A saúde dos doentes: crítica ao sistema capitalista

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A saúde dos doentes: crítica ao sistema capitalista
Bianca Raupp Mayer

O conto "La salud de los enfermos" (a saúde dos doentes) de Julio
Cortázar, publicado no livro "Todos los fuegos el fuego" (todos os fogos o
fogo), pode ser entendido como uma crítica à pressa, à dedicação excessiva
ao trabalho que o sistema capitalista nos impõe e que, concomitantemente,
resulta em estresse e cansaço; mas também, levando-se em consideração o
contexto histórico em que o autor se encontrava ao escrever a obra, tem-se
a teoria de que foi uma crítica ao governo do militar Juan Domingo Perón.

Logo no início do conto, o filho da personagem identificada como
"mamãe" vem a falecer em um acidente automobilístico. Ela, entretanto,
segundo seus outros filhos, é descrita como incapaz de lidar com essa perda
e, portanto, haveria necessidade de inventar-se a mentira de que seu filho
não havia morrido: contaram-na que ele estava trabalhando, em um bom
emprego, no Brasil. A partir desse fato, assim, começa o teor fantasioso do
conto. A mentira inventada à personagem mamãe representaria o Peronismo –
regime populista, que¸ com isso, buscava, assim como Getúlio Vargas, no
Brasil, criar uma imagem "pai dos pobres", dando aos trabalhadores melhores
condições de vida; porém, a população carecia no campo da saúde, e nessa
época a mais violenta ditadura militar da América Latina já estava sendo
tramada- que, segundo a concepção de Cortázar, estava muito distante da
imagem de política esquerdista que se passava aos argentinos por meio de
seu populismo[1]. No conto "Casa Tomada", Cortázar deixa mais
explícita sua crítica ao Peronismo; em "A saúde dos doentes", porém, a
sutileza é sua marca.
Mamãe, além de ser única personagem que não sabe da verdade sobre a
morte do filho Alejandro, é também aquela que não trabalha – não se
estressa, não tem uma rotina agitada-, mas também sofre de doenças físicas
e necessita de atendimento médico contínuo. Ela é a personagem que vive as
consequências do sistema político instaurado sem que ela optasse sobre. Sua
saúde, assim como a dos argentinos na época do governo de Cortázar era
precária, e ela vivia em uma mentira criada pelos seus próprios filhos; ou
seja, assim como os próprios cidadãos que optaram pelo seu governante,
logo, deram suporte para que ele os enganasse com uma falsa política de
esquerda, mamãe foi responsável pela criação daqueles que a enganam – os
seus filhos.
Essa personagem, por outro lado, não se adequa ao sistema capitalista
que, assim como na Argentina fazia-se cada vez mais presente – mais tarde,
resultando em ditadura – no conto, ocupava o tempo de lazer de seus filhos.
Ela, embora aceitasse que o trabalho excessivo e o cansaço fossem normais
na sociedade, dava indícios de que preferiria que seus filhos não se
rendessem a esse sistema e passassem mais tempo longe das atividades
remuneradas. Além do mais, mamãe representa o sentimentalismo, o apego às
pessoas, o amor e a compaixão que estava em falta nos dias tumultuados e
cheios de compromisso que o trabalho formal impunha à sociedade
capitalista. "Mamãe precisava compreender que os tempos haviam mudado, que
os industriais não entendiam de sentimentos, mas Alejandro logo encontraria
jeito de tirar uma semana de férias, no meio do ano, e voltar para Buenos
Aires. Mamãe concordou com tudo, embora chorasse um pouco e foi preciso dar-
lhe sais para cheirar", argumenta o filho Carlos que, de lado contrário à
mamãe, era, no conto, a força de obrigatoriedade de adequação ao sistema,
do dever de trabalhar, então, do conservadorismo.
Enquanto mamãe se apegava ao que estava no campo dos sentimentos;
Carlos, o material. O narrador, assim, evidenciando isso, descreve a reação
dela após o recebimento de uma suposta carta de Alejandro: "Rosa reparou
que mamãe não beijava o papel depois de assinar, mas que olhava fixamente a
carta como se quisesse guarda-la na memória"; já, por outro lado, quando a
personagem Célia vem a falecer, ele não demonstra importar-se e ainda vai
relatar a mamãe o quão satisfeito estava com as finanças de seu escritório,
mais uma vez privando-a de que soubesse a verdade.
Todavia, Carlos, tal como as forças argentinas explicitamente de
direita na época do Peronismo, ganha representatividade; ele assume o papel
de patriarca da família no decorrer da obra. Suas falas aumentam em
detrimento das de mamãe, que parece morrer aos poucos. A mulher que
representava a força esquerdista, o desapego às maquinarias; que era aquela
a qual seu único compromisso do dia era ter um horário para descansar
(tirar a "siesta" argentina), quando foi perdendo seu papel de grande
matriarca, era mais uma familiar apegada à pressa, havia em sua rotina
outros compromissos distantes do lazer e parecia mais doente; assim como a
saúde pública no país, mais abandonada. "De vez em quando olhava para o
relógio, o que nela era sinal de impaciência. Às sete horas Rosa devia
trazer o caldo com as gotas do doutor Bonifaz e já eram sete e cinco"-
descreve Cortázar sobre mamãe.
Mas também, na América Latina, a esquerda estava sendo suprimida; ela
cuidava o relógio e sabia que seus dias estavam contados: no ano de
lançamento do livro em que o conto foi publicado, um golpe militar atingiu
a Argentina. Já mamãe, ao final de sua vida, estava incapaz de exercitar
sua linguagem – característica tácita aos humanos; habilidade necessária à
nossa vida em sociedade, já que é um consenso aristotélico de que "somo
seres sociais". Portanto, mamãe perde sua principal característica capaz de
incluí-la ativamente na família, que, metaforicamente, é, no conto, como se
fosse a sociedade argentina. O sentimentalismo e a despreocupação com a
obrigação de servir ao capitalismo não tinha mais forças. Carlos já havia
absorvido toda a capacidade de expressão dela. E a única preocupação dos
familiares era de que a mentira continuasse sendo mantida. Estava, a
família, tão obcecada em que a personagem não desconfiasse das mortes, que
ela começou a tratar o fato como se fosse realmente verídico: parecia
acreditar na própria mentira. Alejandro havia sido promovido no Brasil e
estava bem, embora com o pé machucado; o que o impossibilitava de visitar
sua mãe. Em contraponto, na Argentina, mesmo que Perón fosse um falso "pai
dos pobres", era melhor, à população de ideologia de esquerda, acreditar em
suas reformas de cunho trabalhistas a submeter-se a um regime militar.
Mamãe, então, morre. "Agora vocês vão poder descansar – disse mamãe"
– e essa foi sua última fala, como se seus resquícios de amor ao próximo e
credibilidade na confiança em seus familiares viessem à tona; ela não
queria mais ser um martírio na vida de seus filhos além do cansaço que
estudar e trabalhar os causavam. Seu objetivo sempre foi fugir dos encargos
e percebia que, na visão quase pós-moderna deles, as pessoas e seus
sentimentos eram problemas, eram trabalhosos e não os recompensavam com
capital.

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[1] Juan Domingos Perón, até o ano de publicação do conto (1966), já havia
sido eleito presidente da Argentina por duas vezes consecutivas; além
disso, sua ideologia era que "a verdadeira democracia é aquela onde o
governo realiza o que o povo quer e defende o interesse do povo".
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