A \"segunda geração\" da soberania alimentar: o exemplo de Metro Vancouver, no Canadá

May 31, 2017 | Autor: E. Freitas Coca | Categoria: Food Sovereignty, Urban Food Systems, Agrarian geography
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A “segunda geração” da soberania alimentar: o exemplo de Metro Vancouver, no Canadá

Estevan Leopoldo de Freitas Coca Doutorando em Geografia - FCT/Unesp

Introdução

No ano de 1996, a coalizão internacional de movimentos camponeses La Via Campesina apresentou a soberania alimentar como uma proposta alternativa de ordenamento dos sistemas alimentares (DESMARAIS, 2007). Com isso, ela visava ir além do modelo de alimentação que tem sido capitaneado pelas grandes corporações em escala global (McMICHAEL, 2013) e que possui diversos problemas, a exemplo da persistência do paradoxo entre a fome e a obesidade. O conceito de soberania alimentar tem evoluído no decorrer dos anos. Primeiramente, ele foi lido como uma necessidade de cada nação (LA VIA CAMPESINA, 1996). Contudo, atualmente, é consensual dentre os defensores dessa proposta alternativa, que ela tem que ocorrer na escala da comunidade, de tal modo que cada povo controle seu próprio processo de alimentação (FORUM FOR FOOD SOVEREIGNTY, 2007). Além disso, a soberania alimentar está alicerçada na construção de princípios éticos como a valorização do trabalho feminino, a reforma agrária e a relação amigável com o meio-ambiente (WITTMAN, 2011). Nesse trabalho visa-se contribuir com a discussão sobre a atualidade da soberania alimentar, destacando a emergência de sua “segunda geração”. Isso se dá porque num primeiro momento, a soberania alimentar foi lida mais na perspectiva de apoio à luta de movimentos camponeses do Hemisfério Sul. Contudo, atualmente, se percebe também a preocupação com os consumidores. Como esse exemplo disso, é colocado em evidência o caso da região metropolitana de Vancouver (Metro Vancouver), na província de British Columbia (BC), no Canadá, onde diversos grupos compostos por membros da sociedade civil têm criado estratégias que visam estimular o consumo crítico de alimentos. Os resultados aqui apresentados são oriundos da pesquisa de doutorado “A soberania alimentar através do Estado e da sociedade civil: o Programa de Aquisição de

Alimentos (PAA), no Brasil e a rede Farm to Cafeteria Canadá (F2CC), no Canadá”, que foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Metodologia

Para a confecção desse trabalho foram utilizados dois procedimentos metodológicos centrais: - Levantamento bibliográfico e documental: foram consultadas centenas de trabalhos acadêmicos (livros, teses, dissertações, artigos e outros) e documentos institucionais sobre temas como: soberania alimentar, Questão Agrária, produção local de alimentos, consumo crítico e outros. Esess arquivos foram organizados através de tags no software de referenciamento bibliográfico Mendeley para posterior consulta e análise; - Visitas a campo: foram realizados diversos trabalho de campo em Metro Vancouver entre novembro de 2014 e dezembro de 2015. Nessas oportunidades, foram produzidas entrevistas semiestruturadas junto a sujeitos-chave como representantes de Organizações Não Governamentais (ONGs) que desenvolvem projetos relacionado ao sistema alimentar de Metro Vancouver, camponeses que comercializam sua produção na escala local e consumidores que têm adotado uma postura crítica frente ao modelo de alimentação convencional. Essas entrevistas foram organizadas no software de análise qualitativa Atlas.ti para o estabelecimento de códigos que auxiliaram no posterior processo de análise.

Resultados preliminares

A proposta contra-hegemônica de soberania alimentar teve uma primeira fase em que foram colocados em evidência os aspectos relativos à luta dos trabalhadores do campo em oposição ao rápido avanço do neoliberalismo sobre o sistema alimentar mundial (De SCHUTTER, 2015). Os acordos firmados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) figuravam entre os principais motivos de crítica (McMICHAEL, 2016). Além disso, também houve o protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que através das ocupações de terra e outras formas de protesto colocava em evidência mundial a desigual distribuição fundiária do Brasil (ROMAN-ALCALÁ, 2015).

Contudo, nos últimos anos tem se consolidado a “segunda geração” da soberania alimentar (McMICHAEL, 2014). De Schutter (2015), destaca como características desse momento: i) A construção de vínculos entre os consumidores urbanos e os produtores de alimentos que vivem próximos a eles através de diversas estratégias de reconstrução dos sistemas alimentares locais; ii) o incentivo para que a população local torne-se mais ativa na discussão sobre o sistema alimentar; iii) a construção de um maior elo social em detrimento da penetração das relações de mercado nas esferas das vida comunitária; iv) a primazia da resiliência sobre a eficiência e; v) a proposição da Agroecologia como uma “visão de mundo” alternativa para o campo. Nesse trabalho visou-se destacar como a “segunda geração” da soberania alimentar tem se desenvolvido em Metro Vancouver, que é composta por 23 autoridades administrativas localizadas em BC, no oeste do Canadá. Metro Vancouver possui 2.470.300 habitantes, caracterizando-se como a terceira área metropolitana com maior população no Canadá (STATISTICS CANADA, 2012). Com 640.025 pessoas, Vancouver possui a maior população dentre suas autoridades administrativas (Figura 01).

Figura 01- População de Metro Vancouver

Fonte: Metro Vancouver Web page, 2015

Vale destacar que 5% da área de BC é ocupada pela Agriculture Land Reserve (Reserva de Terras Agrícolas - ALR), uma política de zoneamento que visa incentivar a produção de alimentos nessa província canadense. Atualmente, vários proprietários de terras localizadas na ALR não têm produzido alimentos por se dedicarem a atividades como a especulação imobiliária e o turismo (CAMPBELL, 2006). Mesmo assim, essa política de

zoneamento é uma importante referência para a produção local de alimentos em Metro Vancouver (CONDON et al., 2010). Estima-se que apenas cerca de 48% dos alimentos in natura consumidos pela população de Metro Vancouver são produzidos em BC. Dentre as principais áreas de origem destaca-se a Califórnia, nos Estados Unidos (MANSFIELD, 2014). Ao mesmo tempo, por possuir o Porto de Vancouver, o mais movimentado do Canadá, essa região metropolitana constitui-se na principal rota de escoação do agronegócio canadense, tendo por destino, principalmente o mercado asiático (BC MINISTRY OF AGRICULTURE, 2012). Nesse contexto, diversas iniciativas desenvolvidas pela sociedade civil local têm se enquadrado na “segunda geração” da soberania alimentar, pois incentivam o consumo crítico de alimentos. Os mercados de produtos locais, que estão em constante expansão em BC, são exemplos disso. Entre 2006 e 2012, as vendas anuais realizadas por eles foram de C$ 46 milhões para C$ 113 milhões, ou seja, houve um aumento de 147% (BC ASSOCIATION OF FARMER’S MARKETS; UNIVERSITY OF NORTHEN BRITISH COLUMBIA, 2012). A maior parte dessas iniciativas é efetivada por moradores de bairros e algumas delas funcionam apenas em determinadas épocas do ano, especialmente no verão . É comum a esses mercados de produtos locais a tentativa de reaproximar o produtor do consumidor de alimentos (WITTMAN; BECKIE; HERGESHEIMER, 2012). Alguns deles chegam até mesmo a apresentar limites para o tamanho das propriedades dos agricultores participantes (WITTMAN; BECKIE; HERGESHEIMER, 2012). Na Figura 02 é apresentado o mercado de produtos locais que ocorre na Ontário Street, em Vancouver.

Figura 02 - Mercado de produtos locais - Vancouver

Fotografia: Estevan L. F. Coca - Dezembro de 2014.

Outra estratégia de intervenção no sistema alimentar Metro Vancouver por parte da sociedade civil são as hortas e pomares urbanos. Esses espaços de produção de alimentos desempenham um importante papel no combate à fome, pois facilitam o acesso de pessoas de baixa renda à produtos frescos e saudáveis (CITY OF VANCOUVER, 2013). Eles são organizados de maneiras diversificadas no que se refere ao método de trabalho e à forma como as pessoas podem adquirir os produtos neles gerados, contudo, possuem em comum o fato de fazer do espaço urbano não apenas um receptor de alimentos, mas também, produtor (FODOR, 2011). Merece especial ênfase a cidade de Vancouver, onde existem 97 hortas e 18 pomares comunitários (CITY OF VANCOUVER, 2013). Esses, vem ao encontro de uma aspiração das autoridades municipais de fazer de Vancouver a cidade mais verde do mundo até o no de 2020. No ponto 10 do documento Greenest city: 2020 action plan (A cidade mais verde: plano de ação para 2020), consta a intenção de fazer de Vancouver uma liderança mundial em sistemas alimentares urbanos. Para isso, são pontuadas as seguintes prioridades: i) desenvolver uma estratégia alimentar municipal para coordenar todos os aspectos do sistema alimentar; ii) cultivar mais alimentos na cidade e; iii) tornar o alimento disponível nos centros comunitários, parques e outros aparelhos de administração municipal, através de um plano local de aquisição de alimentos (CITY OF VANCOUVER, 2012). Contudo, é importante ressaltar que embora exista essa pré-disposição do governo municipal em colaborar com a produção urbana de alimentos, na verdade, o principal responsável por tais ações é o protagonismo da sociedade civil (FODOR, 2011).

Abaixo são destacados dois desses espaços coletivos de produção de alimentos em áreas urbanas de Metro Vancouver, o Hastings Urban Farm, localizado na região central de Vancouver (Figura 03) e o Navy Jack Gardem, na orla de West Vancouver (Figura 04).

Figura 03 - Hastings Urban Farm - Vancouver

Fotografia: Estevan L. F. Coca - Março de 2015.

Figura 04 - Navy Jack Gardem - West Vancouver

Fotografia: Estevan L. F. Coca - Fevereiro de 2015.

Também caracteriza a participação da sociedade civil no sistema alimentar de Metro Vancouver a formação de bancos de alimentos. Eles são a expressão concreta de que até mesmo em países considerados ricos a fome afeta uma parcela da população. Somente no ano de 2014, em média 97.000 pessoas acessaram mensalmente bancos de alimentos

localizados em BC. Dentre essas, 30% eram crianças (FOOD BANKS CANADA, 2014). A The Great Vancouver Food Bank Society (Sociedade de Bancos de Alimentos da Grande Vancouver - GVFB) é uma referência na prestação desse tipo de serviço. A cada semana ela atende cerca de 28.000 pessoas em condição de vulnerabilidade social, através de postos espalhados por Vancouver, Burnaby, New Westminster e North Vancouver. Ela é sustentada por doações financeiras e de alimentos e pelo trabalho voluntário (GVFB, 2015). Além desses, também é importante destacar a participação da sociedade civil no Vancouver Food Policy Council (Conselho de Políticas Alimentares de Vancouver), fundado no ano de 2004. Ele possui 21 membros, os quais representam diferentes segmentos do sistema alimentar local como produtores, processadores, distribuidores, consumidores e gestores de resíduos sólidos. Suas reuniões ocorrem mensalmente e são abertas ao público. Dentre as discussões que passam por ele constam: regras para o estabelecimento de empresas de comercialização de alimentos; compra e uso de alimentos por órgãos públicos; suporte para a tomada de decisões das escolas sobre a alimentação dos seus alunos; a observação das necessidades nutricionais das crianças atendidas por creches e outros (VANCOUVER FOOD POLICY COUNCIL, 2015). Nessas condições, o Vancouver Food Policy Council funciona como um órgão criado pela sociedade civil que visa auxiliar o Poder Público Municipal no gerenciamento do sistema alimentar local (KJÆRÅS, 2012). Esses exemplos indicam que em Metro Vancouver existem diversas iniciativas que têm sido desenvolvidas pela sociedade civil visando fomentar o consumo crítico de alimentos. Nesses casos, a produção e a aquisição dos alimentos se dá por mecanismos que não podem ser explicados pelas categorias de referência do capitalismo como o lucro ampliado, por exemplo. Por isso, elas podem ser lidas como parte do processo de construção da “segunda geração” da soberania alimentar nessa parte do Canadá.

Considerações finais

A soberania alimentar tem se consolidado como a principal referência alternativa ao modelo de alimentação hegemônico. Ela pontua a necessidade de se considerar o alimento

como um bem social, pois acredita-se que ao tratá-lo como mercadoria, o capitalismo tem gerado uma série de disparidades como o paradoxo entre a fome e a obesidade. A “segunda geração” da soberania alimentar denota que torna-se cada vez mais importante a participação dos consumidores de alimentos para a criação de estratégias alternativas à padronização da dieta alimentar que tem sido incentivada pelas grandes corporações na atualidade. O caso de Metro Vancouver indicou como referências disso espaços como os mercados de produtores locais, as hortas e pomares urbanos, os bancos de alimentos e o conselho de políticas alimentares.

Referências BC ASSOCIATION OF FARMER’S MARKETS; UNIVERSITY OF NORTHEN BRITISH COLUMBIA. Economic and social benefit assessement. Vancouver, 2012. BC MINISTRY OF AGRICULTURE. B.C. Agrifoods: a strategy for growth. Abbotsford, 2012. CAMPBELL, C. Forever farmland: reshaping the ALR for the 21st century. Vancouver: David Suzuki Foundation, 2006. CITY OF VANCOUVER. Greenest city: 2020 Action Plan. Vancouver, 2012. CITY OF VANCOUVER. What feed us: Vancouver Food Strategy. Vancouver 2013. CONDON, P. M. et al. Agriculture on the edge: strategies to abate urban encroachment onto agricultural lands by promoting viable human-scale agriculture as an integral element of urbanization. International Journal of Agricultural Sustainability, Essex, v. 8, n. 1, p. 104–115, 2010. De SCHUTTER, O. Food democracy South and North: from food sovereignty to transition initiatives. Open Democracy, Londres, 2015. DESMARAIS, A. A. La Vía Campesina: globalization and the power of peasants. Halifax/London: Fernwood/ Pluto Press, 2007. FODOR, Z. Peope systems in support of food systems: the neiborhood food justice network movement in Vancouver, British Columbia. 2011. Dissertação (Mestrado em Artes e Planejamento). University of British Columbia, Vancouver. FORUM FOR FOOD SOVEREIGNTY. Declaração de Nyéléni. Nyéléni, 2007. GVFB - THE GREATER VANCOUVER FOOD BANK. About us. Disponível em:

. Acesso em: 12 de nov. de 2015. LA VIA CAMPESINA. Tlaxcala: Declaração da Via Campesina. Tlaxcala, 1996. MANSFIELD, B. Wake up call: California drought & B.C.’s food security. Vancouver: Vancity, 2014. McMICHAEL, P. Historicizing food sovereignty: a food regime perspective. In: Food sovereignty: a critical dialogue (International Conference): Anais... New Haven: ISSAgrarian, Food & Environmental Studies (AFES), Initiatives in Critical Agrarian Studies (ICAS), Transnational Institute (TNI), Institute for Food and Development Policy/Food First, Land Deal Politics Initiative (LDPI), The Journal of Peasant Studies, 2013. McMICHAEL, P. A comment on Henry Bernstein’s way with peasants, and food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, Hague, v. 42, n. 1, p. 193–204, 2014. McMICHAEL, P. Commentary: food regime for thought. The Journal of Peasant Studies, Hague, v. 43, n. 3, p. 648–670, 2016. ROMAN-ALCALÁ, A. Broadening the land question in food sovereignty to northern settings: a case study of Occupy the Farm. Globalizations, Abingdon, v. 12, n. 4, p. 545– 558, 2015. STATISTICS CANADA. 2011 Census. 2015. Disponível em: . Acesso em: 11 de nov. de 2015. WITTMAN, H. Food Sovereignty: A new rights framework for food and nature? Environment and Society: Advances in Research, Wageningen, v. 2, n. 1, p. 87–105, 2011. WITTMAN, H.; BECKIE, M.; HERGESHEIMER, C. Linking local food systems and the Social Economy? Future roles for farmers’ markets in Alberta and British Columbia. Rural Sociology, Iowa, v. 77, n. 1, p. 36–61, 2012.

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