A subjetividade e a constituição do ethos de uma empresa verificados em uma comunicação de desastre

July 27, 2017 | Autor: Ana Lucia Magalhaes | Categoria: Rhetoric
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O filósofo e as paixões - 161


160 - O filósofo e as paixões




Para brevidade, o trabalho poderá se referir à Comunicação Empresarial como CE.
Ivy Lee foi um jornalista norteamericano que fundou o primeiro escritório de Relações Públicas. A Declaração de Princípios foi formulada quando John D. Rockefeller, com sérios problemas de imagem, o contratou para dar início a um novo tipo de relacionamento entre seu megaconglomerado e a sociedade.
Omitem-se o nomes devido a limitações judiciais e para preservar a privacidade, optando-se pelas denominações: réu, co-réu, vítima e testemunhas.
As memórias episódica e nocional fazem parte da memória de longo prazo. A episódica é individual e grava experiências pessoais, episódios da vida cotidiana enquanto a nocional (semântica) é geral, abstrata e socialmente compartilhada: entre indivíduos de um grupo ou da cultura como um todo.
Segundo Greimas, euforia é o termo positivo da categoria tímica (articula o semantismo ligado à percepção que o homem tem de seu próprio corpo) que serve para valorizar os microuniversos semânticos, transformando-os em axiologias e se opõe a disforia. Em outras palavras, eufórico está associado a um estado positivo em oposição a disfórico, estado negativo.
Representação mental, em psicologia cognitiva, é a forma de conhecimento de natureza memorial (levando em conta, de um lado, memória de trabalho, a curto e médio prazo e, de outro a memória de longo prazo) que, em interação com estudos sociolingüísticos permite aos estudos do processamento cognitivo diferenciarem representação social de representação individual.
Fairclough utiliza o termo tipo para se referir a diferentes linguagens. Bakhtin utiliza, em casos assim, o termo gêneros do discurso.
A resposta apocrítica ocorre quando se responde a uma questão que não suscita outras perguntas.
Auditório aqui representado pelos colaboradores.
Para os estoicos, virtuoso é o homem que se libertou inteiramente das paixões e atingiu a plena realização da perfeição humana por meio do logos.
O homem torna-se lobo do próprio homem
Seria a glândula pituitária.
http://www.fatecguaratingueta.edu.br/, acesso em 04/03/2012




A subjetividade e a constituição do ethos de uma empresa
verificados em uma comunicação de desastre
Introdução
Quando a Comunicação Empresarial adquiriu, no Brasil, status de especialidade no final dos anos 50, suas ações específicas se restringiam a grandes empresas. O amadurecimento da sociedade nas últimas décadas estendeu a abrangência da CE, que passou a ser objeto de interesse das empresas médias e até pequenas, além de tema de produção acadêmica.
Mesmo nas empresas de grande porte, a CE tem crescido em importância. É sintomático que a filial brasileira de pelo menos uma multinacional ter uma diretoria intitulada Comunicação Empresarial e Responsabilidade Social.
É hipótese deste trabalho que sob qualquer desses olhares a CE é importante agente para a constituição do ethos da empresa. A análise de um texto típico procurará evidenciar as questões da subjetividade e identificar suas marcas a partir do estudo dos subjetivemas, conforme colocado por Kerbrat-Orecchioni (1997, p. 91).
1. O discurso da Comunicação Empresarial
É preciso compreender primeiramente quais as características marcantes do discurso a ser analisado. Essa tarefa exige capacidade de abstração, pois não se pode afirmar que exista um gênero associado ao discurso da empresa, uma vez que neste domínio, variadas são as formas de comunicação que veiculam as informações: sites, blogs, twitter, jornais, revistas, mural, circuito interno de TV e outros. Naturalmente a comunicação não se restringe a estes documentos mais ligados à linguagem jornalística, mas abrange também uma vertente administrativa, composta por cartas, ofícios, relatórios, memorandos, atas, e outra vertente ligada a relações públicas. Para efeito deste trabalho, abordaremos a primeira delas.
Existe um ponto comum entre os documentos veiculados na primeira vertente: a utilização de linguagem jornalística. Tal afirmação é particularmente importante para que se evite a confusão existente entre a publicidade – que faz parte da comunicação integrada – e a CE conforme entendida aqui – mais ligada ao aspecto objetivo da informação. De qualquer forma, para que a imagem da empresa se firme, há necessidade de uma proximidade com o logos, ou seja, para evitar perda de credibilidade potencialmente irreversível, é preciso que o ethos corresponda aos fatos, por isso a CE apresenta também um viés objetivo.
Sendo assim, é de se esperar que a CE se aproxime do discurso jornalístico, ou seja, com predominância da objetividade. Clareza, concisão, veracidade e consistência são características desse discurso, afinal a ausência de contradições é necessária para a construção de uma imagem positiva da empresa.
Existe consenso de que o início da CE tal como é conhecida hoje no Brasil ocorreu a partir da declaração de princípios do jornalista Ivy Lee, que enfatizava esse caráter de veracidade, conforme a seguir:
Isto não é um gabinete de imprensa secreto. Todo o nosso trabalho é feito às claras. O nosso objetivo é fornecer notícias. Não somos uma agência de publicidade; [...] O nosso trabalho é exato [...] e qualquer editor será apoiado, com o maior empenho, na verificação de qualquer afirmação factual. Aos inquéritos serão fornecidas informações completas para qualquer editor [...] o nosso plano é fornecer franca e abertamente em nome das preocupações dos negócios e das instituições públicas, informação rápida e exata à imprensa e ao público dos Estados Unidos, relativa a assuntos que sejam de valor e interesse para o público conhecer.

Com base no texto (grifos nossos), é possível supor que, em linhas gerais, o cerne da CE seja objetivo, ligado à comunicação do fato, à clareza, transparência, à completude de informação e à verdade.
É sabido, no entanto, que não existe discurso isento de subjetividade e isso se aplica até mesmo ao texto científico. Benveniste afirma que a subjetividade é inerente ao sujeito. Assim, a CE precisa lidar de algum modo com essa constatação.
2. Marcas de subjetividade na comunicação empresarial
Conforme Kerbrat-Orecchioni (1997, p. 45), o estudo da subjetividade é uma contribuição para pesquisas voltadas às várias formas de comunicação: conceitos e valores variam de cultura para cultura, de indivíduo para indivíduo e a percepção de mundo, experiências e mesmo objetivos pessoais influem na enunciação, particularmente na axiologia. O discurso não pode ser entendido como simples produção de linguagem – apresenta uma complexidade derivada principalmente de seu aspecto subjetivo, que permeia a construção de frases e a escolha das palavras.
Embora o texto do jornalista pretenda ser objetivo e os grifos fortalecem essa intenção do autor, é possível verificar a forte presença da subjetividade constatada logo no início, no momento em que o narrador assume o papel de "ator do discurso (Benveniste). O fato de Ivy Lee afirmar que não se trata de "gabinete de imprensa secreto" não garante, por exemplo, que haja abertura. No nível discursivo a afirmação é possível, mas a prática pode ser diferente.
A presença de adjetivos e advérbios enfatiza o caráter subjetivo: "às claras", "exato", "franca" e "abertamente", "rápida" e "exata", "de valor e interesse". A qualificação e os reforços ao serviço prestado por essa empresa foram assim determinados por quem? Quem é o sujeito que as enuncia? Quem assim os elegeu? Existe, portanto, um ator ou sujeito da enunciação que determina, enuncia e elege tais informações como verdadeiras.
O último parágrafo da declaração demonstra ainda maior grau de subjetividade.

As empresas e as instituições públicas fornecem para fora muita informação na qual o valor-notícia se perdeu de vista. No entanto, é tão certo como importante para o público ter as notícias como é para as firmas fornecer as notícias de forma exata.

No momento em que o autor afirma que "o valor notícia se perdeu em meio às muitas informações veiculadas por empresas e instituições públicas", pode-se entender, por exemplo, que se trata da totalidade delas. Porém é esperado que o leitor intua que não se trata de todas as empresas. Há implícitos importantes nesse período: a declaração conta com o conhecimento prévio do leitor. Embora o leitor deva imaginar que o autor esteja se referindo a algumas, não há indícios textuais. Essa é, portanto, uma informação bastante subjetiva.
A comparação colocada no segundo período exige esforço do leitor. Como não fica claro o motivo pelo qual seja importante e certo que o público precise de notícias da empresa, o leitor precisará recorrer novamente ao seu conhecimento prévio.
Outro paradoxo se faz presente: é interessante notar que o texto, que se propõe objetivo, torna-se mais subjetivo quanto mais objetivo tenta ser. Isso porque o autor, na ânsia de fazer evidenciar tal objetividade, passa muito mais a sua crença do que a práxis. Em outras palavras, ele quer fazer-crer que o gabinete de imprensa que dirige é produtor de verdades. Esse fazer-crer discursivo é essencialmente subjetivo. Um olhar mais atento é capaz de observar, subjetivamente, muito mais a opinião do autor do que propriamente um texto objetivo.
Embora não se possa afirmar que determinadas classes gramaticais sejam produtoras de subjetividade, Orecchioni mostra por quais mecanismos algumas delas podem produzir diversidade de sentido. Denomina-as de subjetivemas, algumas classes gramaticais que, em determinada circunstância, tornam o texto mais ou menos subjetivo. O estudo desses subjetivemas serve, neste trabalho, para reforçar o caráter subjetivo do discurso e, como consequência, auxilia na elaboração do ethos da organização.
Assim, Kerbrat-Orecchioni, em continuidade ao trabalho de Benveniste, inventariou e descreveu os lugares da subjetividade além de elencar seus marcadores com distinção entre termos afetivos, avaliativos, axiológicos, não axiológicos e modalizadores.
Segundo a autora, toda unidade léxica é, em certo sentido, subjetiva, pois as palavras da língua são símbolos que substituem e interpretam as coisas. O mundo não é isomórfico, ou seja, não houve uma atividade denominativa que etiquetasse os objetos. Assim, as produções discursivas recortam à sua maneira o universo referencial, impõem uma forma particular à substância do conteúdo e organizam o mundo por abstração. As classes gramaticais denominadas como subjetivemas são: o substantivo, o adjetivo, o verbo e o advérbio.
Segundo a autora (1997, p. 96), os substantivos podem ser encontrados em situação específica de conotação simplesmente axiológica ou estilística, ou seja, são localizados em um significado de determinada unidade léxica inscrita em nível de representação referencial. Nesse contexto, a instabilidade das aplicações axiológicas existentes nas competências lexicais se deve às competências ideológicas que as refletem no enunciado. É evidente que não se pode analisar o funcionamento dos axiológicos sem considerar seus efeitos quando inseridos em determinado contexto discursivo. Entretanto, é possível considerar seu valor semântico e sua função pragmática quando analisadas a sua frequência e as categorias positiva e negativa de forma variada, empregadas em conformidade com a perspectiva ilocutória global do discurso a que pertence.
Kerbrat-Orecchioni (1997, p. 112), a exemplo do que estabelece para os substantivos, enfatiza a relatividade na utilização dos adjetivos considerando que são selecionados por um enunciador e, dessa forma, impregnados de subjetividade. Assim, os significados desses adjetivos dependem do enunciador. Ela distingue, em primeiro lugar, duas categorias de adjetivos: os "objetivos", que exprimem uma realidade que independe de julgamento (solteiro, casado, masculino...) e os "subjetivos", que implicam uma reação emotiva. Os subjetivos, por sua vez, subdividem-se em: "afetivos", que exprimem sentimento experimentado pelo enunciador (pungente, esquisito, patético) e os "avaliativos", que exprimem uma apreciação. Os avaliativos podem ser axiológicos, que enunciam apreciação sobre determinada qualidade de um ser/coisa ou sobre um julgamento de valor (bom, belo, elevado) e não-axiológicos: grande, distante, quente, numeroso. É importante salientar que, por meio da investigação desses adjetivos, é possível conhecer o enfoque dos enunciadores.
Os verbos para a autora (1997, p. 131) revelam a subjetividade inerente do enunciador, assinalando sua interpretação sobre o fragmento selecionado e incorporado ao discurso citante. A autora divide os verbos subjetivos em "ocasionalmente subjetivos", que exprimem uma disposição do sujeito, favorável ou não, diante do processo enunciativo, e verbos "intrinsecamente subjetivos", que implicam uma avaliação que tem sempre como fonte o sujeito da enunciação. Assim como ocorre com os adjetivos, a pesquisa desses verbos leva ao enfoque dos sujeitos participantes da enunciação.
Os advérbios admitem também uma participação emotiva e afetiva do enunciador. Por essa razão é impossível desconsiderá-lo como classe de modalizadores valorizantes. Ao analisar sua atuação como modalizador, apresentam sua avaliação caracterizada no verdadeiro/falso/incerto. Podem oferecer todos os tipos de unidades subjetivas, sejam eles afetivos, axiológicos ou avaliativos, todavia, se encontram representados por uma classe especial de enunciação e de enunciado
3. Ethos
Historicamente Isócrates parece ter sido o primeiro filósofo a se preocupar com o conceito de ethos quando comenta em Elogio a Helena que a novidade do discurso não é um valor em si e não pode ser dissociada da harmonia entre os períodos, da sintaxe clara bem articulada aos elementos acessórios. Para o filósofo, o discurso une elegância, originalidade e clareza; distingue seu enunciador e a linguagem é o ponto capital que diferencia os homens dos animais, os cidadãos de estilo mais elevado dos que se contentam com o falar cotidiano.
Enquanto Platão se utilizava de uma linguagem matemática, lógica, impessoal e fria (Diálogos), para Isócrates o discurso deve ser belo, agradável aos ouvidos, harmonioso. Em Platão não há lugar para o ethos, pois a Verdade, uma vez universal, não dependeria de contexto ou do indivíduo que a enuncia.
Isócrates dá, então, o primeiro passo na direção do estabelecimento do ethos discursivo ao comentar sobre a necessidade de uma linguagem bem cuidada em oposição a instrumento para alcançar a Verdade. Tal necessidade soma-se ao ser ético na elaboração do discurso, e à construção do orador como sujeito distinto em relação a seus pares. Daí, portanto, a preocupação com a reputação do orador. Amossy (2004, p. 220) e outros estudiosos consideram Isócrates o primeiro a tratar do ethos, embora sob perspectiva diferente da de Aristóteles, o sistematizador da Retórica.
Sob a perspectiva retórica de Isócrates, seguida pela retórica latina, principalmente por Quintiliano, o elemento central na persuasão do ouvinte é o ethos do orador, entendido a partir de dois elementos: sua reputação no meio social e a qualidade do seu discurso. Bons oradores, portanto, são os que possuem um ethos que os torna dignos de confiança e cuidam do seu discurso. Nesse sentido, foi o primeiro a propor um nexo causal entre caráter e discurso.
Aristóteles, filósofo que sistematizou a Retórica, dedicou especial atenção ao ethos do orador. Concorda que o ethos se molda por meio de qualidades morais do orador, mas não é fruto da imagem pública, exterior ao discurso. Enquanto em Isócrates tais qualidades morais moldam o discurso, em Aristóteles o discurso constrói o orador. O ethos, assim, é discursivo, decorre da enunciação, é o caráter construído por meio do discurso.
Na retórica de Cícero, versão simplificada da retórica de Aristóteles para o grande público segundo Barthes (1975, p. 97-98), o orador romano também se refere ao ethos (orador), pathos (auditório) e logos (discurso), dos quais o primeiro seria o elemento mais importante. O caráter mostrado pelo orador é, assim, essencial para obter persuasão, mas está subordinado ao pathos, uma vez que sua função é emocionar o auditório. A preocupação de Cícero está em uma eloquência fundada em dois aspectos: ético, porque relacionado à conduta do orador e patético, porque busca a adesão pela emoção.
Até o século XVI as ideias de Isócrates foram aceitas e o ethos ora se baseia na figura do orador (Cícero, Isócrates), ora no discurso (Aristóteles). De qualquer forma, a Retórica entrou em decadência naquele século, provocada pela ascensão da burguesia e pelos tempos de guerra.
Conforme se observa, o ethos é distinto dos atributos "reais" do locutor, embora esteja ligado a ele à medida que este locutor esteja na fonte da enunciação. É do exterior que o ethos caracteriza esse locutor. O destinatário atribui a um locutor inscrito no mundo extradiscursivo traços que são, em realidade, intradiscursivos já que associados a uma maneira de dizer, embora não estritamente "intradiscursivos", pois interferem também na sua elaboração dos dados externos à fala propriamente dita (mímica, roupa e outros).
Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da identidade. Cada tomada de palavra por sua vez, faz com que sejam levadas em conta, tanto as representações que fazem um do outro os parceiros como também a estratégia da fala do locutor que orienta o discurso de maneira a que se forme certa identidade por meio dele.
Ao se falar sobre representações, o ethos se aproxima dos papéis sociais, embora não se limite a eles. O que se teorizou até o momento parece referir-se a pessoas, ao falante que diz o discurso, porém é possível ampliar esses conceitos e aplicá-los a grupos de pessoas.
É sabido que as relações organizacionais são estabelecidas a partir da comunicação exercitada na empresa e isso inclui um contexto social formado por seus públicos (interno e externo), ao mesmo tempo que ocorre no domínio discursivo: trabalha-se no terreno das estratégias discursivas presentes nos textos que pretendem estimular certo efeito de sentido: convencer e persuadir um comprador a adquirir um produto ou serviço, por exemplo, é uma estratégia discursiva.
Se tomarmos a empresa em sua natureza relacional, é possível afirmar que suas bases estão focadas nos processos comunicacionais estabelecidos e mantidos com os mais diversos públicos. Já não se considera tais processos apenas em seu aspecto informativo, mas que, como constituinte do indivíduo, sua força resida em um agenciamento de sujeitos.
A visibilidade como elemento estratégico é hoje uma realidade buscada pelas organizações. Em outras palavras, "mostrar-se" tornou-se ação vital para o sujeito organização.
Se considerarmos a empresa como sujeito da enunciação, como enunciador, como aquele que diz algo, podemos aplicar ao seu discurso os conceitos de subjetividade comentados no início deste capítulo, os papéis sociais e a própria constituição do ethos.
4. As notas sobre o acidente da Air France – o ethos constituído
Lembremos o início deste trabalho no que concerne às vertentes da comunicação empresarial. Dissemos que uma delas, de cunho jornalístico, embora supostamente marcada pela objetividade, caracteriza-se também pela subjetividade.
Partindo do pressuposto que as notas sobre acidentes publicadas na mídia fazem parte dessa vertente jornalística da empresa, e que a empresa pode ser considerada como sujeito da enunciação, procuraremos mostrar, por meio das notas de acidente da Air France que este veículo é capaz de construir o ethos da empresa.
O trabalho mostrará três notas da Air France sobre o acidente com a aeronave que efetuava o voo AF 447 entre Brasil e França em 01 de junho de 2009. As três notas foram emitidas com intervalo de quatro horas e quarenta minutos.
Outras notas foram enunciadas por parte da França e do Brasil: governo francês, governo brasileiro, órgão regulador do espaço aéreo brasileiro, Força Aérea Brasileira e outros, porém este trabalho focará as que veiculam a voz da empresa Air France. Evidentemente as comunicações dos governos e dos outros órgãos comprovam a força argumentativa do discurso da empresa. Órgãos governamentais também são organizações e, como tal, constroem, reconstroem, mantém e procuram melhorar sua imagem.
A empresa emitiu três notas: a primeira delas, às nove horas e sete minutos do dia primeiro de junho de 2009, a segunda, às onze horas e doze minutos e a terceira, às treze horas e quarenta e nove minutos. Essa preocupação com a emissão de notas oficiais já se configura como preocupação em manter uma imagem.
Pretende-se comprovar que as notas da Air France – típicas do discurso empresarial que se caracteriza por veicular fatos – são, no entanto, portadoras de subjetividade, são o produto de papéis sociais determinados e constroem o ethos da empresa.
Primeira Nota da Air France sobre acidente: (01/06/09 - 09h07)
Air France lamenta informar que se encontra sem notícias do voo AF 447 que efetuava a ligação entre Rio de Janeiro e Paris Charles de Gaulle, com chegada prevista às 11h15 da manhã (hora local).
O vôo decolou do Rio no dia 31 de maio às 19 horas locais.
216 passageiros estão a bordo.
A tripulação é composta de 12 pessoas: 3 tripulantes técnicos e 9 comissários.
Um toll free está disponível :
0800 881 2020 para o Brasil
0800 800 812 para a França,
e + 33 1 57 02 10 55 para outros países
A Air France divide a emoção e a inquietação das famílias envolvidas. Os familiares serão recebidos num local especialmente reservado no aeroporto de Paris Charles de Gaulle 2 assim como no Salão Nobre do Galeão.

A primeira nota parece objetiva em uma primeira leitura. É clara, concisa e demonstra objetividade por meio de marcadores discursivos de tempo e lugar, além da utilização de numerais para reforçar o caráter de isenção:

[...] o vôo AF 447 que efetuava a ligação entre Rio de Janeiro e Paris [...] às 11h15 (hora local). O voo decolou do Rio no dia 31 de maio às 19h locais. 216 passageiros estão a bordo. A tripulação é composta de 12 pessoas: 3 tripulantes técnicos e 9 comissários.

A escolha lexical evidenciada por meio da exatidão dos horários, pela colocação do número certo de passageiros e pela descrição numérica dos tripulantes constitui evidência de que não pretende esconder informações. Esses marcadores conferem um caráter veridictório a esse discurso: a imagem de seriedade parece real e precisa se comprovar retoricamente, para que não haja perda de credibilidade.
Tal escolha, no entanto, a partir de leitura mais cuidadosa conduz a aspectos subjetivos, assim, a utilização de adjetivos e a presença de alguns substantivos, advérbios e até mesmo verbos reforçam a subjetividade.
Logo no primeiro parágrafo, o texto pretende uma proximidade com o auditório por meio de severo apelo ao pathos "A Air France lamenta informar que se encontra sem notícias [...]".
Embora escrito em terceira pessoa para demonstrar distanciamento, há uma personificação da empresa. À Air France são atribuídas características próprias do indivíduo – lamentar não é atributo de pessoa jurídica.
É intenção construir e preservar o ethos de empresa séria, íntegra, sólida em seus propósitos.
Se os substantivos reforçam o sentido de verdade (notícias, vôo, tripulação, passageiros), alguns substantivos afetivos aí presentes são sempre derivados de verbos ou adjetivos e emitem juízos apreciativos com a finalidade de passar proximidade, por isso demonstram subjetividade.
Outros substantivos subjetivos, também associados à afetividade, são encontrados em três grandes parágrafos da nota. Aliás, a nota se constitui de dois parágrafos de uma frase (aparentemente mais objetivos) e três com várias frases cada (mais subjetivos).
Ênfase deve ser dada aos substantivos família e familiares, que focam forte presença de pathos desse discurso.
Texto de poucos adjetivos, os que aparecem estão impregnados de subjetividade. e ligados ao aspecto mais sério e factual. Assim "local reservado" e "telefone de emergência" conferem o tom de seriedade e respeito ao cliente que o momento requer. O adjetivo "técnico" (em tripulantes técnicos) é específico para demonstrar que não é intenção omitir qualquer fato. Assim o ethos é, mais uma vez, reforçado.
Os verbos, reveladores da subjetividade inerente ao enunciador, são abundantes em comparação ao tamanho do texto. Os verbos: informar, encontrar (se encontra sem notícias), efetuava (a ligação entre Rio e Paris), estão (a bordo), quem estiver (na França) pretendem ser indicativos objetivos, mas acabam por reforçar, subjetivamente, o ethos de confiabilidade. Marcam, por outro lado, a posição da empresa: embora ainda não saiba o que ocorreu, avisa seu público dessa aparente fragilidade.
Por outro lado, os verbos: lamentar (em a Air France lamenta informar), dividir (em divide a emoção e inquietação), (famílias) envolvidas, disponibilizar (telefones para informações) são efetivamente subjetivos e apelam novamente ao pathos do auditório. Nesse sentido, auxilia na construção do caráter de preocupação com os clientes, constitutivo do ethos da empresa.
Utilizados sempre na ordem direta, demonstram disposição para a ação: lamenta, se encontra, decolou, estão, é composta, divide, serão recebidos, disponibilizou. Não há utilização da voz passiva, o que fortalece a intenção do enunciador.
É interessante notar o presente do indicativo na oração "216 estão a bordo", seguida de "a tripulação é composta de 12 pessoas [...]", que transmite, implicitamente, a vontade, a crença, de que todos estejam vivos.
O único advérbio presente no texto – especialmente (reservado) – refere-se também à preocupação com o cliente e é altamente subjetivo ao demonstrar o ethos de empresa solidária com os sentimentos das famílias – seus clientes potenciais.
Ao dizer "A Air France lamenta informar que se encontra sem notícias", o texto procura amenizar possível incapacidade. Ao contrário, o enunciado apresenta um enunciador em situação de impossibilidade e anula o efeito de incapacidade. O ethos é, mais uma vez, fortalecido: ao evitar a utilização do advérbio de negação transmite uma atitude de proatividade, de tomada de iniciativa.
Em síntese, há uma personificação da empresa com a utilização, no primeiro parágrafo, de verbos característicos de indivíduos. Na prática, não cabe a uma pessoa jurídica lamentar. Pode-se dizer que o discurso dos gestores da Air France se vale da sinestesia, figura retórica, para dar início à criação de uma imagem positiva. Forte apelo ao pathos, em atitude de buscar a adesão pela emoção.
Ao determinar local, momento, data e hora em que o vôo decolou, o discurso se distancia de qualquer compromisso com o papel social da empresa. A afirmação de que "o avião decolou" sugere que essa verdade é irrefutável. O que veio depois, não se sabe.
Ao informar sobre o número de passageiros e da tripulação (216 passageiros estão a bordo; a tripulação é composta de 12 pessoas) nos parágrafos 2 e 3, a nota pretende captar o auditório pelo logos, pela verdade, pelo conhecimento, características típicas do discurso empresarial de cunho jornalístico. É de se pensar, por outro lado que, a presença da tripulação estabelece um vínculo familiar com a empresa e pode-se pensar que ela estaria isenta de culpa pelo acidente.
Restabelece-se o tom intimista no quarto parágrafo, em esforço de solidariedade. Trata-se da busca por adesão pelo pathos. A empresa sofre uma personificação nas orações "A Air France divide a emoção e a inquietação". Empresas não são portadoras de sentimentos, mas são invisíveis, intangíveis, são criações artificiais.
Assim, os termos "emoção" e "inquietação" que aparecem no quarto parágrafo, próprios de indivíduos, são associados à Air France com finalidade de construir um ethos solidário com os sentimentos de seus clientes.
No quinto parágrafo a empresa indiretamente se coloca à disposição ao criar um "local especialmente reservado" aos familiares, àqueles que se encontram aflitos, ansiosos. O tom intimista persiste até o final da nota: números de telefones são disponibilizados especialmente para atender não só aos dois países mais afetados (Brasil e França), como a outros que estejam interessados.
Embora não se fale em acidente e a empresa deixe isso claro no primeiro parágrafo, todo o resto da nota é construído nessa direção. Os verbos são claros nesse sentido: lamenta, divide (emoção e inquietação). Não existe um texto objetivo que diz "nada houve". Por outro lado também não existe um texto que afirma ter havido acidente. Embora não exista certeza de tragédia, tal possibilidade está implícita nos termos escolhidos, na construção discursiva e no conhecimento de mundo do auditório e da própria empresa.
O ethos é construído com a finalidade de minimizar possíveis marcas na imagem da empresa.
Aparentemente claro e objetivo, o texto se caracteriza pela subjetividade, que constrói o ethos de empresa séria, idônea, com gestores preocupados com seus clientes. Em princípio com base no logos, no aspecto factual da ocorrência, o discurso é, em realidade, construído com elementos típicos do pathos em sua maior parte. Mesmo as duas orações mais objetivas deixam passar implícitos: "nossos colaboradores também estão no voo". O que o discurso transmite é "se eles também estão no voo, fazemos parte de um mesmo grupo, com as mesmas preocupações e angústias". Assim, o grupo social familiar se expande.
É preciso lembrar o que Meyer sustenta a respeito do logos. Não se trata apenas do dizer lógico-científico, mas a linguagem reportada no discurso da Air France permite ler afirmações (explícitas), interrogações (implícitas) e ausência de respostas.
As afirmações explícitas estão distribuídas nos parágrafos e referem-se ao que existe de literal: número de pessoas, passageiros, número do voo, local, data, providências. As interrogações implícitas suscitadas são: o que ocorreu com a aeronave? É possível que não tenha ocorrido algo de muito grave? Quando haverá notícias concretas? A aeronave estava em boas condições? Os tripulantes estavam capacitados? Há algo que a empresa saiba que não possa ser revelado? Se tiver ocorrido um acidente, é possível haver sobreviventes? Há algo que possa ser feito? Não há respostas no texto.
Dessa forma, a empresa pretende transmitir um ethos de sinceridade ligado ao não-saber e não-poder.
Conforme verificado, a sociedade, em postura pragmática, forma suas opiniões a partir das ações das organizações em situações avaliadas e interpretadas. No texto da Air France é possível identificar um discurso humanizado. Posturas são identificadas e papéis são assumidos a partir do pragmatismo da situação e da reconstrução de processos. Não há ainda uma identificação com o discurso jurídico, que se defende de fatos passados; nem com o epidítico, que versa sobre as qualidades ou defeitos de um sujeito. Resta, então, identificá-lo com o discurso deliberativo ou demonstrativo. Nesse sentido, com base em classificação de Meyer, trata-se do gênero deliberativo, de problematicidade máxima, em que domina o caráter de utilidade e as questões são de natureza duvidosa, sem critério de resolução.
De acordo com o interacionismo simbólico, pessoas atuam com referência umas às outras, em termos dos símbolos desenvolvidos por meio da interação simbólica. Esse processo dinâmico é mostrado socialmente na nota da Air France por meio da preocupação com os familiares, afinal a sociedade não existe sem o homem e este não existe sem a sociedade. O papel social da Air France, no momento do suposto acidente (suposto porque, segundo a primeira nota, apenas não se tem notícia), é o de acalmar as famílias e solidarizar-se com o sentimento de aflição.
O processamento verbal escrito refletido em toda a nota ressalta a importância do papel social da empresa, de seu comportamento:

[...] lamenta informar que se encontra sem notícias; [...] o vôo decolou no dia [...] a tripulação é composta de [...]; a Air France divide a emoção e a inquietação das famílias [...]; local especialmente reservado [...]

O texto da Air France não se desculpa. Antes, coloca-se à disposição dos familiares em franca atitude de interação social em momento de inquietação. Faz o possível para minimizar a aflição do grupo social família.
Evidentemente a ação retórica se faz sentir nesse discurso. Fortemente associada ao pathos, procura criar na mente do leitor o sentimento de solidariedade e empatia e amplia, assim, o reconhecimento de uma realidade criada a partir do discurso. Por força retórica, procura despertar no auditório um sentimento de conforto.
O discurso da Air France, por meio de símbolos e por ser social, procura desenvolver representações internas e externas no auditório com intenção de movê-lo, de convencê-lo ou persuadi-lo de que se solidariza. Nesse sentido a construção textual, através da qual a comunicação se efetiva, vai além do simples reconhecer de símbolos e considera os elementos externos à língua que os influenciam diretamente.
Por privilegiar aspectos cognitivos e sociointeracionais do discurso, o processamento das informações articula o sistema linguístico com o sistema cognitivo do homem, de forma a produzir proposições. Ao valer-se das especificidades textuais, a nota da Air France age na representação de mundo de seu auditório.
Consciente ou inconscientemente, os locutores provocam experiências diversas no auditório. As representações mentais sociais ou individuais são a maneira de os indivíduos experienciarem o mundo, por isso, no texto mostrado, os sentidos são construídos na mesma medida em que as representações mentais. Em outras palavras, é possível dizer que o auditório constroi o sentido ético da empresa com base nas suas próprias convicções, em seu conhecimento de mundo, em seu acervo cultural e específico. Tudo é criado para incutir na mente do auditório, a partir também das representações possíveis e com esperanças de encontrar, nele, receptividade para as suas crenças.
Nesse sentido, é interessante notar que o discurso da Air France, embora procure informar números, local, hora, dados enunciadores de verdades, deixa transparecer crenças e não verdades. No instante em que se fala em crenças e não verdades, pois a nota demonstra mais sentimentos do que informações, é de se supor que a intenção do discurso seja passar o verossímil, a opinião e o provável. Por meio da sugestão e de inferências, institui um sentido novo ao que diz: supõe-se que seu papel social seja mesmo o de solidarizar-se, em atitude ética. A empresa não mente, age sobre as representações sociais, de certa forma, em favor de sua causa. Pretende a interação. Não lhe cabe, no momento, outro papel.
Assim, a nota evidencia-se como social porque dirigida a um grupo (especialmente familiar); cognitiva porque apela aos conhecimentos de mundo dos leitores; simbólica porque construída com palavras; interacional porque engloba complexidade e interação entre vários setores.
O ethos é construído a partir de um movimento solidário (a tripulação também está na aeronave), de demonstração de sinceridade (a empresa está sem notícias), de fornecimento de informações reais (hora de partida, número de pessoas, tipo de aeronave). Existe ainda um aspecto ligado ao pathos, que perpassa toda a nota e culmina no último parágrafo, com reforço de empresa idônea: disponibilização de espaço reservado à família dos passageiros e de linhas telefônicas para informações.
Segunda Nota da Air France sobre acidente: (01/06/2009 – 11h12)
A Air France lamenta informar o desaparecimento do voo AF 447 que efetuava a ligação entre Rio de Janeiro e Paris-Charles de Gaulle, chegada prevista às 11h10 (hora local), acaba de anunciar o Diretor Geral da Air France, Pierre-Henri Gourgeon. A aeronave, do tipo Airbus A330-200, matrícula F-GZCP, deixou o Rio dia 31 de maio às 19h03 (hora local).
A aeronave atravessou uma zona de tempestade com fortes turbulências às 2 horas da manhã (horário TU) – 23 horas horário do Brasil. Uma mensagem automática foi recebida às 2h14 da manhã (horário TU = 23h14 horário do Brasil) indicando uma pane do circuito elétrico numa zona afastada da costa. O conjunto dos controles aéreos civis brasileiro, africano, espanhol e francês tentaram em vão estabelecer contato com o voo AF 447. O controle aéreo militar francês tentou detectar o avião, sem sucesso.
216 passageiros estão a bordo: 126 homens, 82 mulheres, 7 crianças e um bebê. A tripulação é composta por 12 pessoas: 3 tripulantes técnicos e 9 comissários. O comandante tem 11 mil horas de voo e já tinha efetuado 1.700 horas no Airbus A330/A340. Os dois co-pilotos possuem: um 3.000 horas de voo, sendo 800 horas em Airbus A330/A340 e o outro 6.600, sendo 2.600 em Airbus A330/A340.
A aeronave é equipada de motores General Electric CF6-80E. O avião tem um total de 18 870 horas de voo e começou a operar em 18 de abril de 2005. A última visita de manutenção em hangar foi feita em 16 de abril de 2009. A Air France divide a emoção e a inquietação das famílias envolvidas.
Os familiares serão recebidos num local especialmente reservado no aeroporto de Paris Charles de Gaulle, assim como no Salão Nobre do Aeroporto Internacional do Galeão, localizado no 1º do prédio da administração.
Números toll free estão disponíveis:
Para todo o Brasil: 0800 881 2020;
Para a França: 0800 800 812;
Para outros países: + 33 1 57 02 10 55

A segunda nota apresenta partes da primeira e acrescenta outros dados.
O primeiro parágrafo da segunda nota da Air France, emitido duas horas após a primeira, mantém o estilo e admite que a aeronave está desaparecida. Repete quase com os mesmos termos do texto anterior, porém instaura um porta-voz efetivo. O anúncio feito pela pessoa do Diretor Geral e a identificação de seu nome atestam compromisso com o aspecto factual e fornece, dessa forma, credibilidade. Como na nota anterior, ainda é a voz da empresa, porém aqui há um comprometimento maior com os públicos, por isso o nome do diretor geral, autoridade máxima da empresa.

A Air France lamenta informar o desaparecimento do voo AF 447 que efetuava a ligação entre Rio de Janeiro e Paris-Charles de Gaulle, chegada prevista às 11h10 (hora local), acaba de anunciar o Diretor Geral da Air France, Pierre-Henri Gourgeon. A aeronave, do tipo Airbus A330-200, matrícula F-GZCP, deixou o Rio dia 31 de maio às 19h03 (hora local).

Referências sobre a aeronave são acrescentadas e, no segundo parágrafo, há um relato minucioso do itinerário do vôo até o seu desaparecimento.

A aeronave atravessou uma zona de tempestade com fortes turbulências às 2 horas da manhã (horário TU) – 23 horas horário do Brasil. Uma mensagem automática foi recebida às 2h14 da manhã (horário TU = 23h14 horário do Brasil) indicando uma pane do circuito elétrico numa zona afastada da costa. O conjunto dos controles aéreos civis brasileiro, africano, espanhol e francês tentaram em vão estabelecer contato com o voo AF 447. O controle aéreo militar francês tentou detectar o avião, sem sucesso.

A utilização de números enfatiza o caráter veridictório, ou seja, o enunciador pretende demonstrar exatamente o que sabe, fala sobre o que tem certeza. Aqui já é possível considerar a hipótese de um discurso jurídico de defesa.
As informações sobre tempo (2 horas, 23 horas, 2h14, 23h14) são precisas. Em "uma mensagem automática foi recebida às 2h14", há exatidão até no número de minutos. Conforme comentado, Perelman explica que o par aparência-realidade nasceu de certas incompatibilidades entre aparências, uma vez que estas não podem ser todas consideradas expressão da realidade. Enquanto às aparências é facultado se oporem, o real é coerente, ou seja, seu efeito é dissociar, entre as aparências, as que são enganosas das que correspondem ao real. Esse ponto torna o discurso altamente argumentativo: se o real é o coerente, o não enganoso, a aparência seria o ilusório. De qualquer forma, o texto da empresa precisa sustentar-se, ao menos em parte, em fatos, na realidade.
Nesse sentido, o discurso da Air France apresenta-se com forte componente de realidade, ou seja, busca sustentar-se em argumentos com base no real.
No entanto, não consegue desvencilhar-se da subjetividade, elemento constitutivo do discurso, conforme concepção de Benveniste, anteriormente comentada. O estudo dos subjetivemas elaborados por Orecchioni auxiliam novamente a observar a constituição subjetiva do ethos da Air France.
Os substantivos tempestade, turbulências e pane, presentes, embora pareçam objetivos porque representam fatos, são constituintes de subjetividade. É possível enquadrá-los em avaliativos não axiológicos, conforme classificação proposta por Orecchioni, ou seja, não correspondem a uma posição clara. Percebe-se que a intenção na escolha desses substantivos é fortalecer a isenção da empresa: talvez tenha havido o acidente por "culpa" da tempestade, das turbulências que eram fortes, da pane no circuito elétrico. Aliás, a colocação desses substantivos antes do acidente, conduzem o leitor a tecer a possível causa com base no "parecer-ser". O enunciatário é levado a construir um quadro de acidente devido aos fatos colocados. A aeronave é inserida em um ambiente propício a acidente ou a um dano.
O substantivo "desaparecimento", derivado do verbo desaparecer, tem função subjetiva de suavizar o possível impacto que o termo "acidente" provocaria no leitor. Esse termo é evitado em todo o texto, embora esteja implícito.

216 passageiros estão a bordo: 126 homens, 82 mulheres, 7 crianças e um bebê. A tripulação é composta por 12 pessoas: 3 tripulantes técnicos e 9 comissários. O comandante tem 11 mil horas de voo e já tinha efetuado 1.700 horas no Airbus A330/A340. Os dois co-pilotos possuem: um 3.000 horas de voo, sendo 800 horas em Airbus A330/A340 e o outro 6.600, sendo 2.600 em Airbus A330/A340.
A aeronave é equipada de motores General Electric CF6-80E. O avião tem um total de 18 870 horas de voo e começou a operar em 18 de abril de 2005. A última visita de manutenção em hangar foi feita em 16 de abril de 2009. A Air France divide a emoção e a inquietação das famílias envolvidas.

O terceiro e o quarto parágrafos reforçam o caráter veridictório com mais informações numéricas. O texto procura despertar na mente do leitor, pelo logos, a certeza de que a empresa é idônea, séria. Assim, justifica sua seriedade com informações pertinentes sobre a capacidade funcional da tripulação e a qualidade da aeronave. Os argumentos utilizados nesses dois parágrafos são o da quantidade e da qualidade. Os argumentos da qualidade são decorrentes dos da quantidade, ou seja, um piloto com onze mil horas de voo certamente é experiente e sabe o que fazer em situações emergenciais. O mesmo ocorre com os outros membros da tripulação. Da mesma forma, a qualidade da aeronave é atestada pela marca que transporta. A qualidade é inferida também pelo cuidado com a manutenção.

Quantidade: 216 passageiros: 126 homens, 82 mulheres, 7 crianças e um bebê. A tripulação […] 12 pessoas: 3 tripulantes técnicos e 9 comissários. O comandante tem 11 mil horas de voo […] 1.700 horas no Airbus A330/A340. Os dois co-pilotos: um 3.000 horas de voo, […] 800 horas em Airbus A330/A340 e o outro 6.600, sendo 2.600 em Airbus A330/A340 […] O avião tem 18 870 horas
Qualidade: A aeronave é equipada de motores General Electric CF6-80E […] começou a operar em 18 de abril de 2005 […] última manutenção em hangar […] em 16 de abril de 2009.

O último parágrafo da nota é a repetição do que já havia sido veiculado na primeira nota, já analisado.
Como se vê, a aparente objetividade dos números demonstra subjetivamente a construção da defesa prévia de uma possível culpa.
Os poucos adjetivos presentes reforçam subjetivamente a ausência de culpa da empresa. Assim, as turbulências eram fortes, ou seja, não há o que fazer nesses casos. Até pilotos experientes não conseguem evitar as consequências desse fenômeno. Mesmo de posse do comunicado automático enviado pela aeronave que indicava pane, não havia o que fazer, pois se encontrava em zona afastada. Esses adjetivos funcionam como justificativa antecipada do suposto acidente.
Os verbos que demonstram subjetividade aparecem ligados a advérbios. Assim, na oração "[...] tentaram em vão estabelecer contato", o verbo tentar, que poderia demonstrar um ethos enfraquecido porque está ligado não a uma ação, é reforçado pela locução adverbial "em vão" e ganha o significado de haver esgotado as possibilidades, de luta. Dessa forma, é construído um ethos de empresa empenhada em resolver a questão. O verbo tentar aparece novamente em "O controle aéreo militar francês tentou detectar o avião, sem sucesso". Aí também associado a uma locução com significado de impossibilidade, reforça o argumento da inocência e enfatiza o sentido de busca por solução.
O argumento é mais uma vez reforçado pela presença de autoridades constituídas como sujeito da ação: o "conjunto de controles aéreos de vários países" tentou (em vão) e o controle aéreo militar francês tentou (sem sucesso).
Assim, as inúmeras tentativas feitas por várias partes produzem um sentido de seriedade e esforço conjunto, ao mesmo tempo que reforçam o ethos de empresa empenhada na solução e, ao mesmo tempo procura minimizar possíveis marcas na imagem da empresa.
No texto da segunda nota o discurso volta-se para o caráter mais prático e os papéis assumidos são os instituídos. O diretor da empresa é apresentado como porta-voz. Ao assumir a voz da empresa e dar-lhe uma assinatura, evidencia-se um compromisso discursivo mais concreto. O papel social do diretor, naquele momento, é o de fortalecer o ethos de seriedade da empresa, que deixa de ser abstrato e se concretiza por meio do papel que lhe é atribuído juridicamente.
Como se percebe, há um reforço subjetivo ao discurso jurídico, como busca de defesa antecipada de fatos que ainda não são conhecidos, mas que já se delineiam como passíveis de defesa por parte da empresa.
Tal antecipação é uma das formas de construção do ethos: o enunciador da segunda nota elabora seu texto, desde o início, em bases factuais, fortemente associadas ao logos. Busca a solidez dos fenômenos meteorológicos tempestade, turbulência; a distância em que se encontra a aeronave e utiliza a autoridade constituída para fortalecer seu ethos.
Dessa maneira, na segunda nota a força retórica está em estabelecer confiabilidade no auditório pelo logos. Os aspectos ligados ao pathos estão presentes no primeiro e último parágrafos, já analisados na nota anterior.
Se o discurso da primeira nota procura desenvolver representações internas e externas de solidariedade, o da segunda busca demonstrar o convencimento a partir da ênfase nos esforços que estão sendo feitos.
Enquanto a primeira nota tem um auditório definido: o grupo social familiar, a segunda se dirige a um grupo mais abrangente: todos os interessados – familiares naturalmente, países interessados, sociedade em geral, concorrentes e a própria empresa. O discurso é dirigido a um auditório mais universal, ou seja, a Air France fala sobre a sua competência a todos que quiserem saber: mão-de-obra atestadamente qualificada por muitas horas de trabalho e treinamento e máquinas vistoriadas e conferidas.
Conforme verificado em Meyer, o percurso argumentativo do logos a partir do estabelecimento da razão passa pelos conceitos de implícito e explícito, considera a existência do outro na figura do auditório e leva em conta os efeitos de sentido.
Observa-se que a argumentação utilizada na segunda nota da Air France tem forte ligação com o logos. Assim como comentado na primeira nota, não se trata de lógica formal, porém há uma quantidade de informações que levam o auditório a inferir pela autenticidade das informações a partir de fatos e dados: "a aeronave tem 18870 horas de voo, é equipada de motores GE CF6-80E […], última manutenção em hangar […] em 16 de abril de 2009".
Esses números poderiam conduzir à literalidade textual e, nesse caso, a problematicidade seria baixa ou nula. Talvez seja esse o propósito da nota. No entanto, ao gerar questões incertas, transforma o discurso em jurídico, ou seja, de grande problematicidade. Ao gerar (questões) duvidosas, o transforma em gênero deliberativo, de problematicidade máxima.
Os pontos de proximidade com o discurso jurídico transmitem um ethos de busca da defesa de seus argumentos. Em outras palavras, a nota deixa transparecer uma defesa prévia de futuras acusações contra a falta de manutenção da aeronave, por exemplo, e de questionamentos sobre a competência da tripulação.
Os pontos que o aproximam do discurso deliberativo transmitem um ethos que pretende resolver questões utilitárias.
A terceira nota foi emitida duas horas após a segunda e retoma o tom intimista da primeira.

Terceira Nota da Air France sobre acidente: (01/06/09 - 13h49)
Air France dirige suas sinceras condolências às famílias e amigos dos passageiros e membros da tripulação que se encontravam a bordo do voo AF 447 do dia 31 de maio, desaparecido entre o Rio de Janeiro e Paris Charles de Gaulle.
A Air France está concentrando todos os seus esforços em dar suporte às famílias e parentes: uma assistência psicológica foi instalada no aeroporto de Paris Charles de Gaulle 2 e no Salão Nobre do Aeroporto do Rio de Janeiro, localizado no 1º andar do prédio da administração. Ela é composta de médicos e psicólogos, assim como voluntários da empresa, especialmente treinados para estas situações.
A empresa também colocou à disposição um número de telefone toll free especial de atendimento às famílias dos passageiros. Ela informa, conforme solicitação, de uma eventual presença a bordo de um familiar.
Números de telefone reservados às famílias
0800 881 20 20 para o Brasil,
0800 800 812 para a França,
e 33 1 57 02 10 55 para outros países
Air France comunicará outras informações assim que elas estiverem disponíveis.

Enquanto nas duas primeiras notas, a referência aos passageiros a bordo se faz sempre com verbos no presente: "216 passageiros estão a bordo", na terceira, o verbo apresenta-se no passado. Trata-se de uma afirmação subjetiva de que passageiros e tripulação estão desaparecidos e, por meio de raciocínio lógico-dedutivo conduz o enunciatário/leitor e o prepara para notícia pior.
Ainda que não diga diretamente que passageiros e tripulação morreram, deixa esse implícito, pois o substantivo condolência é sempre utilizado em situações de morte, embora sua origem signifique solidariedade na dor (cum dolere).
O grupo social familiar a que se dirigia a primeira nota é ampliado. Nessa terceira, o discurso se dirige aos familiares, parentes e amigos. Aliás, esses substantivos, além de delimitarem o auditório, retomam o tom de intimidade que se estabelece entre enunciador (Air France) e enunciatário (seus públicos).
Os esforços da empresa são ampliados e incluem familiares e amigos, uma vez que esse é seu auditório no momento: "A Air France está concentrando todos os seus esforços em dar suporte às famílias e parentes: uma assistência psicológica foi instalada no aeroporto". O advérbio "todos" pretende marcar o empenho, a intensidade com que a empresa se esforça por atender bem àqueles que dela necessitam.
Embora dirigido a um auditório universal (Perelman: 1999, xxx), porque a principal função das notas sobre acidentes é informar a versão da empresa ao maior número de pessoas, percebe-se que há uma particularização desse auditório na terceira nota, a quem ela procura agradar ou angariar simpatia: familiares, amigos, parentes. Nesse sentido, a empresa colocou psicólogos, médicos e pessoal especialmente treinado para atender a esse público particular.
Enfatize-se ainda que, ao disponibilizar esses profissionais especializados, a empresa apela retoricamente para o lugar da qualidade. Assim, quantidade (representada pelo público além da empresa: familiares, amigos...) e qualidade (da aeronave, da tripulação e da própria empresa) são mostrados no discurso da Air France.
O adjetivo "sinceras" (condolências) reforça o sentimento partilhado e pretende angariar a simpatia do auditório. O termo promove uma aproximação pelo pathos, ou seja, trata-se de um apelo argumentativo a partir da emoção. É de se imaginar, nesse aspecto, se haveria condolências não sinceras...
O curto intervalo entre as três notas leva a pensar na possibilidade de a empresa pretender preparar seu público para uma notícia pior. Na primeira, o esforço está em lamentar o desaparecimento e colocar-se à disposição; na segunda, o foco é a confiabilidade da aeronave, da equipe e, subjetivamente, da Air France; na terceira, o foco é o próprio auditório. Esse triplo movimento no tempo conduz à crença de que se trata de empresa séria, idônea, preocupada com a verdade dos fatos e com o bem estar dos seus públicos (familiares, parentes e amigos).
É possível observar nas três notas da Air France a existência de pares filosóficos dicotômicos: ser x parecer, objetividade x subjetividade, e suas categorias verdade x segredo. A empresa busca parecer séria e sincera. Por meio dos números e da autoridade de seu diretor geral, estabelece um nível de veracidade que não deve ser contestada. Outro indicador de veracidade é a rapidez da informação: tão logo tem notícias sobre o vôo, a empresa a disponibiliza.
A ÉTICA NAS NOTAS SOBRE ACIDENTE
Após a análise dos textos, é preciso comentar a questão ética que deles depreende.
As notas da Air France buscam transmitir, ao menos em um primeiro momento, preocupação ética com a verdade: são emitidas três notas em intervalos curtos de aproximadamente duas horas. Nesse sentido, é possível identificar alguns traços da ética dos pré-socráticos, para quem já eram trabalhadas as noções de erro e reparação. A empresa evita errar, pois os reparos nem sempre serão satisfatórios no que se refere à construção da imagem.
Há aproximação do conceito de ética segundo Sócrates, para quem a ação justa deriva do exato saber. Nesse sentido, a Air France parece optar pela busca dos fatos, além de exercitar a noção de bem conforme a ética praticada pelos gregos, ou seja, ligada ao ideal do "melhor agir" ou do "melhor ser".
A empresa parece adotar também a noção de ética conforme Platão, no que se refere ao mais duradouro, estável, essencial e racional. Ao comunicar o que está acontecendo e disponibilizar espaço e tempo aos familiares, amigos e parentes, de certa forma demonstra a práxis da virtude e o bom uso da razão.
Observada a ética conforme Aristóteles, talvez seja possível afirmar que a nota peca pelo excesso de certo tipo de informações: detalhes numéricos de horas de vôo da aeronave e tripulação, número de passageiros, idade da aeronave e outras que considera relevantes. Na verdade, a empresa procura, com tais detalhes, construir o ethos de séria, responsável. De qualquer forma e neste caso, antes pecar pelo excesso do que pela falta, afinal, trata-se de preocupação legítima com o bem público, outro aspecto da ética aristotélica. Assim, é mais provável que se trate de sensatez do que de excesso. Nesse caso, é virtuosa.
A Air France não parece refletir o pensamento ético de Kant, para quem a ética está ligada a regras absolutas e já se sabe que em acidentes tais regras não existem. O que há são contingências, imprevistos e probabilidades. Não se trata do "ser", mas do "parecer". O texto deixa transparecer muito mais possibilidade do que realidade. Não se concebe o fato morte, embora possa estar implícito: as notas são tecidas de forma gradativa, porém nada de substancialmente novo é acrescentado.
É possível ainda estabelecer aproximação com a ética de Hegel, para quem os valores dos indivíduos não existem senão em grupo. A nota não é dirigida a um sujeito determinado, mas a um grupo com traços e interesses comuns: todos querem saber o que aconteceu à aeronave e principalmente aos passageiros.
Da mesma forma, perpassa o texto da Air France o que Foucault entende por ética, ou seja, a possibilidade do sujeito como agente das práticas sociais. Percebe-se a intenção da empresa em agenciar aspectos que denotem preocupação social e não individual. As três notas demonstram que a Air France está totalmente disponível. O filósofo elabora quatro elementos de cunho ético, dos quais podem ser observados três nesses comunicados: a busca pela identificação com a verdade, o trabalho ético ligado ao saber e a prática de dizer a verdade.
Não se percebe nessas notas o conceito ético conforme Weber, pois não há indícios de preocupação com a condução das finanças. Como seu conceito não se limita a esse aspecto, a nota utiliza o forte apelo emocional característico da ética capitalista desse filósofo.
A ética de Perelman está calcada em questionamentos sobre a justiça e os pares filosóficos. O autor comenta que seria preciso não ocorrer qualquer ligação emotiva para que houvesse ética, o que é quase impossível. Nesse sentido, pode-se afirmar que as notas se afastam do pensamento de Perelman porque contêm forte apelo emocional. Por outro lado, o texto da Air France está calcado nos pares filosóficos do ser-parecer (não se sabe o que houve, o texto veicula o não-ser), verdade-mentira (não se conhece a verdade sobre o vôo, o texto informa detalhes periféricos), real-ideal (morte x desaparecimento).
Em síntese, ainda que as duas empresas, de formas diversas, tenham buscado uma postura ética, percebe-se que as notas da Air France transmitem essa preocupação mais enfaticamente. A da Mineração Cataguases, por outro lado, mostra-se mais voltada à defesa de possível culpa.
As organizações, em sentido genérico trabalham com valores numéricos embora possam estar muito subjetivos no seu discurso. De qualquer forma, não devem negligenciar as questões ligadas à ética.




efeitos de sentido na argumentação da defesa e
da acusação no tribunal


No contexto jurídico os termos promotor e advogado referem-se a figuras distintas, cujos discursos, embasados na memória se destacam pelo emprego de recursos argumentativos diversos. O primeiro explora o crime como fato ao enfatizar provas (laudos, fotos) e o segundo prioriza o acontecimento, enfatizando valores culturais ou morais.


O presente trabalho está situado na área de leitura e trata, em seu sentido mais profundo, do discurso jurídico, especificamente aquele apresentado nas sessões de júri, propondo que nele se identifique a existência de dois mundos possíveis.
Para tanto, utilizou-se como critério de análise recortar uma sessão de júri enfocando a fala do réu e partes das falas do promotor e do advogado de defesa. Trata-se, portanto, na concepção da retórica tradicional, do gênero jurídico, cujos discursos são pronunciados em função de um julgamento formal que culmina em uma sentença. Como só é possível julgar ocorrências passadas (característica fundamental desse gênero), a constituição do discurso jurídico se dá por meio da memória, ou seja, pela recuperação narrativa e/ou histórica dos fatos e acontecimentos.
Na fala do réu privilegia-se o aspecto narrativo, que envolve um narrador e um narratário numa cadeia singular de temporalidade. O narrar, no caso, o momento da narrativa é um resgate das referências originais, ou seja, pela sua voz o passado da ação é restaurado no presente.
Além do réu, duas outras figuras desenham a mesma ocorrência sob pontos de vista diferentes, com intenções diversas: o promotor a encara sob o prisma do fato, da suposta realidade e o advogado a aproxima de acontecimento, evento. Ambos também constroem os sentidos de seus discursos embasados na memória: é nossa hipótese que o promotor constrói sua convicção por meio da memória episódica (van Dijk, 1989: 109), fixando-se nos fatos e provas circunstanciais, enquanto o advogado utiliza-se da memória nocional, construindo sua convicção a partir do sentido factual da narrativa.

Promotor: Etimologia: (1813): do francês promoteur, derivado do latim promotio -onis, promotoria (1844), que, por sua vez, origina-se do verbo promover (latim promovere), dar impulso a, causar, originar.
Encicl: (do latim promotor) 1. Que ou aquele que promove, que dá o principal impulso a alguma coisa: o promotor de um melhoramento. 2. Bras. Promotor público, representante de ministério público, encarregado da acusação nos processos criminais.// Bras. Promotor público adjunto órgão de ministério público junto às pretorias cíveis e criminais.

Advogado: Etimologia: (XVI), do latim advocatus: origina-se do verbo advogar (latim avocar), defender, interceder em favor de/ Do latim advocatio-onis.
Encicl: s.m. (do latim advocatus) Auxiliar de Justiça cuja missão consiste em assistir e representar na Justiça as pessoas que se apresentam a ele, e em defender seus interesses perante as diferentes jurisdições. Advogado de defesa, aquele que defende o réu em determinado processo. A liberdade de expressão do advogado é, em princípio, absoluta, sob a condição, relembrada em seu juramento, de não dizer nada contrário às leis e regulamentos, aos bons costumes, à segurança do Estado e à paz pública, e de nunca desrespeitar os tribunais e autoridades públicas.

É justamente na diferença dos olhares que reside a diferença da construção das possibilidades e nestas, a utilização do imaginário simbólico, pois o discurso jurídico - e suas práticas - é produto do funcionamento de um campo cuja lógica está determinada: de um lado pelos conflitos de competência que nele têm lugar e de outro, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam o espaço dos possíveis e, desse modo, o universo das soluções propriamente jurídicas.

O tempo e a memória

Confissão do réu: Eu estava debaixo da ponte com a vítima e o co-réu. A gente tinha bebido um pouco e estava usando cola. De repente a gente discutiu e a vítima veio por cima de mim e começou a apertar o meu pescoço. Eu caí por baixo e ele ficou por cima me apertando. O co-réu veio por trás da vítima e começou a espetar a faca nas costas dele. Ele virou e o co-réu continuou dando facadas no peito. Depois que terminou, deu a faca prá mim e mandou eu passar a faca no pescoço dele. Eu fiquei com medo, peguei a faca e fiz o que ele mandou. Depois ele mandou eu ajudar a jogar o corpo no rio, eu ajudei. Ele foi embora e eu fiquei embaixo da ponte chorando.

O narrador (réu), ao contar sua versão da ocorrência, ativa parte do conteúdo arquivado em sua memória de longo prazo, recuperando-o para a memória de trabalho. O tempo da ação narrada portanto, é passado, um passado que vai sendo desdobrado à medida em que os fatos ocorrem. A primeira seqüência é marcada por um estado eufórico em três tempos passados: o primeiro demarca o espaço, a localização: "eu estava debaixo da ponte com a vítima e o co-réu; o segundo, um tempo já acabado em que os três amigos compartilharam algo, resultando em um estado eufórico, irreal, utópico: "a gente tinha bebido" e o terceiro, um passado contínuo em andamento, durante o qual esse compartilhar se estendia, prolongando o estado eufórico irreal: "e estava usando cola". A segunda seqüência inicia-se com: "de repente a gente discutiu", um lapso de tempo (dentro do passado: caí, ficou, veio, começou, virou, continuou), que modifica o estado eufórico inicial e a partir do qual se desencadeia essa nova sequência disfórica, tópica, a da luta. A terceira sequência, disfórica, inicia-se com depois que terminou, dando início à participação efetiva do réu, ainda no passado: deu (a faca), mandou (eu passar a faca), fiquei (com medo), fiz (o que ele mandou). A quarta seqüência, disfórica, inicia-se com depois ele mandou e a participação na finalização do crime passa a ser conjunta, ainda passado: ele mandou (eu ajudar), (eu) ajudei. A quinta seqüência é marcada por mudança no tempo utópico inicial - que era eufórico, um tempo de compartilhar, de comunhão, de alegria - para um final tópico disfórico: "ele foi embora e eu fiquei embaixo da ponte chorando", um tempo de solidão, de tristeza.

Papéis e Ethos.

Quando se observam os termos promotor e advogado depara-se com duas figuras jurídicas distintas. Embora pertencentes ao mesmo grupo social, de igual formação acadêmica, participantes de um mesmo grupo de trabalho, exercem papéis diferentes no exercício do júri. Como faces da mesma moeda - a justiça - e em seu nome, esses dois indivíduos assumem scripts diversos perante a sociedade e, investidos da autoridade outorgada, assumem o papel social que lhes é conferido, justificando suas posturas criativamente através da palavra, interagindo simbolicamente no grupo restrito (o da justiça) e no grupo social maior (o da sociedade como um todo, daquele município, estado ou nação) - cada qual a seu turno.
Como se vê, essas diferenças de papel já vêem definidas no léxico, conforme descrição etimológica e enciclopédica. O hiperônimo justiça (1. conformidade com o direito; a virtude de dar a cada um aquilo que é seu. 2. A faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência; 3. Magistratura. 4. Conjunto de magistrados judiciais e pessoas que servem junto deles) designa o mesmo grupo social a que pertencem advogados e promotores. Embora ambos exerçam a defesa, cada um a exerce sob um prisma, sob um ponto de vista diferente: o promotor defende a sociedade de um possível criminoso e o advogado defende o criminoso de um possível erro de julgamento.
Observe-se que ao termo advogado associa-se o conceito de "liberdade de expressão, em princípio, absoluta", o que parece conferir uma mobilidade maior, enquanto ao promotor cabe o papel de "promover a justiça", ou seja, um papel restrito se comparado à liberdade concedida ao advogado.
O veredicto será resultado de um luta simbólica entre esses dois profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais (Bourdieu,1992: 223) , por isso capaz de mobilizar os meios e recursos jurídicos disponíveis pela exploração das "regras possíveis" e de as utilizar, de modo desigual, como armas simbólicas para fazer triunfar sua causa.

A fala do Promotor (1): "Minha posição é, no ministério público, como Promotor Público a de promover a justiça na cidade, sem querer só condenar ou só absolver as pessoas. Se eu pedir a condenação ou absolvição é porque formei minha convicção nesse sentido porque as provas estão nos autos, os trabalhos. (...) Outro não poderia ser (o papel da defesa) (...), ela é obrigada a chegar aqui e a saber até da conduta de um criminoso, fez atrocidades, mas a defesa ela é obrigada a estar aqui e pedir aos senhores sempre a absolvição do réu, da responsabilidade.(...) É um papel que eu louvo muito porque é difícil até, debater com uma certa consciência, sabendo que uma pessoa é criminosa, ... mas você é obrigado a tentar tirá-lo daqui. (...) A materialidade do crime, então deve ser comprovada, materialidade e autoria, a materialidade está comprovada no laudo de exame e ficou comprovado através do médico que estava aqui, e como ele falou a conclusão do laudo, a vítima examinada veio a falecer de choque hipovolêmico devido a hemorragia interna devido a agente cortante. (...) Ele levou trinta e uma facadas antes de morrer." É isso que ele vai sustentar, ele só deu uma facada no pescoço.

A fala do advogado (1): "Esse nosso promotor de justiça está trabalhando de forma cada vez mais inteligente e tornando dificultoso para a defesa defender seu cliente. Não está sendo fácil e cada dia que passa, ele tenta combater um pouco mis. Ele fala que não vai falar muito e acaba por falar tudo, atacando da melhor maneira possível. Ele tem as suas razões, só que tem um pequeno probleminha: o entendimento dele é de que o réu, que aqui se encontra, ele matou a vítima. Então, segundo a versão da promotoria, o co-réu deu apenas quatro facadas. Das trinta e uma que foram dadas, ele deu quatro, estão faltando vinte e sete, às quais estão sendo atribuídas ao réu. (...) São vários os depoimentos e todos eles dizem a mesma coisa. Em nenhum deles o réu estava acompanhado de advogado. Ele narrou aquilo que ele viu, aquilo que ele estava vivendo naquele dia em que ocorreu a morte da vítima, só que ele já estava morto. Ele já estava morto. E também ele só fez isso porque as outras facadas quem deu foi o co-réu. Porque se uma pessoa está por cima da outra, como apareceram as outras facadas no corpo da vítima?"
A estrutura social é formada de unidades diferenciadas (governo, economia, família, religião, escola), com "atores sociais" que executam seus papéis de forma variada e inter-relacionada, por isso a diferença na estrutura e nos papéis, que, no entanto, buscam o equilíbrio e a harmonia. Nesse contexto, a desarmonia é considerada, de um lado, aberração e, de outro, parte do sistema, assim como o conflito e as mudanças. Em outras palavras, são partes de um processo. Cada cultura possui padrões de relações, constituindo sua essência os direitos e deveres dos indivíduos. Nesse sentido, o discurso jurídico é, por excelência, um discurso de papéis.
O promotor inicia a construção do seu papel de defensor da lei, defensor da sociedade sobre os valores aceitos e estratificados pelo grupo social, ou seja, "aplica a linguagem familiar da posição e do papel" (Bazilli,1998: 109) promotor da justiça, independente da noção de bem ou mal "sem querer só condenar ou só absolver" buscando convencer. Utiliza-se de um processo desarmônico - o crime, uma aberração temporária - não aceita pelo grupo, para restabelecer a harmonia, por meio de sua resolução: a prisão do réu, caso comprove sua culpabilidade. Sua convicção é construída com base na crença da culpa. A criatividade lexical e a construção do seu discurso, sua argumentação será no sentido de convencer os jurados de que apenas a sua crença é a verdadeira, correta. Em interação, dinamiza as estruturas e executa sua parte no script de acordo com a cultura, adaptado ao ambiente.
Constrói, ao mesmo tempo, um ethos que reforça essa posição de salvar a sociedade dos elementos perigosos e de veículo da realidade. São abundantes os verbos na primeira pessoa do singular: "minha posição, se eu pedir, formei, vou tentar, vou, não fujo do processo, eu posso mantê-lo". Ao contrário do réu, que se mostra humilde e simplório, o promotor demonstra, através dessa certeza absoluta na culpabilidade, uma certa arrogância. Enquanto enfatiza sua certeza, trabalhando seu discurso no âmbito da demonstração: "vou demonstrar por provas, não fujo do processo", coloca a argumentação do advogado no campo da probabilidade, da tentativa: "o advogado vai tentar", utilizando-se da ironia quando diz que "louva o papel do advogado", ao mesmo tempo que o trata de inconsciente "é um papel que eu louvo muito porque é difícil até, debater com uma certa consciência, sabendo que uma pessoa é criminosa, mas você (o advogado) é obrigado a tentar tirá-lo daqui".
O advogado, por sua vez, constrói um ethos mais social, menos contundente, menos agressivo, menos afoito, mais calmo, mais ponderado. Enquanto aquele se utiliza da primeira pessoa do singular, enaltecendo-se como salvador da sociedade, este utiliza a primeira pessoa do plural "nosso promotor, nós podemos ver", socializando o processo, compartilhando expectativas, buscando, no dialogismo, respostas que não estão prontas e que precisam ser analisadas, construídas, apelando para o bom senso do auditório e chamando a atenção para a figura humana do réu.
Dirige-se aos jurados com aplicação e zelo, buscando sua adesão: "se os senhores quiserem ler, à disposição dos senhores, e os senhores vão ver, para não ficar muito extenso aos senhores, foi isso, senhores jurados, vejam bem, senhores, eu passo aos senhores" e assim por diante. Operando a participação nos sentidos sociais através da linguagem, busca recuperar a memória social como se fixasse montagens duráveis e subtraídas das tomadas de consciência, procurando despertá-la para uma hipótese diferente da culpa. Seu tom é o social.
Como se observa, papel social e ethos são conceitos diferentes: o papel tem cunho social, é fruto de escolha e leva em conta os scripts enquanto ethos é a personalidade demonstrada através do comportamento, a imagem transmitida por meio da postura, nas roupas, na escolha lexical, nos gestos. Como não são descritas a aparência, gestos e posturas nesse corpus, só é possível entrever o ethos a partir do discurso.
É preciso salientar que tanto promotores quanto advogados representam mentalmente, construindo seus discursos a partir de crenças.

Fato e Acontecimento

A argumentação do promotor é construída com base no que ele considera fato "as provas estão nos autos", "realmente", "demonstrar por provas", "o fato ocorreu", "materialidade comprovada, exame necroscópio", "comprovado através do médico".

Fato: Etimologia: s.m. coisa ou ação feita, o que realmente existe/ facto 1813/ Do latim factum-i//facticio adj. Artificial XIX. Do fr. Factice e, este, do lat. Facticius // factível XVII// factótum 1873. Encicl.: s.m. (do lat. Factum) 1. Ato, ação, feito: Os fatos falam mais do que as palavras; 2. Acontecimento, episódio: um fato singular; 3. O que é verdadeiro, real: Muitas vezes os fatos destroem as teorias; 4. O que está em questão: Vamos direto aos fatos// É fato, é verdade// Ir aos fatos, ir ao essencial, ao que interessa.// Ser fato consumado, ser inevitável; 5. De fato: realmente, efetivamente

Depara-se, então, com nova escolha lexical, desta feita, mais aprimorada e profunda. Se antes buscamos, valendo-nos da teoria dos papéis e do interacionismo simbólico, explicar as funções de promotor e advogado, agora entramos em um campo mais propriamente semântico, quando associamos ao promotor a visão do crime como fato e ao advogado, a visão como acontecimento.
Cada vocábulo é conceituado, muitas vezes, tautologicamente por outro(s), podendo-se verificar uma certa lógica interna entre eles: cabe ao locutor recortar apropriadamente, considerando o sentido que deseja para seu texto com a finalidade de convencer argumentativamente seu interlocutor.
No léxico a palavra fato está associada à noção de realidade, à ação, ao inevitável, ao que realmente existe, enquanto um dos recortes da palavra acontecimento refere-se a evento, eventualidade (1. qualidade ou caráter de eventual. 2. acontecimento incerto; acaso, contingência, evento), a incerteza.

Acontecimento: Etimologia: data do século XV sua primeira documentação. Do verbo acontecer, realizar-se inopinadamente, suceder, sobrevir/ do latim contigescere (incoativo de contigere, do lat. clássico contingere), através da variante contecer, hoje desusada, mas que se documenta com freqüência no português medieval desde o século XIII.
Encicl.: substantivo masculino: evento, o que acontece: acontecimento feliz; 2) sucesso, eventualidade, fato; Psicologia: tudo que é capaz de modificar a realidade interna de um indivíduo (fato exterior, representação)

Segundo Perelman (1999: 75) a noção de fato caracteriza-se pela idéia que se faz de certo gênero de acordos a respeito de determinados dados: o que se refere a uma realidade objetiva e designa o que é comum a várias pessoas, ou seja, o que está em acordo com um auditório universal.
A adesão ao fato será apenas uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos e só se está em presença de um fato se se pode postular a seu respeito um acordo universal, não controverso. Quando são levantadas dúvidas a respeito do que o locutor encara como fato, ou seja, quando o fato é questionado ou questionável, o acontecimento perde o estatuto de fato.
Enfatizando o aspecto factual do crime, o promotor utiliza-se da linguagem técnica intencionalmente, fortalecendo seu papel de porta-voz da realidade. Busca o convencimento dos jurados por meio da linguagem científica, que é mais próxima do grau zero de sentidos, do que a linguagem emotiva, isentando-se, dessa forma, de possíveis julgamentos. Embora se trate de um julgamento por excelência, o papel do promotor é apresentar os fatos; julgadores são os jurados.
Leva em conta a imposição da autoridade e a forma como os papéis vão sendo construídos. Usa não só da lei, mas das normas institucionalizadas (veiculadas pela mídia em geral). Intertextualiza seu discurso na busca da realidade fundamentada pelas provas, pois nela não há controvérsia, articulando seu sistema lingüístico com o sistema cognitivo dos jurados: não há forma de escapar à realidade.
A defesa, por sua vez, inicia seu discurso enaltecendo as qualidades ilocucionárias (Searle: ) do promotor, definindo-se argumentativamente por uma linha de sedução, embasada no acontecimento narrado pelo réu e confirmado por testemunhas não oculares. O promotor quer convencer através de provas e autos, o defensor busca seduzir por meio do evento narrado e este tem o viés de acontecimento, permeado de sentimentos. O promotor trabalha com o convencimento, através da doxa e o advogado com a persuasão, enfatizando o pathos.
Aceitando-se que argumentação seja um conjunto de razões que apontam uma afirmação, uma tese; que há argumentação quando se trata de resolver, expor, alegar, abalar e que toda argumentação pode identificar-se com o enunciado de um problema, além de especificar que não se argumenta contra o óbvio, a verdade, o evidente, mas sobre o provável, o verossímil, o possível, o advogado argumenta contra a possibilidade da verdade absoluta do promotor. Mostra que ela é apenas fruto da uma crença: "ele formou sua convicção" e a palavra convicção está associada a crença, não à realidade.
Inicia um trabalho de desestruturação da crença absoluta nos "fatos" e tece seu discurso nesse sentido, semeando no jurado uma imagem duvidosa: "Ele fala que não vai falar muito e acaba por falar tudo" , "não está de forma nenhuma com toda a razão", "não está com toda razão porque fala, inclusive, que o réu, quando esteve aqui, estava instruído", " ele estava sozinho". Induz, assim, à descrença no argumento de veracidade, tratando o crime como acontecimento, porque narrado: "aqui está o depoimento dele", "são vários os depoimentos e todos eles dizem a mesma coisa". "Em nenhum deles o réu estava acompanhado de advogado". "Ele narrou aquilo que ele viu". Toma o discurso do réu como verdadeiro e direciona sua defesa por esse recorte.
Ao aceitar a voz do réu como verdadeira, o advogado utiliza-se de uma das pressuposições genéricas aceitas por auditórios universais - a da credulidade natural.
Confirmam nossas afirmações sobre fatos e acontecimentos, no plano lingüístico, o levantamento efetuados das modalidades: o promotor utiliza-se das modalidades de certeza com muito mais freqüência que as demais enquanto o advogado faz uso freqüente das modalidades declarativas.
Sintetizando, a construção dos dois mundos possíveis analisados no corpus deu-se em dois níveis: de um lado, a defesa elaborou os sentidos do seu discurso partindo da história narrada pelo réu, exercendo seu papel de defensor do indivíduo, argumentando no nível da doxa; de outro lado, a acusação focalizou seu discurso construindo os sentidos na realidade dos fatos e provas, exercendo seu papel de defensor da sociedade, argumentando epistemicamente.
Enfatiza-se ainda que, embora ambos se utilizem da memória de longo prazo, a defesa o faz por meio da memória nocional enquanto a acusação utiliza-se da memória episódica.
Conclui-se, por fim, que a construção dos sentidos depende não só do significado lingüístico das palavras, mas da posição que ocupam no texto, das referências a que elas se reportam, do conhecimento e crenças individuais, do intertexto, das inferências, da coesão (sentidos mais secundários) e da coerência (sentidos mais globais) com os quais o discurso se materializa.

BIBLIOGRAFIA


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VAN DIJK, Teum. Cognição, Discurso e Interação. Contexto, São Paulo, 1989.






RETÓRICA DO OPRESSOR NO DISCURSO DA EMPRESAA EMPRESA
Ana Lúcia Magalhães

INTRODUÇÃO

O discurso atual da quase totalidade das empresas aponta os colaboradores como "seu maior patrimônio". Assim, as organizações tratariam o colaborador como ativo importante e estariam atentas às suas necessidades, sua motivação e estimulariam sua criatividade.
Em muitas empresas, no entanto, a práxis é divorciada desse discurso – o colaborador é considerado uma espécie de artigo substituível e sua principal motivação é permanecer empregado. A criatividade desse colaborador – a proposição de métodos e produtos novos, por exemplo – fere inevitavelmente interesses estabelecidos. Esses interesses tendem a agir no sentido de reprimir aquele que é encarado como uma espécie de intruso.
A imagem (ethos) que a empresa procura projetar é construída no discurso para o público externo e na palavra oficial para o público interno. A lógica (logos) do lucro imediato, especialmente em tempos de crise, e do conservadorismo aliado aos sentimentos despertados (pathos) nos interesses individuais daqueles que detêm alguma parcela de poder se traduzem em um discurso – o discurso do opressor na empresa.
A proposta deste texto é estudar se o discurso praticado nas empresas contribui para o exercício do poder, se existe abuso ou dominação por meio desse discurso e até que ponto ele se apresenta como opressor. Foi realizada uma pesquisa quantitativa com profissionais de vários níveis hierárquicos que trabalharam ou trabalham no denominado "chão de fábrica". Além dos resultados dessa pesquisa, o texto analisa diálogos típicos efetuados por funcionários de nível social e intelectual superior colhidos em empresas. Conceitos de retórica e análise crítica do discurso são utilizados como base teórica.

1. A RETÓRICA NO DISCURSO DA EMPRESA

Em primeiro lugar, é necessário estabelecer o que se entende por discurso, uma vez que, devido às várias definições contraditórias e distintas e às vezes sobrepostas, seu conceito não é fácil. Fairclough (2001: p. 21) estabelece, em princípio, três maneiras de compreensão linguística do discurso: 1) utilizado algumas vezes como diálogo falado, em oposição à escrita; 2) refere-se a amostras ampliadas de linguagem falada ou escrita, com ênfase na interação entre falante e receptor (nesse caso, leva em conta os processos de produção e interpretação, além do contexto situacional e, dessa forma, texto é o produto do processo de produção; 3) relaciona-se a diferentes tipos de linguagem em diversos tipos de situação social (discurso publicitário, jornalístico, empresarial, didático).
Além dessa visão linguística, o mesmo autor lembra que o discurso é largamente utilizado na teoria e na análise social quando se refere aos "diferentes modos de estruturação das áreas de conhecimento e prática social" (2001: p. 21). Nesse sentido, e em uma visão mais profunda, os discursos não apenas refletem e representam entidades e relações sociais, porém, e talvez até mais importante, constroem e constituem essas mesmas relações.
Vale ressaltar que o discurso assim entendido está além de simples manifestação oral ou escrita, mas abrange uma combinação de práticas. São considerados, por exemplo, outros elementos que não apenas a palavra: as circunstâncias em que o discurso é proferido, a posição social que o sujeito ocupa, e até mesmo postura física, os gestos que acompanham o texto. Assim, o discurso é tratado neste trabalho em uma concepção multidimensional de linguagem: é textual, social, interacional, simbólico, ideológico.
É sabido que as empresas estão passando por modificações importantes. Há um investimento cada vez maior em recursos humanos. Não com a finalidade de propiciar apenas o bem estar do colaborador, mas porque se descobriu que pessoas satisfeitas produzem mais. Assim, operários deixaram de ser vistos como mais um elemento da engrenagem a desempenhar rotinas repetitivas em um processo invariante: procura-se olhá-los agora como indivíduos que pertencem a grupos em processo de mudança acelerada.
Nesse contexto, há uma tentativa de transformar as relações tradicionais empregado-patrão. Investe-se no estabelecimento de uma nova cultura da empresa, com cobrança, por exemplo, de maior participação do colaborador nas atividades gerenciais.
Fairclough afirma que essas não são apenas mudanças retóricas: "o objetivo é estabelecer novos valores culturais, operários que são 'empreendedores', automotivados e, autodirecionados, além de se constituírem em práticas discursivas" (2001: p. 26).
Uma vez que a utilização linguística assume maior importância como meio de produção e controle social no trabalho, é esperado que os operários se envolvam mais em interação com o grupo como falantes e ouvintes. Dessa forma, o resultado esperado seria que as identidades sociais passassem a ser definidas não mais como ocupacionais, porém como individuais.
O autor afirma que essas mudanças são "transnacionais" (2001: p. 26) e que novos estilos de administração se disseminam, importados de países bem sucedidos. Assim, essas práticas discursivas são internacionalmente aplicadas.
Por outro lado, van Dijk enfatiza que os poderosos, desde o presidente de um país, primeiro-ministro, diretores de empresas e até professores ou médicos, são pessoas que falam, escrevem, ou seja, controlam o discurso público. Nesse caso, o estudo do discurso auxilia a entender os recursos de dominação utilizados pelas elites, pois são elas que têm o controle específico sobre o discurso público. Dessa forma, discurso e comunicação são convertidos nos principais recursos dos grupos dominantes, grupos esses que controlam os atos dos demais e definem quem pode falar, sobre o quê e quando falar.
No entanto, esse controle não acontece pela imposição, que obriga os indivíduos a se transformar, por exemplo, em máquinas produtivas (como ocorria nas empresas até meados do século XX). Trata-se de um controle discursivo dos atos linguísticos por meio da persuasão, maneira mais efetiva de exercer o poder. Tais atos são intenções que, se controladas, controlam, por sua vez, os atos. Existe, assim, um controle mental por meio do discurso.
Para explicar tal fenômeno, van Dijk considera três pilares: a cognição social, que contém a interpretação, as atitudes e a ideologia; o discurso, com suas estruturas, níveis e dimensões; e a sociedade, marcada pela desigualdade e pelo poder.

COGNIÇÃO SOCIAL
Interpretação
Atitudes
Ideologia


DISCURSO - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -SOCIEDADE
Estruturas Poder
Níveis e Desigualdade
Dimensões
Figura 1: Pilares discursivos
Fonte: adaptado de van Dijk, ano, p.

Quando as relações sociais de gênero ou classe variam, a tendência é se apresentar uma relação direta entre estruturas sociais e individuais do discurso. No entanto, não há uma relação direta simples entre poder, dominação, elites, desigualdade e discurso individual. Há sim, uma complexidade muito maior, que passa não só pelo conhecimento individual, grupal, social e cultural, mas por uma relação indireta, uma relação de sentidos.
Van Dijk esclarece que os grupos dominantes têm consciência de que é preciso controle das estruturas mentais dos indivíduos para controlar seus atos individuais ou grupais e isso é feito por meio do conhecimento não só da língua, porém das marcas linguísticas mínimas que sejam de domínio de dominante e dominado. Em outras palavras, é necessário que haja um compartilhamento cognitivo.
Além do nível de conhecimento partilhado, exercício do discurso, existência de grupos dominantes e dominados, é preciso pensar as questões de ordem retórica referentes a ethos, pathos e logos, sistematizadas por Aristóteles que as denominava como as três provas retóricas e foram retomadas por outros teóricos e filósofos. Sem nos determos na história ou na diversidade de conceitos, para efeito desse trabalho toma-se a retórica no sentido aristotélico-perelmaniano de capacidade de convencer e/ou persuadir pelo discurso. Nesse sentido, embora não seja intenção discorrer sobre argumentos, o texto recorre aos conceitos argumentativos de Perelman e Tyteca no que puderem ser aplicados ao discurso do poder.
Em princípio, o discurso empresarial busca a objetividade, a transparência e, para tal, procura elaborar seus textos com foco nos fatos, utilizando-se de características tipicamente jornalísticas. Essa característica está associada ao logos.
Por outro lado, um dos objetivos desse discurso empresarial é a criação e manutenção do ethos da empresa. Ethos, segundo a retórica antiga, é a personalidade que o orador se confere, personalidade essa demonstrada por meio da fala, da maneira de expressão. Isso implica, em princípio, a criação de uma imagem agradável (eunoia), simples e sincera (areté) de si. Isso vale para o indivíduo ou para um grupo. No entender de Aristóteles (1973: p. 159), o ethos associa-se a um estado afetivo suscitado no receptor por determinada mensagem. No caso da empresa, as características do ethos são evidenciadas no seu discurso.
As três provas do discurso são retomadas pelo filósofo Meyer, que aprofunda seus conceitos. Para este autor o ethos não pode ser identificado apenas ao caráter do orador: a dimensão da palavra está estruturada de modo mais complexo.
O ethos é um domínio, um nível, uma estrutura – em resumo, uma dimensão –, que não se limita àquele que fala pessoalmente a um auditório, nem mesmo a um autor que se esconde atrás de um texto e cuja 'presença', por esse motivo, afinal, pouco importa. (MEYER, 2007)

Esse questionamento do autor confere ao ethos uma complexidade que pode ser utilizada na análise do discurso empresarial, entendido como discurso coletivo.
O conceito de pathos em Meyer também avança em relação ao aristotélico e passa a ser fonte das questões que respondem a interesses dos quais dão prova as paixões (no sentido retórico), as emoções ou as opiniões. Aqui é possível associar o pathos à subjetividade, presente implicitamente no discurso empresarial e contribuem para seu estudo, uma vez que, ao contrário das emoções, não diferencia entre "problema posto do exterior e resposta subjetiva" (2007, p. 37). Segundo Meyer, a paixão como resposta também é um julgamento sobre o que está em questão: a pergunta se torna resposta e suscita novas perguntas. Assim, a paixão retórica se torna útil ao mobilizar o auditório em favor de uma tese porque reforça a identidade dos pontos de vista. O discurso empresarial se vale do pathos para despertar em seu auditório questões e suscitar respostas que, por sua vez, uma vez respondidas levarão a outras perguntas.
O logos, por estar associado às características mais objetivas do discurso empresarial deve poder expressar as perguntas e as respostas enquanto preserva sua diferença. As respostas nesse caso fazem desaparecer a questão, ou seja, o logos está próximo do "homônimo apocrítico-problematológico" (Meyer, 2007, p. 40), particularmente útil na análise do discurso empresarial porque é a sua base.

2. PODER E OPRESSÃO NA EMPRESA

Segundo van Dijk, a noção de poder repousa basicamente sobre duas instâncias: os atos e a mente dos indivíduos, ou seja, falar de poder é falar de controle e controlar é limitar a liberdade de ação. Esse sentido aproxima-se do sentido weberiano, segundo o qual poder é a habilidade que o indivíduo tem de convencer a que outro faça sua vontade, mesmo contra as suas próprias, ou ainda, que outros façam algo que não fariam em situação diversa.

PODER

CONTROLE

ATOS MENTE
Figura 2: Instâncias do poder
Fonte: adaptado de van Dijk

É interessante notar que, embora Fairclough reforce que a cultura organizacional ganhou um novo discurso preocupado com o colaborador, orientado socialmente, ele admite que há diferença entre as abordagens críticas e as não-críticas. Admite ainda que essa divisão, além de não ser absoluta, mostra que "o discurso é moldado por relações de poder e ideologias" (2001, p. 31). Nesse sentido, aproxima-se das proposições de van Dijk.
Examinar se o discurso da empresa limita as ações de seus colaboradores ou até que ponto o faz, e discutir as relações de hegemonia e poder aí praticados pode ilustrar os pontos teóricos até aqui levantados.
Segundo Paula (2009: p. 2), as questões da opressão e da resistência têm sido consideradas marginalmente nos estudos organizacionais, uma vez que despertam desconforto, pois não há consenso entre os teóricos. Há basicamente duas interpretações: 1) funcionalista, segundo a qual o exercício do poder é necessário, ou seja, as autoridades formais e funcionais interpretam o poder como resistência. Em outras palavras, as ações que estão fora das estruturas oficiais poderiam ameaçar os objetivos organizacionais; 2) crítica, que coloca em questão os processos através dos quais o poder é legitimado na forma de estruturas organizacionais e interpreta o poder como dominação. O poder, nesse caso, cria barreiras e dificulta a participação plena dos trabalhadores.
Existem várias formas de controle: direto, baseado na vigilância; técnico, exercido por meio de tecnologias e máquinas; burocrático, baseado nas regras. Evidentemente nenhuma dessas formas é negada, pois há inúmeras evidências de que existem de fato, mas o controle discursivo parece ser mais efetivo, pois às vezes se apresenta subjetivamente e nem sempre é notado.
Foucault (2003) comenta que o regime capitalista instaurado no século XIX, em lugar de transformar o trabalho em lucro, viu-se obrigado a construir uma rede de técnicas por meio das quais o homem se vê atado ao trabalho: seu corpo, tempo e força de trabalho transformam-se no que o autor denomina como sobrelucro, que pressupõe a criação de um subpoder, um poder político microscópico, operado pelo poder. A partir da criação desse subpoder, nascem os diversos saberes, que se multiplicam e dão origem tanto às ciências do homem como o colocam como objeto da ciência. São o saber do indivíduo, o saber da normalização e o saber corretivo.
Em outras palavras, a relação saber-poder tem suas origens mais nas relações de produção que propriamente na existência do homem. Para que determinado modelo econômico sobreviva, são necessários poderes e saberes que suportem as relações de produção.
Nesse sentido, Foucault coloca o processo de seleção como uma consequência da sociedade disciplinar, uma vez que, para recompensar ou punir, primeiramente é necessário avaliar, verificar quem está ou não de acordo com o estabelecido. Tal processo legitima o controle, estabelece quem pode ou não continuar naquela função, quem pode ou não ser promovido, quem pode ou não gerenciar. Essa visão está relacionada ao sistema de punição e recompensa, largamente empregado nas empresas e que pode ser encarado como opressor.
Antes de passar à análise retórica do discurso da empresa, é preciso lembrar que esse discurso apresenta uma complexidade adicional, pois não se relaciona a um único gênero. Basicamente existem três vertentes: uma administrativa, veiculada por meio dos gêneros cartas, ofícios, relatórios, memorandos, e-mails, atas, reuniões e outros; uma publicitária, representada pelas inúmeras formas de propaganda (nesse caso, nomeamos simplesmente como gênero publicitário) e uma vertente jornalística, que engloba gêneros como: house organ, newsletter, boletim, clipping, notícias, revista da empresa, jornal, mural, twitter, blog entre muitos, cada um com suas peculiaridades.
Além dessa complexidade de gêneros, o discurso da empresa não trata apenas do texto escrito, mas está sustentado em grande parte na oralidade, o que o torna ainda mais complexo, pois as marcas de oralidade nem sempre são evidentes. Nesse caso, um mesmo texto pode apresentar inúmeras leituras de acordo com a forma como foi enunciado.
O domínio persuasivo pode ser definido, conforme van Dijk, como o controle da mente. E não é possível conduzir o pensamento do outro a não ser pela interação, mesmo quando são utilizados desejos e interesses desse outro, mesmo que as ações se baseiem na observação (caso das ameaças não verbais, por exemplo). Assim, a mudança do pensamento de colaboradores de uma empresa está fundamentada no discurso e requer controle.
O exercício do poder por meio de atos de fala, como é o caso de instruções, ordens, recomendações, advertências ou ameaças é um bom exemplo desse domínio discursivo. Nesse aspecto, os modelos mentais de situações, as representações do conhecimento, as opiniões e atitudes podem se formar ou transformar mediante características específicas do discurso praticado na empresa, tais como: pronúncia, entonação, ordem das palavras, significado, esquemas textuais, formas de diálogo, figuras retóricas, silogismos, falácias lógicas.
Para exercer o domínio, além de pressupor o conhecimento dos mecanismos discursivos, é preciso o entendimento dos mecanismos interacionais dos dois lados e isso se obtém pela observação de modelos de acontecimentos sociais ou de situação. Esses modelos não dependem apenas do discurso daquele momento, mas baseiam-se em situações e modelos já presentes, do conhecimento, das atitudes e das normas e valores do auditório sobre os quais incidem tais modelos.
Dessa forma, exercer o domínio persuasivo implica em representações cognitivas complexas e estratégicas para a ativação, formação, armazenamento e troca de tais representações (van Dijk, 1989, 1993b). Controlar as ações implica, assim, em controlar os modelos mentais, que normalmente se movimentam em favor da empresa, afinal ela é, em última análise, a detentora do poder na figura de seus dirigentes. Está mais ou menos claro a todos, inclusive aos supostos oprimidos, que o domínio hieráquico é necessário, pois nem todos têm conhecimento e competência para decidir o que é melhor em cada situação empresarial.
A questão é a forma de exercício desse poder.
Embora existam maneiras de relacionar a função do discurso no exercício e reprodução do poder, não se pode deixar de comentar a aproximação sócio-política, ponto de contato decisivo entre discurso e sociedade, entre ações individuais e controle social ou entre membros e grupos.
Não há dúvida que existe manipulação na produção dos discursos dominantes. O discurso empresarial, por exemplo, apresenta uma dimensão estratégica e elabora o consenso de forma indireta. É comum, por exemplo, que gerentes e executivos associem seus discursos a aspectos negativos para conseguir a adesão dos colaboradores: perda de competitividade, desigualdade social, demissões. De outro lado, os colaboradores não costumam reivindicar ou queixar contra seus executivos, pois precisam assegurar seus postos de trabalho.
Após essas considerações, fica claro que existe um discurso dominante na empresa e, em contrapartida, um dominado. Resta examinar se o grupo dominado se sente oprimido e até que ponto tal opressão ocorre.

3. O PONTO DE VISTA DO OPRIMIDO E O DISCURSO OPRESSOR

Com a finalidade de comprovar a existência de um discurso opressor na empresa, foi elaborado um questionário e distribuído por colaboradores que ocupam ou ocuparam posições subordinadas. Responderam às perguntas: professores, assistentes administrativos, gerente de obra e trabalhadores que ocuparam a base da pirâmide hierárquica. Foram também efetuadas entrevistas com colaboradores que exercem alguma posição de chefia, mas que também estão subordinados a cargos superiores.
Conforme citado no início desse trabalho, embora o discurso preconizado pela empresa hoje se proclame voltado para o colaborador e apresente uma orientação social, ele também é moldado por relações de poder e ideologias. Uma das dificuldades apontadas pelos colaboradores que se encontram na base da pirâmide é que, com o enxugamento dos níveis hierárquicos, prática comum nas empresas modernas, as ordens chegam à base muito mais rapidamente e em número maior, sem os filtros dos inúmeros níveis que costumavam reelaborar esse discurso. As figuras 3 e 4 demonstram que existe uma relação direta entre a dificuldade em priorizar os trabalhos solicitados e a relação profissional com superior.



Figura 3: Dificuldade em priorizar
Figura 4: Relação profissional com colaboradores que têm dificuldade em priorizar

Essa questão, embora pareça não se relacionar inteiramente ao discurso do opressor, foi sugerida por colaboradores que ocupam a base da pirâmide e se configura como um dos motivos de angústia. A incapacidade ou dificuldade de priorizar tarefas está diretamente ligada à quantidade de ordens que o colaborador passou a receber depois do enxugamento dos níveis hierárquicos. Refere-se também à forma como as ordens são recebidas. Os superiores não costumam determinar a prioridade, apenas passam os serviços a serem executados e todos os serviços são considerados importantes. Como o colaborador não é capaz de priorizar, sente-se angustiado, sem saber definir qual tarefa deve executar em primeiro lugar. Tal angústia se evidencia em perda de tempo na escolha das tarefas e nas constantes cobranças que recebe dos níveis superiores, além de medo e estresse.
Foram escolhidas algumas respostas que caracterizam os itens comentados. Não serão mostradas todas porque são, de alguma forma, repetitivas e podem cansar o leitor.

Tinha funcionários que atendiam toda a fábrica, só que como cada um mostrava uma necessidade que para ele era primordial, a cada novo pedido o funcionário parava a produção para começar nova atividade pela pressão dos clientes, resultando em trabalhos mal feitos, prazos estourados e insatisfação geral, inclusive do próprio funcionário (respondente 1)
O colaborador atuava em dois setores e não se posicionava corretamente nas tarefas que concorriam por prazos (respondente 2)
Várias solicitações para vários funcionários de áreas diferentes gera (sic) falha no projeto (respondente 3)
Sob pressão de várias tarefas, colaboradores não conseguem trabalhar nas fundamentais além de, por não priorizar e acumular, não finalizam as tarefas. As que termina, não apresentam qualidade. Isso os deixa infelizes, inseguros e angustiados (respondente 4)
É comum o colaborador se envolver nos detalhes e perder o foco, atrasando tarefas (respondente 5)
Não saber priorizar causa perda de prazos e prejuízos, além de angústia e medo por parte dos colaboradores (respondente 6)
Ter de trabalhar com quem não sabe priorizar me irrita profundamente e atrasa o trabalho (respondente 7)
Priorizar errado causa atraso, afeta a produção e causa medo e angústia no empregado (respondente 8)


Os textos selecionados demonstram que a dificuldade em priorizar e a falta de informação por parte dos superiores provoca, de forma bastante objetiva, atraso na entrega, trabalhos mal elaborados, falhas de projeto, acúmulo de tarefas, perda de foco, prejuízos. Em decorrência dessas evidências negativas e de o homem estar "atado ao trabalho" (Foucault), o colaborador se sente pressionado, oprimido pelo discurso explícito ou implícito da empresa. O discurso explícito está evidenciado nas ordens e nas cobranças recebidas dos supervisores; o subjetivo, na política da empresa. Está muito evidente para o colaborador que a empresa visa lucro. Se ele não é capaz de cumprir suas obrigações no tempo esperado, entende que contribui, direta ou indiretamente, para a perda de competitividade e, em decorrência, para a não obtenção de lucros.
O ethos mostrado nos textos é o do sujeito oprimido pelas ordens e pelo tempo. Impossibilitado de compreender ou definir prioridades, angustia-se, amedronta-se e se torna infeliz. Essas são características derivadas do discurso opressor da empresa, que se manifesta por meio dos textos – orais ou escritos – dos supervisores, que, embora não apareçam diretamente nas respostas, são captados pelo colaborador e apresentam força retórica opressora.
Percebe-se que o domínio discursivo, conforme já comentado, pressupõe o conhecimento dos mecanismos interacionais dos dois lados: empresa e colaboradores, e isso se obtém pela observação de modelos de acontecimentos sociais ou de situação. Tais modelos dependem do que ocorre naquele momento e se baseiam em situações já acontecidas que redundaram em atitudes por parte da empresa e que conduzem aos sentimentos desse auditório.
A figura 5 mostra que a grande maioria dos colaboradores entrevistados (93%) já trabalhou com chefia intimidadora.


Figura 5: pessoas que têm ou tiveram experiência com chefia intimidadora
Os comentários a seguir evidenciam o sentimento dos indivíduos que estiveram sob a coordenação de chefia ditatorial.

Apenas cumpre ordem preocupado com seu emprego. Executa tarefas como obrigação, mas com contrariedade. Pensamento do colaborador: faço isto ou estou na rua; tenho que mudar de emprego ou área; é só cobrança; ele só me chama, nunca elogia; ele não me escuta; nunca admite seu erro; nunca se desculpa. (respondente 1)
Depende: pode ser subserviente ou rebelde, mas na maioria dos casos não se pronuncia por medo. (respondente 2)
Faz por obrigação; nem sempre faz o melhor; comenta com os colegas o estilo de liderar do chefe; reclama com os colegas sobre chefe e trabalho (respondente 3)
Faz apenas o que precisa ser feito. (respondente 4)
Sente-se desmotivado, sem criatividade e interesse. As realizações diminuem. Tem medo de contestar, expressar opinião diferente da do chefe. (respondente 5)
Sente dificuldade em argumentar, mas vê possibilidade de sugerir, mostrar outras opções e, caso viável, a chefia acata. (respondente 6)
Os esforços não são reconhecidos e se sente desmotivado. (respondente 7)
Impossível trabalhar com superior ditatorial. O colaborador sente inibição e medo, o que dificulta bons resultados. (respondente 8)

Os colaboradores que trabalharam sob chefia ditatorial – grande maioria, conforme o gráfico – expõem um pensamento quase unânime de insatisfação, desmotivação e medo. Mostraram compreender perfeitamente o significado do termo ditatorial. As respostas, muito claras, marcam um ethos de submissão aos desejos dos supervisores e de dificuldade ou mesmo falta de desejo/coragem de argumentar. Ao mesmo tempo, permitem concluir que existe um discurso empresarial altamente opressor: se o indivíduo sente medo, desmotivação, inibição, contrariedade, falta de interesse e falta de criatividade é porque há um discurso que nele provoca tais sentimentos.
Outra questão a ser observada é a relação saber-poder. É esperado que os supervisores saibam mais do que seus comandados, afinal ocupam um cargo superior. Associado a esse saber e poder subsiste um sistema de recompensa e punição, que legitima o controle e determina promoções e demissões. Embora às vezes implícito, esse conhecimento está subjacente ao discurso da empresa e o auditório tem conhecimento subjetivo do poder de seus superiores. Daí o sentimento de impotência diante de chefias ditatoriais.
A questão levantada na figura 6, a seguir, mostra se a inclusão de novas tecnologias melhorou as relações entre gerentes e subordinados na empresa, conforme seu discurso preconiza: "com o advento das novas tecnologias, os colaboradores ficam mais livres para exercerem suas atividades e sentem-se menos pressionados pelas chefias".


Figura 6: Influência de novas tecnologias na relação gerente-subordinado
Embora as empresas invistam pesadamente em novas tecnologias como forma de melhoria não apenas do trabalho, mas das relações interpessoais entre chefe e subordinado, a figura 6 comprova que 47% dos colaboradores acreditam que as tecnologias influenciam negativamente e 20% não sabem. Apenas 33% concordam que elam auxiliam nessas relações. Poucos souberam responder o motivo de tais relações não melhorarem. Algumas respostas expõem que "o chefe se sente ameaçado diante das novas habilidades do colaborador", ou que "o colaborador não consegue entender que é um parceiro e precisa se envolver com a chefia para atingir objetivos comuns" e "as tecnologias distanciam as pessoas, uma vez que se faz uso demasiado de e-mails". Em outras palavras, há uma distância entre o discurso da empresa e a compreensão por parte do auditório.
Se os questionários mostraram que existe um discurso opressor implícito na empresa, que se apresenta de maneira subjetiva porque visto sob a ótica do assujeitado, alguns diálogos obtidos nas entrevistas evidenciam com mais objetividade o discurso desse sujeito opressor.

Situação 1: engenheiro envia ao gerente e-mail detalhado sobre as dificuldades que impossibilitarão um trabalho de ser entregue em prazo curtíssimo.
Engenheiro: Penso que você recebeu um e-mail que enviei a você, mostrando as dificuldades da tarefa e a impossibilidade de execução em prazo tão apertado.
Gerente: Nem li sua ladainha. O prazo para conclusão termina na 3ª feira. (empresa do ramo de construção, junho de 2010)

O texto, curto, demonstra uma situação extrema de opressão, que, embora não praticada contra subordinado da base da pirâmide, deixa igualmente claro um discurso opressor, utilizado com frequência nas empresas. Conforme observado no texto, o gerente pode, naquele momento, por exemplo, estar recebendo pressão de um nível superior para entregar o trabalho. No entanto, não é motivo para a resposta dada. É relativamente comum no discurso empresarial que, mesmo sem a suposta pressão, superiores resolvam simplesmente exercer autoridade.
Como se percebe, ele não explica o motivo do prazo curto e serve-se apenas do argumento de autoridade (Perelman, 1999) que o cargo lhe confere. Sua resposta, embora grosseira, ou talvez sarcástica (dependendo do tom utilizado), ao chamar o e-mail explicativo de ladainha, configura-se, somado à segunda parte, como texto argumentativo. A utilização do substantivo "conclusão" é reforçada pelo verbo "termina", ambos com sentido de prazo.
Observe-se que, embora haja uma ordem implícita, uma vez que o gerente não faz uso do imperativo "faça!", o implícito é inquestionável. Não há dúvida de que se trata de opressão discursiva, pois não há espaço na resposta do gerente para réplica ou outras explicações do engenheiro, que não vê saída a não ser executar a ordem, uma vez que não fica claro o que virá caso ele não cumpra o prazo.
Embora esse discurso envolva colaboradores de níveis funcional e cultural diferentes, e a opressão sofrida pelos respondentes do questionário ocorra em boa parte por desconhecimento ou por diferenças sociais que oprimem por si mesmas, está claro que se trata também de discurso opressor.
Pode-se ainda pensar que não se trate de discurso implícito, porém a resposta, que pode ser considerada até grosseira, leva o engenheiro a tecer possibilidades caso não pare de argumentar: será demitido? Deixará de ocupar aquele cargo? Não receberá mais trabalhos importantes? Será transferido para área menos nobre? É uma opressão de natureza essencialmente retórica, pois não há certezas, apenas suposições. A intenção do superior e clara: acabar com a argumentação do engenheiro pelo argumento de autoridade.
Não há nesse diálogo marcas do que preconiza Fairclough (2001, p. 26) sobre a tentativa de transformação das relações tradicionais empregado-patrão, no estabelecimento de uma nova cultura da empresa, com cobrança, por exemplo, de maior participação do colaborador nas atividades gerenciais, novos valores culturais, operários empreendedores, automotivados e autodirecionados.
Bem ao contrário, trata-se de discurso autoritário. O texto evidencia que, se há mudanças, elas são retóricas, pois importa mesmo a certas empresas o imediato!

Situação 2
Gerente: Precisamos de um sistema de gerenciamento de documentos – é comum que dois profissionais diferentes trabalhem em versões diferentes do mesmo documento e isso é perda de tempo e dinheiro.
Diretor: Não precisamos de software. Precisamos é que as pessoas se organizem melhor.
Gerente: Mas esses enganos têm sido cometidos, muitas vezes, por pessoas alertas aos problemas e que tentam se organizar.
Diretor: Você não é pago para ter ideias, é pago para fazer o que eu mando. (empresa de engenharia, novembro de 2009)

O diálogo entre gerente e diretor demonstra, mais uma vez, um discurso opressor. O gerente explica que se a empresa adquirir um software de gerenciamento, poderá economizar tempo e dinheiro, evidentemente a longo prazo. O diretor deixa claro que, em lugar de gastos, melhor que as pessoas trabalhem de verdade, produzam, organizem-se. Diante da insistência do gerente, ou melhor, da argumentação em bases lógicas (Perelman y Tyteca), o diretor, a exemplo do texto analisado anteriormente, põe fim à discussão com o argumento irrefutável da autoridade: "você é pago para fazer o que eu mando". Diante de argumento dessa natureza, não há o que discutir. Trata-se de marca de opressão discursiva.
A resposta parece objetiva pela força retórica da autoridade, porém é subjetiva. Há um silogismo lógico, que o gerente trata de completar com base na fala anterior do diretor (não precisamos de software): o texto "você é pago para fazer o que eu mando" esconde a afirmação "se não fizer o que eu mando, será demitido ou não serve para esta empresa".
Inúmeras são as formas de opressão discursiva praticadas na empresa sob a alegação de que seu objetivo principal é a obtenção de lucro. São bastante comuns respostas como as que seguem:

Situação 3:
Engenheiro diz para estagiário: É a terceira vez hoje que vejo você sair da sala para tomar café. Você está roubando esse tempo da empresa! (empresa portuária, abril de 2010)
Situação 4:
Se você não tem a solução, já faz parte do problema. (frase emblemática em palestras sobre motivação na empresa)

Textos como esses são marcas indiscutíveis de discurso opressor exercido na empresa. Os dois casos ilustram a força retórica da palavra associada a deveres do empregado de qualquer nível. O primeiro, mais direto, evidencia a retórica do poder pelo argumento da autoridade; o segundo, mais sutil, obriga o auditório a tomar posição a partir de argumento de retorsão (Perelman).

CONCLUSÃO

É interessante notar que, embora o discurso divulgado pela empresa preconize que esse setor passa por reestruturação argumentativa das relações de trabalho, com valorização do trabalhador, fica evidente que existe manipulação da subjetividade desse mesmo indivíduo, pois redireciona essas relações de trabalho e dominação: ao mesmo tempo em que valoriza os recursos humanos, promove a ameaça de demissão, desestabilização...
Se a empresa fracassa, o indivíduo será responsável e isso o coloca em situação de prova, em estado de estresse, porque precisa demonstrar competência todo o tempo, bom desempenho e utilidade.
Cabe ainda, nesse contexto, um comentário a respeito da palavra escolhida para se referir hoje aos trabalhadores. Deixaram de ser chamados funcionários e empregados e ganharam o título de colaboradores. Porém, a análise efetuada mostra que o indivíduo é mesmo um trabalhador ou empregado, pois recebe pelo que faz, é pago pelo que produz. Trata-se, pelo menos em muitos casos, de falácia intencional, como estratégia de ampliar as bases do comprometimento do indivíduo.
Ao designá-lo como parceiro, a empresa propõe uma nova visão sobre si. O ethos de empresa coesiva, interesseira, dominante é amenizado e aquele discurso do opressor é, em parte, desfeito, afinal há colaboradores que optam espontaneamente por servi-la. A propósito, submissão e obediência se tornam mais fáceis quando todos, verdadeiramente ou não, se sentem parte do processo decisório. Talvez por isso empresas optem por nomear seus empregados como colaboradores.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AMOSSY, Ruth. Imagens de Si no Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003. – por MARIA CRISTINA GIORGI (CEFET-RJ)
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PERELMAN C. e TYTECA. Tratado da Argumentação, São Paulo: Martins Fontes, 2000.




INTRODUÇÃO
O enfoque deste texto será a argumentação pelo exemplo, ilustração e modelo, e a ironia. Foram escolhidos para análise três artigos publicados no Jornal "O Estado de São Paulo" e se encontram como Anexos. O primeiro deles, um artigo sobre as lágrimas, publicado no dia 27/03/89 (anexo I); o segundo referenciado como "réplica" é uma contestação ao primeiro e foi publicado em 24/04/89 (anexo II) e o terceiro, uma resposta à réplica, chamado de "tréplica", publicado em 24/04/89 (anexo III).

RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO
A Retórica tem sido colocada à prova ao longo do tempo. Na Antigüidade, com Aristóteles, ligava-se à Dialética e referia-se à arte de falar em público de modo persuasivo, relacionada especificamente ao discurso falado, com o intuito de obter a adesão a uma tese apresentada.
A meta da retórica, adesão dos espíritos é a mesma da argumentação, mas a palavra retórica foi sendo cada vez mais ligada ao discurso oral, até alcançar uma forma pejorativa de utilização, quando o termo passou a se aproximar de discurso empolado e vazio de sentido. Isso porque ela se limitou, em parte de sua evolução histórica, ao estudo e utilização das figuras.
Felizmente o termo foi retomado por Perelman, na década de 60 e, graças aos inúmeros pontos de contato com a argumentação, renovado. Comparativamente, a retórica antiga tem mais semelhanças com a atual do que divergências. A neo-retórica parece uma continuidade dos estudos retóricos. O que há de novo é a integração que pretende minimizar a diferença entre ciências humanas, ciências do discurso e das matemáticas. Para isso, as teorias da argumentação desenvolveram-se nos postulados democráticos e se embasaram nos valores, preferências e decisões, aceitando limites e imperfeições, trabalhando-a no nível do provável. Há que se levar em conta hoje a universalidade a que se está sujeito, bem como a diversidade de argumentação que nela está embutida.
Como se observa, a retórica avança e se entrelaça à argumentação. O que conserva da retórica tradicional é sua idéia de auditório: mão mais um público reunido numa praça, mas um público diferenciado, incluindo aí o leitor. A retórica, portanto, ampliou-se e se aplica à palavra escrita, e necessita maior elaboração.
Seu caráter prático e teórico impõe-se no Direito, Ética, Política e Psicanálise e possibilita confronto e intercâmbio com a Pragmática Lingüística, Semiótica Discursiva, Teoria do Texto e Discurso e Análise Conversacional. Contribui nos estudos da Linguagem referentes à conscientização do discurso. Conjuga as capacidades intelectivas, sensoriais e afetivas, utilizando argumentação e persuasão, conciliando conhecimento e afetividade, sedução e prazer. Em concepção ampla e específica, a retórica é uma visão de vida que implica tomada de posição, ação no mundo e competência retórica por parte dos indivíduos.
Assim, é vista não mais como estudo das figuras, e sim como sinônimo de argumentação, cujo campo não é definitivamente, o da evidência. Não se argumenta sobre o provado, sobre o evidente, mas sobre o verossímil, o plausível. Argumenta-se para estimular a polêmica, a reflexão, construir debates, entrevistas, relatos; incentivar a reflexão crítica; examinar apelos, propostas e contrapropostas; enriquecer a visão de mundo através da diversidade de confrontos, levando a juízos de valor; estabelecer diálogos, partilhando saber e vivência; estruturar troca comunicativa; buscar solução nas situações de conflito.
Considerando que (Perelman 1996: 50) a Retórica caminha lado a lado com a argumentação e que esta tem como objetivo a busca da adesão dos espíritos a uma dada tese por meio da persuasão, e considerando ainda que o ato de informar não existe em estado puro servindo antes para convencer e persuadir do que por si próprio, pretende-se agora a análise de alguns componentes retóricos.
Ainda segundo Perelman, os argumentos classificam-se em:
Argumentos de ligação, os que permitem transferir para a conclusão a adesão concedida às premissas. São desse grupo: a) os argumentos quase lógicos, que se aproximam dos raciocínios formais sem possuírem o mesmo rigor e precisão deles, podendo ser reforçados por argumentos de outro tipo e pressupõem uma adesão a teses de natureza não formal; b) os argumentos baseados na estrutura do real, que se valem dessa estrutura para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e aqueles que se quer evidenciar, podendo ser tratados como fatos, verdades, presunções; c) os argumentos que fundam a estrutura do real, que, como o próprio título, esteiam a argumentação pelo recurso ao caso particular e ao qual se embasa o objeto de análise desse trabalho.
Argumentos de dissociação, os que visam separar elementos que foram ligados anteriormente, ou pela linguagem ou pela tradição. São eles: a) os pares filosóficos, b) os pares antitéticos e c) os pares classificatórios.
A ARGUMENTAÇÃO PELO EXEMPLO, A ILUSTRAÇÃO E O MODELO/ANTIMODELO
O texto jornalístico dever ser antes de tudo persuasivo, pois está ali não só para informar o leitor, como também "vender" a notícia. A persuasão não necessariamente passa pela verdade moral, mas obrigatoriamente pela verdade demonstrada e, dessa forma, a linguagem será instrumento da argumentação, não apenas da informação.
Além dos fatos e das verdades, os auditórios admitem presunções, que gozam do acordo universal e às quais, por não serem máximas ou verdades, necessitam reforço de outros elementos para que a adesão a elas seja efetiva. As presunções são, no mais das vezes, admitidas de imediato, como ponto de partida das argumentações.
Se a retórica é a arte de argumentar e persuadir, se o jornal existe para informar e vender notícia, se esse diálogo pressupõe um locutor (jornal-autor) e um interlocutor (leitor) com quem ele pretende dialogar, argumentar, e a quem ele pretende persuadir, o leitor/público será o auditório, ao qual ele precisa cativar, buscar adesão e adequar seu discurso, seu texto.
Nos parágrafos seguintes pretende-se analisar as ligações que fundamentam o real, sem, contudo, esgotá-las, pois além do exemplo, ilustração e modelo/antimodelo, que se agrupam no fundamento pelo caso particular, existem ainda os raciocínios por analogia e a metáfora, nesse mesmo grupo dos argumentos [que fundam a estrutura do real] e que não serão tratados.
1) O Exemplo
Argumentar pelo exemplo é chamar para dentro de uma argumentação um exemplo que lhe fundamente, que lhe dê forças. O precedente, em Direito, é considerado como exemplo; os casos particulares, em ciências, são tidos como exemplo e servem de argumentação em defesa de uma tese.
Fenômenos particulares evocados uns em seguida de outros são considerados exemplos. No texto "Por que tanta lágrima", de Eurico Penteado, publicado no Jornal "O Estado de São Paulo", Anexo I, o autor se vale abundantemente de exemplos para reforçar a argumentação e fundamentá-la. Inicia sua matéria partindo de um exemplo histórico para introduzir, ainda que de forma sutil, no terceiro parágrafo, o tema de seu artigo.
Em uma de suas reminiscências [...] O rapazote, que mordia os lábios para controlar-se, o encarou e respondeu com firmeza: 'Não posso chorar, porque sou homem; mas também não posso rir, porque dói demais'.

Acrescenta outro exemplo com a intenção de tornar seu argumento mais real:

Cremos ter mencionado por essas colunas, há um par de anos [...] uma antiga história que ilustra o ponto [...]. E o veterano respondeu 'Possivelmente um herói, porém não um cavalheiro' [...] mas sua imagem perante os munícipes teria sido bem melhor do que é, após sua lacrimosa reação.

Outros exemplos são citados e amparam e solidificam sua argumentação ao longo do discurso. Utiliza-se das falas de um filósofo, concluindo por conta própria, em prol da sua argumentação. Para nos assegurarmos de que estamos diante de uma argumentação pelo exemplo, nada igual, porém, às exposições em que ela se apresenta formalizada, ou seja, em casos de citações renomadas:
Rabelais dizia que 'le rire est le propre de l'homme'. Mas não nos consta que jamais alguém tenha dito que chorar seja próprio de homens

O autor apela ainda para exemplos extraídos dos ditos populares:

Não podia chorar porque era homem"... "Desconfie de homem que chora e de mulher que não chora.

O exemplo invocado deverá usufruir estatuto de fato, pois a grande vantagem de sua utilização é dirigir a atenção a esse estatuto.
Por sua vez, a rejeição ao exemplo enfraquecerá a adesão à tese que se queira provar. Isso porque a escolha de um exemplo, enquanto prova, compromete o orador, como espécie de confissão. É o que ocorre no Anexo II, que denominamos réplica ao artigo do Anexo I, publicada no mesmo jornal em 24/04/89 que, exatamente por se tratar de artigo bem fundamentado, mereceu não só a publicação como até uma resposta do autor, Anexo III, a que chamaremos tréplica (24/04).
O autor do Anexo II inicia seu texto com uma peroração, em que declara sua "pequenez" e elogia a erudição do autor a quem irá contrapor-se:

Perdoe-me, Sr. Eurico Penteado, se não tenho sua enorme erudição e por não tê-la, não consigo escrever de forma tão bonita quanto o faz.

Trata-se de técnica retórica: seu texto é contundente e tecido utilizando-se da argumentação pragmática "torna-se vital um cuidado imenso com as antinomias, para que os choques não sejam fatais nem letais", do argumento de identificação "não basta um saber imenso e o emprego de termos inusitados para se construir uma coluna", do argumento por divisão "Pelé chorou [...] quantos de nós [...] quantos mais não verteram lágrimas". Há outros que não pretendemos especificar por fugir ao escopo desse trabalho.

Ele também se utiliza do exemplo citado dentro da argumentação por divisão, para fundamentar e fortalecer sua tese, conseguindo a adesão do público.

Pelo menos uma vez, no nascimento, o homem chora. Pelé chorou ao ganhar a primeira Copa do Mundo e, apesar disso (ou graças a isso) ganhou mais duas posteriormente. Quantos de nós não se dobrou em lágrimas no nascimento do primeiro filho? E quantos mais não verteram pranto em memória a um ente querido perdido?

Cita ainda, a título de exemplo (voltaremos a esse ponto quando falarmos em Ilustração e Modelo), um fato retirado da História, como ele mesmo revela, utilizado como argumentação pelo exemplo hierarquizado, permeado de ironia retórica:

eu também poderia ter corrido atrás de exemplos perdidos na História e chegar a uma conclusão totalmente oposta à sua. Não o fiz por não me permitir concluir com tão poucos elementos e por me ocorrer que tenho de cabeça um único exemplo tirado da Bíblia (que me merece no mínimo o mesmo crédito que Lincoln), em João 11:35, onde se lê: "Jesus chorou.".

Afasta, com essa argumentação pelo exemplo, a tese de seu oponente que sustenta que "homem que é homem não chora". Aqui os exemplos interagem, "permitindo especificar o ponto de vista sob o qual os fatos anteriores deveriam ser considerados" (Perelman: 404). É evidente que os enfoques de ambos são diferentes, mas o que se percebe é que o autor do Anexo II se aproveita dos mesmos argumentos utilizados pelo autor do Anexo I para contestá-lo e vai além, quando alerta os leitores dos perigos da utilização inadequada de exemplos generalizados.
No Anexo III observa-se a citação de novos exemplos e a tentativa de uma explicação mais adequada. No Anexo I, o autor sustenta, de maneira generalizada, que "homem não chora". É evidente ao leitor mais atento, que ele se refere a uma classe específica de homens – os políticos, aos quais ele chama de choramingas. Mas no primeiro texto ele cita exemplos de homens que não choram como associados a qualidade, a sinônimo de hombridade. Não deixa claro que se refere a um tipo de homens, antes generaliza a tese e a reafirma com muitos exemplos.
A réplica (Anexo II) recusa a tese generalizada de que "homem não chora", com seu contrário, quando afirma que "homem chora sim" e a sustenta com vários exemplos. O Anexo III está permeado de ironia retórica.
2) A Ilustração.
Argumentar pela ilustração difere da argumentação pelo exemplo em razão do estatuto da regra que um e outro apóiam. Enquanto o exemplo fundamenta a regra, a ilustração reforça a adesão a uma regra conhecida e aceita.
Tomando o texto do autor do Anexo II na passagem em que utiliza a citação bíblica "Jesus chorou", podemos nos perguntar: seria possível considerar esse um argumento pela ilustração?
Nesse caso não parece haver dúvidas de que se Jesus, tendo sido homem, chorou e nem por isso deixou de sê-lo, os homens em geral não perderiam sua condição pelo mesmo motivo, nem seriam diminuídos em sua hombridade. Encarando como ilustração ou exemplo, tal argumento parece conter em si força e autoridade e marca a presença do autor.
Embora sutil, a pouca diferença entre exemplo e ilustração não é irrelevante, pois permite compreender que, não só o caso particular serve para fundamentar a regra, mas também a regra é enunciada para vir a apoiar casos particulares que pareciam dever corroborá-la.
"O edifício construído por apenas um arquiteto é mais belo, uma cidade, mais ordenada; uma constituição, obra de um legislador só, bem como a verdadeira religião, 'cujos mandamentos Deus fez sozinho', é incomparavelmente mais bem regulamentada; os raciocínios de um homem de bom senso, concernentes às coisas que são apenas prováveis, estão mais próximos da verdade do que a ciência dos livros; os juízos daqueles que teriam sido conduzidos apenas pela razão, desde o nascimento, seriam mais puros e mais sólidos do que os dos homens governados por vários mestres. Descartes dá esses exemplos para sustentar sua proposição de superioridade daquilo que foi feito por um homem sozinho" (Perelman: 409). O teor desse texto ilustra exemplos e cuida de também ilustrações. As duas últimas citações: "é incomparavelmente... por vários mestres" são ilustrações e não exemplos. A ilustração contém em si, portanto, um juízo de valor.
Considerando os esclarecimentos entre exemplo e ilustração, é possível responder que o argumento "Jesus chorou" não se trata de exemplo (embora utilizado como tal) nem ilustração, pois não supõe uma concepção e um critério de verdade e do método, mas ainda voltaremos a esse ponto.
O autor do Anexo III utiliza-se da ilustração novamente quando cita Wilde:

Creio que foi Oscar Wilde quem disse certa vez (referindo-se obviamente às pessoas que escrevem) que no mundo só existe uma coisa pior do que ser comentado desfavoravelmente: é não ser comentado.

A ilustração inadequada não é invalidante, uma vez que a regra não está sendo questionada. Quando muito, o enunciado da ilustração inadequada repercute mais naquele que a formula e dá provas de sua incompreensão, de seu desconhecimento do sentido da regra.
A ilustração visa a aumentar a presença e não tende a substituir o abstrato pelo concreto nem transpor as estruturas para outra área. É verdadeiramente um caso particular, auxiliando a regra que até pode servir para enunciar. A ilustração é escolhida, às vezes, pela repercussão afetiva, como no caso de Aristóteles:

... ora, não há ninguém que não deseje ver claramente o fim em tudo. É isso que explica que, tendo chegado às balizas do estádio onde se faz a curva, os corredores ficam ofegantes e sucumbem, ao passo que, antes, enquanto tinham a meta diante dos olhos, não sentiam o cansaço.

Outra ilustração encontra-se no Anexo III, quando o autor especifica a citação de Rabelais no texto origem. E aqui temos, além da ilustração, a citação, que se trata de outra categoria de argumentação e lhe apoia. As citações, aliás, servem para reforçar teses apresentadas e procedem de fontes seguras:

As palavras de Rabelais a que me referi (popularizadas ... ) eram estas: 'Et maintenant riez, car le rire est le propre de l'homme'. E eu escrevi, em meu artigo: Rabelais dizia que le rire est le propre de l'homme'. Portanto, sem o interpretar nem sequer traduzir, citei 'ad litteram' o abade de Meudon. Mas o meu censor afirma que o distorci.
O autor do Anexo III se defende de uma possível acusação de "distorção" dos ditos de Rabelais. Não há, na verdade, distorção às palavras, e sim uma interpretação distorcida por parte do autor. Em outras palavras, se Rabelais foi explícito ao dizer que "o riso é próprio do homem" e não o foi com relação ao choro, concluiu o autor que chorar não seria próprio do sexo masculino. Não procede, portanto, afirmar que os ditos de Rabelais foram distorcidos. O autor do Anexo II refere-se à distorção da idéia e não os ditos. Ele se aproveita para exemplificar a própria asserção do autor do Anexo I, enfatizando-a, além de dar um toque irônico ao texto "é preciso ter cuidado imenso com as antinomias" para que não sejam causa de confusões.
Certas comparações ilustram uma qualificação genérica por meio de um caso concreto. O autor do Anexo II utiliza-se de argumento por comparação:

Perdoe-me se não tenho sua enorme erudição [...], não consigo escrever de forma tão bonita [...]; mais lícito pelo menos do que distorcer os ditos de Rabelais; [...] que merece, no mínimo, o mesmo crédito que Lincoln.

3. Modelo e Antimodelo
A argumentação pelo modelo ocorre quando pessoas ou grupos de prestígio valorizam os atos. O valor da pessoa, reconhecido previamente, constitui a premissa da qual se tirará uma conclusão preconizando um comportamento particular. Não se imita qualquer um. Para servir de modelo é preciso um mínimo de prestígio. Às vezes trata-se de um modelo a ser seguido por um pequeno grupo, às vezes é um padrão a ser seguido em determinadas circunstâncias.
Com base nessas considerações, pode-se retomar o argumento da réplica "Jesus chorou" e encará-lo como modelo e não como exemplo ou ilustração, sem perigo de incorrer em erros. O exemplo é genérico, a ilustração contém uma regra pressuposta e o modelo necessita prestígio comprovado para ser seguido como padrão.
O modelo indica conduta a ser seguida. O fato de seguir um modelo reconhecido, de restringir-se a ele, garante o valor da conduta, portanto, o agente que essa atitude valoriza pode servir de modelo. Quem um modelo mais competente e melhor reconhecido universalmente que Jesus? Conclui-se que consideradas as especificações o argumento utilizado na réplica é um modelo e não exemplo.
A existência da argumentação pelo modelo mostra que os modos de argumentação se aplicam às mais diversas circunstâncias, o que significa que a técnica argumentativa não é ligada à situação social definida nem no respeito a estes ou àqueles valores.
O modelo cuida de sua conduta, pois seus deslizes justificam outros. É Pascal quem constata:

O exemplo da castidade de Alexandre não fez tantos castos quanto o de sua embriaguez fez intemperantes. Não é vergonhoso não ser tão virtuoso quanto ele e parece desculpável não ser mais vicioso do que ele.

Utiliza-se o autor do Anexo III da argumentação por divisão "começa por aludir à minha 'enorme erudição', a meu 'saber imenso' e à minha faculdade 'de escrever de forma tão bonita'" e procura esclarecer e explicar sua intenção de falar das lágrimas de um grupo específico de homens e não de todos os homens. O leitor do primeiro texto, no entanto, percebe que o replicante foi, no mínimo, feliz. Só o fato de merecer tréplica o coloca como crítico competente, pois soube se aproveitar do uso da generalização e do mau uso de exemplos.
Na tréplica, o autor analisa um a um os parágrafos de seu crítico e, em cada um tenta se redime diante do leitor. Explica-se, utilizando-se novamente da argumentação por divisão "quando se aposentam, ou se despedem, ou transmitem o cargo; [...]". Essa explicação serve, no entanto, para fortalecer a posição de seu crítico.
Ele se poupa de alguns comentários, ou seja, utiliza-se do silêncio argumentativo, do silêncio retórico em alguns pontos de seu texto, com a intenção de deixar por conta do leitor as conclusões que lhe parecem óbvias.
O silêncio retórico é melhor utilizado ainda pelo autor do Anexo II, quando declina de responder a tréplica. Esse silêncio pode ser lido como forma contundente, uma vez que os exemplos citados pelo autor do Anexo III fortalecem a tese da réplica, de que homem chora em muitas ocasiões. Portanto, a tréplica mais se aproxima da réplica do que dela se distancia.
O antimodelo é aquele que não deve ser seguido, ou melhor, que deve ser evitado. Os pais, com freqüência, valem-se do antimodelo para fortalecer o proibitivo. Se a referência a um modelo possibilita promover condutas a serem seguidas, seu contrário, o antimodelo permite afastar-se delas, conforme exemplo de Montaigne que acredita ser, em alguns casos, mais eficaz.

Pode haver alguns iguais a mim, que me educo mais contrariando os exemplos do que os imitando e mais deles fugindo do que os seguido. Nessa espécie de disciplina pensava o velho Catão, quando disse que os sensatos têm mais que aprender com os loucos do que os loucos com os sensatos; e Pausânias conta que um velho tocador de lira costumava obrigar seus discípulos a irem ouvir um mau músico que morava em frente, para aprenderem a odiar suas desafinações e compassos errados...

O antimodelo impele à mudança de atitude em razão da repulsa ao erro. Nesse caso, busca-se distinguir alguém pela ação contrária ou pelo afastamento. É preciso, no entanto, conhecer os dois lados da conduta, senão perde-se o referencial: "afastar-se de Sancho Pança só é concebível para quem conhece a figura de Dom Quixote; a visão do hilota só pode determinar uma conduta para quem conhece o comportamento de um espartano aguerrido." (Perelman: 418).
IRONIA
Embora a proposta deste trabalho seja analisar a argumentação pelo exemplo, pela ilustração e pelo modelo/antimodelo, não se pode deixar de observar a ironia, figura retórica que permeia os três artigos.
A ironia, genericamente, é o modo de expressão que consiste em dizer o contrário do que as palavras significam. A ironia socrática é a arte pela qual Sócrates interrogava um discípulo sobre pontos aparentemente afastados do assunto e o conduzia, por um jogo de perguntas sucessivas, a voltar ao tema inicial, colocando-o em face de uma grande contradição, na qual o discípulo se embrenhava sem perceber.
O autor da tréplica utiliza-se fartamente da ironia (não socrática) em sua defesa e de citações:
Creio que foi Oscar Wilde quem disse certa vez (referindo-se obviamente às pessoas que escrevem) que no mundo só existe uma coisa pior do que ser comentado desfavoravelmente: é não ser comentado. [...] me dá a grata satisfação de ter escapado, desta feita, ao que Wilde considerava o pior. Realmente, fui comentado. Desfavoravelmente, é certo, mas, enfim (seja Deus louvado!), fui comentado.

É profundamente irônico quando diz que foi comentado, "desfavoravelmente, é certo, mas enfim (seja Deus louvado!)". Em alguns pontos sua ironia beira ao sarcasmo.
A finalidade da ironia não é agredir, embora, muitas vezes seja essa a utilização que dela se faz por se tratar de argumentação indireta.
A ironia ocorre quando a ilustração é voluntariamente inadequada e não pode ser utilizada nos casos em que pairam dúvidas sobre as opiniões do orador. É empregada porque há utilidade e seu uso é possível em todas as situações argumentativas.
Embora concorde com a presença de ironia no Anexo II, não se pode afirmar que o autor, no início do texto esteja dela se utilizando, como afirma o autor do Anexo III, com argumentos por divisão e comparação no mesmo segmento: "A ironia é tão direta, tão evidente, tão destituída de qualquer 'nuance', que me poupa o trabalho de negar possuir qualquer erudição..."
Perdoe-me, sr. Eurico Penteado, se não tenho sua enorme erudição e, por não tê-la, não consigo escrever de forma tão bonita quanto faz.

Se observada à luz da retórica de Perelman e de Aristóteles, não há bases suficientes para afirmar que esse parágrafo contenha ironia. Diz-nos Perelman: "através da ironia quer-se dar a entender o contrário do que se diz" e pareceria temerário encarar como irônica a peroração do autor do Anexo II. Ela demonstra, quando muito, um caráter duvidoso. Somente o autor seria capaz de esclarecer sua intenção nesse contexto. Faz-nos pensar em juízos de valor. A ironia para ser efetiva precisa de amplo conhecimento do assunto pelas partes e, no texto, não é possível essa afirmação, considerando que seu interlocutor é o público e não uma resposta pessoal ao autor, embora a ele se refira:

É por isso que escrevo, não ao senhor, mas a esta seção. Para que todos os que o leram e porventura possam tê-lo levado a sério saibam o quão faccioso o senhor foi [...] ao usar dois ou três exemplos clássicos e a partir deles construir toda uma lógica desconexa e infantil.

A ironia se torna mais eficaz quando dirigida a um grupo bem delimitado. Apenas a concepção que se faz das convicções de certos meios nos pode fazer adivinhar se determinados textos são ou não irônicos. É o que vemos no Anexo I, quando o autor se refere aos políticos que choram:

... abundaram (...) em nossos altos escalões administrativos, os chorões, isto é, os que, se não chegam a prantear, estão sempre 'com os olhos marejados de lágrimas', quando se aposentam (...) ou quando simplesmente sofrem uma derrota política.

A ironia é basicamente um processo de defesa. Por isso, para ser compreendida, exige conhecimento prévio das posições do orador, que devem ter sido colocadas em evidência pelo ataque. É o que se vê no Anexo III, particularmente no texto que segue, em que evidencia com aspas até o tom da ironia, enfatizando pensamentos que o autor do Anexo II teria tido com relação ao Anexo I:

O meu paciente censor (o fato de me ter lido é penhor de sua paciência) começa por aludir à minha 'enorme erudição', a meu 'saber imenso' e à minha faculdade 'de escrever de forma tão bonita'.

Considerando-se o exposto sobre a ironia, podemos afirmar que o Anexo I apresenta um tom irônico, o Anexo II conduz-se através da ironia e que o Anexo III é nela fundamentado.
Observemos, por fim, as conclusões dos três artigos:

A despeito de tudo isso, o Brasil progride. Será que progredimos durante a noite, enquanto os choramingas dormem?

O autor do Anexo I é irônico, encerrando e enfatizando o tom com que permeia seu discurso.

A despeito de tudo isso, senhores, o Brasil progride. Durante a noite, enquanto os choramingas dormem, mas também durante o dia, enquanto os vermes se incomodam com os grandes homens.

O autor do Anexo II ultrapassa o caráter irônico alcançando a mordacidade e a acusação explícita.

Suponho, sem resquício de modéstia, que seja eu um desses vermes. Confesso ignorar, porém, quais os grandes homens com que me incomodo. E estou certo de que nenhum deles se incomoda comigo...

Na conclusão do Anexo III, o autor além de irônico, vai além da mordacidade e a supera quando admite estar acima (ou abaixo) das opiniões que se poderiam conceber dele.
Como vemos, os três artigos se encaixam no tipo de discurso jurídico, apresentando uma tese, sua defesa, sua contestação, as provas, os precedentes, réplicas, tréplicas. Não nos cabe definir vencedores ou perdedores e sim apontar figuras e tipos de argumentação. Deixamos ao leitor o papel de jurado.


BIBLIOGRAFIA

PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. "Tratado da Argumentação – A Nova Retórica", Livraria Martins-Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1996.
ARISTÓTELES. "A Arte Retórica", Abril Cultural S.A, São Paulo, jan, 1973.
GUIMARÃES, Elisa. "Figuras de Retórica e Argumentação" in: MOSCA, L.L.S., "Retóricas de Ontem e de Hoje", Humanitas Livraria, FFLCH/USP, São Paulo, 1997.
PENTEADO, Eurico. "Por que tanta lágrima", in: Jornal "O Estado de São Paulo", São Paulo, 27/03/89.
SOUZA, Luciano R.R. "Lágrimas. Por que não?", in: Jornal "O Estado de São Paulo", São Paulo, 27/03/89.
PENTEADO, Eurico. "Ainda as lágrimas", in: Jornal "O Estado de São Paulo", São Paulo, 27/03/89.

Anexo I
Por que tanta lágrima?
Eurico Penteado
Em uma de suas reminiscências Lincoln relembra que, quando era ainda modesto advogado, em Springfield, Estado de Illinois, certa manhã, ao dirigir-se para o escritório, viu que um garoto, com um dos pés ensangüentado, estava sendo carregado para a farmácia local.
Reconhecendo no rapazelho o filho de um amigo, Lincoln dirigiu-se também à botica, onde ficou sabendo que o menino, quando corria descalço pelas ruas, dera violenta topada em uma pedra, o que quase lhe quebrara o dedo grande do pé.
Enquanto o farmacêutico lavava o ferimento, Lincoln sentou-se ao lado do ferido e afetuosamente lhe perguntou como se sentia. O rapazote, que mordia os lábios para controlar-se, o encarou e respondeu com firmeza: "Não posso chorar, porque sou homem; mas também não posso rir, porque dói demais."
Esse minúsculo episódio, tão singelamente narrado pelo grande presidente dos Estados Unidos ocorreu-nos à mente dias atrás, por um curiosos processo mnemônico a que talvez pudéssemos chamar associação de idéias por antinomia.
Isso aconteceu ao lermos nos jornais a notícia, fotograficamente documentada, de que, recentemente, um político de nossa capital se debulhou em pranto, ao tomar conhecimento de uma decisão contrária a suas ambições, de parte da Comissão Executiva do agrupamento político a que pertence.
Ao que se sabe, o lacrimejante paredro desejava ser prefeito da capital paulista, cargo para o qual estava notória e sobejamente despreparado – segundo opinião que só não é unânime porque dela discrepa o interessado.
Compreendemos perfeitamente seu desengano ante a decisão contrária dos correligionários, mas não logramos entender a reação lacrimosa que essa desilusão provocou.
Se sua capacidade de controle emotivo é deficiente, ou mesmo inexistente, seria admissível que reclamasse, que deblaterasse, ou que usasse até de palavras ou expressões que o decoro destas colunas não nos permitiria citar. Seria uma reação prosaica, deseducada, talvez mesmo chula – porém compreensível, por demonstrar, pelo menos, um resquício de virilidade.
Cremos ter mencionado por estas colunas, há um par de anos ou pouco mais, uma antiga história que ilustra o ponto: um velho diplomata inglês, embaixador aposentado, ter-se-ia encontrado certa vez com um jornalista que abruptamente, lhe desfechou esta pergunta: "Embaixador, qual a sua opinião sobre o general Campbel"?
E o veterano diplomata, pausadamente – britanicamente – respondeu: "Possivelmente, um herói; porém, não um cavalheiro." ("Possibly a hero, but certainly not a gentleman.").
Assim, se o ilustre prócer municipal tivesse vociferado seu ressentimento em vocabulário desconhecido das donzelas de outros tempos, não teria, naturalmente, reagido como um gentleman. Mas sua imagem perante os munícipes da Capital teria sido bem melhor do que é, após sua reação.
Rabelais dizia que "le rire est le propre de l'homme". Mas não nos consta que jamais alguém tenha dito que chorar seja próprio seja próprio de homens.
Nossos antepassados, ao que parece, eram da mesma escola daquele garoto da história acima citada, que não podia chorar, "porque era homem". Realmente, em nossa longínqua adolescência, ouvimos mais de uma vez este preceito, ou conselho muito em voga naqueles tempos: "Desconfie de homem que chora – e de mulher que não chora."
Ainda acreditamos nesse conceito, mas reconhecemos que já agora, pelo menos no que respeita aos homens, tal crença principia a ser solapada pela dúvida. (E apenas desejamos que essa dúvida não seja como aquela de que falava um autor inglês do século XVIII, "melhor que a certeza de muita gente".)
Parece indiscutível que o Brasil, nos últimos 15 anos, progrediu enormemente e passou, da inglória condição de país subdesenvolvido e terceiromundista, para a categoria bem mais prazenteira de potência emergente. Entretanto, pelo menos na Segunda metade desses três lustros, abundaram (íamos escrever predominaram, mas não queremos parecer exagerados), em nossos altos escalões administrativos, os chorões, isto é, o que , se não chegam a prantear, estão sempre "com os olhos marejados de lágrimas", quando se aposentam, ou transmitem um cargo, ou se despedem (apenas funcionalmente) de colegas de alguns anos, ou quando recebem manifestação de apreço, ou quando simplesmente sofrem uma derrota política.
Quase diariamente os jornais noticiam episódios lacrimosos, ora nos debates parlamentares de Brasília, ora nas Assembléias Estaduais, ora em Ministérios e outras altas esferas administrativas. Mas estas já não detêm o monopólio das lágrimas: nossos colegas de O Estado de São Paulo noticiaram no último Domingo (pág. 55), com fotografia comprobatória, o acesso de choro um líder sindicalista.
A despeito de tudo isso, o Brasil progride. Será que progredimos durante a noite, enquanto os choramingas dormem?

Anexo II
Lágrimas. Por que não?
Luciano R. Rocha Souza
Sr.: "Perdoe-me, sr. Eurico Penteado, se não tenho sua enorme erudição e, por não tê-la, não consigo escrever de forma tão bonita quanto faz.
Acontece que não basta um saber imenso e o emprego de termos inusitados para se construir uma boa coluna. Um boa coluna (quase um editorial) exige no mínimo responsabilidade, além de (é claro) um trabalho de pesquisa profundo e o correto emprego da faculdade, de que só os homens gozam, de refletir.
Em se tratando de acusações, então, mesmo que se possa esconder atrás de célebres citações de alguns grandes homens (deturpando-as um pouco), torna-se vital um cuidado imenso com as antinomias, para que os choques não sejam nem fatais nem letais.
Talvez o senhor não estivesse acusando ninguém e apenas ocupando um espaço pelo qual (creio eu) o senhor recebe e que por isso mesmo fosse obrigado a fazê-lo. Se assim foi, sr. Eurico, melhor seria que tratasse de abstrações quaisquer e que não trouxesse ao público em geral dúvidas a respeito de qualidades do homem, nem tampouco enlameasse por um único gesto, que por sinal o senhor mal ou nada entende, homens públicos.
E é por isso que escrevo, não ao senhor, mas a esta seção. Para que todos os que o leram e porventura possam tê-lo levado a sério saibam o quão faccioso o senhor foi (eu ia dizer maldoso) ao usar dois ou três exemplos clássicos e a partir deles construir toda uma lógica desconexa e infantil.
Pasmem, senhores leitores, mas é lícito ao homem chorar (mais lícito pelo menos do que distorcer os ditos de Rabelais). Pelo menos uma vez, no nascimento, o homem chora. Pelé chorou ao ganhar a primeira Copa do Mundo e, apesar disso (ou graças a isso) ganhou mais duas posteriormente. Quantos de nós não se dobrou em lágrimas no nascimento do primeiro filho? E quanto mais não verteram pranto em memória a um ente querido perdido? E se aconteceu um dia de um rapaz machucar um dedo (feito esse que me parece bem menos importane do que reunir uma multidão de 160.000 pessoas coesas e conscientes) e não chorar, isso pode tê-lo tornado quando muito uma manco, nunca um herói. Além disso, senhores, talvez seja mesmo tempo de chorar. De raiva ou de emoção, de alegria ou dor, por medo ou desabafo.
Talvez seja essa a melhor hora para colocarmos para fora de nós todos os nossos sentimentos e que através deles consigamos construir um mundo melhor. Um herói, um grande homem, uma grande nação constroem-se com grandes feitos, muito suor e um pouco de lágrimas. Como fez o sr. Eurico, eu também poderia ter corrido atrás de exemplos perdidos na História e chegar a uma conclusão totalmente oposta à sua. Não o fiz por não me permitir concluir com tão poucos elementos e por me ocorrer que tenho de cabeça um único exemplo tirado da Bíblia (que me merece no mínimo o mesmo crédito que Lincoln), em João, 11:35, onde se lê: "Jesus chorou.
A despeito e tudo isso, senhores, o Brasil progride. Durante a noite, enquanto os choramingas dormem, mas também durante o dia, enquanto os vermes se incomodam com os grandes homens.

ANEXO III
Ainda as Lágrimas
Eurico Penteado
Meu artigo de 27 do mês findo, "Por que tanta lágrima?", mereceu os comentários que aparecem abaixo, na seção São Paulo Pergunta.
Creio que foi Oscar Wilde quem disse certa vez (referindo-se obviamente às pessoas que escrevem) que no mundo só existe uma coisa pior do que ser comentado desfavoravelmente: é não ser comentado.
Assim, a mencionada carta (que o autor explica ter dirigido à coluna São Paulo Pergunta e não a mim, mas que a mim se refere nominal e repetidamente) me dá a grata satisfação de ter escapado, desta feita, ao que Wilde considerava o pior. Realmente, fui comentado. Desfavoravelmente, é certo, mas, enfim (seja Deus louvado!), fuif comentado.
O meu paciente censor (o fato de me Ter lido é penhor de sua paciência) começa por aludir à minha "enorme erudição", a meu "saber imenso" e à minha faculdade "de escrever de forma tão bonita."
A ironia é tão direta, tão evidente, tão destituída de qualquer "nuance", que me poupa o trabalho de negar possuir qualquer erudição – enorme ou minúscula – e de esclarecer que conto apenas com o saber rasteiro de qualquer alfabetizado estudioso. E quanto a escrever bonito, francamente não vale a pena comentar.
Um dos reparos do censor: "Pasmem os senhores leitores, mas é lícito ao homem chorar (mais lícito, pelo menos, do que distorcer os ditos de Rabelais)." Não vejo razão para pasmo de quem quer que seja.
Não escrevi um tratado, ou sequer um ensaio sobre as lágrimas. Não neguei, portanto, ao homem (e seria estultice fazê-lo) o direito de chorar. Mas considerei – e continuo a considerar – grotescas as lágrimas dos choramingas, que as vertem publicamente (como está dito em meu artigo) "quando se aposentam, ou transmitem um cargo, ou se despedem, funcionalmente, de colegas de alguns anos, ou recebem manifestações de apreço, ou simplesmente sofrem uma derrota política".
Se o meu censor equipara, se coloca no mesmo nível sentimental as lágrimas de um homem golpeado pela perda de uma esposa devotada ou de um filho querido e as lágrimas de um maricas, que as verte porque foi derrotado em votaçãozinha municipal – positivamente não posso concordar. Para mim, são coisas antagônicas: umas, comovedoras e profundamente respeitáveis; outras, burlescas e caricatas.
Na mesma frase acima citada, porém, o censor vai mais longe e me acusa de "distorcer os ditos de Rabelais".
Esta é (digamo-lo eufemisticamente) uma curiosa acusação. Durante meus vários decênios de jornalismo, a princípio como profissional, depois como colaborador, sempre tive o vezo (talvez o mau vezo) de fazer freqüentes citações. Não me impelia a isso o desejo de mostrar erudição, uma vez que fazer citações está ao alcance de qualquer escriba que, embora de escassa leitura, possua alguns dicionários de citações, dentre a centena dos que existem, em inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e outros idiomas.
Minha motivação sempre foi outra – e a expliquei candidamente por estas colunas, há um par de anos ou pouco mais. É que sempre tive irresistível e irrestrita admiração pelos que têm a faculdade (que um grande crítico, com justiça, atribuiu a Renan) "de expressar altos pensamentos em linguagem impecável". Como sou, e sempre fui, incapaz de realizar tal proeza, habituei-me a citar – sempre que isso vinha a pêlo – os que a praticaram. Jamais, porém, deturpei ou adulterei uma citação. E é disso que agora me acusam.
As palavras de Rabelais a que me referi (popularizadas, aliás, por Eça de Queiroz, em seu ensaio sobre "A decadência do riso", página 205 da 5a edição das "Notas Contemporâneas") eram estas: "Et maintenant riez, car le rire est le propre de l'homme." E eu escrevi, em meu artigo: "Rabelais dizia que "le rire est le propre de l'homme." Portanto, sem o interpretar nem sequer traduzir, citei "ad litteram" o abade de Meudon. Mas o meu censor afirma que o distorci. Abstenho-me de comentar.
No quinto período de sua carta o censor me acusa ("excusez du peu...") de Ter enlameado homens públicos. Em primeiro lugar, este jornal jamais publicaria qualquer artigo – meu ou de quem quer que fosse – cujo propósito fosse o de enlamear quem quer que fosse – cujo propósito fosse o de enlamear quem quer que seja. E, em segundo lugar, nunca foi meu propósito, em minha longa vida jornalística, enlamear alguém.
Não me parece, entretanto, que criticar (embora com certa irreverência) os chorões, que vertem lágrimas em público, não por terem sido vítimas de uma tragédia, mas apenas porque foram derrotados na votação de um grupelho municipal – não me parece que isso seja enlameá-los.
O meu censor termina sua missiva concordando comigo em que talvez o Brasil progrida durante a noite, enquanto os choramingas dormem. Mas acrescenta que talvez façamos progressos "também durante o dia, enquanto os vermes se incomodam com os grandes homens". Suponho, sem resquício de modéstia, que seja eu um desses vermes.
Confesso ignorar, porém, quais os grandes homens com que me incomodo. E estou certo de que nenhum deles se incomoda comigo...



O Medo na Escola: Aspectos Retóricos e Filosóficos
Introdução
Ao escrever "Em verdade temos medo. Nascemos escuro. [...] E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios vadeamos" (DRUMMOND, 1945) o poeta coloca o homem no meio do medo. Ou o medo como capa sobre o homem. Qual o sentido desse vocábulo? Uma roupagem, um movimento, uma armadilha? Uma essência em nós? Os seus contrários? Até onde nos afeta?
A escola, que tem papel fundamental na construção do conhecimento, muitas vezes gera conflitos, angústia, medo. Uma das formas de enfrentamento talvez seja ouvir o que filósofos e estudiosos disseram a seu respeito. Quem sabe assim, retirados uns poucos véus, seja possível ao menos encará-lo e estabelecer alguma cordialidade.
Platão, Aristóteles, Hobbes, Descartes, Espinosa, Meyer são filósofos que se ocuparam do medo. Evidentemente não foram os únicos, mas uma escolha era necessária. O que há de comum entre eles é a colocação do medo como paixão, embora o conceito de paixão não seja igual neles.
Após mostrar o que cada um daqueles pensadores tem a dizer, procuraremos, por meio de um estudo de caso, verificar quais os medos apontados por professores e alunos de escola pública de nível superior e o que eles representam retoricamente.
Para tanto, em uma primeira etapa foram efetuadas duas perguntas a 150 alunos (total de 900) e 53 professores (total de 120). Basicamente eles deveriam apontar os medos observados em alunos e professores, assim seria possível verificar se a perspectiva docente difere da discente. Na segunda etapa, foram agrupados os medos
Os resultados parecem interessantes, principalmente se considerarmos o discurso corrente de que aluno nada teme e com nada se preocupa.
Platão e Aristóteles
Para Platão, a alma humana seria afetada por paixões (pathematas), que são em número de 4: as ilusões, os corpos sensíveis, as matemáticas e as ideias. Quando, no livro VI da República, fala sobre o Diagrama da Linha e Mito – ou Alegoria da Caverna – coloca a teoria do conhecimento (gnosiologia) e a teoria do ser (ontologia). O diagrama parte do traçado de uma linha horizontal imaginária. Abaixo dela ficariam os dois modos de realidade sensível: eikasia ( - coisas: imagens, sombras, reflexos) e pistis ( - objetos: corpos vivos, corpos naturais). Acima, os dois modos do mundo inteligível: dianóia ( – elementos matemáticos, quânticos) e a noética ( - as ideias). Todos esses modos estão fora do homem e o afetam, portanto são afecções, ou melhor, paixões.
Em outras palavras, o homem passa por quatro maneiras de apreender o mundo: a percepção (coisas – eikasia), a sensibilidade (objetos naturais – pistis), o entendimento (elementos matemáticos – dianóia) e a razão (ideias – noésis). Assim, é possível entender um nível de conhecimento mais fundamental, o do mundo sensível, que se colocaria abaixo da linha horizontal: o das coisas e dos objetos naturais e um mundo, digamos, superior, o inteligível, representado pelos elementos matemáticos e as ideias. Para o filósofo, como todos estão fora do homem, certamente o afetam de alguma forma.
Ao pensar a Alegoria da Caverna, em que todo o universo sensível compõe-se de sombras e luz, é possível aprofundar a questão, e concluir que eikasia e pistis (coisas e objetos) associam-se à doxa ( –mundo da opinião). O que vemos, para Platão, não "é" de fato, mas sim nossa impressão sobre o verdadeiro, pois ora estamos ofuscados pela luz intensa e não podemos ver, ora estamos cegos pela escuridão das sombras da caverna, além de não sabermos o que há fora dela. Por outro lado, a dianoia e a noética pertencem à episteme ( - mundo do saber, que se divide em dois: o que se constrói e permite ao sujeito humano criar hipóteses depois da elaboração de raciocínios e chegar a conclusões e o saber que não visa alcançar qualquer conclusão, mas atingir o princípio incondicional.
Na verdade, toda essa divisão depende de crença, para o filósofo. O próprio saber científico residiria em crenças no momento que, para elaborar uma hipótese, por exemplo, o cientista precisa acreditar nela.
O homem platônico como ser essencialmente passional no sentido de ser afetado pelo que está fora, sujeita-se ao medo. E é ainda no mito da caverna que ele trata o medo: o medo do novo, do diferente. Ao perguntar "afinal de contas, o que existe lá fora?", tal questionamento leva à dúvida, à incerteza, à ansiedade, ao medo. Tanto aluno quanto professor são afetados por esses estados, que serão analisados mais à frente.
Embora muitos outros filósofos tratem do assunto, Meyer afirma que foi com Platão que tudo começou, talvez com Sócrates e os sofistas (MEYER, 2003). Meyer introduz a questão da problematicidade, termo estudado profundamente por ele, a partir de Sócrates, que dizia "só sei que nada sei" e, com isso, não pretendia responder às perguntas, porque elas permanecem. Quanto mais difíceis de serem respondidas, mais problematológico é o objeto de discussão.
Platão tenta responder tais questões por meio da teoria do logos ( ) racional, diferentemente de uma concepção baseada na problematicidade, segundo a qual, quanto mais incertas as alternativas, maior o nível de problematicidade. A teoria do logos baseia-se no raciocínio apodítico (demonstração). Nesse sentido, o que não é apodítico, o que não pertence ao logos, seria do domínio da doxa, suscetível, portanto a contestações.
Nesse contexto, surge Aristóteles que se dedica à produção de uma teoria da argumentação e da retórica, em resposta ao logos platônico que, por meio de proposições e demonstrações, acaba por transportar o homem a um jogo de paixões (novamente a alegoria da caverna).
Aristóteles define Retórica como derivada da Dialética e da Política (2002, p. 34), como "faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão [...] de descobrir o que é próprio para persuadir", e acrescenta que "nenhuma outra arte possui esta função, porque as demais artes têm, sobre o objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e de persuadir".
A persuasão se dá por meio de três provas retóricas: o ethos ( ), representado pelo caráter moral (o orador deixa transparecer que é confiável); o logos, constituído no discurso (o orador demonstra as verdades ou o que parece ser verdade) e o pathos ( ), paixão despertada nos ouvintes.
Aliás, Aristóteles afirma que os desejos fazem parte da natureza humana tanto quanto a razão e não vincula a virtude com a falsa expectativa de uma vida livre de emoções ou paixões. Nesse sentido, difere dos estoicos, que definem a paixão – em si mesma um pecado – como ignorância e vício.
A filosofia de Aristóteles mostra que não é possível condicionar a virtude e a boa conduta à ausência de emoções ou paixões porque estes são constitutivos da alma e, em alguma medida, movem o homem. Como afirma que sem elas o homem seria sem vida, incapaz de ação, o filósofo trata de discriminá-las, dividi-las, categorizá-las, para, ao fim, determinar em que medida são capazes de conduzir à boa ou má conduta.
Entendo por emoções apetite, cólera, medo, arrojo, inveja, alegria, amizade, ódio, anelo, emulação, piedade, em geral tudo a que se segue prazer ou dor (EN II 4 1105b21) [...] as paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas, assim como seus contrários (Aristóteles, 2003).
Conforme o filósofo, o medo "é uma espécie de pena ou de perturbação causada pela representação de um mal futuro e suscetível de nos perder ou de nos fazer sentir pena" (ARISTÓTELES, 2002, p.110), porém esclarece que não se teme o que está distante. Em outro momento, ele afirma que o temor "é certo desgosto ou preocupação resultantes da suposição de um mal iminente ou danoso ou penoso" (op. cit, p. 31). Se o sentimento despertado pelo medo apresenta uma variação nos sentimentos despertados (pena/perturbação, desgosto/preocupação), a causa é a mesma: mal futuro ou mal iminente, danoso, penoso.
Na verdade, tudo que possa causar mal, provoca temor e é mais temível o que está mais próximo. A variação ocorre apenas na intensidade do medo: a injustiça, por exemplo, nos faz mal; o ódio e a cólera, os poderosos, os rivais podem causar mal ainda maior. São também causa de medo os dissimulados e espertos porque nunca se sabe o que pretendem.
O temor se torna maior quando não há possibilidade de correção do mal, por alguma impossibilidade inerente ao autor (do mal) ou porque não dependa dele tal correção. Pode-se dizer que o medo não se restringe a pessoas, mas ao próprio mal e ao momento em que ele é cometido.
Aristóteles opõe ao temor a confiança. Se o mal é iminente, se há possibilidade de ocorrer, tememos; se está muito afastado, temos confiança de que não nos afetará. Associa-se à confiança, a esperança, ou seja, espera-se escapar da situação de medo.
É interessante que o filósofo coloca o medo como uma das paixões a ser utilizada em favor da persuasão: algumas vezes é necessário despertar o temor no auditório para captar-lhe a atenção e muitas vezes esse tipo de pressão é utilizado por professores, o que provoca medo nos alunos.
Hobbes, Descartes e Espinosa
Os intérpretes de Hobbes o consideram, porque experimentou os "horrores do mundo", um pensador que soube descrever muito bem a natureza humana tal como é. Nascido no ano em que a Invencível Armada espanhola se aproximava da Inglaterra, afirmava que sua mãe entrou em trabalho de parto ao ouvir rumores da aproximação daquela armada, e escreve "de modo que o medo e eu nascemos gêmeos".
A partir do pensamento que coloca a natureza humana em um plano denominado "não composição" com os pares, após construir todo um conceito de homem natural e estabelecer divisões em poder cognitivo ou imaginativo (em que estão as paixões) e poder motor, afirma que a vida é "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta". Entre as paixões enumeradas por Hobbes, o medo desempenha papel importante. Comenta, por exemplo, que o medo da morte e a busca por uma vida confortável e digna são paixões motivadoras na busca da paz e destaca o medo recíproco como motor da sociedade civil.
devemos, portanto, concluir que a origem de todas as grandes sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros. (HOBBES, XXXXX)
Nesse sentido, a natureza é "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta" e o homem é, por natureza e constantemente, inimigo do próprio homem (homo homini lupus). Diferentemente de Aristóteles, o medo em Hobbes é uma paixão intrínseca ao homem, motor de suas atitudes. O indivíduo está em permanente luta contra seus medos, dos quais o maior é a morte, sua principal ameaça. O interessante é que os homens, pelo medo e pelo desejo de uma vida melhor, estabelecem um pacto social de bem viver, que transforma o medo em motivação a uma convivência pacífica. Sem o medo, esses "contratos" talvez não existissem e os homens viveriam sob ameaça constante.
Diversamente, a base da filosofia cartesiana (Meditações) é a busca de uma doutrina que permita atingir a felicidade. Sua metafísica está dirigida ao homem de bem. Como o conhecimento provém dos sentidos e o homem se engana algumas vezes, Descartes passou a duvidar de tudo, inclusive das suas crenças matemáticas. Esse raciocínio levou-o a duvidar de sua própria existência, dúvida essa que se resolveu com o pensamento:
Se estou assim persuadido de que não há nada, nem céu, nem terra, nem espíritos, nem corpos, não estou entretanto persuadido de que não existo. Eu sou, se me engano; duvido, penso, existo: essa palavra é necessariamente verdadeira todas as vezes que a concebo em meu espírito. Minha existência [...] está garantida e vejo claramente que esta coisa pensante é mais fácil, enquanto tal, de conhecer do que o corpo, a cujo respeito até agora nada me certifica. Este Cogito, este "eu penso", modelo de pensamento claro e distinto, dá-me a garantia subjetiva de toda ideia clara e distinta no tempo em que a percebo. (DESCARTES, XXXXX)
Descartes esclarece as coisas do mundo no livro Física, em que mostra quais são as ilusões ocasionais dos sentidos humanos e explica a distinção entre alma e corpo. Na verdade, o filósofo diz que o corpo não é apenas a residência da alma, mas corpo e alma são tão unidos que "as sensações apreendem qualidades e não essências objetivas" (1973, p. 22). Provém daí o que ele denomina como paixões, que são as "percepções ou emoções ou sentimentos da alma, que se relacionam particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortificadas por alguns movimentos dos espíritos" (op. cit, 1973, p. 22).
Apesar dessa união, ele atribui funções diferentes a cada um: "o calor e o movimento dos membros procedem do corpo, e os pensamentos, da alma" (1973, p. 228) e explica as funções do corpo (movimento dos músculos e do coração, atuação dos objetos de fora sobre os órgãos dos sentidos) diferentes das da alma (vontade, percepção, imaginações).
Em As Paixões da Alma, Descartes define paixões como "as percepções, ou sentimentos ou emoções da alma que referimos particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos" (1973, p. 237). Embora tenha dito anteriormente que corpo e alma são intimamente ligados, ao colocar as funções de um e outro tem-se a impressão que finalmente o filósofo os separou. No entanto, ele afirma que as paixões estão localizadas em uma glândula no cérebro, no meio de sua substância, diferentemente de outras crenças para as quais a sede das paixões seria o coração, de maneira mais subjetiva. De qualquer forma, configura-se aí a ligação corpo-alma.
O pensador coloca como causa das paixões a "agitação com que os espíritos movem a pequena glândula situada no meio do cérebro" (1973, p. 251) – isso é físico – e acrescenta que podem ser excitadas por objetos que afetam os sentidos. Embora comente sobre várias paixões, afirma que existem seis primitivas, das quais todas as outras derivam: amor, ódio, admiração, desejo, alegria e tristeza.
O medo, para Descartes, seria proveniente da pouca probabilidade de se obter o que se deseja. A falta de esperança causa o temor que, ao extremo se transforma em desespero. O contrário de medo, para ele, seria a esperança e seu extremo, a confiança.
A outra forma do filósofo pensar o medo é sua proveniência do primitivo ódio que se explica pelo distanciamento do amor, da esperança e da alegria. Distanciar-se do bem leva o homem ao ódio, ao temor, à tristeza. Os diversos desejos, segundo ele, derivam das diferentes espécies de amor e ódio.
Outra maneira cartesiana de ver o temor seria a disposição da alma segundo a qual uma coisa desejada não virá. O contrário do temor, nesse caso, é a esperança, que em excesso, o anula e se transforma em segurança ou confiança. Por outro lado, a falta extrema de esperança conduz ao desespero. O medo pode também ser associado à falta de coragem, excesso de covardia e receio e se traduz por uma perturbação e um espanto da alma. Nesse sentido, é possível observar em alunos e professores o medo cartesiano derivado da falta de esperança de que algo se concretize, conforme se verificará na análise das respostas aos questionários distribuídos nas escolas.
Espinosa, assim como Descartes, buscou pensar o homem e suas relações com o mundo e com Deus. Enquanto Descartes, talvez devido à sua formação jesuítica, procurou conciliar as questões humanas derivadas de seu questionamento inicial de que nada existiria e que o levou a descobrir sua existência pelo pensamento (cogito ergo sum – penso, logo existo) com as questões divinas (penso em Deus, logo ele existe para mim ou em mim), Espinosa não se preocupou em romper com a teologia tradicional, que colocava Deus como transcendente. Este filósofo coloca Deus no mesmo nível da natureza, ou seja, os dois são o mesmo. Preocupado com o problema da Liberdade, ligou Deus à ideia de liberdade, à ideia de causa. Dessa forma, Deus seria a causa ativa, portanto, livre, produtivo, não constrangido por ninguém. O homem, por outro lado, é constrangido pelas forças externas, por isso nunca é ou será livre.
Neste momento, Espinosa introduz que todos os homens que existem são dotados de ação e de paixão. Os homens não poderiam ser ativos porque as forças que veem de fora é que os constituiriam. Em outras palavras, todos os seres que precisam de forças externas para se constituir são apaixonados. Se são seres apaixonados porque não podem constituir-se a si mesmos, não são livres. Essa ausência de liberdade é reforçada pela sua epistemologia, segundo a qual existem três gêneros do conhecimento: 1) experiência vaga ou consciência, segundo o qual o conhecimento é apenas um efeito ou resultado do encontro dos nossos corpos com outras vidas. As marcas desses encontros resultariam na consciência, que não é ativa, mas consequência dessas forças que veem de fora. O homem da consciência não é livre, é um corpo apaixonado e como tal encontra-se na servidão total; 2) razão, segundo o qual o homem começa a ter alguma atividade. Ele se relaciona com a natureza e começa a compreender, ou seja, teria algum conhecimento. Embora adquira capacidade de conhecer o que está fora dele, ainda não é produtor ou criador; 3) poder de invenção, segundo o qual ele ultrapassa o conhecimento e se torna capaz de inventar e criar. Enquanto o segundo gênero do conhecimento – a razão – busca a verdade no campo epistemológico, o terceiro gênero ultrapassa e produz novas linhas, outra música, outro pensamento.
Como as paixões se constituem no resultado de forças que veem de fora, oscilamos em nossas paixões: cólera, raiva, medo, ou seja, somos seres oscilantes. Ao afirmar que "qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de esperança e de medo" (p. 159), demonstra que o contrário de medo é a esperança. Assim, define o medo como "uma tristeza inconstante, surgida da imagem de uma coisa duvidosa", enquanto a esperança é "uma alegria inconstante, surgida da imagem de uma coisa futura ou pretérita, de cuja realização duvidamos". (1980, p. 139)
Aos causadores do medo, Espinosa chama de maus presságios. É interessante notar a veracidade de sua afirmação "não há esperança sem medo, nem medo sem esperança", ou seja, enquanto se espera, há o medo de que não se concretize. Da mesma forma, no medo há sempre a esperança de que o mau presságio não se concretize.
Explica-se melhor a servidão humana ao pensarmos que a paixão é derivada de ideias confusas, contrárias, uma vez que a alma tem pensamentos inadequados e que a força das paixões ou afetos podem superar as demais ações do homem. Segundo o filósofo, os homens só concordam em natureza na medida que vivem racionalmente, ou seja, os afetos de esperança e de medo não podem ser bons por si ou em si, assim como quem se deixa levar pelo medo não é guiado pela razão. O racional não tem medo, apenas alegria.
Greimas
Para Greimas, há um componente patêmico não só a perpassar todas as relações e atividades humanas como também a mover a ação humana. Se a enunciação discursiviza a subjetividade, as paixões estão sempre presentes nos textos. O autor associa as três instâncias essenciais da enunciação às provas aristotélicas: enunciador ao ethos, enunciatário ao pathos (auditório) e discurso ao logos.
De início, a teoria narrativa se preocupou apenas com os "estados das coisas", ao afirmar que a função dos textos era sempre transferir objetos de valor, porém logo percebeu que os textos também operam com a paixão, definida como qualquer "estado de alma. Assim, além dos estados das coisas, existem também os estados da alma.
Os estados patêmicos (da alma) – cólera, amor, indiferença, tristeza, frustração, alegria, medo – resultam da modalização do sujeito de estado, que busca a adesão do auditório. Assim, o pathos não seria a disposição real do auditório, mas de uma imagem que o enunciador tem do enunciatário. O enunciatário, por sua vez, também entra em contato com uma imagem do enunciador. O discurso, na teoria greimasiana, é o lugar de encontro entre esses dois sujeitos (enunciador e enunciatário), que se reconhecem por meio de imagens construídas no e pelo próprio discurso, definido como o âmbito dialético da construção do sentido.
Quanto maior a percepção que o enunciador tem da imagem do enunciatário, mais fácil persuadi-lo. Por outro lado, quanto mais atraente parece ser o enunciador para o enunciatário (auditório), mais este último cederá aos argumentos (logos) e aos meios relativos à afetividade (pathos).
Para melhor situar o medo em Greimas, é interessante pensar a teoria actancial, mesmo que de forma bastante simplificada. Tal teoria aponta para três eixos e dois actantes para cada um: 1) eixo do querer (sujeito e objeto valor); 2) eixo do saber (destinador e destinatário); 3) eixo do poder (ajudante e oponente). No eixo do querer há, ainda, duas situações: conjuntiva (o sujeito deseja obter um objeto valor) e disjuntiva (o sujeito é impedido de conseguir o objeto valor ou o desfecho de uma ação é contrário ao desejado). O medo aparece a partir da atuação do oponente, aquele que dificulta ou impede que ações sejam completadas. As ações disjuntivas também podem se traduzir em motivo de medo.
Medo na Escola: Estudo de Caso
Foi efetuada uma pesquisa em escola de nível superior com o objetivo de levantar possíveis medos. Em um primeiro momento foram distribuídas a alunos e professores duas perguntas simples: "quais os medos que você observa nos professores" e "quais os medos observados nos alunos". Essas perguntas poderiam ser respondidas livremente. A amostra contou com 150 alunos, em um universo de 900 e 45 professores, em um total de 87.
Houve respostas bastante curiosas como: "medo que o professor saiba meu nome", "atentados terroristas", "professores bipolares". Outro resultado interessante é que foram identificados muito mais espécies de medo do que se poderia imaginar inicialmente.
Devido à grande quantidade de tipos (147 medos identificados em alunos e 63 em professores), após listá-los, optou-se por agrupá-los em categorias. Assim, foram colocados sob o título "medo de avaliação" os medos de "provas, trabalhos, exames, provas dissertativas, prova surpresa"; sob o título "medo de exposição", os tipos: "exposição de ideias, fazer perguntas, interromper a aula para tirar dúvidas, expor opinião errada" e com todos os outros, para evitar que o trabalho ficasse muito extenso.
Essa classificação permitiu também observar os medos comuns a todos e se há semelhanças ou diferenças entre os que afetam os corpos docente e discente. É preciso notar que a pesquisa se limitou a dois estabelecimentos de ensino superior localizados no interior do estado de São Paulo e pode não refletir a totalidade de alunos e professores. Nosso intuito não é estabelecer um padrão universal, mas tão somente verificar a existência da paixão do medo e a aplicação de conceitos retóricos e filosóficos a uma situação real.
Foram elaborados quatro gráficos. O primeiro conjunto expõe os medos observados nos alunos. A Figura 1 exibe a visão dos professores e a Figura 2 evidencia a visão dos alunos sobre seus próprios medos.

Figura 1: Medos nos alunos – ponto de vista dos professores


Figura 2: Medos nos alunos – ponto de vista dos alunos
O levantamento mostrou ser possível estabelecer as mesmas categorias nas observações de professores e alunos, todavia o número de medos e a frequência com que aparecem são diferentes.
Como medo da autoridade na escola, por exemplo, professores identificaram nos alunos: medo de chegar atrasado, medo de não entregar trabalhos na data prevista, medo de demonstrar ao professor que sua aula poderia ser melhor. Além desses, alunos identificaram mais tipos: ter problemas com o professor, primeiro contato com o professor, pressão por parte de professores, atrasar-se para a aula, reposição de aulas, não concluir a faculdade, greve e outros. O lugar retórico da autoridade, nesse caso não está ligado a pessoas, mas à própria instituição.
Os alunos se mostraram bem mais temerosos na questão aprendizado e avaliações do que os professores imaginaram que eles pudessem estar, embora as porcentagens para esse medo sejam altas nos dois casos. Outra observação indica que os tipos de medos relacionados a alunos são em maior número (31 tipos) do que os professores apontaram (11). Aqui é possível observar também o lugar da qualidade, que se reflete no medo do desconhecido. Os alunos mostraram, sim, estar preocupados com uma futura avaliação da qualidade de seus trabalhos, uma possível rejeição quando se lançarem no mercado.
Embora não seja intenção mostrar todos os medos, os gráficos apontam diferenças entre a percepção dos professores e o modo como os alunos se sentem afetados por essa paixão.
A partir das figuras 1 e 2 é possível ligar a Alegoria da Caverna ao medo do futuro, observado na visão dos professores e dos alunos, embora com ênfase aparentemente menor nos primeiros. Os alunos associam suas expectativas futuras às coisas, aos objetos (realidade sensível), às possibilidades financeiras e às próprias ideias (realidade inteligível) e o futuro pode parecer-lhes ora escuro – retorno às sombras após a iluminação do conhecimento adquirido na escola e ao próprio ambiente escolar – ora assustador, por se apresentar muito luminoso. Ele consegue imaginar, por exemplo, um futuro brilhante, mas que pode exigir mais do que ele se sente capaz ou, ao contrário, imaginar um futuro sombrio devido à sua incapacidade ou insegurança no processo de aprendizagem.
Esse medo do desconhecido, do novo, do diferente, está ligado à essência do homem platônico como indivíduo essencialmente passional no sentido de ser permanentemente afetado pelo exterior, pelo que vem de fora. A possibilidade de o aluno dar-se mal futuramente é da ordem da doxa, ou seja, ele constrói sua opinião com base nas impressões sensíveis que se lhe apresentam, alicerçada na observação que faz da realidade e das exigências percebidas.
Aristóteles confirma tal impressão ao sustentar que o medo "é uma espécie de perturbação causada pela representação de um mal futuro". Fica fácil entender o medo do futuro se observarmos o conceito cartesiano, segundo o qual o medo seria proveniente da pouca probabilidade de se obter o que se deseja. É evidente que esse pensamento aflige grande parte dos alunos realmente preocupados. O futuro é vislumbrado pelos alunos, conforme nos diz Espinosa, como "coisa duvidosa", por isso causa certa "tristeza inconstante", justamente por ser incerto. Tal incerteza pode levar a uma situação disjuntiva (Greimas) ou à possibilidade de afastamento do objeto valor, dessa forma, a teoria actancial atesta a existência do medo.
O medo de o aluno se expor, apontado por professores e alunos está diretamente ligado à constituição do ethos aristotélico. Alguns tipos são coincidentes nas duas visões (professores e alunos): expressar-se oralmente, ser humilhado por colegas/professores, expor opiniões erradas, ser criticado, apresentar trabalhos, fazer perguntas, interromper a aula para tirar dúvidas; outros são específicos de alunos: expor notas baixas, provocar debate com o professor, expor-se ao ridículo, não saber responder, passar por situações constrangedoras.
Uma leitura desses medos conduz à formação da imagem, à possibilidade de que o auditório conclua por um indivíduo de caráter duvidoso no caso de o aluno não saber responder questões que ele imagina outros saberiam, por exemplo. É relativamente comum que alguns optem pela retórica do silêncio e, para preservar a face, se mantenham calados durante muito tempo para evitar que dele se forme uma imagem negativa, associada à fraqueza de caráter.
Trata-se também de situação disjuntiva: o aluno precisa ser aceito (conseguir o objeto valor), mas o oponente (outros alunos e professores) pode julgá-lo fraco ou incompetente, assim, instaura-se o medo.
Como a capacidade de aprendizagem contribui para a formação do ethos, e uma das medidas de tal aprendizagem é a avaliação, é perfeitamente compreensível a existência dos medos a ela associados .
A filosofia hobbesiana auxilia, embora de forma diferente, na compreensão do medo de se expor. Como, para Hobbes, existe uma falta de aptidão natural para a manutenção de uma convivência pacífica, é esperado que os pares permaneçam em luta pelos seus espaços. O medo advém, neste caso, da possibilidade da exposição de fraquezas, que os torna vulneráveis. Lembremos o homem como "lobo do homem" que está em permanente espreita.
Na categoria não interação social, foram apontados, por exemplo: não fazer parte do grupo, sofrer discriminação, não ser aceito, não ser compreendido, ser julgado, não se enquadrar, não ter voz, situações tipicamente disjuntivas (Greimas) e de oposição, portanto, causadoras de medo.
É em Hobbes que nos apoiamos, uma vez que o filósofo estabeleceu o contrato social, o acordo mútuo como forma de domínio do medo recíproco. Se o homem não é aceito, estará sujeito às paixões dos seus pares, à possibilidade de que o outro ocupe seu espaço ou o exclua.
Embora de maneira não direta, talvez seja possível ligá-los ao conceito cartesiano, segundo o qual o medo é proveniente da pouca probabilidade de se obter o que se deseja. Retoricamente constrói-se um argumento a partir do qual se o aluno não é aceito socialmente, fica mais difícil a obtenção do sucesso profissional. Nesse caso, a não interação social associa-se ao medo do futuro – mais uma vez, o desconhecido platônico e a lembrança do homem da consciência espinosano, preso da servidão, reprimido pelo que está fora dele.
O medo da violência é marcado nos alunos em poucas situações apontadas (por professores e por eles próprios) e se liga mais à existência de professores autoritários, severos ou ameaçadores. Não questionam a autoridade constituída retoricamente, ou obtida pela competência, mas seus excessos. Assim, a autoridade imposta ameaça, causa medo porque o aluno ignora até que ponto o professor pode utilizá-la e como o fará. Novamente aí se pode identificar uma aproximação com o desconhecido platônico e com os fatores que veem de fora, apontados por Espinosa.
Há uma ligação também com Hobbes no que se refere à busca pelo bem viver: o professor violento constitui-se em uma ameaça constante à tranquilidade esperada e se traduz em origem de diversos outros medos: do futuro, de reprovação, do mercado de trabalho, da ausência de interação social, além de manter sob suspeita a competência. O aluno oprimido pelo medo da autoridade do professor não é livre para elaborar associações ou criar e, refém dessa paixão, oculta-se e não se abre à aprendizagem, o que se torna causa de frustração, tristeza e desgosto. Esse é um bom exemplo da tristeza espinosana.
O segundo conjunto de gráficos expõe os medos observados nos professores. A Figura 3 exibe a visão dos professores sobre seus próprios medos e a Figura 4 evidencia a visão dos alunos.

Figura 3: Medo nos professores – visão dos professores


Figura 4: Medo nos professores – visão dos alunos
A partir desse levantamento, foi possível estabelecer cinco categorias observadas nos professores (segundo visão de professores e visão de alunos). Os dois grupos perceberam os mesmos tipos. A maior diferença está na categoria medo do futuro, que é pouco apontada pelos alunos, apenas 2%, contra 12,5%, o que evidencia que os professores, embora trabalhem em escola pública, não se sentem seguros. Conforme comentado por Espinosa, o professor não tem controle sobre o que está fora dele e as normas de contratação são exteriores a ele. Na visão do aluno, o professor não é afetado por esse item.
Enquanto nos alunos foram identificadas seis categorias, nos professores as categorias são cinco, das quais apenas três são coincidentes: relacionadas à falta de interação social, à violência e ao futuro. Nos professores há duas que não foram observadas nos alunos: o medo da incompetência (esquecer a matéria, não saber responder a questionamento, não ser suficientemente claro...) e o medo da aparência de incompetência (comentários sobre sua capacidade, alto índice de reprovação, resistência dos alunos, desinteresse da sala).
Trata-se do temor aristotélico, próximo, possível e que pode afastá-los do objeto valor greimasiano – ensino, educação, manutenção do emprego – ou colocá-los em situação de oposição ao que pretendem.
As questões relacionadas à incompetência estão, por um lado, ligadas ao logos aristotélico e, por outro, à autoridade, ambas de cunho retórico. É em boa parte pelo conhecimento (logos) que o ethos do professor se constrói. Se não o demonstra, ou se deixa transparecer aparência de incompetência, sua autoridade pode ser colocada em dúvida. A autoridade instituída, aquela que o professor recebe pela titulação ou pela Instituição precisa ser autenticada retoricamente pelo auditório – alunos. Caso não demonstre conhecimento e segurança, corre o risco de perder a autoridade. Assim, não basta que o professor seja capaz, é preciso parecer competente; não basta parecer, é preciso ser. É necessário, portanto, que sua imagem transmita confiança, conhecimento. Como tem consciência de que está em constante avaliação, sente o medo hobbesiano, o que advém do conceito de "homem como lobo do homem". Como é possível que os alunos o estejam testando, permanece em alerta constante, com medo de cair em situações que possam afetar seu ethos e sua autoridade.
A porcentagem apontada para medo de violência foi maior entre os professores (10% e 23%) do que entre os alunos (7,5% e 4,5%). Tal medo está associado à possibilidade de alunos descontentes – principalmente com avaliação – cometerem algum tipo violência psicológica ou mesmo física. Embora tal atitude seja fato e ocorra mais no ensino fundamental e médio em escolas de periferia, as respostas apontaram para a existência desse medo no contexto estudado. De todos os entrevistados, apenas um professor não observou qualquer espécie de medo nos alunos nem nos professores:
Medo? Não os percebia, nunca os percebi. Se havia medo nos olhos, nos rostos, nas falas, não se expunham. Eu queria acertar, queria ensinar, queria ser bom para com os alunos. Justo, sério, claro, dedicado. Mas medo? Do que teria medo? De falhar? Falhei e muito, mas sem medo. Falhar faz parte da profissão. O medo não. Medo afugenta, medo inibe, medo precipita. Medo? Não. Definitivamente, não. (L.R.R.S.)
Se pensarmos que o contrário de medo (temor) em Aristóteles é a coragem; em Espinosa é a esperança; em Descartes é a ousadia e em Platão, a sabedoria, o discurso deste professor demonstra a coragem aristotélica e a ousadia platônica. A esperança espinosana aparece em "eu queria acertar, ensinar, ser bom, justo, sério, claro, dedicado". É ousado ao afirmar que "definitivamente" não teme. O texto do professor é claro e realmente não demonstra temor.
Com relação ao medo de falta de interação social, as porcentagens são, não apenas muito parecidas na visão de professores e alunos, como altas, o que nos leva a concluir que os professores sentem necessidade de intercâmbio com seus pares e com os próprios alunos. Esse item se associa ao conceito retórico aristotélico: o professor integrado socialmente transmite simpatia (pathos), apresenta boa imagem e caráter (ethos) e demonstra competência (logos).
Conclusão
Embora um professor tenha respondido que não teme, a pesquisa mostrou que o medo está presente no cotidiano escolar tanto em professores quanto em alunos. Apesar de a amostra cobrir apenas duas escolas de nível superior, acreditamos que reflete a realidade de grande parte delas. Esperava-se, ao contrário, menos temores justamente por se tratar de escola pública de ensino superior em cidades do interior de São Paulo.
Nesse sentido, é possível pensar que os medos aqui categorizados estejam muito mais presentes em escolas de periferia, por exemplo. É bastante provável, por exemplo, que as respostas sobre violência, realidade observada nesses locais, acusem porcentagem bem maior em alunos e professores.
Por outro lado, pensamos que os temores nas escolas de elite possam estar mais ligados à incompetência, aparência de incompetência e ausência de aceitação social. Para tal confirmação, seria necessária uma expansão da pesquisa. De qualquer modo, a investigação mostrou que o medo está presente de modo mais complexo do que se imagina ou que se poderia suspeitar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



A inclusão da Retórica em Comunicação e Expressão em cursos de Tecnologia

Introdução

A proposta desse trabalho é apresentar uma experiência com introdução do ensino de Retórica em escola tecnológica de nível superior, cujos cursos são tipicamente voltados para o mercado de trabalho e envolvem essencialmente matérias da área de exatas. Os alunos esperam do curso o desenvolvimento de competência e habilidades próprias e costumam considerar as disciplinas que não fornecem formação específica como não mais que perda de tempo.
No entanto, é esperado de qualquer profissional competência em se comunicar, entendida não apenas como capacidade de troca de informações, mas também o domínio de habilidades argumentativas, sob pena de ter seu progresso dificultado. À medida que o profissional se desenvolve na carreira, as habilidades não técnicas aumentam de importância.
A experiência com alunos de Análise de Sistemas, curso típico, mostrou fortes indícios de que a Retórica pode ser introduzida por via de alguma disciplina relacionada nas escolas tecnológicas e contribui para o desenvolvimento de capacidades consideradas essenciais.
A estrutura deste texto inicia-se com explicação concisa sobre alguns conceitos de retórica trabalhados no contexto, esclarece em detalhe o tipo de auditório (Perelman y Tyteca) objeto de análise, insere o conteúdo programático a partir do qual se percebeu a possibilidade de inclusão de Retórica e apresenta a metodologia das aulas específicas. Ao final, mostra os resultados obtidos.

Retórica: conhecimento útil no exercício de profissões de cunho tecnológico
Tudo o que se diz da Retórica nessa breve composição histórica, mesmo seus conceitos mais antigos, podem ser aplicados ainda hoje.
A Retórica tem sido definida como a arte de bem falar, ou seja, a arte de utilizar todos os recursos da linguagem com o objetivo de provocar determinado efeito nos ouvintes. De acordo com os sofistas (pensadores pragmáticos e utilitaristas) estava ligada à arte de argumentar, no sentido de debater contra ou a favor de qualquer opinião, desde que vantajosa. Essa postura foi debatida por Sócrates, que lhe emprestava valor apenas à medida que participasse da essência da filosofia e, para Platão (in: Os Pensadores, 1995), a retórica poderia convencer os próprios deuses. Tratava-se da utilização dos recursos discursivos para obter a adesão dos espíritos, expressão ainda hoje lembrada, que exprime muito bem seu objetivo.
Aristóteles, ao sistematizar a retórica, define-a como
A faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão. [...] parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para persuadir. Por isso dizemos que ela não aplica suas regras a um gênero próprio e determinado (Aristóteles, 2002: p. 33).
Entre os conceitos explicados pelo filósofo, destacam-se as três provas retórico-discursivas: ethos que, em linhas gerais refere-se ao caráter, à imagem que o orador transmite por meio do seu discurso (eu); pathos, que está ligado ao componente emocional que o discurso desperta no auditório (tu) e logos, que se refere também ao orador e à sua capacidade de convencimento, ao seu conhecimento de mundo.
Da Grécia à Roma antiga, enquanto para Cícero, em três tratados, o orador perfeito era o homem perfeito, ponto de vista também encontrado em Quintiliano (1865: 180), para este último a Retórica, exposta de maneira mais completa e sistemática, era a "arte de falar do que levanta problemas nos assuntos civis, de forma a persuadir" Durante a Idade Média e Renascença a Retórica foi indispensável na educação, dividindo-se com a Lógica no século XVI. Neste século e no seguinte, os grandes mestres retóricos foram os jesuítas, membros da Companhia de Jesus, que a aplicavam aos domínios da crítica. De acordo com Plantin (2008: 13), no fim do século XIX, a Retórica foi violentamente criticada como disciplina não científica e eliminada do currículo da universidade republicana.
Após longo período restrita ao estudo das figuras de linguagem, a Retórica ressurgiu com Perelman y Tyteca em seu Tratado da Argumentação (publicado pela primeira vez em 1958) ligada efetivamente aos estudos da argumentação que, sob o ponto de vista da organização clássica das disciplinas, está vinculada à lógica como "arte de pensar corretamente", à retórica como "arte de bem falar" e à dialética "arte de bem dialogar". Evidentemente esse tripé forma a base do sistema argumentativo de Aristóteles.
Segundo Plantin,
um dos méritos essenciais do Tratado da Argumentação, de Perelman & Olbrechts-Tyteca, é o de ter fundado o estudo da argumentação sobre o estudo das "técnicas argumentativas" [...] e forneceu uma base empírica de esquemas […] (2008: 45).
Ao afirmar que a argumentação eficiente se liga à intensidade da adesão dos ouvintes ou ao menos à criação de uma disposição para ouvir, Perelman y Tyteca (1999) introduziram o conceito de auditório (que pode ser universal ou particular). Outra questão importante comentada no Tratado é a adesão racional e passional, denominadas, respectivamente, convencimento e persuasão. É preciso mencionar que, em retórica, o racional não é o demonstrável, pois ela subsiste no campo do provável, do possível, do plausível, do verossímil. Persuasão e convencimento aparecem separados apenas para fins didáticos, uma vez que, na realidade, estão imbricados no discurso e quase não se percebe quando se utiliza um ou outro, assim como não se decide por um ou outro na prática discursiva. No entanto, foi justamente o estudo e a exploração dessas duas formas de argumentação, inicialmente separadas, que permitiu uma aproximação mais efetiva com alunos de Análise de Sistemas.


Os cursos superiores de tecnologia e o estudante de Análise de Sistemas

A busca por cursos superiores de tecnologia tem crescido no país, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e Europa e um dos motivos é o caráter de praticidade e direcionamento desses alunos. As escolas de formação de tecnólogos caracterizam-se pela procura da rápida inserção do graduado no mercado de trabalho.
Os principais cursos oferecidos nessas escolas são, geralmente, direcionados ao mercado regional, assim existem, por exemplo, só no estado de São Paulo, mais de 60 especialidades que variam das diferentes distinções da Informática até áreas correlatas à medicina, passando por cursos ligados a agronegócios, diversos tipos de gestão, mecânicas, mecatrônica, especialidades ligadas à construção até cursos muito específicos como soldagem, radiologia e produção têxtil.
Dentre essa variedade, escolheu-se o curso de Análise de Sistemas, pertencente à área da Informática, pois atende ao escopo deste trabalho, que é verificar se é possível introduzir conceitos de Retórica em cursos tipicamente voltados ao mercado e até que ponto o conhecimento e aplicação de tais conceitos auxilia o profissional.
Perfil do estudante de Análise de Sistemas
A partir de pesquisa a várias instituições que oferecem o curso de Análise de Sistemas, a definição a seguir mostra um perfil padrão do estudante.
O Tecnólogo em Análise de Sistemas analisa, projeta, documenta, especifica, testa, implanta e mantém sistemas computacionais de informação. Esse profissional trabalha, também, com ferramentas computacionais, equipamentos de informática e metodologia de projetos na produção de sistemas. Raciocínio lógico, emprego de linguagens de programação e de metodologias de construção de projetos, preocupação com a qualidade, usabilidade, robustez, integridade e segurança de programas computacionais são fundamentais à atuação desse profissional.
De acordo com o desenhado pela instituição, o tecnólogo em Análise de Sistemas tem como função analisar, projetar, documentar, especificar, implantar e manter sistemas computacionais de informação. Assim, a grade é configurada para atender as exigências específicas de mercado.
Para isso, é esperado que esse profissional, ao lado de uma qualificação técnica no emprego de linguagens específicas, desenvolva raciocínio lógico e apresente habilidade linguística. Esta última, necessária basicamente em qualquer profissão, é particularmente importante àquele que precisa tratar diretamente com públicos, internos ou externos à organização, caso do analista de sistemas, preparado especificamente para funções de gestão. Além do contato com tais públicos, ele constantemente necessitará elaborar relatórios, projetos e mesmo textos diversos, em que o domínio da língua é certamente exigido. Enquanto a qualificação técnica pode ser adquirida por meio das disciplinas oferecidas e o raciocínio lógico possa ser desenvolvido da mesma maneira — e efetivamente isso se dá ao longo do curso —, percebe-se maior dificuldade na conquista de uma desenvoltura linguística, principalmente associada à linguagem escrita.
Tal percepção ocorre não apenas aos professores, como essa situação também é reconhecida pelos próprios alunos, que confirmam não raramente extrema dificuldade em "colocar as ideias no papel". É possível que, em algum momento, se questione a necessidade de desembaraço linguístico por parte de profissionais da área de exatas, porém tal habilidade está diretamente ligada à capacidade de o indivíduo se colocar no mercado de trabalho e efetivamente comprovar sua competência.
Ainda que restrições de linguagem possam ter diversas origens, inclusive deficiências do ensino fundamental, pretende-se mostrar, independentemente de tais reservas, de que modo a inclusão de aulas de retórica na disciplina de Comunicação e Expressão têm contribuído para que os alunos se posicionem e efetivamente melhorem sua capacidade comunicativa.
A ementa da disciplina e oportunidade de acréscimo da Retórica
A grade do curso de Análise de Sistemas prevê aulas de Comunicação e Expressão com objetivos e ementa bastante específicos, voltados quase exclusivamente à produção correta de textos empresariais:
Objetivos: identificar os processos linguísticos específicos e estabelecer relações entre os diversos gêneros discursivos para elaboração de textos escritos que circulam no âmbito empresarial; desenvolver hábitos de análise crítica de produção textual para poder assegurar sua coerência e coesão. Ementa: visão geral da noção de texto. Diferenças entre oralidade e escrita, leitura, análise e produção de textos de interesse geral e da administração: cartas, relatórios, correios eletrônicos e outras formas de comunicação escrita e oral nas organizações. Coesão e coerência do texto e diferentes gêneros discursivos. (Plano de Ensino, 2012).
Embora as instituições de ensino superior tecnológico em geral permitam ao professor o livre exercício da didática, os objetivos e a ementa de todos os seus cursos são predeterminados e não podem ser modificados. É possível observar na citação, mesmo em uma leitura superficial, que a fragilidade desses itens conduz a uma restrição de conteúdo. Com isso, existe uma tendência natural à repetição de conceitos ministrados no ensino médio, em parte talvez porque o docente percebe não terem sido tão bem apreendidos pelos alunos, em parte porque a própria ementa a isso conduz.
Apoiada em alguns vocábulos ali presentes (gêneros discursivos, processos linguísticos, análise crítica de produção textual), a autora deste texto resolveu inserir conceitos de discurso, retórica e argumentação na tentativa de expandir os conhecimentos dos alunos e permitir que repensassem seus próprios discursos.
2.3 Conteúdo das aulas de Retórica
Com a finalidade de proporcionar maior abrangência da área de atuação de Comunicação e Expressão e para propiciar interação com outras disciplinas, sem se afastar da ementa e seus objetivos, foi elaborado um quadro de competências linguísticas julgadas importantes, divididas em três níveis, conforme Tabelas 1 e 2, com as Competências Formais e Filosóficas a serem desenvolvidas em Comunicação e Expressão. A proposta é alcançar o nível intermediário e motivar para o nível avançado.
Tabela 1 - Competências formais
compe-tência
básico
intermediário
avançado
Comu-nicação Escrita
Criar, produzir e revisar documentos empresariais de rotina em resposta a situações informadas conci-samente que sejam: claros, corteses, com-pletos, corretos: aceitáveis.
Compor, revisar e editar documentos empresariais em resposta a estudos de casos que sejam: informativos, bem or-ganizados, lógicos, persuasivos, ou seja, profissionais em forma e conteúdo.
Selecionar estratégias retóricas apropriadas e ca-nais de comuni-cação para persuadir públicos diversos a aceitar decisões empre-sariais.
Comunicação Oral
Expor uma apresentação breve e informal.
Desenvolver e expor uma apresentação empresarial formal baseada em relato-rio ou proposta, que seja: articulada, inteligível, ensaiada, organizada, dinâmica, visualmente interessante
Criar e apresentar uma apresenta-ção executiva e moderar discus-sões com útilização de recur-sos retóricos apropriados.
Pesquisa de Informação
Escrever uma carta ou relatório que contenha resumo e documentação de informação obtida de várias fontes
Escrever uma recomendação que selecione, analise e organize informação recolhida de fontes múltiplas, inclusive fontes eletrônicas
Escrever relatório analítico refinando determinado tópico: seleção, avaliação, síntese e documentação de informação complexa de várias fontes, com inclusão de artigos acadêmicos
Tabela 2 - Competências filosóficas
compe-tência
básico
intermediário
avançado
Pensamento Crítico
Identificar ele-mentos-chave em situações empresariais informadas concisamente.
Definir um pro-blema, formular os objetivos da empresa ou ins-tituição, propor e analisar solu-ções razoáveis e fazer reco-mendações so-bre casos (busi-ness cases).
Avaliar situa-ções de crise em termos de forças, fraque-zas, ameaças e oportunidades.
Ética
Usar linguagem livre de viés, evitar exageros e falácias lógi-cas e saber re-conhecer práti-cas não-éticas.
Saber escolher soluções apro-priadas a dile-mas éticos que envolvam vá-rias partes inte-ressadas.
Aplicar princípios de ética empresarial a decisões empresariais.
Decisão
Identificar cau-sa e efeito de uma decisão administrativa simples.
Usar argumen-tos de fato, polí-ticas da empre-sa ou institui-ção, valor e cro-nograma para defender uma decisão empre-sarial.
Aplicar um con-junto explícito de critérios para avaliar proble-mas empresa-riais e recomen-dar a melhor solução.
Resolução de problemas
Discutir custos e benefícios de produto, serviço ou política da empresa.
Efetuar análises de custo -bene-fício de alterna-tivas.
Analisar barrei-ras potenciais, internas e ex-ternas, à imple-mentação de projeto.
Realismo
Aplicar conheci-mento relevante de necessida-des do cliente, interesses da organização e regulamenta-ções governamen-tais a uma cor-respondência.
Determinar como fatores éticos, globais, políticos, tecnológicos e culturais afetam a possibilidade de uma organização operar.
Definir, avaliar e resolver problemas de comunicação que afetam departamentos como produção, finanças, marketing e relações públicas de uma organização.
Fonte: a autora (adaptado de Brzovic, Fraser Loewy e Vogt)
Após análise do quadro, percebe-se não apenas a possibilidade de introdução de conceitos retóricos e argumentativos aplicados, como a necessidade deles para melhorar a compreensão dos processos comunicativos nos diversos níveis. A partir dessa constatação, como verificar se essa abertura oferece aos alunos maior percepção daquilo que praticam intuitivamente? Haveria uma maneira de observar sensíveis modificações na qualidade da escrita ou mesmo na oralidade? Os alunos perceberam tais mudanças?
Para responder tais perguntas foram utilizadas duas estratégias: distribuição de um questionário com perguntas indiretas aos alunos e exercícios orais e escritos efetuados antes e após as aulas de retórica. Evidentemente não cabe aqui mostrar todos os efeitos, mas os resultados do questionário e os de um exercício escrito servirão para apontar, no item 6, indícios.
Conceitos de texto e discurso (Greimas, Koch, Maingueneau), objetividade e subjetividade (Benveniste, Orecchioni), argumentação – persuasão e convencimento – e o estudo das três provas retóricas conforme teorizam Aristóteles, Perelman (1999) e Meyer (2009) foram amplamente discutidos e, após, exercitados por meio da aplicação aos gêneros (Bakhtin) jurídico, jornalístico, publicitário e organizacional. Embora algumas dúvidas talvez não tenham sido inteiramente sanadas, tendo em vista a complexidade do assunto, os alunos se mostraram interessados e procuraram se aplicar às propostas. Os autores citados não foram mencionados durante a aula.
2.3.1 Conceitos trabalhados
Na segunda metade do século XX, quando os estudiosos da linguagem se debruçaram sobre as formalizações desse estudo, particularizaram-se as noções sobre o texto e o discurso, assim como as teorias que os explicitam. A diferença entre as duas noções, contudo, não surgiu, a princípio, facilmente delimitada e pede algumas considerações. O homem para se tornar agente do processo de comunicação produz textos por meio do processo da escolha e combinação dos elementos que lhe são oferecidos pelo sistema da língua e é no processo complexo único de textualização, intertextualização, coesão e coerência argumentativas que o orador imprime seu discurso e se motiva a atuar ou intervir no grupo social.
Assim, discurso, mais comumente relacionado à linguagem verbal, tem seu sentido ampliado quando remetido a processos de produção e interpretação e enfatiza a interação entre falante e receptor, escritor e leitor e leva em conta também o contexto situacional de uso. Nesse aspecto, texto é uma dimensão do discurso, a sua materialidade. Dessa forma, a distinção entre um e outro não está expressa nessa materialidade, mas no olhar que o focaliza. A ideia de discurso como processo é confirmada por Maingueneau (1997: p. 21) quando declara que o discurso é concebido como uma associação de um texto com o seu contexto. A maneira pela qual os textos se organizam, por sua vez, depende da prática social dos grupos em que são gerados e de seus objetivos discursivos e podem se formalizar em texto científico, acadêmico, publicitário, jornalístico, literário, organizacional e muitos outros, ou seja, domínios discursivos, conforme Bakhtin.
Uma introdução ao estudo da subjetividade é pertinente, uma vez que toda a construção discursiva, conforme Benveniste (1966, p. 259-260), é constituída por um sujeito e, por isso mesmo, traz em si a subjetividade a ele inerente. Nesse sentido, mesmo o gênero científico, aparentemente objetivo, carrega as marcas da subjetividade, que é, segundo o mesmo autor, a capacidade do orador se posicionar como sujeito. É na e pela linguagem que o indivíduo se apropria de certas formas disponibilizadas pela língua e se coloca no mundo.
Nesse contexto estão inseridas as questões retóricas e argumentativas. Lembremos que a nova retórica, no seu sentido amplo, embora guarde muitos conceitos da antiga considerados válidos, moderniza-se a partir de sua aproximação com várias disciplinas específicas da comunicação, que a suportam ou que são por ela suportadas, em definitiva interdisciplinaridade: linguística, semiologia, semiótica, teoria da informação, pragmática. Além desse aspecto, o que se observa de novo é a integração que pretende eliminar a diferença entre as ciências humanas, as ciências do discurso e das matemáticas. Para isso, as teorias da argumentação desenvolveram-se nos postulados democráticos e se embasam nos valores, preferências e decisões, aceitando limitações e imperfeições. É preciso pensar hoje a universalidade a que o indivíduo está sujeito.
Levando-se em conta que a argumentatividade está presente em todo discurso, argumentar significa considerar o outro como capaz de reagir e interagir diante das propostas e teses que lhe são apresentadas, o que é feito por meio do diálogo, do debate. O discurso enunciado pretende mover o pensamento do outro, colocar o interlocutor em condições de exercer-se para separar o essencial do acessório, de julgar um conjunto de proposições sem prejuízo dos matizes utilizados no percurso discursivo.
O envolvimento entre as partes não é unilateral: trata-se muito mais de uma negociação em que prevalece o anseio de influência e poder, em que uma parte quer convencer a outra, persuadi-la de que seu ponto de vista é o correto, seja por meio da lógica (logos), seja pela emoção (pathos), seja pelo caráter, imagem do orador (ethos). Perelman, assim como Aristóteles, define a retórica como técnica da persuasão: o objeto desta teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento (Perelman, 1999, p. 5). Nesse sentido, a retórica é a arte de comunicar com múltiplos sentidos: persuadir e convencer, agradar, seduzir ou manipular ideias com a finalidade de aceitação, fazer passar o verossímil, a opinião e o provável com boas razões e argumentos, sugerir inferências, insinuar o implícito pelo explícito, instituir um sentido figurado a deduzir do literal, utilizar linguagem figurada, descobrir as intenções de quem fala ou escreve, atribuir razões ao seu dizer.
As partes do discurso (invenção, disposição, elocução, ação e memória) não são abordadas nas aulas de Comunicação e Expressão, porém é interessante lembrar que Meyer as associa aos três grandes elementos: o ethos discursivo se apresenta ao auditório e visa captar sua atenção a respeito de uma questão e, em seguida expõe o logos dessa mesma questão, ao mesmo tempo em que apresenta os prós e contras. Por último, age sobre as paixões – no sentido aristotélico – ao apelar às emoções e sentimentos do ouvinte (pathos). Assim, Meyer resume as partes da retórica em uma única meta: "anular a problematização que o auditório sempre pode efetuar" (MEYER, 2007, p. 48). Em outras palavras, o discurso propõe mover o auditório em seu favor e para isso utiliza as três provas aristotélicas: ethos, pathos e logos.
2.3.2 Metodologia das aulas
As aulas, com duração de três horas e meia e intervalo de dez minutos, apresentam uma metodologia diferenciada para cada assunto e se adequam ao auditório. Dessa forma, se para determinado grupo de alunos é mais conveniente comentar sobre conceitos e exercitar depois, para outro, o mais sensato será apresentar e discutir um texto e só então, introduzir e trabalhar o conceito. Em outros casos, parte-se do repertório do aluno. Assim, não existe uma forma única ou mais apropriada. Depende sempre da disposição do auditório.
Como ilustração, o tema Retórica e Argumentação é tratado em vários momentos e retomado sempre que possível, com a finalidade de reforçar o entendimento. Uma das maneiras de abordar tem sido o método socrático, por meio de perguntas específicas sobre o assunto (o que entende por retórica, em que contexto a palavra foi ouvida, o que é argumentação, persuasão, convencimento, existe diferença entre persuasão e convencimento ...). O método é repetido para cada uma dessas perguntas. Os alunos se manifestam livremente e a professora anota as respostas — corretas ou não — no quadro, para que todos acompanhem o raciocínio. Como se trata de conceitos complexos, muitas vezes é necessário considerável esforço mental, mas há grande participação. Após esse primeiro momento de debate, os alunos são levados a refinar a lista de respostas e só então os conceitos são ministrados. Em seguida, eles são instados a exemplificar com casos reais, fruto da observação ou mesmo de experiência pessoal e corrigidos, se necessário.
Evidentemente o assunto é retomado em aulas posteriores, embora com outra abordagem. Durante o estudo da linguagem jornalística, por exemplo, os alunos são solicitados a aplicar os conceitos de retórica e argumentação já trabalhados. O mesmo ocorre nas aulas de linguagem promocional e na organizacional, esta última considerada como foco da disciplina Comunicação e Expressão para Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Apesar da retomada em vários momentos e dias diferentes, há sempre um cuidado para que o tópico não se torne cansativo, embora haja necessidade de repetições.
Conceitos de ethos, pathos e logos são introduzidos nas aulas subsequentes, porém de forma diversa, uma vez que dificilmente alunos de cursos de tecnologia terão tido contato com tais vocábulos. Nesse caso, um triângulo com os termos é mostrado e o conceito explicado por meio de várias ilustrações. Só então os estudantes começam a participar com exemplos, experiência e se posicionar diante dos discursos político, educacional e organizacional. Textos curtos são projetados em tela para que todos possam ler e analisar. Busca-se sempre a participação do maior número de alunos. Qualquer que seja a sequência escolhida há, ao final, uma aplicação prática por meio de exercícios orais ou escritos.
2.3.3 Alguns exercícios e atividades
Uma das proposições é solicitar que os alunos escrevam uma Nota Oficial sobre determinado acidente em uma empresa real. Uma folha com a explicação sobre o assunto é entregue sem qualquer instrução prévia. Os textos produzidos são recolhidos. Iniciam-se então as aulas sobre retórica e argumentação que inclui estudos de subjetividade, persuasão, convencimento, as três provas retóricas e algum outro conceito pertinente. Tais conceitos são trabalhados oralmente e exercitados, de acordo com a melhor metodologia considerada para aquele auditório. Após algumas aulas, é pedido que os alunos reescrevam a Nota Oficial, porém com a preocupação de seguir o que foi visto sobre argumentação. Os novos textos são recolhidos e comparados com os anteriores. Aliás, esse foi um dos exercícios utilizados para avaliar a fixação dos conceitos e capacidade de uso deles em funções práticas.
Outra atividade consiste em dividir a sala em três grupos. Um caso jurídico real, preferencialmente ligado a roubo, é distribuído a todos para que leiam cuidadosamente. A cada grupo é fornecida uma tarefa: um deles deverá acusar o criminoso, o outro defenderá e o terceiro grupo estudará defesa e acusação, pois fará o papel de julgador. É determinado algum tempo para que os alunos discutam os argumentos e elejam um representante. Após o tempo determinado, assim como em um júri, o primeiro grupo acusa e o segundo defende. Há a oportunidade de réplica pelo primeiro grupo e de tréplica pelo oponente. Em seguida, o terceiro grupo de manifesta, expressa a análise dos argumentos apresentados e informa o veredicto. A atividade é bastante movimentada e reforça os conceitos argumentativos estudados.
A proposta de leitura de um conto de mistério com poucos personagens tem se mostrado positiva na compreensão dos conceitos de ethos, pathos e logos. Após leitura minuciosa e discussão sobre o enredo, os alunos são instados a, oralmente, construir o ethos dos principais atores discursivos. Após essa fase, verificam os argumentos utilizados e se há predominância de persuasão ou convencimento, se há mais paixão ou racionalidade. Em seguida, é solicitado que escrevam um conto de mistério que privilegie a construção do ethos e demonstre alguma agilidade no domínio de argumentos.
Receptividade e rendimento dos alunos
Embora se trate de curso de tecnologia com predomínio de disciplinas da área de exatas, os alunos têm demonstrado interesse durante as aulas e não se furtam aos exercícios. É interessante notar que, apesar da dificuldade na aquisição de conceitos e principalmente na necessidade de seguir raciocínios complexos, há participação de parte considerável das salas e até mesmo demonstrações de entusiasmo.
Ainda que não seja possível quantificar a aprendizagem, a aquisição dos conceitos foi avaliada por meio de um questionário. A aplicação dos conceitos foi analisada a partir das duas redações da Nota Oficial. Os resultados fazem parte, portanto, de uma pesquisa qualitativa, mostrada nos gráficos a seguir.
A Figura 1 foi elaborada a partir da análise de duas redações sobre uma nota de acidente conforme descrito em 5.3. Foram marcadas nos textos as incidências de argumentos constituintes de ethos, pathos e logos e, após esse levantamento, elaborou-se um quadro comparativo do primeiro texto, escrito antes das aulas de Retórica com o segundo, após as aulas.

Figura 1: comparação das redações antes e após as aulas de Retórica
Como se observa, do primeiro texto, sem conhecimento dos aspectos argumentativos para o segundo, há considerável aumento da presença de ethos e logos e uma diminuição substancial do pathos. Naquele momento, trabalhava-se o discurso organizacional como espaço que privilegia o aspecto objetivo, factual para construir e reforçar uma boa imagem. Discutia-se que as questões éticas ligadas a empresas, por exemplo, devem ser seguidas de ações, tais como investimento em meio ambiente e no bem estar do colaborador, além de demonstrações de confiabilidade no produto e preocupação com o cliente.
O exercício demonstrou que os alunos foram capazes não apenas de compreender os argumentos racionais e patéticos ligados às três provas retóricas, mas também de aplicar tais conhecimentos em um texto escrito. Outras práticas foram experimentadas com resultados semelhantes.
A Figura 2, a seguir, foi organizada a partir do resultado de um questionário simples, com duas questões. Na primeira, os alunos deveriam identificar ethos, pathos e logos em uma lista que misturava dezoito afirmações, seis de cada um dos três elementos. Na segunda, por meio do mesmo critério, identificariam características de argumentos racionais e passionais em uma lista de vinte afirmações, dez com elementos do primeiro grupo e dez do segundo. Embora fosse solicitado que pensassem com calma antes de responder, porque as afirmações eram parecidas, o teste durou menos de quinze minutos e os alunos se sentiram bastante tranquilos.


Figura 2: reconhecimento de conceitos
As porcentagens mostram que os alunos entenderam os conceitos, de maneira geral, especialmente os de persuasão e convencimento. A maior dificuldade foi na compreensão do conceito de pathos que, em alguns casos foi confundido com o de ethos. No entanto, não podemos considerar como erro tal troca, pois trata-se de assunto altamente subjetivo, além de realmente existir um componente patético na composição do ethos. Percebemos que os estudantes encontraram maior facilidade na identificação do logos.
A pesquisa qualitativa apontou, nos dois casos, que alunos de cursos tecnológicos foram capazes de compreender conceitos filosóficos complexos e, mais do que isso, houve uma significativa melhora na composição textual. Acrescente-se que os testes mostrados nas figuras 1 e 2 se repetiram em cinco turmas diferentes (curso de ADS) durante cinco semestres e isso imprime confiabilidade aos resultados.
Conclusão
A introdução de aulas de Retórica e Argumentação na disciplina de Comunicação e Expressão para o curso de Análise de Sistemas em uma escola superior de tecnologia mostrou efeito bastante positivo na aquisição de conceitos voltados para a área das ciências humanas, habitualmente não consideradas como básicas nesses cursos. Existe um investimento bem maior nas disciplinas exatas, de cunho profissional.
Além da aquisição desse conhecimento, os resultados assinalam para uma substancial melhora na compreensão de conteúdos e na qualidade da produção textual. Os alunos passaram a observar melhor os argumentos e a argumentar conscientemente nos textos escritos. Percepção
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