais distante do catolicismo se mantivesse clandestina. O que se buscou indicar neste texto foi um ambiente de confluências étnicorraciais tendo como palco o espaço de vivência do catolicismo popular. Algumas questões permanecem em aberto. O papel duplo da religião católica, por exemplo. Foi lugar aonde as religiosidades africanas e indígenas se encontraram com a fé cristã, criando laços efetivos e, ao mesmo tempo, cumprindo o papel institucional de repreender, reprimir e encomendar devassas a elas, através da imprensa e de suas pregações. A memória da lenda da Santa Fugitiva manteve-se em um nicho de tradição do catolicismo popular que a ortodoxia não pode eliminar. O processo de Romanização do século XIX depurou muito das relações mais próximas de confluência, em especial no espaço das irmandades de negros e pardos. Ao sair do campo religioso, a lenda local do momento fundante da fé e identidade da vila, encontrou o lugar de mito político. A distinção do catolicismo como ideologia religiosa e política é outra dificuldade, nesse sentido. Nem sempre isso é claro, e muitas vezes na documentação as vozes parecem ser tais e quais as mesmas. A lenda parece indicar de haveria um lugar para cada um, tanto na fé como na vida social. A qualidade deste lugar social, a proeminência e distinção, superior ou subalterno dependeria de lutas políticas e do avanço conflituoso e negociado das relações étnicorraciais em Alagoas.

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