A semente resiliente: arte, docência, experiência e autoformação

September 30, 2017 | Autor: Luciane Goldberg | Categoria: Education, Arts Education
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In: PRIMO, Rosa e PARRA, Denise. Invenções do Ensino em Arte. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2014.

A semente resiliente: arte, docência, experiência e autoformação Luciane Germano Goldberg1

RESUMO: O texto que aqui compartilho é repleto de questionamentos, inquietações e se propõe refletir e relacionar, de uma forma breve, docência, experiência e autoformação a partir do cotidiano universitário do licenciando em arte. Em meio aos estigmas sociais erigidos historicamente em torno do ensino de arte na educação formal e da própria imagem do professor na sociedade atual. Há quem afirme que a docência é uma vocação, nesse caso porque investirmos nos cursos de licenciatura? Com base em autores como John Dewey, Walter Benjamin, Jorge Larrosa, Antonio Nóvoa, Paulo Freire, e outros, o texto reflete sobre a qualidade das experiências vividas pelos discentes-docentes ao se depararem com a prática de sala de aula e com o próprio mercado de trabalho na área de educação. Será que essas experiências são educativas e formativas ou será que, ao contrário, levam à frustração, à negação da docência? A narrativa de vida, pautada nas experiências formativas em arte dos estudantes pode auxiliar no processo de reflexão-ação impulsionando-o para projetos de futuro em que o objetivo é, justamente, encarar os desafios, posicionar-se política e profissionalmente como artista-docente e ocupar o espaço da arte nas instituições de ensino? Palavras-chave: Docência. Arte. Experiência. Autoformação.

Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro. Mas não tinha preparatórios de uma árvore/ Pra merecer no seu corpo ternura de gorjeios. Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte. Ninguém era início de nada. A gente pintava nas pedras a voz. E o que dava a santidade às nossas palavras era/A canção do ver! Trabalho nobre aliás, mas sem explicação/ Tal como costurar sem agulha e sem pano. Na verdade na verdade/Os passarinhos que botavam primavera nas palavras (BARROS, 2010, p. 429).

Inicio esse texto a partir de inquietações nascidas do próprio cotidiano docente, do qual fazemos parte, das nossas trocas, nossas buscas, nossas dificuldades e, principalmente, nossas lutas na área de arte e educação na formação do licenciando em arte. Quando tratamos de docência como um todo, observamos um campo muito sensível, importante, mas pouco valorizado em seu todo, que tem hierarquias e níveis e 1

Professora de arte e educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutoranda em Educação Brasileira (UFC). Mestre em Educação Ambiental e graduada em Educação Artística - Licenciatura Plena em Artes Plásticas, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG – RS). E-mail: [email protected].

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que, em boa parte das vezes, não é nada atraente aos (às) jovens de hoje. Quando focamos no campo da docência na área de arte, vemos um campo aberto, cheio de possibilidades, mas ao mesmo tempo limitado e impregnado de estigmas e estereótipos construídos historicamente, especialmente quando se trata de ensino formal, na rede pública, na educação básica, espaço de grande carência na área de arte. Um campo a ser (re) descoberto e ocupado qualitativamente por experiências formativas significativas. Muitas das reflexões que iniciarei neste texto derivam de observações e de vivências na sala de aula, como estudante de doutorado que sou e como docente na área de arte e educação. Relembro as vezes em que estive na condição de estudante, numa sala de aula formal e confesso que foram poucas as que que fui tocada profundamente por aquelas experiências, que senti-me motivada a querer mais, a pesquisar além do que estava sendo proposto e mais, a incorporar ideias, conceitos e teorias na minha vida pessoal e profissional. Todas as demais vivências de sala de aula foram mais como um cumprir créditos, o “pagar” uma disciplina, como ouvimos os estudantes falarem hoje, o que denota o sentimento de tempo perdido, de obrigação. Quando se trata de uma licenciatura minhas inquietações são maiores ainda, pois estamos formando futuros docentes, aqueles que esperemos que ocupem os espaços nas escolas, universidades e demais instituições. De que experiências formativas estes estudantes estão se valendo na universidade? Será que estamos promovendo experiências educativas significativas aos nossos estudantes ou a realidade é cruel e pesada demais que os impedirá de desejarem a profissão de docente? Será que as experiências práticas, de contato com a sala de aula “real” são suficientes para despertar o interesse e o desejo de ser professor? A cada dia observamos que, de cada turma de licenciatura em arte que se forma, são poucos aqueles que se aventuram na docência porque estão verdadeiramente motivados, os demais acabam na sala de aula por falta de opção, ou por não conseguirem sustento na carreira artística. Como pensar em estratégias que mudem essa realidade? Convém então questionar: que estudante é esse que vem para a licenciatura em arte? Ele quer ser professor ou artista, ou os dois? Qual o espaço social que esse profissional ocupa? Que pressões sofre pela família e pela sociedade por suas escolhas? Que experiências formativas em arte carrega e que influência elas têm sobre seu olhar sobre a arte e educação? Partindo de minha própria experiência, o futuro professor, em boa parte das vezes, não sabe se quer ser professor, na verdade não sabe o que é ser professor, porque 18

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só se sabe o que é ser professor sendo. Por isso sempre surge a questão: é possível ensinar alguém a ser professor? Nóvoa afirma que o professor se forma na escola, na prática: “é algo que pertence ao próprio sujeito e se inscreve num processo de ser (nossas vidas e experiências, nosso passado, etc.) e num processo de ir sendo (nossos projetos, nossa ideia de futuro)” (2001, s.p). Assim como nos fazemos dessas experiências, que de singulares e significativas marcam e orientam nossas trajetórias, como uma conversa esclarecedora com alguém, uma aula instigante, uma cena de um filme ou a letra de uma música, uma leitura inusitada, um acidente inesperado. Não somente a sala de aula promove a formação, mas a vida mesmo, em sua complexidade, pode detonar esse processo criativo e levar às nossas escolhas pessoais ou profissionais, inclusive o próprio “acaso”. Muitas vezes escolhemos um curso universitário, uma profissão, pelos motivos mais diversos, que nem sempre se relacionam com vocações, mas com pressões familiares e sociais, com a facilidade de ingressar pela menor quantidade de candidatos/concorrentes, por sorteio, até por uma cartada de tarô, como foi o meu caso. No final, podemos ingressar perdidos, mas corremos o risco de nos encontrarmos. Agora a pouco abri um livro do Rubem Alves, Conversas sobre educação, e na conversa “A lição de Noé” o autor nos fala sobre vocação e profissão. Nessa conversa ele afirma que a profissão “é o que se faz para ganhar dinheiro. Qualquer pessoa, querendo, pode ter profissão” e que “as profissões são ensinadas de fora para dentro. São escolhidas ou por razões práticas, ou por imposições externas, ou por ilusões” (2003, p. 107). Imagina passar a vida inteira trabalhando em algo que não se tem prazer, mas que apenas “paga as contas”? Numa sociedade como a nossa, que valoriza o trabalho como aquilo que “dignifica o homem”, aquele que não tem um trabalho não é ninguém, não tem direitos, não se mantém, mas trabalhar em algo que não é prazeroso é como um fardo, como uma atividade vazia e sem sentido, um cumprir tarefas: Existe um mercado de profissões – uma grande feira -, cada barraca apregoando aos gritos as suas vantagens. A gritaria é ensurdecedora. Frequentemente os pais e mães se juntam ao coro dos anunciantes, tentando convencer os filhos a ser isso ou aquilo. O barulho é tal que os jovens, na maioria das vezes, não conseguem ouvir a voz que lhes fala de dentro. Escolhem suas profissões como bois que vão para um matadouro (ALVES, 2003, p. 109).

Alves vai então contrapor radicalmente a profissão à vocação, afirmando que a vocação “não pode ser ensinada, não se aprende, nasce com a gente, brota de dentro do corpo/alma, como fonte” (2003, p. 108). Tendo a concordar com a parte da realização 19

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pessoal, mas, e aí? Como é que se descobre essa vocação? Ela vai surgir do nada, assim de repente, como uma revelação? Não posso deixar de imprimir uma crítica: se for algo que tem que nascer com a pessoa, para que então cursos de formação de professores? Será o discurso da vocação o mesmo pautado no discurso do “dom”, no determinismo? Neste mês de novembro, nos Encontros Universitários da UFC – 2013, encontrei uma estudante do curso de dança – licenciatura, que foi minha aluna e que se desenrola a me contar sobre suas novas experiências em arte e educação. Conta-me que foi selecionada para o programa Mais Educação do Governo Federal 2 para uma escola pública de Fortaleza. O que era para ser uma rica oportunidade de experiência docente desdobra-se em uma vivência mal remunerada e frustrada. A estudante confronta-se com uma sala cheia de estudantes ditos “problemáticos” que se atacam com estiletes; estudantes que gritam, desrespeitam, não dialogam; estudantes cheios de violência e vai parar aos prantos na direção da escola, pois não se sente preparada (e creio que ninguém está especialmente numa primeira experiência) para enfrentar uma situação como essa. Sim, podemos pensar aquele velho discurso: “mas essa é a realidade da escola, os licenciandos precisam ter contato com a realidade para poderem crescer profissionalmente como docentes”, mas que tipo de experiência é proporcionada em uma situação como essa? Que sentimentos, sensações, percepções, estímulos partirão dessa vivência, desse primeiro contato profissional? Esse é o estímulo que levará à escolha profissional? Confesso que me sinto constrangida quando tento encorajá-la a continuar, a enfrentar os desafios, a aprender com as dificuldades, ao mesmo tempo em que foi daí que eu parti enquanto docente-discente. Foi na sala de aula pública, na precariedade que iniciei esse caminho docente e foi preciso desenvolver certa resiliência pra não desistir tamanhas as dificuldades e frustrações encontradas. Mas o que significa isso? Só os fortes sobrevivem? É uma “seleção natural”? Parece algo do tipo “a salvação”: “há que suportar o calvário para chegar ao reino dos céus”. Devemos aceitar essa realidade como uma condição da profissão? Todo dia recebemos pequenos e grandes exemplos de uma grande constelação de problemas compartilhados pelos estudantes em formação. De fato, não podemos negar que estamos vivendo a cada dia uma intensificação da crise da docência, quando vemos as notícias, as pesquisas, as reportagens sobre a realidade do professor, quando vemos a intensificação do movimento grevista, nos níveis municipal, estadual e 2

Para informações detalhadas sobre o Programa Mais Educação, acesse no Portal do MEC: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16689&Itemid=1115.

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nacional, da educação como um todo: professores mal remunerados, escolas sem estrutura e condições de trabalho, estudantes cada vez mais complexos e nós defendendo a licenciatura a qualquer preço, pois a única forma de propor mudanças nessa realidade é plantarmos novas sementes, mas como vamos garantir que germinem e cresçam num solo árido, sem nutrientes, sem água, sem atenção, sem cuidado? Além de plantar a semente, será preciso promover estratégias à sua resiliência3.

1. Docência, experiência e autoformação: todo conhecimento é autoconhecimento A preocupação com a pessoa do professor é central na reflexão educacional e pedagógica. Sabemos que a formação depende do trabalho de cada um. Sabemos também que mais importante que formar é formar-se; que todo conhecimento é autoconhecimento e que toda formação é autoformação. Por isso, a prática pedagógica inclui o indivíduo, com suas singularidades e afetos (NÓVOA, 2001, p.).

Aqui refletirei um pouco mais sobre experiência e autoformação. São muitas as questões, mas gostaria de pontuar algumas: como nos formamos? Como se forma um professor? É vocação ou é uma construção? A licenciatura promove experiências educativas significativas ao licenciando? Em que sentido as experiências vividas ao longo da vida pelo estudante colaboram para suas escolhas profissionais? Estamos dando espaço ao estudante, para suas dúvidas, medos, angústias, sucessos, suas histórias de vida? Ou estamos despejando conteúdos e impondo leituras e práticas sem sequer dialogar com eles e suas vidas? Paulo Freire sabiamente nos diz que ninguém nasce feito, que é experimentando o mundo que nós nos fazemos: “A gente está sendo”: Às vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou nos perguntamos sobre a nossa trajetória profissional, o centro exclusivo das referências está nos cursos realizados, na formação acadêmica e na experiência vivida na área da profissão. Fica de fora como algo sem importância a nossa presença no mundo. É como se a atividade profissional dos homens e das mulheres não tivesse nada a ver com suas experiências de menino, de jovem, com seus desejos, com seus sonhos, com seu bem-querer ao mundo ou com seu desamor à vida. Com sua alegria ou com seu mal-estar na passagem dos dias e dos anos (FREIRE, 1997, p. 80).

Veja como ele pauta a experiência de vida para a formação profissional quando afirma que não se pode separar o profissional da própria pessoa. Ele vai afirmar que

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“Capacidade humana universal de enfrentar as adversidades da vida, superá-las ou até ser transformado por elas” (GROTBERG, 2005, p.15).

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tudo aquilo que somos e vivemos na família, na escola por onde passamos e na vida, como um todo, contribuirá para a escolha profissional docente: “Na verdade, não nasci marcado para ser um professor a esta maneira, mas me tornei assim na experiência de minha infância, de minha adolescência, de minha juventude” (FREIRE, 1997, p. 84). Mas o que acontece quando nossas experiências em sala de aula nos trazem mais infelicidades que alegrias? Benjamin, no texto “Experiência e pobreza” afirma que estamos, a cada dia, mais pobres em experiência, especialmente após as grandes guerras: a experiência da guerra, da fome, da miséria, da violência, da corrupção, da degradação ambiental, entre outras. Esta pobreza de experiência seria hoje da humanidade. Ele afirma que surge uma nova barbárie e que acabamos por nos contentar com o pouco que nos sobra, “pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (1994, p. 116). Para que aspirar novas experiências? É como se o tempo todo devêssemos nos refazer para encontrar sentido para continuar vivendo e encarando os desafios, não teria se tornado essa a tarefa do professor na escola? Aquele que jamais pode abrir mão do sonho e da utopia e que criativamente se (re) cria na sala de aula? Contenta-se com o pouco que tem, de tão cansado e sem forças para enfrentar a instituição: Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças (BENJAMIN, 1995, p. 118).

Desta “pobreza”, resultado de um empenho grandioso para enfrentar o cotidiano pesado e árduo, em busca do sentido da vida, é preciso encontrar formas de resistência e atentar para aquilo que nos faz máquinas e aquilo que nos faz humanos. Podemos contrapor a essa pobreza experiências, outras? Bondía também traz reflexões sobre essa pobreza da experiência. Para o autor, experiência “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (2002, p. 21), segundo o autor, nos dias de hoje, ela é cada vez mais rara: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos

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acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Idem, Ibidem, p.24).

Bondía traz a origem etimológica da palavra experiência, que provém do latim experiri, provar (experimentar) e seu radical, periri, de perigo, a raiz per designa uma ideia de travessia. Podemos dizer que a escola formal proporciona aos sujeitos experiência? Experiência estaria diretamente ligada à educação quando pensamos que ela proporciona a formação e a transformação, pois ela é adquirida a partir das nossas respostas àquilo que nos acontece, imprimindo sentidos e significados aos acontecimentos? O saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal, o que se contrapõe significativamente ao sistema escolar vigente em que a coletividade predomina sobre a singularidade na medida em que se escolhe o que vai ser ensinado e se espera que todos aprendam da mesma forma o mesmo conteúdo que geralmente despreza os conhecimentos prévios dos estudantes e não possui nenhuma relação com a vida pessoal e individual dos sujeitos, desta forma não possui sentido, não constitui significado, não leva à aquisição de experiência! Refletindo sobre a definição de experiência, Dewey afirma que a experiência é o resultado da interação entre os corpos, os quais “agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente” (1975, p. 13). Segundo o autor há diferentes tipos de experiência, dentre elas, a “deseducativa”, a “não-educativa” e a “educativa”, esta última a que nos mais interessa refletir. A experiência educativa, segundo Dewey consiste na “experiência inteligente, em que participa o pensamento, através do qual se vêm a perceber relações e continuidades antes não percebidas” (Idem, Ibidem, p. 17), tornando-se desta forma, um processo reflexivo, capaz de levar à aquisição de novos conhecimentos ou ao aprofundamento destes, enriquecendo e trazendo mais significado à vida, o que consiste a educação: “processo de reconstrução e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras” (DEWEY, loc.cit.). “Cada experiência é uma força em marcha” (DEWEY, 1976, p. 29). Nesse sentido, interação e continuidade andam juntas, assim como o interesse e o esforço: Os dois princípios de continuidade e interação não se separam um do outro. Eles se interceptam e se unem. São, por assim dizer, os aspectos longitudinais e transversais da experiência. Diferentes situações sucedem umas às outras.

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Mas, devido ao princípio de continuidade, algo é levado de uma para a outra. Ao passar o indivíduo de uma situação para a outra, seu mundo, seu meio ou ambiente se expande ou se contrai. Depara-se vivendo não em outro mundo, mas em uma parte ou aspecto diferente de um e mesmo mundo. O que aprendeu como conhecimento ou habilitação em uma situação torna-se instrumento para compreender e lidar efetivamente com a situação que se segue. O processo continua enquanto a vida e aprendizagem continuem. A unidade substancial do processo decorre dos fatos individuais, elemento integrador da experiência (Idem, Ibidem, p. 37).

Retomo então algumas proposições e questionamentos compartilhados anteriormente neste texto, relacionadas ao que Dewey vem colocar como experiência educativa: se a experiência é resultado da interação e está relacionada com a continuidade, levando à aprendizagem e à construção do conhecimento, responsável pela elaboração do sentido da vida, em que esforço e motivação estariam ligados diretamente, como o exercício da docência pode se tornar uma experiência educativa, no sentido da autoformação do estudante nesse sistema de ensino atual, especialmente no campo da arte e educação? Conciliar o processo criativo, a criação artística e a docência têm sido grande desafio, mas não impossível de ser vencido – como formar esse docente-artista, o profissional que não deve abandonar seu caminho artístico ao tomar o caminho da docência, pelo contrário, deve fazer dialogar e nutrir ambos reciprocamente? Como conciliar dois processos tão contraditórios e ao mesmo temo complementares como a arte e a educação? A escola de hoje sufoca a arte, reprime, oprime desde a educação infantil. A escola de hoje não é espaço atrativo que proporcione a criação, a inventividade, a inovação. O que a escola de hoje oferece ao licenciando em arte para sua autoformação como docente-artista? Diante de tantas questões que se apresentam e pela importância da experiência educativa que proponho nas aulas de arte e educação na universidade um trabalho (auto) biográfico denominado “linha do tempo” (GOLDBERG, 2012) apostando que é em nossas histórias de vida, organizadas por meio da narrativa que construímos o sentido de nossa existência, compreendemos nossas escolhas, analisamos o passado, refletimos sobre o presente e projetamos o futuro. Se a escolha profissional, quando autêntica, é fruto de uma trajetória e não apenas de um acaso, é nas experiências formativas vividas que encontraremos material para alimentar o processo de formação. Essa perspectiva da formação ao longo da vida, resultante das experiências vividas, Macedo relaciona com a definição de autoformação, como uma educação de si, permanente e reflexiva, que não se dá sozinha, sem interação com o outro e com o 24

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mundo, mas que se dá no interior do sujeito, levando ao que Pineau chama de autonomização, que provoca um “movimento de personalização, de individualização e subjetivação da formação” (2000 apud MACEDO, 2010, p.68): Quem aprende é o sujeito; quem compreende é ele; quem atualiza no mundo suas aprendizagens é sua capacidade, sempre em relação, sabemos, mas é o único que ao final e ao cabo pode autenticamente demonstrar sua condição do estar em formação ou formando, com todas as ambivalências que podemos viver nessas experiências (MACEDO, 2010, p. 67).

Então, se o sujeito se forma ao formar-se a qualidade das experiências formativas presentes em sua vida podem contribuir para o ser crescimento profissional, independente de situações positivas ou negativas, pois o diferencial repousará na capacidade de reunir, refletir e projetar ações. A autoformação ocorre o tempo todo, assim como a heteroformação, ambas estão interligadas. Importante que as vivências proporcionadas na universidade, especialmente na área de arte e educação dimensionem aprendizagens que partam das histórias de vida dos seus estudantes, na perspectiva de que, é a partir delas que ele se constitui como pessoa e se constituirá como profissional. Nóvoa salienta a importância das abordagens autobiográficas: As abordagens autobiográficas (não apenas num sentido pessoal, mas geracional), as práticas de escrita pessoal e colectiva, o desenvolvimento de competências ‘dramáticas’ e relacionais ou o estímulo a uma atitude de investigação deveriam fazer parte de uma concepção abrangente de formação de professores (1999, p. 11).

A atividade “Linha do Tempo” propõe aos estudantes pesquisarem, buscarem suas experiências formativas em arte e compartilharem com os colegas de turma e, é nesse momento do desafio proposto, que este estudante se deparará com sua história de vida, seus traumas, suas conquistas, suas escolhas, entendendo seu lugar no mundo, entendendo o lugar da arte em sua vida e o lugar da educação nesse processo. O mais interessante é a capacidade projetiva da atividade, pois a reflexão sobre o eu pessoal leva à reflexão do eu profissional – o que eu quero para minha vida como profissional? Eu quero repetir o que tive, ou não tive ou reconheço uma certa responsabilidade em mudar, transformar, proporcionar vivências ao outro por meio da formação? Navegando pelos artigos da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (Anped), no GT 24 sobre Arte e Educação, encontro ressonância no artigo publicado por Silva, denominado “Experiência formativa em arte: contribuições do pensamento de John Dewey para a formação do arte/educador na Contemporaneidade”, em que o autor denomina experiências formativas em arte como: [...] situações de aprendizagens adquiridas a partir do contato com a arte, sejam através de processos de fruição, criação e contextualização dos

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conhecimentos artísticos. Em outras palavras, é tudo que se aprende na ou com a arte e se leva para a vida dentro e fora da arte, sejam elas aprendizagens conceituais, factuais, procedimentais ou atitudinais (2001, s.p).

A arte é nossa grande aliada nesse processo de autoformação e de heteroformação, pois com ela e nela, nos formamos enquanto formamos o outro, na criação, na pulsão, no sentir, na catarse, quebrando com a paralisia da educação formal, rompendo com as estruturas tradicionais e há exemplos de que isso é realmente possível e que essa transformação se dá, justamente porque temos a arte como esse elemento formativo do ser, no individual e no coletivo. Sendo a escola de hoje ainda fruto de uma visão moderna e industrial, pensada para a produção de mão de obra, a procura pela ordem, o desejo de eficiência, a necessidade de prever e controlar, provenientes da “cultura industrial tecnicamente racionalizada” (EISNER, 2008, p. 8), que teve seu início no Iluminismo, ainda são valores dominantes. Neste contexto, a escola empurra para a uniformidade, o sentido contrário do que se busca no ensino das artes. Há como conciliar? Nas narrativas os resultados revelam ainda a presença desse modelo controlador e castrador da expressão e da criatividade – são essas as experiências que devemos proporcionar? Retomando Bondía e a título de tentativa de conclusão deste breve texto, precisamos da experiência que nos toca, que nos atravessa, que nos acontece. Resta que possamos plantar as sementes da docência e observar em quem cresce, onde e como. É preciso uma semente híbrida, resiliente, forte o suficiente pra brotar mesmo na precariedade, como um ato de resistência. Toda grande árvore liberta milhares de sementes que são lançadas ao vento e que, dependendo onde aterrissarem podem brotar, ou não. A nossa missão então, é não só lançar a semente, mas vê-la crescer e possibilitar seu pleno desenvolvimento. Precisamos de uma legião de docentes de arte revolucionários, aqueles que estejam dispostos a abalar de verdade as estruturas da escola e mais, que saibam gerar novas sementes resilientes.

Referências bibliográficas

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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n.19, p.20-28, 2002. Disponível em: . Acesso em: 4 dez. 2013. DEWEY, John. Experiência e Educação. Tradução de Anísio Teixeira. 15. ed. São Paulo: Companhia editora Nacional. 1976. ____. Vida e Educação. Tradução de Anísio Teixeira. 9. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975. EISNER, Elliot. O que pode a educação aprender das artes sobre a prática da educação? Currículo sem Fronteiras, v.8, n.2, p.5-17, jul/dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 2 dez. 2013. FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1997. GOLDBERG, Luciane Germano; BEZERRA, Larissa Rogério. Linha do tempo: Narrativas de vida e experiências formativas em arte. In: Congresso Nacional da Federação dos Arte-Educadores do Brasil - Arte/Educação: Corpos em Trânsito, 22, 2012, São Paulo. Anais... São Paulo: Instituto de Artes / Universidade Estadual Paulista, 2012. CD ROM. GOLDBERG, Luciane Germano; OLINDA, Ercília Maria Braga de; BEZERRA, Larissa Rogério. Narrativas de experiências formativas em arte: a linha do tempo de estudantes universitários. In: Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica – CIPA, 5., 2012, Porto Alegre. Anais... São Leopoldo: Casa Leiria/PUC, 2012. p.15041509. GROTBERG, Edith Henderson. Introdução: novas tendências em resiliência. In: MELILLO, Aldo; OJEDA, Elbio Néstor Suárez (Org.) e Colaboradores. Resiliência: descobrindo as próprias fortalezas. Porto Alegre: Artmed, 2005. MACEDO, Roberto Sidnei. Compreender/mediar a formação: o fundante da educação. Brasília: Liber Livro Editora, 2010. NÓVOA, Antonio. Fala Mestre! Professor se forma na escola. Revista Escola Nova, São Paulo,142. ed., mai. 2001. Disponível em: . Acesso em: 2 dez. 2013. ____. Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas. Sistema Integrado de Bibliotecas Repositório, Lisboa, 1999. Disponível em: . Acesso em: 2 dez. 2013.

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