A Sociedade em Rede em Portugal (2005). Gustavo Cardoso, António Firmino da Costa, Manuel Castells, Carmo Gomes e Cristina Palma Conceição

June 4, 2017 | Autor: Gustavo Cardoso | Categoria: Sociology, Media Studies, New Media, Internet Studies, Network Society
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A SOCIEDADE EM REDE EM PORTUGAL

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A SOCIEDADE EM REDE EM PORTUGAL Autores: Gustavo Cardoso, António Firmino da Costa, Cristina Palma Conceição, Maria do Carmo Gomes Capa: Campo das Letras © CAMPO DAS LETRAS – Editores, S. A., 2005 Rua D. Manuel II, 33 - 5.º 4050-345 Porto Telef.: 226 080 870 Fax: 226 080 880 E-mail: [email protected] Site: www.campo-letras.pt Impressão: Rainho & Neves - Sta. Maria da Feira 1.ª edição: Abril de 2005 Depósito Legal n.º ???? ISBN: 972-610-920-5 Código de barras: 9789726109204 Apoio à investigação e à edição: Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian

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Gustavo Cardoso António Firmino da Costa Cristina Palma Conceição Maria do Carmo Gomes

A SOCIEDADE EM REDE EM PORTUGAL Prefácio de

João Caraça Capítulo inicial de

Manuel Castells Apoio metodológico de

Patrícia Ávila Colaboração de

Rita Espanha

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Prefácio Trabalhar em rede, ou sem rede?

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nossa sociedade é também uma sociedade em rede em transição» afirmam os autores no final do texto deste importante estudo sobre a realidade portuguesa, que a Fundação Calouste Gulbenkian em boa hora apoiou. Com a transição para um novo século, viram-se as sociedades europeias igualmente enredadas numa transição cujas consequências mal podemos vislumbrar. Muito menos prever. Por este motivo, é fundamental o estudo das condições, das referências e das práticas associadas a esta transformação. Mas o século XXI começou da pior maneira. Ou talvez tivesse que ser assim: sem o horror e a tragédia que todos presenciámos não nos teríamos porventura apercebido da sua entrada em cena, julgando ainda que continuávamos sob a ordem do século passado. De facto, o conjunto das mudanças experimentadas a todos os níveis, do económico ao político, do social ao cultural – e a que se foi chamando de «globalização» por uns, de «sociedade da informação» por outros, de «novo paradigma da comunicação» por outros ainda – foi de tal maneira poderoso que provocou uma alteração do contexto em que se desenvolvem as actividades humanas. A esta alteração associou-se a noção da finitude da Terra e da capacidade limitada de regeneração da natureza. Ou seja, percebemos que somos inerentemente um sistema complexo, isto é, um sistema cujo desempenho depende da evolução do contexto que lhe serve de suporte – e não sabemos onde termina o nosso sistema e começa o contexto, e vice-versa. Naturalmente, este problema é sentido de modo particularmente agudo na área da teoria do conhecimento e dos saberes que o constituem. Não havendo uma referência absoluta, nem uma visão divina directora, as várias disciplinas terão que se redefinir, reinterpretando as 7

noções de objecto, de vizinhança e de limites no que toca aos respectivos domínios de aplicação. A importância dos investimentos de natureza intangível tornou-se tão central que impeliu, inclusivamente, a emergência de um novo regime dos saberes, em rede. A nova organização afirma uma situação em que se não aceita qualquer tipo de hierarquia entre campos cognitivos. O regime reticular traduz de modo mais adequado a fragmentação da ordem e a multipolaridade dos poderes que regem os tempos presentes. Na realidade, cada época cria os seus modelos e organiza os saberes de acordo com o contexto societal que lhes serve de suporte. Com a emergência de novos sectores na indústria e nos serviços, baseados em modernas tecnologias da informação, e com o peso crescente do investimento imaterial ou intangível na economia (I&D, software, educação e formação, marketing, design), tornou-se claro que a própria natureza dos processos reguladores societais se modificou, e profundamente. De facto, o processo básico comunicacional não é uma «troca», mas sim uma «partilha». Depois de uma «transacção de informação», ambas as partes detêm a informação que foi objecto da transacção, desde que, naturalmente, a capacidade do receptor seja adequada. O que implica que o valor económico associado a tal transacção deva, agora, ser equacionado de um modo totalmente diferente. Não que as sociedades avançadas se estejam a «desmaterializar» – muito pelo contrário: a utilização e o consumo de recursos energéticos e materiais intensifica-se cada vez mais. Mas, para que essa materialização se mantenha e amplifique num espaço muito alargado de operação, para que continue esse império da «acção», torna-se agora necessário que surja uma forte actividade imaterial, uma intensificação da «comunicação», que venha criar condições de coesão institucional a nível global para permitir o acréscimo da acumulação material. Sem este incremento da comunicação, a materialização das sociedades avançadas encontrar-se-ia seriamente limitada. Isto é, o paradigma do progresso é agora reinterpretado em termos de uma nova visão do mundo, onde impera a complexidade, ela própria indiciadora da emergência de uma nova situação. Uma nova situação caracterizada por palavras-chave, sistemáticas e omnipresentes, que importa entender. Não são palavras novas, mas todas elas assumem, agora, um sentido novo, que as torna dignas de apreciação. 8

São elas: o “global”, o “conhecimento”, a “governação” (em inglês, governance). Estas três palavras, tão inofensivas se colocadas entre aspas, tornam-se contudo verdadeiros instrumentos de mudança se colocadas em oposição às três palavras que vieram substituir. Respectivamente: “universal”, “ciência”, “governo”. De facto, o que nos interessa perceber é a essência dos conflitos que nos trazem as oposições: global/universal; conhecimento/ciência; governança/governo. É por este motivo que a época presente é uma transição. De um mundo onde, durante mais de dois séculos, imperaram os conceitos de universal, de ciência e de governo (do estado-nação), passámos quase sem dar por isso ao mundo global, das economias do conhecimento e da sua governança. Mas não há mudanças inocentes. O global opõe-se ao universal, o conhecimento à ciência, a governança à governação através de governos nacionais. Para o bem, e para o mal. Durante dois séculos gozámos o reino do universal. Possuíamos direitos imutáveis, eternos, sagrados, pelo simples facto de termos nascido. Todos «os homens [e mulheres] nascem e permanecem livres e iguais em direitos» proclama uma das maiores conquistas da história da humanidade – a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789. Esses direitos, liberdades e garantias são anteriores e superiores ao Estado; são adquiridos, permanentes e invioláveis. Para, inclusivamente, proteger os cidadãos dos abusos do Estado, viu este os seus poderes limitados e divididos em executivo, legislativo e judicial. A soberania reside, desde então, no povo. Vejamos o que o global veio introduzir. No império do global não há direitos adquiridos, há contratos, ou seja, há direitos negociados. O lugar do indivíduo (do consumidor, ou do produtor) tem que ser conquistado, a pulso, no mercado, o seu desempenho tem que ser rentabilizado, a sua utilidade demonstrada. Há necessidade de uma contínua negociação, rentabilização, competição. As pessoas são dispensáveis, só interessam como função – de consumir, ou de produzir –, isto é, tornam-se verdadeiramente recursos: os recursos humanos! E até se inventou uma expressão “bonita” para denominar a necessidade de reciclagem dos recursos humanos (sem a qual esses recursos não têm valor para o mercado): a educação ao longo da vida. Quem não é 9

rentável não existe, não conta para o mundo global. Pode ser eliminado, pois não tem qualquer utilidade económica. Torna-se um peso para a sociedade globalizada e eficiente que, no limite, o despreza. Durante três séculos a ciência foi considerada como uma maneira essencial de gerar uma mais correcta visão do mundo. A ciência moderna chegou, inclusivamente, no auge da crença no progresso e no positivismo, a ser considerada como o critério de verdade para o conhecimento. Ou seja, todo o conhecimento verdadeiro era, ou tenderia a ser, científico. O sucesso da ciência foi tal que originou o desenvolvimento de poderosas e eficientes tecnologias que estiveram na base do crescimento económico dos países avançados nos últimos cinquenta anos. A ciência está na base da criação dos sectores industriais do aeroespacial, dos computadores, das telecomunicações, das biotecnologias. Que foram instrumentais na globalização das finanças, dos seguros, do imobiliário, dos transportes, dos media. Mas o êxito da globalização dos novos serviços suplantou tudo e todos – e requereu todo um conjunto de saberes (jurídicos, organizacionais, de marketing, de software, de design, de formação) – que não são propriamente científicos ou tecnológicos. E, assim, a década de 1990 foi invadida, nos documentos programáticos, pela palavra conhecimento (knowledge), palavra com um novo sentido específico, que foi destronando e substituindo a palavra ciência, até então reinante. Passou-se a falar de economia do conhecimento, ou de economias baseadas no conhecimento, de sociedade do conhecimento (ou da informação), de gestão do conhecimento e mesmo da necessidade de políticas do conhecimento. Ou seja, a nova palavra conhecimento e o seu império vieram destronar a ciência, a partir de então uma mera vassala do imperador global, fiel apenas na medida em que gera filhos rentáveis, tecnológicos. Igualmente, durante três séculos, o estado-nação (e o equilíbrio entre Estados soberanos) constituiu a pedra angular da ordem estabelecida em Vestefália, que estabilizou a Europa, e depois foi por esta exportado para os diversos cantos do mundo. Os governos eram os seus representantes legítimos e os responsáveis morais pela segurança e bem-estar internos e pela condução dos negócios estrangeiros. 10

Mas a realização crescente de negócios em mercados externos – a criação de mercados globais – bem como a propaganda no sentido de liberalizar os mercados nacionais, de os desregulamentar e de privatizar as empresas públicas rentáveis, levaram a uma retirada progressiva dos governos nacionais da esfera da economia. E veio privilegiar, na esfera do político, as acções de governança, isto é, a influência política de actores (económicos ou políticos) externos. A governança é a imagem (política) da globalização (económica). O estatuto dos governos, de garantes e responsáveis pela soberania, foi sendo progressivamente erodido com o espraiar da governança. Todos estes factos mostram como o mundo, e a nossa sociedade com ele, estão em transição. E, do mesmo modo, como se torna imprescindível compreender o sentido profundo destas mudanças, para podermos garantir que o caminho que percorremos é aquele que nos leva onde queremos ir. A emergência da sociedade em rede implica a definição de novos comportamentos consequentes. Em primeiro lugar, temos que reconhecer que, assim como os hábitos de leitura e de referenciação se alteraram com a aproximação do século das Luzes, é muito natural que a introdução dos media electrónicos, combinando texto e imagem, vá transformando nos tempos que correm o modo como se acedem, como se consultam, como se pesquisam os registos do conhecimento existente. O sistema de busca electrónica da informação, que por enquanto ainda não se encontra completamente desenvolvido e acabado, poderá tornar-se, afinal, tão “natural” como o alfabético! Só que vai ser preciso, nos sistemas de educação, transformá-los para que se aprenda também eficazmente a ler e a escrever na internet. A sociedade que o não fizer, que não acompanhar e transformar o sentido do que é educar no século XXI, acolhendo e assumindo esta mudança, fica irremediavelmente no século passado, envolta nos seus extremos e nas suas angústias existenciais. Segundo, temos que redescobrir que o bem-estar e a dignidade em sociedade passam impreterivelmente pelo pleno exercício da cidadania, pela afirmação do valor do outro, sem dúvida, mas também pelo seu papel insubstituível de produtor e transmissor de conhecimento. Não há soluções globais que não sejam colectivas, partilhadas, aceites e operacionalizadas por todos. O direito à diferença não pode levar 11

a que se criem diversos tipos de cidadania, do mais educado ao menos educado, sugerindo uma nova estratificação social. O acesso de todos à educação e à informação tem que ser uma arma da solidariedade e da tolerância ou, de outro modo, esconde uma tentativa de regresso a um passado de arbítrio dos poderes constituídos sobre (alguns) cidadãos: os que são menos iguais do que os outros. Finalmente, vamos ter que pensar um regime de serviço público, de certificação do conhecimento disponível, para a informação. A primeira Enciclopédia, mais tarde as bibliotecas públicas, mais recentemente ainda o serviço público de radiodifusão e das televisões, foram tentativas conseguidas, na sua época, de resguardar o espírito do interesse público geral. Hoje, pelas razões apontadas, urge complementar esse regime com um equivalente dedicado à informação que circula pelos computadores que comunicam via internet. De outro modo, veremos a identidade cultural diluir-se no consumo, e não haverá representação do interesse público para além do Estado (através dos governos, das autarquias e dos tribunais). Ou seja, os cidadãos e os seus direitos serão progressivamente fragilizados face aos novos deveres ditados pelas necessidades “informacionais”. O século XXI será o que os cidadãos fizerem dele. Um primeiro passo é, com certeza, apercebermo-nos dos ventos que passam. Este livro é um excelente contributo para que os possamos usar de modo favorável. João Caraça

DIRECTOR DO SERVIÇO DE CIÊNCIA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

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Introdução O nosso mundo, as nossas vidas

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nosso mundo e as nossas vidas estão a experimentar uma mudança profunda no âmbito da tecnologia, economia, cultura, comunicação, política e da relação entre as pessoas. A sociedade em rede, resultado dessa mudança, deixou de ser um futuro mais ou menos distante para se transformar no presente. Mas um presente que assume diferentes características segundo a cultura e as particularidades de cada região. Como sugere Manuel Castells no primeiro capítulo desta obra, a sociedade em rede é, simplesmente, a sociedade em que estamos a entrar, desde há algum tempo, depois de termos transitado na sociedade industrial durante mais de um século. Da mesma forma que a sociedade industrial coexistiu durante várias décadas com a sociedade agrária que a precedeu, a sociedade em rede mistura-se, nas suas formas, nas suas instituições e nas suas vivências, com os tipos de sociedade de onde ela própria emergiu. Essa é a sociedade em que diariamente acordamos, trabalhamos, aprendemos e criamos riqueza. Onde os conflitos surgem e terminam, onde a inovação científica nas áreas da saúde e da alimentação vive a par da doença e da pobreza extrema. Não é uma sociedade composta por cibernautas solitários e robôs. Nem é um admirável mundo novo, uma nova terra prometida, onde a simples introdução das novas tecnologias resolverá todos os problemas. O trabalho aqui apresentado tem uma múltipla génese. Vários estudos prévios permitiram estruturar esta análise, que sabemos ser ambiciosa quer no âmbito, quer na sua comparabilidade com outras realidades nacionais. O CIES (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia) na sua linha de investigação sobre a “sociedade do conhecimento e padrões de competências”, o ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), nomeadamente, no quadro do 13

Mestrado em “Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação”1, mas também a participação em diversas redes de investigação europeias COST através do Departamento de Ciências e Tecnologias de Informação do ISCTE, possibilitaram as bases necessárias para o lançamento deste estudo. No entanto, a sua concretização só se tornou possível porque no ano de 2002 se deu início a uma intensa colaboração com a Universitat Oberta de Catalunya, nas pessoas de Manuel Castells e Imma Tubella e porque a Fundação Calouste Gulbenkian apostou no seu interesse para o conhecimento e desenvolvimento de Portugal. O estudo desenvolvido na Catalunha, intitulado PIC (Project Internet a Catalunya), sobre a sociedade catalã constitui a nossa matriz de partida, necessariamente adaptada ao contexto nacional, para o estudo da sociedade em rede em Portugal e para as comparações que aqui se apresentam entre as duas sociedades ibéricas e outros países da Europa, América do Norte e do Sul e Ásia. Neste livro analisa-se, assim, a sociedade em rede em Portugal a partir de um conjunto de dados estatísticos, obtidos através de um inquérito por questionário a uma amostra de duas mil quatrocentas e cinquenta pessoas, representativa da população portuguesa, incidindo sobre o que fazem hoje os portugueses, em que trabalham, como vivem, com quem se relacionam, o que pensam, com quem comunicam, como participam politicamente, como constroem a sua identidade e a que dedicam o seu tempo. É nesse contexto, de caracterização das práticas e valores presentes na sociedade portuguesa, que se torna fundamental a análise dos usos da internet. Embora não seja a sua fonte, a internet, é um elemento fundamental para o desenvolvimento da sociedade em rede, pois constitui o meio de comunicação através do qual se constituem as novas redes de relações para as pessoas e as actividades. Este é pois, em grande medida, também um estudo de compreensão do real papel do uso da internet na sociedade portuguesa através da observação das diferenças entre quem está conectado e quem não está e para quê se utiliza a internet, na tentativa de entender a sociedade em rede que se está a construir em Portugal.

1 Cujos resultados podem ser encontrados na colectânea com o mesmo nome (Oliveira, Cardoso e Barreiros, 2004) e na investigação Ciberfaces (em http:// ciberfaces.iscte.pt).

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Portugal e a sociedade em rede O trabalho aqui apresentado, para comodidade de leitura e interpretação por parte do leitor, encontra-se dividido em nove capítulos. No primeiro capítulo, Manuel Castells explora os conceitos de sociedade em rede e a sua diversidade cultural e institucional, e também o papel da internet enquanto instrumento através do qual as pessoas, as empresas, as organizações e as instituições formam as suas redes de interacção, com consequências ao nível da mudança organizacional. O segundo capítulo, partindo dos desafios propostos por Manuel Castells (2003-2004), procura apresentar ao leitor uma contextualização da sociedade portuguesa na sua transição para a sociedade em rede, na sua dupla dimensão social e tecnológica, caracterizando a situação particular de Portugal no início do século XXI e algumas das intensas transformações a que este tem sido sujeito nas últimas décadas. Cruzando dados de fontes secundárias e informações directamente recolhidas na presente investigação, e, sempre que possível, comparando o cenário descrito com o vivido noutros países europeus, percorrem-se temas como a evolução das estruturas económicas, os avanços no domínio da ciência, tecnologia e inovação, a questão dos níveis de qualificação da população, as mudanças no mundo do trabalho e do emprego, a evolução demográfica, os novos desafios da cidadania e as mutações no campo dos media. O capítulo três procura apresentar uma aproximação à rede global em que Portugal se insere. Numa primeira parte do capítulo procura-se, a partir dos dados existentes, situar a realidade de Portugal no contexto global através da apresentação de um panorama mundial da utilização de internet, das línguas utilizadas nessa comunicação e nos conteúdos disponíveis on-line. A segunda parte lida com o posicionamento de Portugal em termos de modelo de sociedade informacional, ou seja, compara-se a situação portuguesa face a três modelos de desenvolvimento informacional, Finlândia, Califórnia e Singapura. Essa comparação é realizada tendo presente as estruturas de emprego, tecnologia, desenvolvimento, valores partilhados, modelos de bem-estar social e cidadania. No capítulo quatro, dá-se início à análise do perfil social dos utilizadores da internet e as suas práticas de utilização deste recurso, partindo-se da hipótese de que tal pode constituir um bom guia de entendimento das características particulares da sociedade em rede em Portugal. Além de 15

apresentar os principais traços sociais distintivos dos cibernautas portugueses e discutir alguns dos obstáculos mais decisivos à expansão do uso da internet no nosso país, este capítulo dá ainda conta de aspectos como a frequência do uso da internet, os locais de acesso e as actividades desenvolvidas na rede, cruzando, sempre que pertinente, as informações sobre tais práticas com dados de caracterização dos seus protagonistas. O quinto capítulo centra-se na análise das relações de sociabilidade e actividades quotidianas desenvolvidas na sociedade em rede. Identificar e compreender as implicações do uso da internet na amplitude, densidade e intensidade das redes de sociabilidade dos portugueses, e perceber se essa utilização tem impactos na sua qualidade de vida, é um dos objectivos deste capítulo. Para tal, analisam-se indicadores como os que se referem ao volume das redes de relacionamento familiar e social (amigos e vizinhos), ao modo como se contacta com essas pessoas e à utilização da internet como meio de comunicação potenciador de contactos à distância. Discutem-se também algumas das questões levantadas sobre os designados perigos potenciais associados do uso da internet, tais como, os do isolamento social, da depressão individual e da indiferença familiar. O sexto capítulo incide sobre as práticas comunicacionais e acesso à informação por parte dos portugueses. O aparecimento da internet e o seu uso acarretou, indiscutivelmente, mudanças profundas nas práticas comunicacionais, nos meios de comunicação, nos conteúdos disponibilizados, nos modos de interactividade e, ainda, nas representações que se vão construindo sobre essas diferentes plataformas comunicativas. São algumas dessas transformações que se analisarão ao longo do capítulo seis procurando responder às seguintes questões. Qual o lugar que a internet ocupa como actividade de comunicação na sociedade em rede? Qual o seu papel no universo das práticas comunicativas em Portugal? Que confiança se tem nos seus conteúdos comparativamente a outros meios de comunicação? Que opiniões emergem sobre esta nova tecnologia de informação e comunicação? Que diferenças existem a este respeito entre utilizadores e não utilizadores de internet? Afinal, quais são as práticas comunicacionais dos portugueses? O capítulo sete incide sobre dois temas distintos mas interligados – processos de construção de identidade e referências identitárias na sociedade portuguesa e acção colectiva e práticas de cidadania. Assume-se nas conceptualizações teóricas da sociedade em rede que estas são duas 16

dimensões centrais para a análise desta nova forma de organização societal. Para além de se pretender compreender os processos de referência identitária (principais, territoriais e históricas) e as implicações que o uso da internet tem nestas questões, é também objectivo deste capítulo analisar as práticas e alterações ocorridas na participação social e política. Na sociedade em rede, os modos de participação e os meios disponíveis alteraram-se significativamente. As tecnologias de informação e comunicação permitem aos cidadãos uma maior proximidade às estruturas do poder democrático, associativo, etc., bem como uma maior facilidade de contacto e interacção. Mas, será que em Portugal a utilização da internet como meio de participação social e política é assim tão recorrente? Mobilizar-se-ão mais os portugueses para questões políticas, cívicas, culturais no espaço virtual do que o faziam antes do aparecimento da internet? O trabalho e a pertença associativa tornaram-se mais apelativas? Que práticas desenvolvem? Numa abordagem transversal, incorporando algumas das temáticas analisadas nos capítulos anteriores, procura-se no capítulo oito especificar a transição em curso em Portugal para uma sociedade em rede. A leitura de um extenso conjunto de dados organizados em diferentes dimensões posiciona-nos perante uma dimensão de transição, em que convivem simultaneamente debilidades estruturais e potencialidades adquiridas. A caracterização da sociedade portuguesa que se procura realizar reflecte a transição de uma população com escassos níveis de educação para uma sociedade onde as gerações mais novas atingiram já competências educacionais mais aprofundadas. Ao mesmo tempo que se depara com múltiplos processos de transição, a sociedade portuguesa conserva uma forte coesão social sobre uma densa rede de relações sociais e territoriais. É uma sociedade que “muda e se mantém coesa ao mesmo tempo. Evolui na sua dimensão global, mas mantém o controlo local e pessoal sobre aquilo que dá sentido à vida” (Castells, 2004b). É nesse contexto que se produz uma transição fundamental: a transição tecnológica expressa por meio da difusão da internet e a emergência da sociedade em rede na estrutura e na prática social. Como detectar essas mudanças na estrutura e na prática social? É a essa pergunta que procura responder o capítulo oito. Partindo da conceptualização elaborada a este respeito por Castells (2003) na investigação análoga desenvolvida na Catalunha, bem como 17

dos desenvolvimentos teóricos de Giddens (1991) e Beck (1992), entre outros, o capítulo nove parte do princípio de que a sociedade em rede se caracteriza, em todos os contextos culturais, por um incremento substancial do nível de autonomia e reflexividade dos indivíduos e da sociedade civil. Tal decorrerá, fundamentalmente, não tanto da evolução tecnológica em si mesma, mas, antes de mais, de processos sociais como a crise de legitimidade das instituições políticas e do mundo dos negócios, a afirmação da individualidade pessoal como valor chave de referência no estabelecimento de normas sociais, e a expressão de identidades colectivas a diferentes níveis. É neste sentido que, neste capítulo, se analisam – com base nos dados recolhidos através do inquérito – práticas sociais centrais à construção de alguns destes projectos de autonomia emergentes, nos diversos âmbitos da vida social, relacionando-as, por um lado, com o perfil social dos seus protagonistas e, por outro, com a questão da utilização da internet. Um dos objectivos é precisamente discutir a articulação entre o uso deste meio de comunicação e a emergência de (novas) formas de reflexividade e autonomia. Quando em 1969 se deram os primeiros passos na constituição da Arpanet, o antepassado tecnológico da nossa actual internet, estava-se longe de pensar que esta poderia vir a transformar tão radicalmente o mundo. Iniciou-se então uma revolução tecnológica ao mesmo tempo que importantes mudanças sociais ocorriam. Esta combinação teve, sem dúvida, implicações sociológicas vastíssimas. A configuração da sociedade em rede, tal como Manuel Castells a tem vindo a propor e a analisar, é uma delas. Por agora, este livro procura dar a conhecer a situação de Portugal relativamente a este processo. Certamente que para muitos a sociedade aqui analisada parecer-lhes-á familiar, pois é esta a sociedade em rede em que vivemos.

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Capítulo 1 A sociedade em rede Manuel Castells

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sociedade em rede é a sociedade em que nós vivemos. Não é uma sociedade composta por cibernautas solitários e robôs em telecomunicação. Nem sequer é a terra prometida das novas tecnologias que resolvem os problemas do mundo com a sua magia. É, simplesmente, a sociedade em que estamos a entrar, desde há algum tempo, depois de termos transitado na sociedade industrial durante mais de um século. Mas, da mesma forma que a sociedade industrial coexistiu durante várias décadas com a sociedade agrária que a precedeu, a sociedade em rede mistura-se, nas suas formas, nas suas instituições e nas suas vivências, com os tipos de sociedade de onde surgiu. Mais ainda, como veremos, um traço essencial da sociedade em rede é que se organiza globalmente e os seus níveis de desenvolvimento são muito diferentes em cada país. Nem todas as pessoas, nem todas as actividades, nem todos os territórios estão organizados segundo a estrutura e a lógica da sociedade em rede. De facto, as pessoas plenamente integradas nessa sociedade constituem uma minoria da população do planeta, como também aconteceu durante o processo de industrialização que transformou o mundo desde meados do século XIX. Mas toda a humanidade, esteja onde estiver e quem quer que seja, está condicionada, nos aspectos fundamentais da sua existência por aquilo que acontece nas redes globais e locais que configuram a sociedade em rede. Porque essas redes incluem e organizam o essencial da riqueza, o conhecimento, o poder, a comunicação e a tecnologia que existe no mundo. Assim, a sociedade em rede é a estrutura social dominante do planeta, a que vai absorvendo a pouco e pouco as outras formas de ser e de existir. Isso, em si mesmo, não é bom nem mau: é. E as suas consequências, como no caso de outras sociedades que existiram historicamente, dependem do que as pessoas 19

fazem, incluindo nós, nessa sociedade e com os instrumentos que essa sociedade oferece. Mas, o que é afinal de contas, essa sociedade em rede? E em que se diferencia das outras? E como sabemos que existe? E como nos afecta em concreto, para além do debate académico sobre a diversidade histórica da estrutura social? Mais do que uma definição teórica, o que precisamos para identificar essa sociedade é uma descrição dos seus principais elementos, por contraste com a sociedade industrial. Podemos começar por dizer que a sociedade em rede só se pode desenvolver a partir de um novo sistema tecnológico, o das tecnologias de informação e de comunicação de base microelectrónica e comunicação digitalizada (Mitchell, 2003). Não foi a tecnologia que determinou o nascimento e o desenvolvimento da sociedade em rede, mas sem este tipo de tecnologias aquela não teria existido; da mesma maneira, não foi a electricidade que originou a sociedade industrial mas sem a electricidade e o motor eléctrico a sociedade industrial, tal como a conhecemos, não teria existido. Apesar das tecnologias electrónicas de informação e comunicação terem antecedentes históricos que remontam a finais do séc. XIX, pode argumentar-se que foi apenas na década de 70 que apareceu no mundo um paradigma tecnológico dominante em torno da microelectrónica, a informática, as telecomunicações e os novos materiais sintéticos (Castells, 2002, 2003a, 2003b, 2004a). Desde então esse paradigma expandiu-se e aprofundou-se de forma extraordinária, tanto em termos de inovação tecnológica e aplicações como na sua penetração em todos os âmbitos da actividade humana (Mitchell, 2003). A internet é simultaneamente o instrumento chave e o símbolo deste novo sistema tecnológico, tal como o foi o motor eléctrico na difusão da capacidade energética da electricidade. A internet é, simplesmente, uma rede de redes de computadores interligados por uma linguagem informática comum que permite comunicar, em tempo real ou diferido, a partir de qualquer ponto do planeta para qualquer outro (incluindo a casa ao lado) e aceder a qualquer tipo de informação que esteja digitalizada (o que é o caso, actualmente, de 93% da informação do planeta), sem maior custo de telecomunicações que o de uma chamada local (já outra coisa são as tarifas arbitrariamente impostas pelas empresas). A internet é um meio de comunicação livre e interactivo, baseado em programas informáticos que também são livres 20

porque os seus criadores assim o quiseram e os publicaram na internet sem direitos de autor ou de propriedade. Na realidade, se se tivessem aplicado as regras tradicionais dos direitos de propriedade intelectual, a internet não existiria. Apesar de a internet ter surgido, na sua primeira versão, nos EUA em 1969, foi realmente nos anos 90 que teve, como veremos, a sua extraordinária expansão, tornando-se, juntamente com outras redes informáticas telecomunicadas, o sistema nervoso da sociedade em rede (Abbate, 1999; Naughton, 1999; Castells, 2002). A expansão da capacidade comunicativa digital aumenta com o desenvolvimento dos telemóveis, das redes wireless, e com a convergência da internet com as ditas redes (Rheingold, 2003). Assim, o futuro está aqui não como afirmavam os futurólogos, mas sim tal como o vamos conhecendo através dos estudos dos investigadores, isto é, construído pelas pessoas e pelas grandes forças sociais e económicas. Vejamos pois, a partir desses trabalhos, em que consiste esse mundo (Castells, 2002, 2003a, 2003b, 2004a; Cardoso, 1998, 2003; Wellman e Haythornwaite, 2002; Katz e Rice, 2002; Mitchell, 1999; Mitchell, 2003; Stiglitz, 2002; Clark, 2003; Held e outros, 1999; Nye e Donahue, 2000; Price, 2002; Hutoon e Giddens, 2000; Schiller, 1999; Benner, 2002; Servon, 2002; Levy, 1997; Himanen, 2001; Juris, 2004; Banegas 2003; Zook, 2004; Castells, 2004b). Espero que o que a seguir se descreve lhe pareça familiar. O sistema tecnológico centrado nas tecnologias de informação permitiu a formação de uma nova economia, um novo sistema de meios de comunicação, uma nova forma de gestão, tanto nas empresas como nos serviços públicos, uma nova cultura e, de forma incipiente, a emergência de novas formas de instituições políticas e administrativas. Também surgiram novos problemas sociais e novas formas de reivindicação e mobilização da cidadania, uma vez que nem só de tecnologia vivem as pessoas: a modernidade informática não elimina os problemas sociais e políticos, e nalguns casos e em determinadas condições até os acentua. E essas mobilizações também utilizam novas tecnologias de comunicação e, consequentemente, adoptam novas formas de organização, debate e acção (Ugarte, 2004; Cue, 2004). Vejamos então. Uma nova economia, dizemos. Mas não a das dotcom e da bolha financeira da internet, mas sim aquela economia em que a produtividade e a competitividade das empresas, regiões e países dependem, fundamentalmente, da capacidade de gerar conhecimento e 21

processar informação de forma eficiente. O que quer dizer, em primeiro lugar, educação e recursos humanos que se possam adaptar a formas de gestão e produção em constante mudança, a partir da sua utilização de tecnologias de informação e comunicação. Que saibam o que procurar na internet e o que fazer com o que encontram em função das tarefas e projectos a que se destina a informação. A riqueza e o poder na sociedade em rede dependem, antes de mais nada, da qualidade da educação, da plena integração do conjunto da população no sistema educativo e de uma relação fluida entre as organizações e as instituições da sociedade com o sistema universitário e a investigação científica. O conhecimento e a inovação são as fontes de riqueza, de poder e de qualidade de vida. É daí que vem o dinheiro. Com conhecimento, acaba por se realizar investimento e ganhar dinheiro. Sem conhecimento, mesmo tendo dinheiro, acaba-se por perdê-lo. Esta economia do conhecimento e da informação está organizada globalmente. A globalização da economia é um traço fundamental da nossa sociedade. Mas não quer dizer que tudo esteja globalizado. De facto, a maioria das pessoas trabalham em empresas de âmbito local e regional. Mas as actividades fundamentais, aquelas das quais depende tudo o resto em cada país, estão globalizadas. É o caso dos mercados financeiros nos quais se investe todo o dinheiro – incluindo todas as nossas poupanças, sem que possamos controlar o seu destino e a sua aplicação uma vez que as confiamos às instituições financeiras. Inclusivamente as próprias instituições financeiras só as controlam até certo ponto, pois dependem dos fluxos globais, em grande parte aleatórios e imprevisíveis. Os mercados financeiros globais são uma rede de fluxos financeiros e de informação organizados por uma rede de computadores telecomunicados. Essa é uma dimensão básica da sociedade em rede. Também a produção de bens e serviços está globalmente articulada, em torno de um núcleo de 65 000 empresas multinacionais que, apesar de apenas empregar uns 200 milhões de trabalhadores (há 3 000 milhões de trabalhadores no mundo), representam 40% do valor do produto bruto mundial e 75% do comércio internacional. O comércio externo é pois a vida ou a morte das economias, mas representa sobretudo a internacionalização da produção. E esta produção também se baseia em redes, redes de maquinaria, de gestão, de bens, de serviços, de pessoas, de informações, que utilizam as tecnologias de informação e comunicação e um sistema 22

de transporte global de pessoas e mercadorias que também dependem, no seu funcionamento, de computadores e de telecomunicações. A ciência e a tecnologia, forças produtivas essenciais da nossa sociedade, estão organizadas em redes de centros de investigação e de investigadores, sobretudo a partir de universidades, nas quais o importante é estar em rede, onde se gera o conhecimento e circula a informação essencial. A força de trabalho só está globalizada num pequeno segmento da mesma, entre os trabalhadores de mais elevadas qualificações no seu ramo de actividade (como analistas financeiros, engenheiros informáticos ou biólogos, publicitários de imagem ou estrelas desportivas). Mas a maioria da força de trabalho é local ou regional. E aí reside a dificuldade de controlar os movimentos das empresas por parte dos trabalhadores. O capital é global, o trabalho é local: nessa separação cria-se um vazio que torna ineficazes os processos de regulação e controlo que se criaram na sociedade industrial. Por isso a sociedade em rede não é apenas formada por nós ligados, mas, simultaneamente, por conexão e desconexão. Conexão daquilo que interessa ligar e desconexão daquilo que, do ponto de vista dos interesses dominantes, não interessa ligar. Isto não obsta que quem queira ligar-se segundo os seus próprios critérios não o possa fazer. Por exemplo, as redes de sindicatos de trabalhadores de diferentes países para poderem negociar com uma multinacional a partir das suas diferentes empresas filiadas. É assim que se vai tecendo a rede da nossa sociedade, não apenas a partir das empresas ou dos mercados financeiros, mas também a partir de todos os actores da sociedade que se adaptam a essa globalização, globalizando-se também na sua acção, a partir da sua própria proposta de sociedade, fundada em valores distintos e utilizando também a internet e outras redes informáticas para unir o local ao global. Assim se vão gerando novas formas de controlo político e diversidade cultural. Através deste processo, o chamado movimento anti-globalização é na realidade um movimento global que propõe formas distintas de globalização baseadas nos interesses e valores das pessoas mais do que dos poderes económicos e mediáticos. Redes operadas electronicamente estão também na base das novas formas de gestão de empresas que se reconhecem, precisamente, como empresas rede. É uma gestão simultaneamente coordenada e descentralizada, fundada na unidade de projecto da empresa e na flexibilidade e na autonomia de cada uma das suas unidades. É uma forma de organização 23

económica baseada em acordos limitados e concretos entre empresas, na subcontratação de produção e serviços, e na mudança constante de estruturas organizativas e de pessoal segundo os mercados, as tecnologias e as estratégias da empresa em cada momento. A empresa rede não é uma empresa organizada em rede interna nem uma rede de empresas, ainda que ambos os aspectos façam parte da empresa rede. A empresa rede é aquela que se baseia num projecto de negócio em que participam empresas distintas com os seus recursos e estratégias próprias. É uma rede que se desfaz no final de cada projecto e que se volta a tecer, com outros componentes, com cada novo negócio que surge. Assim, na economia da sociedade em rede, se bem que a empresa continue a ser a unidade jurídica de gestão do capital e do trabalho, a actividade económica depende de projectos de negócios executados por uma rede de recursos, rede mutável em função das circunstâncias. Portanto, a flexibilidade laboral é essencial nessa forma organizativa. E como é uma forma muito mais ágil e eficiente, a empresa rede como forma de gestão vai-se difundindo por concorrência, ou seja, eliminando os concorrentes cujas formas de organização são hierárquicas e verticais, segundo as rotinas herdadas da sociedade industrial. Naturalmente, sem a internet e sem a informática não seria possível gerir a complexidade que representa a empresa rede, sobretudo quando se relaciona globalmente tanto com os mercados como com os recursos. As consequências desta forma de gestão, produção e trabalho, fazem-se sentir directamente na vida das pessoas, desde a flexibilidade laboral voluntária ou imposta à necessidade constante de reciclagem profissional e abertura à inovação como valor essencial. A sociedade em rede é também, como analisou Ulrich Beck (1992), uma sociedade de risco. Os meios de comunicação, que contribuem decisivamente para a formação das nossas representações colectivas, e portanto, da nossa cultura, também se caracterizam pela sua interdependência global, pelo seu funcionamento em rede e pela sua crescente interligação, entre diferentes meios, através da sua relação com a internet. Vivemos em comunicação e ligados de forma constante, mas as formas e os conteúdos dessa conexão dependem das relações entre diferentes grupos de comunicação e das suas relações com as sociedades e as políticas das quais dependem. Também aqui observamos a formação de uma rede de comunicação, mas uma rede interrompida e cruzada segundo as relações de poder em mudança (Norris, 2000; Volkmer, 1999; Campo, 2003). 24

O território em que vivemos tem vindo a sofrer uma profunda transformação no novo contexto globalizado, telecomunicado e informatizado. Mas não aconteceu o desaparecimento das cidades como tinham previsto os futurólogos, que anunciavam a possibilidade de tudo se poder fazer à distância, sem necessidade de nos deslocarmos. Pelo contrário, temos assistido à maior vaga de urbanização da história: actualmente, mais de metade da população do planeta vive em zonas urbanas e estima-se que em cerca de 25 anos a população urbana chegará aos dois terços. Na Europa Ocidental a proporção ultrapassa os 75%. Mas as novas tecnologias de comunicação e de transportes contribuíram poderosamente para o aparecimento de uma nova forma territorial, as regiões metropolitanas, nas quais se concentra uma grande parte da população e o essencial das actividades económicas e de geração de conhecimento. Estas regiões caracterizam-se internamente por serem territórios descentralizados, que englobam cidades e vilas, espaço rural e urbano, numa grande extensão que funciona como unidade da vida quotidiana graças às ligações de transportes rápidos e de telecomunicações (Graham e Simon, 1996; Wheeler e outros, 2000). Porém, por outro lado, estas regiões metropolitanas estão relacionadas umas com as outras através de redes globais de comunicação e das telecomunicações. A arquitectura territorial do planeta é formada por grandes núcleos urbanizados que concentram população, tecnologia, riqueza e poder e que se relacionam uns com os outros, enquanto simultaneamente a maior parte do território do planeta está a despovoar-se e a marginalizar-se, numa perspectiva global. O espaço da sociedade em rede está a construir-se, assim, em torno de redes de comunicação que vinculam territórios, as regiões metropolitanas, enquanto que desvinculam outros, sem capacidade de oferecer mais valias aos circuitos globais que constituem a infraestrutura deste tipo de sociedade (Graham e Simon, 2001; Graham, 2003). Neste contexto, a dimensão territorial da sociedade em rede em Portugal reside, por um lado, na formação de duas grandes regiões metropolitanas integradas que correspondem à maior parte do país (no caso do Porto com uma tendência para se articular com a Galiza) e que funcionam como unidade, mas também como um sistema descentralizado facilitado por comunicações internas, tanto de transportes como de comunicações. Por outro lado, estas regiões metropolitanas fazem parte de uma rede mundial de territórios metropolitanos. O posicionamento das metrópoles portugue25

sas nessa rede global de valor condiciona o nível de vida e a qualidade de vida dos seus habitantes. E esse posicionamento depende do grau de conectividade de Portugal e da capacidade cultural, educativa e pessoal dos portugueses para actuar e funcionar nas referidas redes globais. Também assistimos a uma mudança substancial nas instituições da sociedade. O sistema político, os estados e as administrações têm vindo a modificar-se no seu funcionamento pela globalização e por um novo enquadramento tecnológico. Os partidos políticos praticam uma política mediática, baseada na informação e no manuseamento da comunicação de imagem. Frequentemente, a política mediática deriva para uma política de escândalos como forma de eliminar o adversário através da difusão de imagens negativas, muito mais eficazes do que as próprias mensagens positivas. E como em todo o mundo acontece o mesmo, o resultado é uma crise crescente da legitimidade democrática em todos os países (Thompson, 2000; Castells e Olle, 2003). Pelo seu lado, os Estados vêm-se cada vez mais superados por fluxos globais de capital, de produção, de comunicação, de informação e de tecnologia, sobre os quais têm escasso controlo, fechados nos seus âmbitos nacionais. Sem dúvida, os estados têm reagido para restabelecer a sua legitimidade e a sua eficiência. Tentando renovar a sua legitimidade, cederam às pressões da sociedade local, regional e de nações supeditadas (como a Catalunha ou a Escócia) através de um processo de descentralização administrativa. Também têm dado uma crescente atenção às organizações não governamentais, expressão da sociedade civil. E para aumentar o seu poder de gestão sobre os fluxos globais têm vindo a organizar-se em instituições co-nacionais e supra-nacionais, tais como a União Europeia, tentando dar uma maior relevância a instituições de gestão global como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e, ainda que com profundas contradições, as Nações Unidas. Formou-se assim um novo sistema de gestão política no qual os estados-nação do passado, sem deixarem de existir, se converteram em nós (essenciais) de uma rede institucional em que partilham soberania e decisões com instituições co-nacionais, supra-nacionais, internacionais, quase-nacionais (como a Catalunha), regionais, locais e organizações não governamentais (ONG). Formou-se, pois, um estado em rede, em que os intercâmbios entre todos estes níveis e formas de governo constituem o processo de governação de que em grande parte dependem as nossas 26

vidas. Essa rede está, parcialmente, apoiada num sistema de informação e comunicação electrónica, se bem que haja um desfasamento considerável entre a capacidade operacional da administração para funcionar em rede electrónica e a formação de facto de um estado em rede como o que acabámos de descrever. Enfim, é neste novo contexto que se desenvolve a vida quotidiana das pessoas. Que, em parte, assume a existência das novas tecnologias de comunicação como a internet e a adapta às suas necessidades, aos seus interesses, aos seus valores, aos seus projectos (Cardoso, 1998; Haythornwaite e Wellman, 2002; Katz e Rice, 2002; Woolgar, 2002; Dutton, 2001). E como a internet é uma tecnologia muito maleável, onde historicamente os utilizadores têm sido os inventores de muitas das suas aplicações (desde o correio electrónico, às listas de difusão e aos chats) a vida real de cada sociedade tem vindo a operar as mudanças na internet. Mas a existência da internet também tem permitido que as pessoas se vão situando num novo contexto, percebendo, por exemplo a necessidade de se auto-informar e de se auto-educar num mundo de flexibilidade laboral e de valorização da inovação. Utilizando a internet também para estabelecer redes de comunicação horizontal independentes dos meios de comunicação de massas dos quais desconfiam. E construindo a autonomia da sociedade civil global como contrapeso à crise de legitimidade das instituições políticas nas quais acreditam cada vez menos. Em resumo, as fases iniciais da formação da sociedade em rede, baseada na plataforma das tecnologias de informação e comunicação, afectaram essencialmente a economia, as empresas, o território, o mundo da comunicação e as esferas de poder. Curiosamente, nessa primeira fase de criação de redes instrumentais, a internet esteve povoada fundamentalmente por cientistas, universitários e contraculturas virtuais. Mas quando a sociedade em rede se manifestou em toda a sua importância e milhões de pessoas perceberam que viviam num mundo de redes, a partir da década de 90, então as pessoas apropriaram-se da internet para construir as suas próprias redes, a partir das suas próprias vidas e projectos. E assim surgiu a sociedade em rede que temos agora, em termos gerais, uma sociedade em rede feita da formação de redes de poder, riqueza, gestão e comunicação na trama da estrutura social. Mas também uma sociedade em rede construída, a partir de baixo, por pessoas que, individual ou colectivamente, se têm vindo a apropriar do poder 27

comunicador da internet para gerar novas formas de vida, sociabilidade e alternativas políticas. Quais são essas formas? O que é a sociedade em rede vista a partir da vida quotidiana? Para responder a esta questão, essencial para o entendimento das nossas vidas, é necessário, em primeiro lugar, afirmar a diversidade cultural e institucional da sociedade em rede (Castells e outros, 2003). De facto, não existe uma sociedade em rede única, que seria a reprodução em todo o mundo dos processos de organização gerados em Silicon Valley a partir das tecnologias de informação. Da mesma forma que a sociedade industrial não foi a cópia de Inglaterra do séc. XIX e foi muito diferente no Japão e nos EUA, em França ou na Suécia, a sociedade em rede desenvolve-se em cada país consoante a cultura, a história, a identidade e o modo de vida desse país. Por exemplo, segundo os dados das organizações internacionais, a Finlândia é a sociedade mais avançada do mundo na utilização e difusão de tecnologias de comunicação e informação e um dos grandes centros de inovação tecnológica do planeta, sobretudo no campo essencial dos telemóveis. Mas, ao mesmo tempo, o modelo finlandês de sociedade em rede contrasta fortemente com o californiano, na medida em que se apoia fortemente num estado providência desenvolvido e numa política activa do estado finlandês legitimado como defensor da identidade nacional de um país secularmente oprimido pelos seus vizinhos. Assim, duas sociedades tão distintas como a da Califórnia e a da Finlândia constituíram-se como sociedades em rede, em termos tecnológicos igualmente avançadas, mas por vias diferentes e com modalidades próprias (Castells e Himanen, 2002). Mas, simultaneamente, existe algo de comum à sociedade em rede nas diferentes culturas e contextos em que se desenvolve, pois se não, não teria sentido manter a mesma designação para realidades diferentes. Estudos comparados do desenvolvimento da sociedade em rede em vários países (Castells, 2004b) mostram que a organização das actividades económicas, políticas, culturais, da vida quotidiana, em torno de redes de relações baseadas em tecnologias electrónicas constituem o denominador comum que tem importantes consequências sobre a forma de viver e de fazer em todos os âmbitos da prática social. É essa dupla tendência que este livro capta através do estudo da sociedade portuguesa. Por um lado, tenta identificar em que medida 28

existe em Portugal um processo de transformação social e tecnológica a partir da emergência de redes de relações baseadas nas tecnologias de comunicação electrónica, em correspondência com a tendência que se observa no mundo. Por outro lado, pretende definir o que é próprio da sociedade portuguesa, aqueles traços que são específicos do país, da sua cultura e da sua forma de organização social. A análise da sociedade em rede em Portugal parte de estudo das utilizações da internet, porque a internet é o meio de comunicação através do qual se constituem as redes de relações de novo tipo para as pessoas e as actividades. Não é que a internet seja a fonte da sociedade em rede, mas sim o instrumento através do qual as pessoas, as empresas, as organizações e as instituições formam as suas redes de interacção. Recorrendo de novo ao nosso exemplo histórico, para estudar o processo de criação da sociedade industrial utilizou-se a observação das novas formas de trabalho em fábricas possibilitadas pelo motor eléctrico, as novas formas de urbanização baseadas no transporte eléctrico ou no automóvel e os novos meios de comunicação que surgiram a partir da rádio e da televisão. Hoje em dia, a análise dos usos da internet e das redes informáticas telecomunicadas em geral constituem um bom ponto de entrada para observar a transformação da organização social em Portugal em torno do modelo que se detecta no mundo sob o conceito de sociedade em rede. A análise apresentada neste livro constitui um estudo em profundidade da transformação da sociedade portuguesa realizado a partir de um inquérito aplicado a uma amostra representativa da população. Nesta análise utilizou-se uma problemática e uma metodologia que a tornam comparável, em termos gerais, com outras investigações realizadas a outras sociedades. Daí o seu interesse, porque permite perceber o processo específico de mudança social e tecnológica em Portugal num contexto mais amplo da transformação que se está a produzir no mundo. Só a partir desse conhecimento poderão os cidadãos portugueses construir a sociedade em rede dos seus projectos, valores e aspirações, em vez de se adaptarem a formas derivadas das novas tecnologias. Porque a sociedade em rede, como todas as sociedades que a precederam na história, se estrutura a partir da acção humana, das suas paixões, dos seus conflitos e dos seus sonhos. E também da consciência informada pelo conhecimento do tempo em que vivemos.

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S O C I E D A D E

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R E D E

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P O R T U G A L

Capítulo 2 Processo de mudança estrutural na sociedade portuguesa

A

sociedade portuguesa tem vindo a conhecer um significativo processo de modernização, traduzido em domínios tão diversos como a transformação das estruturas económicas e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a escolarização das novas gerações e a recomposição socioprofissional, a feminização e progressiva terciarização do trabalho, a urbanização da população e dos espaços, a alteração dos padrões demográficos e de vida familiar, a democratização das estruturas políticas e a mediatização do espaço público. As mudanças verificadas são, sem dúvida, assinaláveis, e o ritmo da mudança não terá tido paralelo em muitos países, pelo menos nos tempos mais recentes. Todavia, tal processo de modernização está longe de ter sido linear, isento de obstáculos e contradições; e, acima de tudo, está longe de ter terminado. Portugal encontra-se assim numa encruzilhada, associando traços e dinâmicas de modernidade, comuns a muitas das nações europeias (em relação às quais a comparação se torna inevitável), a vestígios de uma sociedade mais arcaica, que tendem a persistir e a obstruir algumas das transformações em curso. Enfrenta, por um lado, muitos dos novos desafios e paradoxos das sociedades actuais – veja-se o envelhecimento populacional, a emergência de novas formas de pobreza, a crise das estruturas democráticas ou a mediatização da sociedade. Mas, por outro, suporta os atrasos induzidos pela manutenção de antigas estruturas e disposições sociais, obstáculos ao necessário, e tão comentado, processo de convergência. Exemplos desses atrasos são a especialização económica em sectores de fraca intensidade tecnológica, a manutenção de deficientes níveis de qualificação da população, a insuficiência dos apoios sociais ou o ainda limitado desenvolvimento das novas classes médias. É, neste sentido, que se torna pertinente falar de Portugal como cenário de “processos de uma modernidade inacabada” (Machado e Costa, 1998), 31

como um “país dual” (Conceição e Heitor, 2003), onde inovação e apego a antigos modos de estar e fazer se cruzam e se sobrepõem, ou como palco de um desenvolvimento intermédio, numa condição híbrida de “semiperiferia” (Santos, 1993). Epítetos como estes resultam de análises teórica e substantivamente diversas, mas convergem na identificação do carácter complexo e, não raras vezes, contraditório da sociedade portuguesa do final do século XX e início do século XXI. Parte-se, pois, do pressuposto de que compreender a transição portuguesa para o que Manuel Castells (2002, 2003) conceptualiza como sociedade em rede, na sua dupla dimensão social e tecnológica, implica conhecer a posição particular em que o país se encontra, na viragem para o terceiro milénio, as evoluções a que tem sido sujeito e que ele próprio protagoniza. É esse o sentido deste capítulo. Nele se cruzam dados de fontes secundárias – nomeadamente publicações estatísticas, mas também diversos estudos sobre a realidade portuguesa – com informações directamente recolhidas através da pesquisa agora apresentada. Sempre que possível, o cenário e os processos descritos e analisados são comparados com outros países, designadamente da Europa.

Economia: novos desafios e velhas fragilidades A história da sociedade portuguesa no último meio século é, do ponto de vista económico, marcada de forma indelével por um forte e relativamente constante crescimento dos níveis de rendimento, bem como por uma intensa e progressiva abertura ao exterior. Se atendermos à evolução registada nos últimos cinquenta anos nos países da OCDE, Portugal encontra-se claramente entre aqueles que beneficiaram de uma mais alta taxa média de crescimento anual (Mateus, 1998; Murteira, Nicolau, Mendes e Martins, 2001). Tal não foi contudo suficiente, até ao momento, para superar o histórico atraso estrutural. As comparações internacionais com os países mais desenvolvidos, nomeadamente com as médias europeias, mantêm-se desfavoráveis a Portugal, sob o ponto de vista de importantes indicadores económicos e sociais. Três momentos chave são de destacar na evolução económica do país nas últimas décadas (Mateus, 1992; Barreto, 1996; Mateus, 1998; Viegas e Costa, 1998; Murteira e outros, 2001; DGEP, 2002). 32

A adesão à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), no início da década de 60, marcou uma importante abertura económica e o fim da política de substituição das importações. O aumento da concorrência e dos contactos com o exterior favoreceram uma gradual reestruturação e modernização do tecido empresarial, nomeadamente com a perda de protagonismo da agricultura e pesca – que no final da década de 50 representavam ainda 27% do PIB – e com uma maior importação de tecnologias de produção (Mateus, 1998; DGEP, 2002). Paralelamente, os anos 60 foram marcados pela emigração de um importante contingente da população, que passa assim a contribuir para a economia nacional com significativas remessas e que reforça o grau de abertura da sociedade ao exterior. A taxa de crescimento médio anual do PIB per capita atinge, no período de 1953 a 1973, os 5,6% (Mateus, 1998). A revolução desencadeada a 25 de Abril de 1974, ditando o fim da ditadura vigente, conduziu por seu turno, a uma progressiva democratização das estruturas políticas e a uma significativa modernização da sociedade – manifesta entre outros, no aumento dos níveis de escolaridade, no reforço da protecção social, no acréscimo do poder de compra ou no acesso a um maior e mais diversificado leque de bens de consumo (Viegas e Costa, 1998). É um período marcado pelo impacto da nacionalização de parte significativa das estruturas empresariais – em áreas chave como a banca, os transportes ou a comunicação social, entre outras – fruto da política de forte intervenção do Estado na economia então concretizada (Viegas, 1996). A instabilidade social, política e económica vivida a nível interno nesse período, o desequilíbrio dos indicadores macroeconómicos e ainda a conjuntura internacional desfavorável (decorrente, em especial, dos choques petrolíferos), ditaram contudo um abrandamento do crescimento económico – para valores em torno dos 3% anuais, entre 1975 e 1985 (OCDE, 2002a). A adesão em 1986 à União Europeia – à data Comunidade Económica Europeia – voltou a assinalar o início de um período de grande progresso económico e convergência para os níveis de rendimento europeus, pese embora os abrandamentos conhecidos aquando da crise económica internacional do início da década de 90 e nos primeiros anos do século XXI (Mateus, 1992, Mateus, 1998; Murteira e outros, 2001). A inflexão das tendências de crescimento económico e de expansão do consumo vividas neste último período, e a dificuldade de retoma, geram 33

uma situação de alguma indeterminação quanto ao futuro próximo. É para já difícil assegurar se se trata de um mero acontecimento pontual ou do início de um novo ciclo. Tal como nos anos 60, a crescente abertura comercial e financeira ditada pela adesão veio exigir às empresas e ao Estado um reforço da competitividade, conduzindo ao investimento na requalificação das unidades produtivas, na modernização das infraestruturas de apoio e no desenvolvimento dos sistemas de ensino e formação. Este esforço foi benificiado, a nível finaceiro, quer pelos fundos comunitários destinados ao desenvolvimento da economia portuguesa, quer pelo crescente investimento estrangeiro, quer ainda, mais recentemente, pela baixa das taxas de juro resultante do equilíbrio macroeconómico suscitado pelos compromissos da moeda única europeia. O papel dos fundos estruturais terá estado longe de se restringir ao plano quantitativo (as transferências comunitárias, aliás, mantiveram-se aquém das remessas dos emigrantes). O seu principal efeito terá sido qualitativo, ao dinamizar um largo conjunto de investimentos estruturantes do processo de modernização da economia nacional e induzir a renovação das estruturas produtivas e dos serviços do Estado (Mateus, 1992). Data também da década de 80 a progressiva mudança, entre as elites políticas dominantes, da orientação face ao papel de regulação económica e social do Estado, num processo que culmina com a privatização de boa parte das empresas públicas (Viegas, 1996). Este período registou, por outro lado, um importante acréscimo dos níveis de consumo, bem como de endividamento das famílias e das empresas, dinamizando o mercado interno e a economia portuguesa em geral, mas colocando simultaneamente algumas questões quanto às perspectivas de manutenção futura dos ritmos de crescimento por essa via até então alcançados (Mateus, 1998). Portugal assume-se pois, na viragem para o terceiro milénio, como uma economia pequena, com um reduzido mercado interno, mas aberta e plenamente integrada no espaço europeu. O seu forte grau de abertura ao exterior traduz-se quer no crescimento tendencial do comércio externo, em particular após 1986, quer também nos fluxos de investimento externo – em ambos os casos tendo como origem/destino principal a União Europeia (Mateus, 1992; Mateus, 1998). 34

O peso relativo do comércio externo português no seio da OCDE, ou mesmo da União Europeia, mantém-se extremamente reduzido, reflexo da própria dimensão da economia nacional. Mas a taxa de exportação – rondando os 38% no final da década de 90 – aproxima-se já bastante da média europeia, indiciando o dinamismo que a economia portuguesa veio a alcançar nos últimos anos do século XX. Neste âmbito, terá sido decisivo, entre outros, o crescimento do sector dos produtos metálicos, nomeadamente da fileira automóvel, fortemente suscitado pelo investimento estrangeiro, e em particular pela instalação do complexo Ford-Volkswagen (Lança, 2000; OCDE, 2002a; GEPE, 2003). Aumento semelhante verificou-se no que toca às importações – quer por via do crescimento do consumo privado, quer também pela importação de bens de equipamento. A balança comercial permanece assim deficitária, flutuando a taxa de cobertura em torno de um valor médio de cerca de 70%. Mas o aspecto porventura mais inquietante prende-se, não com este défice – comum a outras economias desenvolvidas – mas com o facto das exportações portuguesas se manterem centradas em produtos de baixa intensidade tecnológica e reduzido valor acrescentado, resultado directo da manutenção do tradicional padrão de especialização da economia nacional (Mateus, 1992, Mateus, 1998; Godinho e Mamede, 2004). O investimento estrangeiro em Portugal manteve, por seu turno, níveis bastante reduzidos até ao período de adesão à União Europeia, momento a partir do qual o país começa a suscitar um maior interesse por parte dos investidores estrangeiros, regra geral grandes companhias europeias ou empresas norte-americanas e japonesas a operar a partir de filiais na Europa. O impacto destes investimentos está longe de atingir os níveis registados noutros países, mas é ainda assim bastante significativo, em particular nos sectores mais dinâmicos da economia. E não é de menosprezar o efeito de demonstração que muitas empresas de capital estrangeiro terão na difusão de novos modelos de inovação e gestão organizacional (Mateus, 1992). Já o investimento português no exterior – canalizado essencialmente para a vizinha Espanha e para o Brasil – é bastante mais circunscrito e recente, reflectindo a reduzida dimensão da generalidade das empresas portuguesas. Tem vindo contudo a crescer, fruto do empreendorismo e dos recursos patentes entre alguns grupos empresariais (Mateus, 1998). 35

A progressiva convergência dos indicadores económicos nacionais para os níveis europeus permite, em termos gerais, a sua inclusão no grupo dos países desenvolvidos. Vários são os aspectos em que importantes melhorias foram registadas: na capacidade de adaptação das empresas aos novos desafios económicos, na captação de investimentos, no alargamento da procura externa, nos consumos das famílias, etc. Contudo, o país mantém ainda muitas das debilidades económicas e sociais que há décadas atrás constrangiam o seu desenvolvimento. Tal reflecte-se na persistência de níveis de rendimento per capita comparativamente bastante reduzidos – cerca de 70% da média comunitária durante os anos 90 (quadro 2.1) – e dos piores índices de pobreza da União Europeia (DEPP, 2000; Eurostat, 2003). Apesar do crescimento económico verificado, não só novos tipos de pobreza e exclusão social têm vindo a aumentar – como são os casos associados aos desempregados de longa duração, aos sem abrigo, aos jovens em risco e aos grupos étnicos minoritários, também problemáticos em muitos países desenvolvidos – como também formas mais tradicionais tendem a persistir, ligadas, entre outros, ao campesinato, à velhice sem apoio social significativo e às inserções profissionais menos qualificadas (Capucha, 1998). Um dos principais problemas enfrentados pela economia portuguesa prende-se com a relativamente reduzida taxa de produtividade nacional (Mateus, 1998; DGEP, 2002, Godinho e Mamede, 2004). Na verdade, os índices de produtividade aumentaram de forma bastante considerável – e a um ritmo superior ao registado na generalidade dos países da OCDE – muito em particular graças aos aumentos assinalados no que respeita à produtividade do trabalho (OCDE, 2002a). Tal aumento – em geral explicado pela situação anterior particularmente desfavorável e pelos esforços de modernização entretanto efectuados – esteve contudo longe de ser suficiente para garantir uma convergência satisfatória face aos valores europeus (quadro 2.1). A situação é especialmente crítica no que toca à produção por hora trabalhada. Na verdade, o número médio de horas de trabalho dos portugueses tem sido superior ao da média dos cidadãos europeus, sem que isso implique ganhos significativos de produtividade (DGEP, 2002). O PIB por hora trabalhada representa ainda, em 2001, 59% da média comunitária.

36

Quadro 2.1 Comparação internacional de indicadores de rendimento e produtividade 2001 (% da média da União Europeia) Produtividade do trabalho País

PIB per capita1

PIB1 por empregado

PIB1 por hora trabalhada

União Europeia

100,0

100,0

100,0

Alemanha

103,0

97,3

107,0

Áustria

112,0

98,6

103,0

Bélgica

108,0

119,6

124,8

Dinamarca

114,3

98,0

105,4

Espanha

83,8

93,6

82,1

Finlândia

103,1

102,3

96,1

França

103,1

113,5

118,1

Grécia

64,4

80,9

67,1

Holanda

114,3

99,0

117,2

Luxemburgo

194,6

138,5

134,3

Irlanda

117,5

116,0

110,5

Itália

102,5

112,6

111,7

68,9

63,1

58,9

Reino Unido

102,7

91,9

85,7

Suécia

101,8

93,1

92,6

Estados Unidos da América

139,2

118,6

113,1

Japão

104,7

89,8

77,8

Portugal

Em paridade de poder de compra. Fonte: Eurostat (2003). 1

Vários factores têm sido sistematicamente apontados na explicação desta fragilidade da economia portuguesa, alguns dos quais serão adiante alvo de atenção mais pormenorizada, como é caso dos baixos níveis de escolaridade e qualificação, a fraca utilização das novas tecnologias em

37

contextos produtivos ou o escasso investimento em I&D. Mas um aspecto igualmente decisivo é a própria estrutura do tecido empresarial. O panorama económico português mantém-se esmagadoramente dominado por micro, pequenas e médias empresas, frequentemente de natureza familiar, muitas delas com uma gestão pouco profissionalizada (Mateus, 1992, Guerreiro, 1996; Lança, 2000). Verificou-se um progressivo crescimento dos serviços e de alguns sectores industriais de maior intensidade tecnológica – em termos gerais entendidos como tendo melhores prestações no domínio da produtividade. É disso exemplo a dinamização do sector financeiro, fortemente estimulado pelos processos de privatização, ou da indústria automóvel e de produtos eléctricos, cujo crescimento resulta, em larga medida, do investimento estrangeiro (Mateus, 1998; Murteira e outros, 2001). No entanto, a economia portuguesa conserva-se fortemente especializada em sectores tradicionais, como os têxteis, confecções, calçado, a alimentação, bebidas e conservas, os artigos de madeira e cortiça, a cerâmica e os produtos minerais não metálicos. Em geral utilizando intensivamente mão-de-obra pouco qualificada, estes sectores tendem a produzir bens de reduzido valor acrescentado, não conseguindo aumentar significativamente os níveis de produtividade e estando sujeitos a uma forte concorrência internacional (Lança, 2000). Ainda assim, alguns dados apontam para o facto do sucesso relativo da indústria transformadora portuguesa no processo de convergência com as economias mais avançadas da União Europeia poder dever-se, em larga medida, à forte modernização registada precisamente entre algumas destas indústrias de baixa intensidade tecnológica, com grande protagonismo no contexto nacional (Godinho e Mamede, 2004). As áreas de actividade de maior intensidade tecnológica, embora cada vez mais significativas, têm ainda em Portugal uma expressão relativamente reduzida. Veja-se o caso das indústrias de média ou alta tecnologia, cujo valor acrescentado representava, em 1999, 4% do PIB português – cerca de metade da média europeia, não obstante o facto do país registar, entre 1995 e 1999, a segunda maior taxa de crescimento anual neste indicador. Ou mesmo o exemplo dos serviços de conhecimento intensivo, cuja contribuição era de 26% quando a média europeia rondava já os 33% (EC, 2002). Os ganhos de produtividade por esta via alcançados têm sido assim insuficientes. 38

A distribuição do emprego por sectores de actividade confirma precisamente este cenário. Portugal tem acompanhado a tendência generalizada para o aumento das inserções profissionais no âmbito dos serviços, em detrimento dos sectores extractivo e, mais recentemente, da transformação (quadros 2.2 e 2.3). Quadro 2.2 Distribuição do emprego por sector produtivo e respectivos subsectores, Portugal, 1955-2001 (%) I

II

SECTORES

1955

1960

1965

1970

1975

1980

1985

1990

1995

2001

Extractivo

48,6

43,9

35,9

28,1

23,8

19,7

17,5

13,5

12,8

5,4

Agricultura

47,7

43,1

35,3

27,6

23,3

19,2

17,1

13,1

12,5

5,0

Mineração

0,9

0,8

0,5

0,5

0,5

0,5

0,4

0,4

0,3

0,4

23,7

27,4

32,0

33,4

35,0

37,2

36,7

36,9

33,3

34,7

Construção

4,6

6,4

7,0

7,5

8,9

10,5

10,1

10,0

10,2

12,3

Electricidade, gás e água

0,4

0,5

0,5

0,5

0,5

0,7

0,8

0,7

0,6

0,7

18,8

20,6

24,5

25,3

25,6

26,0

25,8

26,2

22,6

21,7

Alimentar

2,5

2,5

2,8

3,0

2,7

2,8

3,0

2,9

2,6

2,1

Têxtil

6,7

6,3

8,0

8,2

8,1

8,0

9,0

10,4

8,5

5,7

Metalúrgica

0,4

0,3

0,5

0,6

0,5

0,7

0,8

0,6

0,4

2,4

Máquinas e equipamentos

2,5

3,4

4,0

5,0

5,8

5,6

5,1

5,0

4,7

3,2

Produtos Químicos

1,7

2,4

2,2

2,0

1,9

2,1

1,8

1,5

1,2

1,2

Diversos 1

5,0

5,7

7,0

6,6

6,5

6,7

6,0

5,8

5,1

7,1

Serviços de distribuição

9,5

10,7

13,1

15,7

16,8

16,7

16,0

17,0

19,0

21,0

Transportes

3,0

3,0

3,0

3,5

3,6

3,9

3,7

3,7

3,3

4,5

Comunicações 2

0,5

0,7

0,8

0,9

1,1

1,1

1,2

1,1

1,1

--

Comércio

6,0

7,1

9,4

11,3

12,1

11,7

11,1

12,2

14,6

16,5

Serviços relativos à produção

0,8

0,9

1,1

1,7

2,2

2,5

3,2

3,8

4,6

7,9

Actividades financeiras

0,4

0,4

0,5

0,8

1,0

1,3

1,6

1,6

1,7

2,1

Seguros 3

0,2

0,3

0,3

0,3

0,4

0,4

0,4

0,4

0,4

--

Actividades imobiliárias

0,2

0,2

0,3

0,7

0,8

0,8

1,2

1,8

2,5

5,8 20,6

Transformação

Indústria

III

IV

V

Serviços sociais 4

IV

Serviços pessoais 5 TOTAL

7,1

7,6

8,6

12,0

13,1

14,8

16,9

18,5

19,3

10,3

9,5

9,3

9,2

9,1

9,0

9,6

10,3

11,0

10,5

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Inclui indústrias da madeira e cortiça; do papel, tipográficas e afins; de produtos minerais não metálicos; e outras indústrias transformadoras. 2 No ano de 2001 os valores relativos às comunicações estão incluídos na categoria dos transportes. 3 No ano de 2001 os valores relativos aos seguros estão incluídos na categoria das actividades financeiras. 4 Inclui administração pública e defesa; serviços de saneamento e limpeza; serviços sociais e similares; serviços recreativos e culturais; e organismos internacionais e outros. 5 Inclui serviços pessoais e domésticos; e restaurantes e hotéis. Fonte: Banco de Portugal (s.d.) e INE, Recenseamentos Gerais da População, adaptado de acordo com o apresentado em Castells (2002). 1

39

Boa parte dos jovens integrados no mercado de trabalho concentra-se aliás, segundo os dados recolhidos directamente nesta pesquisa, no sector terciário – nomeadamente no comércio, nas comunicações, nas actividades financeiras e imobiliárias ou nos serviços sociais – sendo muito raras as inserções no sector extractivo. O país viveu, contudo, um processo de industrialização comparativamente bastante tardio. Manteve durante largas décadas um enorme contingente agrícola, ainda hoje significativo em termos internacionais; e a pressão em prol do desenvolvimento dos serviços foi mais fraca do que noutros países desenvolvidos, pelo que o peso relativo do emprego neste tipo de actividades se apresenta ainda relativamente baixo, em particular entre a população mais velha. Quadro 2.3 Distribuição do emprego por tipo de sector produtivo e respectivos rácios, Portugal, 1955-2001 (%) Tipo de sector produtivo

1955

1960

1965

1970

1975

1980

1985

1990

1995

2001

Indústria 1

72,0

70,8

67,4

60,9

58,2

56,2

53,4

49,7

45,6

39,3

Serviços 1

28,0

29,2

32,6

39,1

41,8

43,8

46,6

50,3

54,4

60,7

0,4

0,4

0,5

0,6

0,7

0,8

0,9

1,0

1,2

1,5

Gestão de produtos 2

81,0

80,9

79,8

75,8

74,0

71,8

68,2

65,6

63,4

60,3

Gestão de informação 2

19,0

19,1

20,2

24,2

26,0

28,2

31,8

34,4

36,6

39,7

Gestão de informação/ gestão de produtos

0,2

0,2

0,3

0,3

0,4

0,4

0,5

0,5

0,6

0,7

Serviços / indústria

A indústria soma os sectores extractivo, da construção e da transformação; os serviços incluem os restantes sectores. 2 A gestão de produtos inclui o sector extractivo, da construção, da transformação, dos transportes (no ano de 2001 é também incluído o sector das comunicações) e do comércio; a gestão de informação integra os serviços públicos, as comunicações (excepto para 2001), serviços relativos à produção, serviços sociais e serviços pessoais. Fonte: Banco de Portugal (2003) e INE, Recenseamentos Gerais da População, adaptado de acordo com o apresentado em Castells (2002). 1

40

O sector dos serviços representava, em 2001, cerca de 60% do total do emprego; valor que, apesar da evolução positiva, se mantém significativamente abaixo do registado noutras economias desenvolvidas. A título de exemplo, em 1991, este correspondia já a 75% do emprego nos Estados Unidos da América, e a cerca de 70% no Reino Unido e em França. Aliás, em Portugal, o rácio do volume de emprego nos serviços por comparação ao da indústria só recentemente se inverteu a favor do primeiro (quadro 2.2), verificando-se assim um desfasamento de duas a três décadas em relação aos países do centro europeu e de ainda mais face, por exemplo, aos EUA ou à Inglaterra (Castells, 2002). Tal dever-se-á, em particular, à reduzida expressão dos serviços relativos à produção, reflexo precisamente das ainda fracas exigências do tecido económico nacional. Não obstante o recente dinamismo dos sectores da banca, seguradoras e comunicações, o aumento do emprego nos serviços ao longo das últimas décadas ter-se-á ficado a dever principalmente ao impulso inerente à implementação pelo Estado de um conjunto de políticas de educação, saúde e segurança social, claramente deficitárias no período anterior à democracia.

Ciência, tecnologia e inovação: um processo de convergência inacabado As capacidades e os desempenhos no domínio da ciência, tecnologia e inovação tornaram-se um aspecto absolutamente fundamental na transição para os novos modelos sociais, económicos e culturais emergentes a nível global. Integrando o processo de convergência iniciado após a adesão à União Europeia, a generalidade dos indicadores portugueses nestes domínios registou, nas duas últimas décadas, ritmos de crescimento bastante acentuados – em muitos casos sem paralelo na União Europeia. Contudo, também neste ponto, a aproximação face aos padrões europeus está longe de estar alcançada, à semelhança aliás do que tende a acontecer nos restantes países da Europa mediterrânica. O atraso das estruturas científico-tecnológicas nacionais, as especificidades do tecido económico e os défices de qualificação da população activa são, entre outros, factores que ajudam a explicar esta situação. Portugal é apontado como um exemplo paradigmático do carácter difuso e de resultados não imediatos dos investimentos realizados nestes domínios (EC, 2002; OIC, 2003). 41

Quadro 2.4 Evolução da despesa e dos recursos humanos em actividades de I&D, Portugal, 1982-2001 19821984

19841986

19861988

19881990

19901992

19921995

19951997

19971999

19992001

Taxa média de crescimento anual da despesa em I&D 1

5,5

9,5

10,9

17,9

12,2

-1,3

8,3

14,8

8,5

Taxa média de crescimento anual do total de investigadores (ETI)

6,0

13,3

7,1

8,6

10,5

7,1

8,5

7,5

6,1

Investigadores (ETI) / população activa (‰) 2

1,0

1,3

1,4

1,6

2,0

2,4

2,8

3,1

3,4

Anos

A preços constantes (base 1995). Valor correspondente ao último ano do período em referência. Fonte: OCES (2003). 1 2

Observando a evolução da despesa em actividades de I&D, verifica-se que esta aumentou a um ritmo comparativamente bastante acelerado (EC, 2002). Entre 1995 e 2000, a taxa de crescimento anual rondou os 10% (a média europeia não foi além dos 3%), tendo-se registado inclusivamente taxas superiores nos últimos anos da década de 80 (quadro 2.4). O mesmo se passa no que toca aos recursos humanos envolvidos neste tipo de actividades. Nos anos que antecederam a adesão à União Europeia, encontrava-se em Portugal cerca de 1 investigador em cada mil habitantes; no início do século XXI esse valor ascendia a 3,4‰. Este cenário permitiu um enorme crescimento do trabalho científico desenvolvido em Portugal e, inclusivamente, a projecção internacional de alguns grupos de investigação já considerados de excelência (EC, 2002).

42

Quadro 2.5 Comparação internacional de alguns indicadores de despesa e recursos humanos em actividade de I&D (último ano disponível)

País

Despesa em Despesa em I&D1 I&D / PIB (106 US$) (%)

Estrutura da despesa em I&D por sector de financiamento (%)

Estado

Empresas

Outras fontes nacionais ou estrangeiras

Investigadores (ETI) / população activa (‰)

União Europeia 144 989,7

1,81

34,5

56,0

9,5

5,5

Alemanha

46 218,0

2,38

32,5

65,0

2,5

6,3

Áustria

3 767,4

1,79

39,7

40,1

20,2

4,8

Bélgica

4 270,6

1,84

23,2

66,2

10,6

6,5

Dinamarca

2 770,0

1,99

32,6

58,0

8,8

6,4

Espanha

6 443,5

0,90

40,8

48,9

10,3

3,7

Finlândia

3 652,4

3,09

29,2

66,9

3,9

9,9

França

27 880,5

2,18

36,9

54,1

8,9

6,1

Grécia

721,7

0,51

48,7

24,0

27,3

3,3

Holanda

7 391,7

1,95

35,7

49,7

14,6

5,1

Irlanda

1 083,8

1,39

22,2

69,2

8,7

5,1

13 310,7

1,04

51,3

44,0

5,1

3,3

1 281,8

0,77

69,7

21,3

9,0

3,1

23 445,2

1,83

27,9

49,4

22,7

5,5

6 845,5

3,70

24,5

67,8

7,7

9,1

243 548,0

2,65

28,8

66,8

4,5

8,1

Japão

91 724,3

3,01

19,5

72,2

8,3

9,7

OCDE

518 113,7

2,18

29,6

63,1

4,6

6,4

Itália Portugal Reino Unido Suécia Estados Unidos da América

Em paridade de poder de compra. Fonte: OCES (2003) e OCDE (2000a). 1

43

Não obstante o progresso verificado, os valores envolvidos mantêm-se bastante aquém dos registados noutros países desenvolvidos, quer em termos absolutos, quer relativos (quadro 2.5). Na compreensão desta situação um factor emerge com grande preponderância: a fraca participação do sector empresarial neste tipo de investimentos. Cerca de 70% do investimento é oriundo de fontes governamentais, rondando pouco mais de 20% o esforço financeiro protagonizado pelo sector privado (o valor mais baixo de toda a UE, apesar do crescimento recentemente verificado). A grande maioria dos investigadores a trabalhar no país concentram-se assim no sector público e no ensino superior. A maioria das unidades de I&D é de pequena ou média dimensão, e os seus graus de internacionalização, embora em dinâmica de rápido crescimento, são ainda bastante desiguais (EC, 2002; Conceição e Heitor, 2003). No entanto, se a situação registada no domínio do desenvolvimento científico, não obstante os fortes progressos, se apresenta ainda comparativamente desfavorável, maiores défices são conhecidos no que toca à produção tecnológica ou, em geral, à capacidade de inovação das empresas. O reduzido número de patentes registadas por entidades portuguesas é disso exemplo. Pese embora o forte crescimento verificado na década de 90, os níveis de patenteamento mantêm-se quase inexpressivos, muito em particular no que toca a produtos ou processos de elevada intensidade tecnológica (EC, 2002). E, ao contrário do que se passa na generalidade dos países desenvolvidos, em Portugal são as unidades de investigação, e não as empresas, o tipo de instituições que mais patenteiam, indiciando a fraca incorporação de actividades de inovação nas estruturas produtivas (Godinho, Mendonça e Pereira, 2003). Também a este respeito Portugal pode ser caracterizado como um “país dual”, onde um pequeno grupo de empresas fortemente inovadoras, dispondo de recursos humanos altamente qualificados, apostando em novos produtos e em múltiplas parcerias, co-existe a par de uma clara maioria de estruturas empresariais não inovadoras, regra geral de baixo perfil tecnológico, pouco cooperativas e com mão-de-obra pouco qualificada (Conceição e Heitor, 2003).

44

Quadro 2.6 Comparação europeia de alguns indicadores de inovação nas empresas, 1995-1997

País

Empresas inovadoras (%)

Despesas totais em inovação (% do volume de negócios)

Indústria

Serviços

Indústria

Serviços

69

46

4,1

3,0

Áustria

67

55

3,5

3,0

Bélgica

27

13

2,2

1,2

Espanha

29

--

1,8

--

Finlândia

36

24

4,3

2,4

França

43

31

3,9

1,3

Holanda

62

36

3,8

1,6

Irlanda

73

58

3,3

2,1

Noruega

48

22

2,7

2,5

Portugal

26

28

1,6

0,7

Reino Unido

59

40

4,0

3,2

Suécia

54

32

7,0

3,8

Alemanha

Fonte: Conceição e Ávila (2001).

Segundo o inquérito comunitário às actividades de inovação, lançado entre 1997 e 1998, pouco mais de 1⁄4 das empresas a operar no território nacional teriam introduzido no mercado ou nos seus sistemas produtivos, no período de 1995 a 1997, produtos, processos ou serviços tecnologicamente novos ou melhorados (quadro 2.6). A comparação com outros países europeus é tendencialmente negativa, ainda mais se se atender ao reduzido esforço financeiro realizado neste âmbito pelas empresas portuguesas ou aos próprios objectivos da generalidade das actividades desenvolvidas. O investimento em inovação centra-se muito frequentemente na aquisição de novos equipamentos ou na informatização, designadamente, dos sistemas administrativos e comerciais. Poucas vezes se traduz no desenvolvimento de produtos/processos próprios, sendo raro o estabelecimento de qualquer tipo de parceria, nomeadamente com instituições de I&D (Godinho e Sousa, 2000; Conceição e Ávila, 2001). Ainda assim, tendo em conta a situação anteriormente vivida é de ressalvar a considerável melhoria apontada por estes indicadores. 45

O desfasamento face aos padrões europeus de inovação é aliás mais significativo na indústria do que nos serviços. Por outro lado, alguns estudos têm salientado o facto de as maiores fragilidades das empresas portuguesas (e da própria administração pública) não se encontrarem ao nível da capacidade de inovação tecnológica, mas antes na resistência à mudança organizacional. É de considerar, no entanto, a emergência nos últimos anos de sectores muito mais propensos à mudança, nas suas várias vertentes, num processo que abre perspectivas mais positivas quanto à difusão da inovação em Portugal (Freire, 1998, Salavisa, 2000).

Níveis de escolaridade e competências de literacia: duas questões decisivas Os baixos níveis de qualificação da generalidade da população portuguesa e, em particular, da inserida no mercado de trabalho, apresentam-se como um dos principais obstáculos ao desenvolvimento, em Portugal, de uma sociedade de modernidade avançada (Machado e Costa, 1998) e de uma economia baseada no conhecimento (Conceição e Heitor, 2003) ou, nos termos da conceptualização de Manuel Castells (2002, 2003), à transição para a sociedade em rede. O processo de difusão da escolaridade básica universal foi bastante mais lento do que o registado noutros países europeus, mantendo-se durante boa parte do século XX uma política estatal (ditatorial) muito restritiva quanto aos processos de escolarização e um grande afastamento entre a escola e a generalidade dos cidadãos. Com a implementação do regime democrático, esta área de intervenção pública assume-se definitivamente como prioritária, alargando-se os níveis de escolaridade obrigatória (até aos 9 anos, actualmente ainda em vigor, estando previsto para breve um alargamento aos 12 anos), investindo-se na melhoria das infraestruturas educativas, promovendo-se a formação de professores e implementando-se um conjunto de sucessivas reformas do sistema educativo tendo em vista a obtenção de uma melhor resposta aos novos desafios da (ainda recente e incompleta) massificação do ensino. Tais mudanças têm estado contudo longe de ser consensuais entre os agentes educativos, e a eficácia do sistema de 46

ensino português é, ainda hoje, bastante questionada quando comparada com a de outros países. O esforço de investimento em educação aproximou-se bastante da média europeia (quadro 2.9), mas os índices de abandono e insucesso escolar mantém-se superiores aos dos outros países europeus (Sebastião, 1998). Quadro 2.7 Evolução dos indicadores de escolarização, Portugal, 1960-2001 Indicadores Taxa de analfabetismo (%)

1960

1970

1981

1991

2001

33,1

25,6

18,6

11,0

9,0

3,8

4,4

7,8

13,9

22,6

Homens com 20 ou mais anos com o ensino secundário completo1 (%)

--

5,7

8,6

14,4

21,9

Mulheres com 20 ou mais anos com o ensino secundário completo1 (%)

--

3,3

7,0

13,5

23,2

População que atingiu o ensino médio ou superior (%)

--

1,6

3,6

6,3

11,5

163 468

390 638

População com 20 ou mais anos com o ensino secundário completo1 (%)

Estudantes no ensino médio ou superior2

22 456

43 230

76 809

Estudantes do sexo feminino no ensino médio ou superior (%)

--

43,4

50,3

55,2

56,4

População dos 20-24 anos integrada no ensino médio ou superior (%)

1,7

3,5

5,8

11,8

25,6

O sistema de ensino português sofreu fortes alterações, pelo que a análise desta série temporal exige alguns esclarecimentos adicionais. Em 1960 era considerado ensino secundário o período do 5º ao 11ºano de escolaridade. Em 1970, o ensino preparatório (5º e 6º anos) está já autonomizado, traduzindo-se o ensino secundário em 5 anos de escolaridade (do 7º ao 11º). Em 1981, uma vez que os dados disponíveis já o permitiam, optou-se por considerar exclusivamente como ensino secundário o na época designado por secundário complementar (10º e 11º ano), modelo mais próximo do actual. Em 1991 e 2001 foi já integrado o 12º ano de escolaridade, consistindo o ensino secundário em 3 anos (10º, 11º e 12º). 2 Os valores apresentados revelam uma ligeira subavaliação em relação aos divulgados nas Estatísticas da Educação do INE. Esta diferença, relativamente constante ao longo da série considerada, pode dever-se ao facto de os valores dos Censos remeterem para declarações espontâneas dos indivíduos e os das Estatísticas da Educação se referirem ao número de inscrições formais em estabelecimentos de ensino superior. Fonte: Recenseamentos Gerais da População, INE. 1

De qualquer forma, é inegável que os níveis de escolaridade da população registaram progressos bastante significativos, muito em particular nas últimas duas a três décadas (quadro 2.7). No recenseamento de 2001, 47

mais de 22% dos residentes com 20 anos e mais tinham já completado, pelo menos, o ensino secundário. Este valor, embora bastante abaixo do registado noutros países, significa um enorme progresso face à situação vivida nas décadas anteriores. Basta referir que, em 1991, tal percentagem não chegava ainda, em termos médios, a 14%, mesmo assim quase o dobro do registado dez anos antes (Machado e Costa, 1998; INE, 2003). Expansão ainda mais significativa foi a registada no que toca ao ensino superior. Em 1970, não chegava a 2% o peso relativo da população que tinha frequentado um nível médio ou superior de ensino, mantendo-se o acesso às universidades circunscrito a uma pequena elite. Em 2001, tal percentagem ascendia já a 11,5%, fruto da forte adesão por parte da população jovem, muito em particular do sexo feminino. O progresso dos níveis de escolaridade das mulheres é aliás, em Portugal, bastante significativo. Embora nas faixas etárias mais elevadas estas mantenham níveis de qualificação académica mais baixos, nas mais jovens a situação inverte-se, sendo já maioritárias entre os estudantes e recém-diplomados do ensino secundário e superior. Portugal é assim um dos primeiros países europeus a inverter a tradicional hegemonia masculina nos níveis superiores de escolaridade (Machado e Costa, 1998). Os dados recolhidos directamente no âmbito do presente estudo confirmam este panorama, ilustrando de forma bastante evidente as diferenças geracionais no que respeita aos níveis de qualificação académica de homens e mulheres em Portugal (quadro 2.8). Considerando os indivíduos nascidos antes de 1974 – cujo percurso escolar se desenvolveu, na maioria dos casos, ainda no período ditatorial – verifica-se que parte bastante significativa (38%) não concluiu mais do que o 1º ciclo do ensino básico (ou seja, 4 anos de escolaridade). Quase 14% não obteve inclusivamente qualquer tipo de qualificação académica, valor que ascende a 18% no caso específico das mulheres. Entre os jovens com mais de 15 anos já nascidos no regime democrático a situação é bem diferente. Os casos de indivíduos com qualificações abaixo do 2º ciclo do ensino básico tornam-se raros, sendo, por outro lado, muito mais frequentes aqueles que se referem a diplomados do ensino secundário ou superior. De destacar, em particular, a elevada percentagem de jovens mulheres licenciadas – mais de 30% do total das mulheres com menos de 30 anos, quando entre os homens no mesmo escalão etário tal valor vai pouco além dos 20%. 48

Quadro 2.8 Qualificação académica segundo idade e sexo, Portugal, 2003 (%) Sem qualificação académica

1º Ciclo do Ensino Básico

2º Ciclo do Ensino Básico

3º Ciclo do Ensino Básico

Ensino Secundário

Ensino Superior

Homens

9,6

40,2

16,1

12,0

12,2

9,9

100,0

n=789

Mulheres

17,7

36,8

15,5

11,6

8,7

9,8

100,0

n=905

Total

13,9

38,3

15,7

11,9

10,3

9,9

100,0

n=1694

Homens

0,3

3,3

27,5

39,1

21,0

8,8

100,0

n=395

Mulheres

0,6

4,4

20,3

29,7

30,8

14,2

100,0

n=361

Total

0,4

3,8

24,1

34,7

25,7

11,4

100,0

n=756

Qualificação académica segundo idade e sexo

Nascidos até 1974

Nascidos em 1974 ou depois

Total

Fonte: CIES, Inquérito Sociedade em Rede em Portugal, 2003 (p
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