A sustentabilidade real da dominância financeira: o trabalho como medida

May 24, 2017 | Autor: Emmanuel Nakamura | Categoria: Karl Marx, Historia Economica, História do pensamento econômico
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EMMANUEL ZENRYO CHAVES NAKAMURA

A SUSTENTABILIDADE REAL DA DOMINÂNCIA FINANCEIRA: O TRABALHO COMO MEDIDA

Relatório Final de Iniciação Científica Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida de Paula Rago (Departamento de Economia, PUC-SP)

Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária PUC – São Paulo Dezembro de 2005

“quem entende de capitalismo chama-se Karl Marx” (Fernando A. Novais*)

“Quanto mais o capitalismo estiver implantado em todo o mundo, maior deve ser a volta de Marx” (Fernando A. Novais*)

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NOVAIS, Fernando Antônio. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 359.

SUMÁRIO

Páginas Introdução............................................................................................................ 001 Capítulo 1 – A ATIVIDADE VITAL E O SEU INVERSO: O TRABALHO.......................................................................................................................

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1.1 – O ser-aí da igualdade entre manifestação de si e produção da vida material............................................................................................................................. 1.2 – A perda de referência de si no trabalho......................................................... 1.3 – O processo de troca como verdade do valor................................................ 1.4 – A independência do capital: o relacionar-se consigo mesmo mediante o seu outro................................................................................................................. 1.4.1 – O processo imediato de produção............................................................. 1.4.2 – As três figuras da reprodução no processo de circulação......................... 1.4.3 – O mundo invertido da concorrência...........................................................

020 020 027 031

Capítulo 2 – AS FIGURAS DO PROCESSO DE SUBORDINAÇÃO DO TRABALHO AO CAPITAL...............................................................................

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2.1 – O conceito de mais-valia absoluta e mais-valia relativa.............................. 2.2 – Cooperação................................................................................................... 2.3 – Divisão manufatureira do trabalho................................................................ 2.4 – A maquinaria e a indústria moderna............................................................. 2.5 – Repulsão de trabalhadores pelo capital......................................................... 2.6 – Lei da queda tendencial da taxa de lucro......................................................

038 043 046 051 058 065

Capítulo 3 – A RELAÇÃO IMEDIATA DO CAPITAL CONSIGO MESMO.........................................................................................................................

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3.1 – A expansão do capital portador de juros: a dominação pressuposta............. 3.1.1 – A relação entre o capital produtivo e o capital portador de juros (Das zinstragende Kapital)............................................................................................. 3.1.2 – Taxa de juros e ciclo de negócios.............................................................. 3.1.3 – A oposição entre a circulação de dinheiro e a circulação de dinheiro como capital........................................................................................................... 3.1.4 – Concentração de capital de empréstimo.................................................... 3.1.5 – Expansão de capital fictício e suas formas................................................ 3.1.6 – A determinidade qualitativa da expansão quantitativa do dinheiro de crédito: o Estado.................................................................................................... 3.2 – A posição da dominação do capital portador de juros.................................. 3.2.1 – Acumulação de capital-dinheiro e manifestação da lei da queda tendencial da taxa de lucro...............................................................................................

005 008 011

074 074 079 080 082 085 088 092 093

3.2.2 – Acumulação financeira mundializada........................................................ 3.2.3 – A consciência rentista................................................................................ 3.2.4 – Hipertrofia financeira permanente: a função do dólar como dinheiro mundial-moeda de crédito...................................................................................... 3.2.5 – A posição do fundamento.......................................................................... 3.3 – A posição da barreira social.......................................................................... 3.4 – Tendência anômica.......................................................................................

095 096 097 099 103 106

Conclusão: A verdade da imediaticidade da relação do capital consigo mesmo....................................................................................................................

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Quadros 1 – Fatores que podem funcionar como contra-tendências.................................... 2 – Passagem da determinação quantitativa à determinação qualitativa da divisão entre juro e lucro (ganho do empresário)......................................................... 3 – Adiantamento de capital (Vorschuβ von Kapital) e adiantamento de dinheiro (Vorschuβ von Geld)..........................................................................................

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Referências Bibliográficas...................................................................................

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069 077

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INTRODUÇÃO Nossa época é caracterizada pelo crescimento significativo das transações financeiras. O capital portador de juros é a “ponta-de-lança” do movimento de “mundialização do capital1”, pois são as suas operações que envolvem recursos mais elevados, que possuem maior mobilidade, e é nele que os interesses privados aparentemente recuperaram mais completamente a iniciativa em relação ao Estado (CHESNAIS, 1998a, p. 7). A autonomia manifestada pelo capital portador de juros em relação ao capital industrial (capital operante) permitiu que alguns economistas caracterizassem o momento contemporâneo do modo de produção capitalista como “régime d’accumulation à dominante financière2”. No entanto, afirmar que é “da esfera financeira que é necessário partir se desejamos compreender o movimento em seu conjunto” (CHESNAIS, 1998a, p. 7) significa que o capital industrial não é mais a “forma fundamental da relação do capital”, que “domina a sociedade burguesa3”? Se o capital industrial não é mais a “forma fundamental da relação do capital” então a compra e venda de força de trabalho não é mais o “fundamento absoluto4” do modo de produção capitalista? Se assim for, qual o significado da dissolução dos sistemas de proteção que configuravam a relação salarial no pós-guerra? Categorias como “força de trabalho”, “mais-valia absoluta”, “mais-valia relativa” ainda possuem significado como “formas de manifestação5” do modo de organização da sociedade contemporânea? Será que não existe alguma relação entre a posição autônoma do capital portador de juros e o aumento da jornada de trabalho, o ressurgimento das relações de trabalho precárias e o aumento do desemprego? Este trabalho tem como objetivo caracterizar a relação entre a dominance financière e os modos de extração da mais-valia, através de uma apresentação6 (Darstellung) do desenvolvimento da categoria trabalho subordinada ao movimento de valorização do

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Cf. CHESNAIS, 1996, p. 34. Cf. CHESNAIS, 1998b. 3 Cf. MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 493. 4 Cf. MARX, 1985, p. 72 5 Cf. MÜLLER, 1982, p. 40. 6 Cf. MÜLLER, 1982. 2

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capital, estabelecendo o nexo, a “articulação interna7”, entre os diferentes momentos desse processo de desenvolvimento. A apresentação categorial está dividida em três momentos, cuja ordem em que se sucedem é determinada pelo seu relacionamento com o régime d’accumulation à dominante financière. A apresentação começa pelo trabalho em seus elementos mais simples e abstratos, em que se considera apenas a relação do homem com a natureza, o que significa pôr o inverso do trabalho, ou seja, a atividade vital (Lebenstätigkeit). Por meio da atividade vital o homem “trans-forma8” a natureza, realiza um projeto seu e por isso reconhece a si mesmo no produto transformado. A posição do trabalho significa a perda da referência de si e por isso o trabalho é trabalho alienado (entfremdete Arbeit), pois o objeto que o trabalhador produz defronta-se com ele como um “poder independente” (MARX, 2004, p. 80). Essa alienação se manifesta de duas formas: no processo de troca e na separação entre produtores e nãoprodutores. Essas duas formas se articulam, pois no processo de troca está a verdade do valor, ponto de partida necessário para alcançar o conceito de capital, pois o desenvolvimento da expressão valor tem no dinheiro a sua forma mais acabada e é o dinheiro que se transforma em capital ao comprar a mercadoria força de trabalho. Ao reduzir a força de trabalho como um momento seu, como capital variável, o capital adquire “capacidade de dominação das condições de sua própria realização e de subordinação das demais relações econômicas para se constituir em totalidade” (GRESPAN, 1999, p. 254). Nesse momento, a apresentação não consistirá em reproduzir o processo de constituição histórica do capital como totalidade, mas em reconstruir “no plano ideal, o movimento sistemático do capital”, o que é “diferente, logicamente, de sua emergência e universalização históricas” (MÜLLER, 1982, p. 21). Essa reconstrução não possui o mesmo significado de uma “rememoração9”, pois

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Cf. MARX, 1999b, p. 45. Cf. KOJÈVE, 2002, p. 27. 9 Cf. HEGEL, 2003, p. 544. 8

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o capital não se sabe como sujeito, é cego, é um ‘sujeito automático’, cujo poder de dominação ele não consegue estabelecer plena correspondência entre a realidade capitalista e o seu conceito (Ibid., p. 38-9).

Essa correspondência só é estabelecida na esfera da concorrência, pois o capital como sujeito e princípio de movimento da substância econômica, o valor, só tem consciência de si na multiplicidade de seus agentes individuais, nos capitalistas enquanto representantes dos capitais individuais, que só ‘reconhecem’ o movimento de reprodução global do capital enquanto ele atende ao imperativo da valorização do capital individual (Ibid., p. 38).

No entanto, no começo o capital adquire a força de trabalho tal como a encontra no mercado de trabalho e por isso para que o capital domine as condições de sua própria valorização deve subordinar para si as condições pré-existentes, transformando todas as forças produtivas subjetivas do trabalho em forças produtivas do capital, “criando um sistema que se movimenta com certo grau de independência do trabalhador” (GRESPAN, 1999, p. 133). O processo consiste na passagem da subordinação formal à subordinação real do trabalho ao capital. O segundo momento deste trabalho consiste na apresentação das figuras desse processo: a cooperação, a divisão manufatureira do trabalho e a maquinaria e a indústria moderna. Na posição da indústria moderna, o capital se liberta dos “limites da força humana” com a aplicação da maquinaria (MARX, 1999a, p. 432) e encontra-se em condições de repelir trabalhadores do processo produtivo. No entanto, libertar-se significa manifestar mais plenamente a sua “contradição imanente” (Ibid., p. 465, grifos meus), pois na aplicação da maquinaria o capital substitui capital variável por capital constante, que não produz mais-valia, o “conteúdo e o objetivo específicos” da produção capitalista (Ibid., p. 363). Por isso livrar-se dos limites da força de trabalho significa chocar-se com seus próprios limites, o que é manifestado através da crise. No momento da crise o capital portador de juros está em condições de se opor aos outros capitais como em nenhum outro momento do ciclo econômico, pois é quando a taxa de juros atinge o seu nível máximo (MARX, 1983b, p. 561). Estamos já no terceiro momento da apresentação.

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O juro apesar de ser parte da mais-valia, forma de apropriação do trabalho alheio, é grandeza que se determina autonomamente, é fato imediato dado e não resultado do processo de produção (Ibid., p. 424). O juro não está em oposição direta com o trabalho, apresenta-se como simples relação entre dois capitalistas (Ibid., p. 440). No entanto, seu maior poder de “dedução (Abzug)10” sobre parte da mais-valia traz conseqüências para o trabalhador. Em geral, esse maior poder de dedução é evanescente, pois está subordinado à fase do ciclo econômico, mas pode se tornar “configuration spécifique du capitalisme11” quando determinadas condições estão postas. Esses três momentos da apresentação correspondem aos três capítulos deste trabalho. A passagem de um momento ao outro é posta pela própria explicitação racional imanente do objeto, sem considerar hipóteses exteriores, ou seja, a apresentação do movimento imanente do conceito de capital, a lógica contraditória real de sua valorização, apreendida através das “formas de manifestação”, é condição suficiente para a articulação das partes do todo real capitalista.

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Cf. MARX, 1983b, p. 577. Cf. CHESNAIS, 2004, p. 15.

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Capítulo 1 ATIVIDADE VITAL E O SEU INVERSO: O TRABALHO Este capítulo tem como objetivo apresentar: 1. o trabalho em seu “lado positivo” (MARX, 2004, p. 124), ou seja, enquanto atividade vital consciente constitutiva do ser genérico; 2. o conceito de trabalho alienado e sua “interconexão essencial” com a propriedade privada e o capital (Ibid., p. 80); 3. a primeira forma de manifestação do trabalho alienado no processo de troca e o ponto de partida para “alcançar o conceito de capital”: o valor (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 51); 4. a forma de manifestação do trabalho alienado na posição da relação capitalista de produção e a constituição do capital como “sujeito” de seu processo de autovalorização.

1.1 – O ser-aí da igualdade entre manifestação de si e produção da vida material A primeira condição para a existência do homem é a produção de sua própria vida material através de sua relação com a natureza (MARX; ENGELS, s/d, p. 18 e 34). A natureza é o “objeto imediato”, o “meio de vida imediato”, na medida em que é o “objeto/ matéria e o instrumento de sua atividade vital” (MARX, 2004, p. 84 e 112). O trabalho (Arbeit) aparece como “atividade vital (Lebenstätigkeit)”, como atividade que é a “condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza” (MARX, 1999a, p. 218, grifos meus), a fim de “apropriar os elementos naturais às necessidades humanas” (Ibid., p. 218). Trataremos, nesse item, somente da relação do homem com a natureza1, pois ela é a “condição natural eterna da vida humana”, “comum a todas as formas sociais” (Ibid., p. 218). O homem “nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível (sinnlich)” (MARX, 2004, p. 81). A natureza é a matéria na qual a atividade vital se efetiva, ela fornece os “meios de vida”, pois a atividade vital precisa de objetos e ela é o meio de existência física do homem (Ibid., p. 81). A atividade vital é um processo em que parti1

A fim de apresentar o trabalho como atividade vital, “em seus elementos mais simples e abstratos”, não é necessário “tratar o trabalhador em sua relação com outros trabalhadores”, basta “o homem e seu trabalho, de um lado; a natureza e seus elementos materiais, de outro” (MARX, 1999a, p. 218).

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cipam homem e natureza, um “processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (MARX, 1999a, p. 211). O homem, assim como o animal, vive da natureza inorgânica. Como corpo inorgânico do homem, a natureza é em si outro, “ela mesma não é corpo humano” (MARX, 2004, p. 84), mas simultaneamente o homem precisa fazer da natureza “seu corpo”, estabelecer com ela um “processo contínuo para não morrer” (Ibid., p. 84). A vida física e mental do homem está interconectada com a natureza, e nesse sentido “a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza” (Ibid., p. 84). Ao final da atividade vital, a natureza torna-se para o homem seu próprio corpo, e ele chega a consciência de ser ele mesmo em si e para si. O que distingue o homem do animal é a consciência de sua atividade vital. O homem “figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade” (MARX, 1999a, p. 211-2), e “faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência” (MARX, 2004, p. 84). Enquanto o “animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não distingue dela. É ela” (Ibid., p. 84, grifos meus). É a atividade vital consciente que torna o homem um ser genérico (Gattungswesen) (Ibid., p. 84). O homem, como ser genérico, elabora o mundo objetivo, e o objeto da sua atividade vital é a objetivação da vida genérica do homem. Através da produção, “a natureza aparece como a sua obra e sua efetividade (Wirklichkeit)” (Ibid., p. 85). Trata-se de uma “exteriorização da vida humana2”, que reserva às forças essenciais humanas a tarefa da unificação3. As forças essenciais humanas são colocadas em movimento na realização da atividade vital e no momento de apropriação do produto da atividade. Através da atividade vital, o homem “trans-forma” a matéria, ou seja, dá forma à natureza, mas ao transformá-la, ele simultaneamente se transforma. O produto é a obra de sua atividade vital4. “É a realiza2

Cf. COSTA, 2001. Cf. HEGEL, 2003, p. 110-1. 4 “O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. Concretizou-se, a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto” (MARX, 1999a, p. 214-5). 3

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ção de seu projeto, de sua idéia: é ele, portanto, que se realizou nesse e por esse produto”, nele “reconhece a si mesmo” (KOJÈVE, 2002, p. 27-8). O homem defronta-se com a natureza, com um outro independente, mas através do agir formativo da atividade vital tem, ao final do processo, esse ser-outro como si mesmo. O homem, como ser genérico, faz da sua atividade vital “objeto da sua vontade e da sua consciência”. É “objeto da sua vontade” pelo fato de produzir “universalmente”, livre de carência física, portanto, em sua própria liberdade, defronta-se livremente com o seu produto (MARX, 2004, p. 85). “A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas” (Ibid., p. 107, grifos meus). O ser genérico existe em si e para si na medida em que, e pelo fato de que existe em si e para si para um outro ser genérico. O homem é um “indivíduo particular”, mas essa condição pressupõe uma “comunidade real”. O seu modo de existência e sua consciência são sociais. A manifestação (Erscheinung) da vida particular se externaliza e se confirma como “vida social”. Como ser genérico real, “o homem produz o homem, a si mesmo e ao outro homem” (Ibid., p. 106). “Como consciência genérica o homem confirma sua vida social real e apenas repete no pensar a sua existência efetiva” (Ibid., p. 107). O homem produz universalmente porque é “um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico” (Ibid., p. 85, grifo meu). A universalidade do homem é tanto maior quanto maior for o seu domínio sobre a natureza (Ibid., p. 84). O ser-aí do homem integral encontra-se na comunidade primitiva, pois nela coincidem vida genérica e existência individual, manifestação de si e produção da vida material. Entretanto, nela a universalidade do homem existe nas seguintes condições: 1a somente pode existir como um fenômeno (Erscheinung) local; 2a as forças das relações humanas não podem se desenvolver como forças universais; e 3a pode ser suprimida com qualquer ampliação das trocas5. Ou seja, nela o movimento da universalidade do homem estava condicionado pelo seu oposto – cuja forma de ser historicamente é uma outra comunidade primitiva –, e por isso mostrou-se como um universal condicionado6.

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Cf. MARX; ENGELS, s/d, p. 42. Cf. HEGEL, 2003, p. 105.

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A comunidade primitiva é o Ser-para-si simples-ou-indiviso, idêntica-a-si pelo ato de excluir dela tudo que é o outro7, o que significa que o relacionamento entre as duas comunidades será determinado pelo confronto hostil. O resultado será o início das trocas, o que pressupõe um equilíbrio de forças e o reconhecimento recíproco da posse entre ambas as comunidades (LETÍZIA, 2003, p. 1); e, num segundo momento, a cisão entre produtores e não-produtores, o que pressupõe um relacionamento desigual entre elas. A troca, tornada necessária, significa a separação e a alienação (Entfremdung) do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho. O movimento da universalidade do homem será determinado pela exteriorização (Entäusserung) e alienação (Entfremdung) entre os homens. No interior da comunidade primitiva, os produtos eram distinguíveis somente por suas qualidades, como valoresde-uso. A relação de exteriorização e alienação entre os homens se manifestará no processo de troca, no objeto que adquire a qualidade social de ser valor-de-troca, portanto, de obter outro objeto produzido por um outro. Mas isto significa entrar no reino da mercadoria. Antes, é necessário compreender em que consiste o trabalho alienado.

1.2 – A perda de referência de si no trabalho Vimos que o homem, através de sua atividade vital, transforma a natureza e a si mesmo. Como ser genérico, o indivíduo particular tem, ao final do processo, o outro e a natureza, um ser-outro como si mesmo e a natureza como seu corpo inorgânico. Ao final do processo, o homem reconhece o mundo efetivamente transformado por sua atividade vital como uma obra sua, e reconhece a si mesmo no produto transformado. Nesse item, apresentaremos a “interconexão essencial8” entre o trabalho alienado, a propriedade privada e o capital, no modo de produção capitalista. Com a separação entre trabalho e produto do trabalho, o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, defronta-se com o trabalhador como “um ser estranho (fremdes Wesen), como poder independente” (MARX, 2004, p. 80). A efetivação (Verwirklichung) do trabalho aparece (erscheint) como desefetivação (Entwirklichung), pois 7 8

Cf. HEGEL, 2003, p. 145. Cf. MARX, 2004, p. 80.

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o objeto, produto do trabalho, lhe é estranho e/ou não lhe pertence. Por isso, a objetivação (Vergegenständlichung) aparece como “perda do objeto” e “servidão ao objeto”. A apropriação aparece “como alienação (Entfremdung), como exteriorização (Entäusserung)” (Ibid., p. 80). A alienação do trabalho significa que quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos ele pode possuir relativamente; quanto mais se apropria da natureza, mais ele se priva dos “meios de vida” (Ibid., p. 81). O trabalhador não se reconhece no produto, pois se exteriorizou dele. Essa exteriorização possui um duplo significado: 1o o objeto de seu trabalho tem uma existência externa (äussern) a ele; e 2o o objeto existe “fora dele (ausser ihm), independente dele”, como “potência (Macht) autônoma” “hostil e estranha (fremd)” a ele (Ibid., p. 81). O trabalhador se torna um “escravo do objeto”, pois através dele mantém-se como “sujeito físico”, recebe um “objeto do trabalho, isto é, recebe trabalho” e recebe “meios de subsistência”, já que como “escravo” toda a sua essencialidade lhe é negada, devendo receber apenas o necessário para existir como “sujeito físico” (Ibid., p. 81-2). A alienação do trabalhador não é somente o resultado de sua relação com o produto de seu trabalho, pois “a produção mesma tem de ser uma exteriorização ativa”. O produto do trabalho alienado é o resultado da “exteriorização na atividade do trabalho mesmo” (Ibid., p. 82). A exteriorização do trabalho possui um duplo significado: 1o “o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador”, “não pertence ao seu ser”, não se afirma, mas nega-se nele, é trabalho “forçado”, “trabalho obrigatório”, realizado não como satisfação de uma carência sua, mas como meio de satisfazer necessidades fora dele. É um “trabalho de auto-sacrifício, de mortificação”; e 2o “a externalidade (Äusserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro”, como se “não pertencesse a si mesmo, mas um outro”, “é a perda de si mesmo”. O trabalho “atua independente do indivíduo e sobre ele”, como uma “atividade estranha” (Ibid., p. 82-3). Da alienação do produto do trabalho e do próprio trabalho em movimento resulta que: 1. a natureza está alienada do homem; e 2. o homem está alienado de si mesmo, de sua atividade vital e de seu gênero. O trabalho alienado, ao arrancar o objeto da produção do

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homem, arranca a sua vida genérica, e “transforma a sua vantagem com relação ao animal na desvantagem de lhe ter tirado o seu corpo inorgânico, a natureza” (Ibid., p. 85). A manifestação da vida genérica era a exteriorização (Äusserung) da vida individual e a confirmação (Bestätigung) da vida genérica9. “O trabalho alienado inverte (umkehrt) a relação” (Ibid., p. 85). A vida genérica se exterioriza e precisa confirmar a vida individual. Para o trabalhador, a própria confirmação depende do “capricho do risco” (Ibid., p. 24) e da necessidade do outro, “é o desejo do senhor que age no e pelo escravo” (KOJÈVE, 2002, p. 23). A alienação do homem de seu gênero significa que o homem está alienado do outro. A “conseqüência imediata” do trabalho alienado é a “alienação do homem pelo [próprio] homem” (MARX, 2004, p. 85). “O que é produto da relação do homem com seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com outro homem, como trabalho e o objeto do trabalho de outro homem” (Ibid., p. 86). A “conseqüência necessária” do trabalho exteriorizado, “da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo”, é a propriedade privada (Ibid., p. 87). O outro em condições de se apropriar privadamente do trabalho alheio é, no modo de produção capitalista, o capital, que tem no capitalista sua personificação10. Vimos que o trabalho alienado determina: 1. a alienação entre o trabalhador e seu produto; 2. a alienação do trabalhador no interior da atividade produtiva; 3. a alienação do homem em relação a sua condição de ser genérico; e 4. a alienação do homem pelo próprio homem11. O trabalho alienado é a “essência subjetiva” da propriedade privada (MARX, 2004, p. 99). A relação (Verhältnis) da propriedade privada contém latente em si a sua relação com o trabalho e com o capital, assim como a conexão entre esses opostos (Ibid., p. 93). Mas o capital não é “trabalho acumulado (objetivado)”. “‘Para alcançar o conceito de capital é necessário partir do valor e não do trabalho, mais precisamente do valor-de-troca já desenvolvido no movimento da circulação’. Trata-se do dinheiro” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 51, grifos meus). 9

Cf. MARX, 2004, p. 107. O capital tem “poder de governo (Regierungsgewalt) sobre o trabalho e seus produtos. O capitalista possui esse poder, não por causa de suas qualidades pessoais ou humanas, mas na medida em que ele é proprietário do capital. O poder de comprar (kaufende Gewalt) do seu capital, a que nada pode se opor, é o seu poder” (Ibid., p. 40). 11 Cf. COSTA, 2001, p. 181. 10

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O dinheiro é a “capacidade exteriorizada (entäusserte) da humanidade”, e como tal é a “inversão universal das individualidades” (MARX, 2004, p. 159-60), tem o poder de transformar “as forças essenciais humanas efetivas e naturais em puras representações abstratas (abstrakte Vorstellungen)” (Ibid., p. 160), fazendo com que o indivíduo substitua o ser pelo ter, pois o “que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro” (Ibid., p. 159). Por isso, o poder de compra do capital é o poder do capitalista. É o dinheiro que se transformará em capital, o que pressupõe que o domínio do proprietário sobre os nãopossuidores tenha tomado a forma material dinheiro. Mas antes de apresentar a transformação é necessário “elucidar a gênese da forma dinheiro” (MARX, 1999a, p. 70).

1.3 – O processo de troca como verdade do valor Vimos que o trabalho alienado significa que o trabalho e o produto do trabalho é externo ao trabalhador, e que ambos existem independente dele, pois não pertencem ao seu ser, mas a um outro. Trataremos, nesse item, da “vida própria” (GRESPAN, 1999, p. 59) que adquirem os produtos do trabalho, que dissimulam o conteúdo social das trocas entre os diferentes produtores. A apresentação (Darstellung) consistirá em “acompanhar o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor existente entre as mercadorias” (MARX, 1999a, p. 70), desde a forma de manifestação mais simples até a “forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro” (Ibid., p. 97). As diferentes formas estarão estruturadas através da noção de negação determinada12, ou seja, o negativo determinará a passagem de uma forma à outra, mas conservando a forma negada13. O produto do trabalho é alienado porque o seu valor-de-uso é inacessível diretamente ao seu produtor, seja proprietário ou não do objeto. A apropriação privada de objetos úteis, obtidos da relação com a natureza, surge quando o Ser-para-si simples-ou-indiviso da comunidade primitiva se fraciona através do contato com um outro – historicamente, uma outra comunidade primitiva. O contato ocorre porque determinado objeto é deseja12 13

Cf. HEGEL, 2003, p. 62. Cf. MARX, 1999a, p. 92.

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do pelo outro. O objeto desejado externamente adquire a qualidade social de obter um objeto produzido pelo outro, torna-se valor-de-troca. A qualidade social manifesta-se quando o outro oferece um objeto seu a fim de obter o objeto desejado. A troca ocorre quando existe um reconhecimento recíproco da posse entre ambas comunidades. Historicamente, com a intensificação das trocas, a “determinação externa” (produção para a troca) foi gradualmente negando a “determinação interna” (consumo direto): “ambos objetos trocados foram sendo produzidos cada vez mais para a troca e sendo vistos cada vez mais como portadores de um poder mágico ‘inerente’ a eles: o valor”14 (LETÍZIA, 2003, p. 1, grifo meu). A mercadoria é a “forma elementar da riqueza” no modo de produção capitalista (MARX, 1999a, p. 57). Toda mercadoria se apresenta sob um duplo ponto de vista: valor-de-uso e valor-de-troca (MARX, 1999b, p. 57). O valor-de-uso não expressa nenhuma relação social de produção, ainda que seja objeto de necessidades sociais em determinado contexto social (Ibid., p. 58). O valor-de-uso somente se efetiva no processo de consumo e pode ser utilizado de diversos modos. Mas a multiplicidade de propriedades está limitada pelo seu próprio modo de existência, por isso as propriedades são determinadas. As determinidades não são somente qualitativas, pois os valores-de-uso possuem medidas diferentes, e por isso possuem também uma determinação quantitativa (Ibid., p. 57). O valor-de-troca é totalmente indiferente ao modo natural de existência do objeto, sem consideração com a natureza específica de sua necessidade. As mercadorias se trocam conforme uma relação quantitativa, valem como equivalentes e, apesar de sua aparência e valor-de-uso variados, apresentam uma mesma unidade (Ibid., p. 59). O valor-de-troca é a “forma de manifestação de uma substância que dele se pode distinguir” (MARX, 1999a, p. 59, grifo meu). Os valores-de-troca são “reduzíveis a uma coisa comum, da qual representam uma quantidade maior ou menor” (Ibid., p. 59, grifo meu). O que aparece como diversidade de valores-de-uso aparece em processo como diversidade de atividade que produz valor-de-uso. Os diversos valores-de-uso são “produtos da 14

Cf. MARX, 1999a, p. 112; 1999b, p. 76.

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atividade de indivíduos distintos”, de “trabalhos individualmente diferentes”, de “modos de trabalho qualitativamente diversos entre si” (MARX, 1999b, p. 59), de “formas de trabalho concreto” (MARX, 1999a, p. 59, grifos meus). Mas se abstrairmos o caráter útil dos produtos do trabalho, desvanecem-se as diferentes formas de trabalho concreto, “reduzem-se, todas, a uma espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato” (Ibid., p. 60, grifos meus), o trabalho criador de valor. É trabalho que “uniformemente se objetiva”, sem diferenças, “trabalho igual”, “indiferente da forma particular do próprio trabalho15” (MARX, 1999b, p. 59). O trabalho abstrato possui determinidades quantitativas e qualitativas. A redução dos trabalhos concretos ao trabalho humano abstrato aparece como uma abstração, mas como “uma abstração que é praticada diariamente no processo social de produção” (Ibid., p. 60). A operação de redução é simultaneamente qualitativa e quantitativa. É qualitativa enquanto trabalho humano abstrato, “trabalho igual, social, simples”; é quantitativa enquanto “trabalho socialmente necessário16” (FAUSTO, 1983, p. 92-3 e 126, grifo meu). O tempo de trabalho é o modo de ser do trabalho como quantidade, e simultaneamente a sua medida imanente. O tempo de trabalho de um indivíduo apresenta-se no valor-detroca como tempo de trabalho comum a todos os indivíduos, como tempo de trabalho geral17 (MARX, 1999b, p. 61). As mercadorias só encarnam valor porque expressam “uma mesma substância social, trabalho humano” (MARX, 1999a, p. 69). O valor é realidade apenas social, manifesta-se somente como valor-de-troca “na relação social em que uma mercadoria se troca pela outra” (Ibid., p. 69). O tempo de trabalho do indivíduo deve corresponder ao tempo de trabalho que a sociedade precisa para a satisfação de uma determinada necessidade (MARX, 1999b, p. 62). Quando isso ocorre, o trabalho 15

O trabalho humano abstrato, “trabalho humano geral”, aparece “não como trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho” (MARX, 1999b, p. 60). 16 “O trabalho socialmente necessário não é, entretanto, necessariamente o trabalho médio, mas trabalho que se impõe socialmente. É no interior dessa forma, que se impõe, que se estabelecem as médias” (FAUSTO, 1983, p. 93). 17 Para nós, a “forma determinada em que o trabalho se impõe como determinante do valor das mercadorias está ligada (...) com a forma do trabalho como trabalho assalariado com a forma correspondente dos meios de produção enquanto capital, na medida em que só sobre esta base (Basis) a produção de mercadorias se torna forma geral da produção” (MARX, apud FAUSTO, 1983, p. 96-7). No entanto, o trabalho abstrato não pode ser confundido com o trabalho assalariado, embora a condição para o trabalho assalariado aparecer seja a existência prévia do trabalho abstrato. Cf. FAUSTO, 1983, p. 97.

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do indivíduo resulta em valor-de-troca18, num equivalente, que possui na forma mais simples a necessidade do desenvolvimento do dinheiro.

A) Forma simples: x da mercadoria A = y da mercadoria B A mercadoria A é a forma relativa; a mercadoria B, a forma equivalente. Ambas as formas se determinam reciprocamente, mas simultaneamente são “extremos que mutuamente se excluem e se opõem, pólos da mesma expressão do valor”, e que por isso cada uma das mercadorias não pode aparecer, simultaneamente, sob as duas formas, pois elas se repelem polarmente (MARX, 1999a, p. 70-2). A forma equivalente possui três propriedades: 1a oposição entre valor e valor-de-uso: o valor-de-uso da mercadoria B, forma equivalente, é a forma de manifestação de seu contrário: o valor; 2a oposição entre trabalho concreto e trabalho abstrato: a mercadoria equivalente é produto de um determinado trabalho concreto e encarna trabalho humano abstrato; 3a oposição entre trabalho privado e trabalho social: na forma equivalente, torna-se o trabalho privado a forma de seu contrário, o trabalho em forma diretamente social19 (Ibid., p. 78-81). A “contradição interna” da mercadoria entre valor-de-uso e valor manifesta-se como uma “oposição externa”, no processo de troca: “uma, aquela cujo valor tem de ser expresso, figura apenas como valor-de-uso, e a outra, aquela na qual o valor é expresso, é considerada mero valor-de-troca” (Ibid., p. 83). Todavia, na forma simples, o valor da mercadoria A é expresso numa mercadoria de outra espécie. À medida que a mercadoria 18

A mercadoria é um não-valor-de-uso para seu possuidor, e precisa ser para um outro possuidor de mercadorias. Para o proprietário é apenas um meio de troca, ou seja, as mercadorias devem se efetivar como valores-de-troca para se efetivarem como valores-de-uso. Quando isso não ocorre, o trabalho foi despendido em vão. Por isso, o vir a ser valor-de-uso “pressupõe a alienação multilateral das mercadorias, isto é, sua entrada no processo de troca” (MARX, 1999b, p. 70, grifo meu). 19 O “sensível-concreto (das Sinnlich-Konkrete)”, forma equivalente, é a “pura (blosse) forma fenomenal” do “abstrato-universal (des Abstrakt-Allgemeinen)”, “forma de realização efetiva (Verwirklichungsform) determinada do abstrato universal” (MARX, apud, FAUSTO, 1983, p. 101-2). O processo de troca funciona como um jogo de forças. O valor é a força recalcada sobre si, força propriamente dita, que se exterioriza e se apresenta sob a forma do outro que a aborda e solicita, a força solicitante, o valor-detroca. Os dois lados são momentos da força que, como extremos, nada são em si. Cada um é através do outro. Entretanto, o valor não é um interior incognoscível, que só é enquanto nada do fenômeno. Por trás da chamada cortina que cobre o interior há o valor, lá depositado pelo trabalho humano. Cf. HEGEL, 2003, p. 114 e 132.

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A estabelece relação com “esta” ou “aquela” mercadoria, A adquire diversas expressões simples de valor, limitadas só pelo número de mercadorias existentes20 (MARX, 1999a, p. 84).

B) Forma extensiva: z da mercadoria A = u da mercadoria B, ou = v da mercadoria C, ou = w da mercadoria D, ou = x da mercadoria E, ou = etc. A forma relativa ampliou-se e passou a ser relativa a muitos equivalentes. O valor é, pela primeira vez, uma massa de trabalho homogêneo: “ao valor não importa a forma específica do valor-de-uso em que se manifesta” (Ibid., p. 85). Entretanto, “a expressão do valor fica incompleta, por nunca terminar a série que a representa” (Ibid., p. 86). A mercadoria A possui uma série de expressões “díspares, desconexas”. Cada uma dessas expressões é um “equivalente particular”, que existe ao lado de inúmeros outros: a mercadoria A expressa seu valor na mercadoria B, mas também na mercadoria C, também na mercadoria D, E etc. Cada equivalente é um indiferente também21. Contudo, o equivalente só é um equivalente particular na medida que se relaciona com o outro como oposto. Trata-se, então, de “formas de equivalentes limitadas, cada uma excluindo as demais” (Ibid., p. 86). A forma relativa, então, só se manifesta completamente “no circuito inteiro daquelas formas particulares”. Falta uma “forma unitária de manifestação do trabalho humano” (Ibid., p. 86).

C) Forma geral do valor: u da mercadoria B = v da mercadoria C = w da mercadoria D =

z da mercadoria A

x da mercadoria E = 20

Historicamente, na forma simples do valor, por um lado, o trabalho ainda não aparece plenamente como trabalho humano abstrato, pois seu aparecimento pressupõe o desenvolvimento da divisão do trabalho e o modo de produção capitalista. Por outro lado, a forma equivalente, apesar de já desenvolver a função de dinheiro, o faz ainda de maneira precária e intermitente. Cf. LETÍZIA, 2003, p. 5-6. Para nós, historicamente, a constituição do valor e do trabalho abstrato “se faz de quantidade à qualidade: as determinidades da qualidade só se consumam (achèvent) com o capitalismo da grande indústria, quando se passa de um trabalho já simplificado (e já equalizado pelo tempo) ao trabalho simples” (FAUSTO, 1983, p. 127). 21 Cf. HEGEL, 2003, p. 97.

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O trabalho objetivado no valor da mercadoria é representado não somente sob o aspecto negativo em que se põem de lado de todas as formas concretas, ressalta-se o aspecto positivo: “a redução de todos os trabalhos reais a sua condição comum de trabalho humano, de dispêndio de força humana de trabalho” (Ibid., p. 89). A mercadoria, equivalente geral, adquire, além de seu valor-de-uso particular, um valor-de-uso geral, é portadora de valor-de-troca, é “meio de troca geral22” (MARX, 1999b, p. 74), torna-se “objeto de uma necessidade geral” (MARX, 1999b, p. 74), e por isso destaca-se das demais mercadorias23. Entretanto, falta à forma geral do valor que esse destaque se limite, terminantemente, a uma mercadoria determinada, que possui “validade social universal” (MARX, 1999a, p. 91, grifo meu).

D) Forma dinheiro do valor: u da mercadoria B = v da mercadoria C = z da mercadoria A =

w da mercadoria D

x da mercadoria E = O dinheiro é o equivalente geral adequado, “o modo de ser adequado do valor-de-troca de todas as mercadorias” (MARX, 1999b, p. 75), pois é o “equivalente universal”. Representar o valor é a sua “função social específica, seu monopólio social, no mundo das mercadorias” (MARX, 1999a, p. 91). O dinheiro é “o valor-de-troca das mercadorias como mercadoria exclusiva e particular24” (MARX, 1999b, p. 75). 22

A mercadoria, representando a forma relativa, é procurada pelo seu valor-de-uso natural; a mercadoria, representando a forma equivalente, é procurada pelo seu valor-de-uso social. Não é uma troca entre duas mercadorias simetricamente opostas, com valores-de-uso distintos, mas entre uma mercadoria comum e uma imagem do valor. Por conseguinte, as mercadorias comuns, na forma relativa, entram como valores, mas aparecem como meros valores-de-uso; a mercadoria, equivalente geral, entra como valor-de-uso, mas aparece como puro valor (LETÍZIA, 2003, p. 9). 23 Historicamente, a mercadoria eleita para a função de equivalente geral é a mais freqüentemente trocada. Por isso não é uma mercadoria rara, pois a raridade é diretamente contrária a sua função essencial: desbloquear as trocas quando o produtor ofertante não se interessa pela produção do demandante. A mercadoria, equivalente geral, representa o poder de compra absoluto, pois é a materialização obrigatória da necessidade social solvente, a única mercadoria apta a desbloquear as trocas (LETÍZIA, 2003, p. 9). 24 Historicamente, o dinheiro, originalmente, não é moeda cunhada, mas simplesmente metal precioso. O surgimento do novo equivalente é determinado pelo interesse do mercador, que passa a intermediar as trocas. O dinheiro é o equivalente geral dos mercadores (LETÍZIA, 2003, p. 13-4). O surgimento do dinheiro manifesta uma necessidade social, e não uma determinidade natural do metal precioso. A mercadoria-dinheiro, “embora pesada nas trocas, não expressa o valor do metal precioso, mas unicamente o

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A oposição “latente” da mercadoria, entre valor-de-uso e valor, necessita exteriorizar-se e exige uma forma independente para o valor. A mercadoria se duplica em mercadoria e dinheiro (MARX, 1999a, p. 111-2). O valor de todas as mercadorias se apresenta no dinheiro, “ser-aí do trabalho social, abstratamente geral (der gesellschaftlichen, abstrakt allgemeinen Arbeit)”, forma na qual todas as mercadorias possuem a mesma configuração (MARX, apud FAUSTO, 1983, p. 128). O trabalho abstrato e o valor são “universais concretos”, e contêm num objeto simultaneamente a universalidade e a singularidade. O dinheiro é “gênero” e “indivíduo”, e por isso é, como “coisa social”, o contrário (Gegenteil) de cada mercadoria25 (FAUSTO, 1983, p. 98). O dinheiro é a “forma acabada do mundo das mercadorias”, é a forma que “realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados”, ao invés de pô-las em evidência (MARX, 1999a, p. 97). Na troca, “as relações entre os produtores, nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos do trabalho” (Ibid., p. 94). O fetiche da mercadoria26 é a apresentação inversa (umgekehrt) “da relação social das pessoas, ou seja, como relação social entre coisas” (MARX, 1999b, p. 63). Na troca, as pessoas “só existem, reciprocamente, na função de represen-

valor das mercadorias trocadas” (Ibid., p. 19). Por isso, a mercadoria-dinheiro já contém em si a condição da passagem para as formas mais desenvolvidas do dinheiro. O conteúdo real e nominal pode se cindir na existência da moeda porque a moeda “não expressa seu próprio valor ao ser trocada pelas mercadorias, mas apenas o valor destas” (Ibid., p. 19). Portanto, o metal precioso “não precisa estar presente na moeda. Basta o nome de uma quantidade equivalente de metal precioso para expressar o valor relativo das mercadorias” (Ibid., p. 20). O surgimento da moeda fiduciária significa que, “na circulação de mercadorias, somente o valor relativo destas é expresso, e não o valor do equivalente” (Ibid., p. 20). 25 Por isso o trabalho abstrato não é somente gênero de trabalhos concretos, pois se assim fosse não seria possível afirmar nenhuma oposição e contrariedade. Por um lado, o gênero “não é o contrário da espécie: ele apenas subsume a espécie, e não se poderia afirmar que esta subsunção constitui uma relação de contrariedade” (FAUSTO, 1983, p. 97). Por outro lado, anulando a idéia de gênero se poderia supor que se trata apenas de objetos “diferentes”, o que acaba excluindo a idéia de oposição (Ibid., p. 97). Fora do processo de troca, os trabalhos concretos aparecem de maneira diversa; o trabalho abstrato e o trabalho concreto, como gênero e espécie, respectivamente. A troca realiza a passagem da diversidade para a oposição. Na relação de troca, o trabalho abstrato “equipara e identifica os trabalhos concretos ao mesmo tempo em que preside a diferenciação pela divisão do trabalho (...). A diferença dos trabalhos concretos é determinada pela identidade do trabalho abstrato, por seu ‘outro’, sendo uma oposição e não diversidade” (GRESPAN, 1999, p. 66). 26 O fetiche não provém do valor-de-uso, nem do valor, mas da própria forma mercadoria (MARX, 1999a, p. 93-4). Essa “forma” não é “forma fenomenal”, mas uma “forma social específica”. É específica porque nos outros modos de produção as determinações essenciais do valor – ou seja, as determinações do seu conteúdo: tempo de trabalho e abstração do trabalho – estão dadas, mas falta a posição objetiva das determinações. A posição da coisa é a sua existência social. Quando falta a posição, “não há nem valor nem trabalho abstrato” (FAUSTO, 1983, p. 105).

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tantes de mercadorias” (MARX, 1999a, p. 109-10), como simples “guardiães das mercadorias” (MARX, 1999b, p. 112).

O dinheiro é a “encarnação imediata do trabalho social” (MARX, apud FAUSTO, 1983, p. 128), e por isso atua como um fator de dissolução das trocas diretas (MARX, 1999b, p. 76). Representando os valores das mercadorias de maneira “socialmente válida”, “como grandezas que têm a mesma denominação, qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis”, o dinheiro desempenha a função de medida dos valores (MARX, 1999a, p. 121-2, grifos meus). A expressão do valor-de-troca no dinheiro é o preço. Embora dependa da “substância real do dinheiro”, o preço expressa o valor numa quantidade imaginária de dinheiro, é “forma puramente ideal ou mental”, relação que só existe nas cabeças das pessoas (Ibid., p. 122-3). Se na função medida do valor o dinheiro existe na “forma puramente ideal”, na função meio de circulação o dinheiro pode existir como “símbolos de valor”. “A forma moeda assumida pelo dinheiro decorre da função meio de circulação” (Ibid., p. 151, grifos meus), tornando-se depois responsabilidade do Estado27 (MARX, 1999a, p. 151; 1999b, 94 e 128). Vimos que “a troca de mercadorias encerra elementos contraditórios e mutuamente exclusivos” (MARX, 1999a, p. 131), mas essas contradições não se cessam, a duplicação das mercadorias em mercadoria e dinheiro “gera a forma dentro da qual elas podem se mover”, ou seja, a “contradição se dá e se resolve ao mesmo tempo” (Ibid., p. 131, grifos meus). A “forma imediata da circulação de mercadorias” é M – D – M (Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria28) (MARX, 1999b, p. 106). Nessa forma, o “processo de troca da merca27

“(...) o modo de ser da moeda de ouro como sinal de valor, desligado da própria substância do ouro, tem sua origem no próprio processo de circulação, e não na convenção ou na intervenção do Estado” (MARX, 1999b, p. 129). Historicamente, o Estado se apropria da cisão entre conteúdo real e conteúdo nominal do dinheiro e passa a administrá-la em seu proveito ou em favor de determinada fração da classe dominante. 28 Cada um dos extremos representa um produtor e valores-de-uso distintos; o dinheiro, intermediário do processo, o mercador. O produtor aliena a sua mercadoria, não valor-de-uso para si, ao mercador, em troca de dinheiro, para poder adquirir outra mercadoria, que lhe satisfaz enquanto valor-de-uso. Como o tempo de trabalho, em sua forma latente, é originalmente a medida do esforço particular, que no dinheiro

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doria se realiza através de duas metamorfoses opostas e reciprocamente complementares” (MARX, 1999a, p. 132, grifos meus). O circuito se decompõe em M – D: troca de mercadoria por dinheiro, ou venda; e D – M: troca de dinheiro por mercadoria, ou compra (MARX, 1999b, p. 106). Embora as duas metamorfoses sejam complementares, as duas formas M – D e D – M são ao mesmo tempo autônomas29. Venda e compra, quando praticadas por duas pessoas polarmente opostas, vendedor e comprador, é ato idêntico, ou seja, M – D é simultaneamente D – M, mas quando praticados pela mesma pessoa “constituem atos polarmente opostos” (MARX, 1999a, 140, grifo meu). A autonomização da primeira metamorfose (M – D) tem realidade efetiva na função entesouramento, que significa a existência de vendas sem compras. A primeira metamorfose “passa a ter um fim em si mesma, ao invés de servir de meio da circulação das coisas” (Ibid., p. 157). A razão de ser inicial do entesouramento está na própria característica do dinheiro, na sua capacidade de entrar em circulação a qualquer momento, o que lhe dá a qualidade de “objeto insaciável”, e desenvolve nos indivíduos “a necessidade e a paixão de reter o produto da primeira metamorfose” (Ibid., p. 157 e 160). A autonomização da segunda metamorfose (D – M) tem realidade efetiva na função meio de pagamento. O vendedor, representando uma mercadoria real, aliena um valorde-uso efetivo, no presente, mas realiza o valor-de-troca somente de forma ideal, na promessa de pagamento futuro de outro. O comprador, através de uma promessa de pagamento futuro, aliena o valor-de-troca idealmente, mas realiza efetivamente o valor-deuso, no presente30 (MARX, 1999b, p. 147). se manifesta como generalidade social, para depois tomar a forma de um valor-de-uso individual, o processo de troca M – D – M pode ser apresentado da seguinte forma: P – G – I (Particularidade – Generalidade – Individualidade) (MARX, 1999b, p. 111-2). 29 A autonomização de uma das fases existe porque o dinheiro rompe com a “identidade imediata” entre alienação do próprio produto e a aquisição do produto alheio, deixando latente a possibilidade da crise, pois se “essa independência exterior dos dois atos – interiormente dependentes por serem complementares – prossegue se afirmando além de certo ponto, contra ela prevalece, brutalmente, a unidade, por meio da crise” (MARX, 1999a, p. 140, grifos meus). Entretanto, a circulação de mercadorias fornece apenas a “forma elementar” da crise, apenas a “possibilidade formal” (GRESPAN, 1999, p. 93-4), “não indica a origem dessa estagnação [a paralisação das metamorfoses das mercadorias devido o retardamento do curso do dinheiro – EN]; apenas põe o fenômeno em evidência” (MARX, 1999a, p. 147). 30 O meio de pagamento surge para facilitar a circulação de mercadorias, substituindo a função circulatória da moeda, mas o elemento espera que contém o meio de pagamento acrescenta-lhe a função medida de valor, que entra em oposição direta com a função meio de circulação, que o origina. A oposição se manifesta como contradição social: “para o credor, o meio de pagamento é meio de circulação e medida de valor; para o devedor, é estritamente meio de circulação”. A oposição tem duas conseqüências: 1a “gera normalmente um acréscimo na expressão monetária do valor prometido em relação ao valor da compra presente”; 2a na data de vencimento do débito é necessário efetuar pagamentos reais, o que exige

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Entretanto, a forma M – D – M pressupõe que o dinheiro é apenas um meio de adquirir valores-de-uso qualitativamente diversos. O consumo é o “conteúdo do movimento” (GRESPAN, 1999, p. 96-7). Passar para a forma D – M – D significa que o dinheiro tornou-se um fim. Contudo, pareceria um absurdo trocar dinheiro por mercadoria para adquirir novamente dinheiro numa mesma grandeza de valor. Por isso a forma completa de D – M – D é, na realidade, D – M – D’, de forma que os extremos D – D não são diferentes qualitativamente, mas quantitativamente. Troca-se dinheiro por mercadoria para em seguida adquirir quantidade maior de dinheiro (MARX, 1999b, p. 134), ou seja, D’ é D + ∆D, soma de dinheiro originalmente adiantada mais um acréscimo. Esse excedente chama-se mais-valia, e pressupõe uma troca de não-equivalentes. A passagem de M – D – M para D – M – D’ significa pôr o conceito de capital: capital é “valor em progressão”, “dinheiro em progressão” (MARX, 1999a, p. 185, grifos meus). Nosso objetivo no próximo item é apresentar o que está implícito nesse conceito.

1.4 – A independência do capital: o relacionar-se consigo mesmo mediante o seu outro Neste item apresentaremos a manifestação do trabalho alienado na posição da relação capitalista de produção e a constituição do capital como “sujeito” de seu processo de autovalorização. Na sua pretensão de dominação de toda a realidade, o capital procurará reduzir a força de trabalho como um momento seu, como capital variável.

1.4.1 – O processo imediato de produção Vimos que o dinheiro rompe com a “identidade imediata” entre a alienação do próprio produto e a aquisição do produto alheio. O processo de troca se cindiu em duas metamorfoses opostas e reciprocamente complementares: M – D e D – M, completando M – a acumulação de dinheiro (LETÍZIA, 2003, p. 22). A necessidade de efetuar os pagamentos reais exige que se acumule dinheiro para atender os débitos nas datas de vencimento. “O entesouramento, como forma autônoma de enriquecimento desapareceu com o progresso da sociedade burguesa, mas sob a forma de fundo de reserva de meios de pagamentos, se expande com essa sociedade” (MARX, 1999a, p. 169, grifos meus).

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D –M. Vimos também que a passagem de M – D – M para D – M – D’ significava pôr o conceito de capital como valor que “põe uma mais-valia ou se valoriza” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 98). D – M – D’ é a “fórmula geral do capital” (MARX, 1999a, p. 186). Na circulação de dinheiro como capital, dinheiro e mercadoria são modos de existência do valor31. O valor passa continuamente de uma forma à outra, “dilatando-se nessas mudanças”, “sem perder-se nesse movimento, transformando-se numa entidade que opera autonomamente32” (MARX, 1999a, p. 184-5). Essa mudança de valor não se origina do segundo ato da circulação M – D’, da revenda da mercadoria. A mais-valia não pode se originar do aumento dos preços das mercadorias acima de seu valor, pois o que os indivíduos ganham na qualidade de vendedores perdem na qualidade de compradores. “A circulação ou a troca de mercadorias não cria nenhum valor” (Ibid., p. 194). A mudança de valor origina-se da mercadoria comprada no primeiro ato D – M, mas não em razão de seu valor, pois se trocam equivalentes. A mudança, então, só pode originar-se do seu valor-de-uso, do seu consumo. O capitalista, possuidor de dinheiro, deve encontrar dentro da esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo valorde-uso possua a propriedade peculiar de ser fonte de valor, de modo que consumi-la seja realmente encarnar trabalho, criar valor, portanto (Ibid., p. 197).

Essa “mercadoria especial” é a “força de trabalho33” (Ibid., p. 197). O seu valor é determinado “como o de qualquer outra mercadoria”, ou seja, “pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, e por conseqüência, à sua reprodução” (Ibid., p. 31

Na circulação simples, o valor é a essência interior indiferente as suas formas de existência M – D – M. Essas formas de existência do valor são colocadas em movimento apenas por uma finalidade externa, o consumo (Verbrauch). A passagem de M – D – M para D – M – D’ significa a passagem da “diversidade” para a “oposição”; nela, “essência e existência se determinam como opostas, de modo que a forma externa é a manifestação necessária da essência, que passa a ser seu conteúdo” (GRESPAN, 1999, p. 122). Na circulação de dinheiro como capital, dinheiro e mercadoria são formas de existência do valor, o dinheiro é a forma de existência geral e a mercadoria é a forma de existência particular. O movimento dessas formas é determinado por uma finalidade interna, o próprio valor. O valor é o “interior que se apresenta completamente na forma exterior (...) que, enquanto finalidade do movimento, determina cada forma como fase necessária para a valorização” (Ibid., p. 122). 32 Para nós, esse automatismo só adquire sentido pleno no capital portador de juros. Nele patenteia-se finalmente a forma “abreviada” da circulação D – M – D’, “com seu resultado sem estágio intermediário, expressando-se concisamente em D – D’, dinheiro igual e mais dinheiro, valor que ultrapassa a si mesmo” (MARX, 1999a, p. 186). 33 “Força de trabalho (Arbeitskraft)” ou “capacidade de trabalho (Arbeitsvermogen)” significa “o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie” (MARX, 1999a, p. 197).

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200-1). A produção da força de trabalho consiste em sua “manutenção ou reprodução”. “Para manter-se, precisa o indivíduo de certa soma de meios de subsistência”. Portanto, o tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho reduz-se ao tempo de trabalho necessário à produção dos meios de subsistência34 (Ibid., p. 201). O dinheiro só se transforma em capital quando as seguintes condições estão postas: 1. a produção de mercadorias é a forma geral da produção; 2. o dinheiro é capaz de adquirir força de trabalho, de forma que o trabalho seja trabalho assalariado35; e 3. os produtos do próprio trabalho se defrontam com o trabalhador como poderes autônomos, enquanto sua não-propriedade, propriedade alheia, propriedade do capital (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 103). O consumo da força de trabalho é, ao mesmo tempo, produção de mercadoria e de maisvalia. Como qualquer outro consumo, ocorre fora do mercado, fora da esfera da circulação (MARX, 1999a, p. 206). Portanto, o capital “nem pode originar-se na circulação nem fora da circulação. Deve, ao mesmo tempo, ter e não ter nela sua origem” (Ibid., p.

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A soma dos meios de subsistência deve ser suficiente para que o trabalhador possa 1. “repetir amanhã a mesma atividade, sob as mesmas condições de força e saúde”; 2. manter os seus substitutos, os seus filhos, “de modo que se perpetue no mercado essa raça peculiar de possuidores de mercadorias”; e 3. manter-se num “nível de vida normal”. Além das necessidades naturais, que variam de acordo com o clima ou outra natureza de cada país, “a extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o modo de satisfazê-las são produtos históricos” e dependem do grau de civilização de um país, das condições em que se formou a classe de trabalhadores livres, seus hábitos e exigências particulares. “Um elemento histórico e moral entra na determinação do valor da força do trabalho, o que distingue das outras mercadorias”. Além disso, para que o trabalhador “alcance habilidade e destreza em determinada espécie de trabalho e se torne força de trabalho desenvolvida e específica”, ele precisa de qualificação e seus custos entram no valor total despendido para a produção da força de trabalho (Ibid., p. 201-2). 35 “Na relação entre o capitalista e [trabalhador – EN] assalariado, a relação monetária passa a ser a relação entre comprador e vendedor, relação imanente à própria produção” (MARX, 1991, p. 119). Para que essa condição esteja posta é necessário que o trabalhador possa: 1. “dispor, como pessoa livre, de sua força de trabalho como mercadoria”; 2. “estar livre, inteiramente despojado de todas as coisas necessárias à materialização de sua força de trabalho”, despojado de meios de produção e meios de subsistência. “A continuidade dessa relação exige que o possuidor de força de trabalho venda-a sempre por tempo determinado” (MARX, 1999a, p. 198-9). Historicamente, a relação salarial surge com o rebaixamento do trabalhador, “uma degradação, mesmo em relação a situações já miseráveis” (CASTEL, 2003, p. 148), mas ser trabalhador assalariado “não conota somente a miséria material (...) mas, também, estados de dependência que implicam uma espécie de subcidadania ou de infracidadania em função dos critérios que, para a época, asseguravam um lugar reconhecido no conjunto social” (Ibid., p. 204). A “vagabundagem representa a essência negativa do assalariado”. O vagabundo é um assalariado “puro”, ainda desprovido de qualquer conteúdo; é a força de trabalho que ainda não é efetivamente, existe somente como força recalcada sobre si, que ainda não se manifestou através da venda porque a relação salarial não estava posta. Era necessário superar todas as barreiras construídas pelas tradições pré-capitalistas, que impediam a formação do mercado de trabalho; era necessário suprimir os sistemas das comunidades de ofício e as regulações protecionistas que impediam a livre circulação de trabalhadores (Ibid., p. 149 e 246). A liberdade dos trabalhadores chega como uma “maldição”: os trabalhadores estavam “presos entre a obrigação de trabalhar e a impossibilidade de trabalhar segundo as formas prescritas” (Ibid., p. 118).

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196, grifos meus). O capitalista consome a mercadoria força de trabalho fazendo o detentor dela, o trabalhador, consumir os meios de produção com seu trabalho (Ibid., p. 218). O valor dos meios de produção constitui parte componente do valor do produto (Ibid., p. 222). Por isso o capitalista cuida para que o trabalho se realize de maneira adequada, para que o trabalhador aplique adequadamente os meios de produção, sem desperdício. “O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho” (Ibid., p. 219). Na forma geral da circulação do capital D – M – D’, a produção de valores-de-uso está subordinada à produção de valores-de-troca e à produção de valor excedente36 (maisvalia). No entanto, essa unidade contraditória da mercadoria é o resultado de uma unidade contraditória em processo37. O processo de trabalho é o processo de produzir valores-de-uso e, simultaneamente, o processo de produzir valor (Ibid., p. 220).

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Na forma dinheiro, a força de trabalho aparece como uma mercadoria, e o capital como valor que compra essa fonte de valor e cria as condições para se valorizar na forma D – M – D’. No entanto, a circulação simples M – D – M não é simplesmente suprimida pelo capital, é superada à medida que seu conteúdo, o objetivo de vender para comprar valores-de-uso é transformado em momento de um processo maior, ou seja, a sua função é executar as fases do movimento em que se compra para depois vender mais caro (GRESPAN, 1999, p. 107 e 111). “A troca do trabalhador com o capitalista é uma troca simples; cada um recebe um equivalente; um deles, o dinheiro, o outro, a mercadoria, cujo preço é exatamente igual ao dinheiro pago por ela” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 108-9). Para o trabalhador, o sentido desta troca está na circulação simples M – D – M, ou melhor, F – D – M, pois o dinheiro, equivalente do valor de sua força de trabalho, deve ser convertido em meios de subsistência. O trabalhador é explorado não por ser necessariamente sub-remunerado, mas por ser forçado a trabalhar mais tempo que o necessário para repor o valor de sua força de trabalho. A igualdade entre o comprador da força de trabalho e o vendedor, o capitalista e o trabalhador, não é uma aparência ilusória da desigualdade verdadeira, mas a sua “forma de aparecimento”. Os indivíduos, no processo de circulação, se defrontam em situações opostas socialmente, mas como possuidores de mercadorias equivalentes. Igualdade e desigualdade não são distintas enquanto “processo superficial” e “processo subjacente”, e não se anulam uma na outra, condicionam-se mutuamente. A circulação é parte do processo global de produção capitalista, e a igualdade é, portanto, momento da desigualdade. O que é ilusório não é a igualdade e a liberdade, mas que só estas existam. O objetivo do modo de produção capitalista é a valorização, que só ocorre tendo como pressuposto a desigualdade de condições sociais entre capitalistas e trabalhadores assalariados. É a desigualdade que permite a situação em que ambos se defrontam como iguais. A igualdade é fundamental para distinguir o capitalismo de outros modos de produção, em que se obtém o excedente pela coerção violenta, mas a igualdade no mercado só é possível se antes existir desigualdade (GRESPAN, 1999, p. 112-4). Se antes propriedade e trabalho configuravam uma identidade, o movimento de valorização do capital manifesta a sua separação: “a propriedade aparece, pelo lado do capitalista, como direito de se apropriar de trabalho alheio não-pago ou de seu produto e, pelo lado do trabalhador, como impossibilidade de se apropriar de seu próprio produto” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 116). 37 “O capitalista, familiarizado com a economia vulgar, dirá provavelmente que adiantou seu dinheiro com a intenção de fazer com ele mais dinheiro. Mas, o caminho do inferno está calçado de boas intenções, e ele podia ter até a intenção de fazer dinheiro sem nada produzir. Ameaça. Não o embrulharão de novo. Futuramente, comprará a mercadoria pronta no mercado, em vez de fabricá-la. Mas, se todos os seus colegas capitalistas fizerem o mesmo, como achar mercadoria para comprar? Não pode comer seu dinheiro” (MARX, 1999a, p. 225).

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O processo de produção possui uma determinação qualitativa e outra quantitativa. Enquanto processo de trabalho é processo de produzir valores-de-uso, sua determinação qualitativa. Enquanto processo de produzir valor, o mesmo processo de trabalho é considerado apenas sob o aspecto quantitativo, medido pelo tempo em que a força de trabalho reproduz o seu valor, que é pago pelo capital na forma equivalente dinheiro. No entanto, o processo de trabalho possui outra determinação qualitativa: produz valor excedente. A extensão do processo de produzir valor é o processo de produzir maisvalia38. Desse modo, temos que: 1. o processo de produção é processo de produção de mercadorias enquanto unidade do processo de trabalho e processo de produzir valor; 2. o processo de produção é processo capitalista de produção, forma capitalista da produção de mercadorias, enquanto unidade do processo de trabalho e processo de produzir mais-valia (Ibid., p. 228-30). No processo de trabalho, os diversos elementos componentes desempenham funções diferentes na formação do valor dos produtos. Esses elementos são: 1. o próprio trabalho; e 2. os meios de produção, que se dividem em dois: a) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto do trabalho, ou seja, a matéria-prima; e b) o instrumental de trabalho (Ibid., p. 212 e 235). No processo de trabalho, o trabalhador põe em movimento a propriedade abstrata e concreta do trabalho. Por meio da propriedade abstrata, acrescenta valor novo ao material; por meio da propriedade concreta, transfere o valor dos meios de produção para o novo produto, preservando o valor dos meios de produção no novo produto como parte componente do valor. Um meio de produção pode transferir totalmente o seu valor, no caso da matéria-prima, ou gradualmente, no caso dos instrumentos de produção. Em ambos os casos, a transferência de valor está limitada pelo valor original do meio de produção (Ibid., p. 239-41).

38

É tempo de trabalho necessário a parte do processo de trabalho, ou do dia de trabalho, que o trabalhador reproduz o valor de sua força de trabalho. É tempo de trabalho excedente, o tempo que o trabalhador opera além dos limites do trabalho necessário; é dispêndio de força de trabalho sem representar nenhum valor para o trabalhador, mas mais-valia para o capitalista (Ibid., p. 253). A soma do tempo de trabalho necessário e do trabalho excedente constitui a magnitude absoluta do tempo de trabalho ou a jornada de trabalho (Ibid., p. 266).

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Do ponto de vista do processo de trabalho, os meios de produção são para o trabalhador meios materiais de sua atividade produtiva, e não capital; do ponto de vista do processo de criar valor, os meios de produção são meios de absorção de trabalho alheio (Ibid., p. 357). Para o capital, os meios de produção, de um lado, e a força de trabalho, do outro lado, são diferentes formas de sua existência, “fatores do processo de trabalho”. Por isso a força de trabalho, trabalho vivo, é capital variável, pois reproduz seu próprio valor e, além disso, proporciona um excedente, a mais-valia; e os meios de produção, trabalho morto, são capital constante, pois não se altera a magnitude de seu valor no processo de produção (Ibid., p. 244, grifo meu). O valor do produto, da nova mercadoria, se decompõe da seguinte forma: M = c + (v + m)

onde: M = mercadoria nova que surgiu do processo produtivo; c = capital constante; v = capital variável; e m = mais-valia.

Ao incluir a força de trabalho como momento seu, como capital variável, o capital se apresenta como uma “totalidade formalmente estabelecida, sendo pela formalidade desta subsunção que ele domina as condições de sua própria valorização e se apresenta como o ‘sujeito’ deste processo” (GRESPAN, 1999, p. 139). “Negativamente apreendido”, ou seja, enquanto “exclusão completa da riqueza objetiva”, o trabalho vivo é momento do capital total, mas “positivamente apreendido”, o trabalho é “fonte viva do valor”, “possibilidade universal da riqueza” (Ibid., p. 139-40). O capital é o “sujeito” que precisa simultaneamente afirmar e negar a substância-trabalho: afirmá-la como momento de sua totalidade e negá-la como “possibilidade de constituição de um todo no qual ele mesmo fosse mero momento” (Ibid., p. 141 e 270). Mas como “sujeito cego39”, o capital se situa num nível inferior do desenvolvimento do sujeito, próximo a “consciência” para si essente, que se relaciona consigo mesmo mediante o trabalho, reduzido a outro inessencial40.

39

Cf. MÜLLER, 1982, p. 38. Para nós, o trabalho, esse outro inessencial, é a verdade do capital. O capital só existe como Ser-para-si através da mediação do outro. Se por um lado, o capital é a potência que está sobre esse outro, por outro lado, é necessário que esse outro esteja debaixo. Lá onde o capital acha que realizou plenamente a sua independência evidenciou algo totalmente diverso: a sua dependência do trabalho vivo. Cf. HEGEL, 2003, p. 147-9.

40

26

O objetivo do capital é valorizar-se. O valor novo criado no processo de produção, a massa de mais-valia, é determinado por dois fatores: a taxa de mais-valia e o número de trabalhadores. A primeira é determinada “pela proporção na qual a jornada de trabalho se divide em trabalho necessário e mais-trabalho”; a segunda, “por sua vez, depende da proporção entre a parte variável do capital e a constante41” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 142). As duas variáveis se combinam para formar a medida da valorização do capital42. A “medida (Mass)” é um “limite (Grenze) quantitativo da mais-valia” que aparece ao capital como “barreira (Schranke)”, “que ele procura constantemente dominar e ultrapassar” (GRESPAN, 1999, p. 136, grifos meus). Em seu movimento de autovalorização, o capital faz constantemente do seu limite uma barreira, ao superá-la toma a medida anterior como si mesmo e, simultaneamente, estabelece uma nova medida que, enquanto limite, deve se tornar uma nova barreira a ser superada. O capital é esse movimento contínuo de diferenciar de si mesmo apenas a si mesmo enquanto si mesmo43.

41

Sendo M = massa de mais-valia; m = mais-valia fornecida em média pelo trabalhador individual; v = capital variável adiantado para a compra de uma força de trabalho individual; m’ = taxa de mais-valia; V = soma total do capital variável. Temos então que: M = m’ . V Sendo m’ = m v A fórmula indica a manifestação de três leis: 1a “A massa de mais-valia produzida é igual à magnitude do capital variável antecipado multiplicada pela taxa de mais-valia” (MARX, 1999a, p. 350); 2a “O limite absoluto do dia médio de trabalho, que, por natureza, tem menos de 24 horas, constitui um limite absoluto à compensação da queda do capital variável pelo aumento da taxa de mais-valiaI” (Ibid., p. 352); e 3a Dada a taxa de mais-valia e o valor da força de trabalho, “quanto maior o capital variável, tanto maior a quantidade de valor e de mais-valia produzidos” (Ibid., p. 352). I Para nós, esse limite absoluto é tanto para a mais-valia absoluta quanto para a mais-valia relativa. O limite se põe, nesse último caso, porque a “mais-valia pressupõe a relação entre trabalho vivo e trabalho objetivado no trabalhador; ambos os termos da relação precisam existir” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 198), o que significa que existe um limite “inferior” para a diminuição do tempo de trabalho necessário, pois “capital não pode se apropriar de toda a jornada de trabalho” (ROSDOLSKY, 2001, p. 198). “Quanto menor for a fração que corresponde ao trabalho necessário e maior a que corresponde ao mais-trabalho, menor será a redução do trabalho necessário proporcionada pelo incremento da força produtiva, até o ponto de não reduzi-lo sensivelmente, pois o denominador cresceu enormemente. A autovalorização do capital se torna mais difícil na medida em que ele já se valorizou” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 200). 42 Para nós, essas “diferentes grandezas parecem, à primeira vista, dar-se independentemente uma da outra” (GRESPAN, 1999, p. 142). No entanto, existe “uma contradição imanente na aplicação da maquinaria para produzir mais-valia, pois, dos dois fatores da mais-valia obtida com um capital de magnitude dada, um fator, a taxa da mais-valia, só pode ser aumentado por essa aplicação se ela diminuir o outro fator, o número de trabalhadores” (MARX, 1999a, p. 465, grifos meus). As duas grandezas não se dão de maneira independente uma da outra, mas contraditoriamente, “são expressões diferentes de um mesmo todo contraditório, da ‘contradição processual’ que configura o capital” (GRESPAN, 1999, p. 144). A valorização do capital é medida pela taxa de mais-valia, no entanto, ao aumentar a magnitude do capital constante, através da maquinaria, o capital reduz a base em que pode se valorizar (Ibid., p. 143-5). 43 Para nós, o movimento de autovalorização do capital contém em si a “contradição fundamental do capital desenvolvido”: a crise de “sobreprodução” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 138). A tendência geral do capital é “prosseguir por cima de cada barreira” (Ibid., p. 38), mas “nem sempre o limite se apresenta como barreira” (GRESPAN, 1999, p. 138). O “impulso desmedido (masslos)” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 137) que caracteriza o processo de acumulação pode levar ao aparecimento de uma

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1.4.2 – As três figuras da reprodução no processo de circulação O capital em seu movimento de autovalorização se divide e se fixa em diferentes fases, conforme a sua necessidade. O movimento consiste em realizar diferentes metamorfoses, transitar por diferentes formas-valor de maneira sucessiva. As figuras que o capital percorre em seu processo de valorização são momentos de “relação privada” do capital consigo próprio. O movimento das metamorfoses manifesta a sua “subjetividade”, o seu “poder de dominar as condições de sua existência e acumulação e de convertê-las em momentos da sua relação consigo próprio” (GRESPAN, 1999, p. 157), ou seja, o seu “poder de diferenciar-se de si em cada uma de suas formas e resgatar-se permanentemente na unidade do processo fluido de uma a outra” (Ibid., p. 157). Em seu processo cíclico, o capital se fixa temporariamente em três formas. Cada uma delas, como ponto de partida e chegada, possui três diferentes circuitos: 1. Capital-dinheiro: sua função é comprar força de trabalho e meios de produção. O seu circuito é D – M ... P ... M’ – D’. D – M representa a conversão de um montante de dinheiro em mercadorias. M representa F + Mp, força de trabalho e meios de produção, de modo que D – M decompõe-se em D – F e D – Mp, duas compras que pertencem a mercados inteiramente diversos: mercado de trabalho e mercado propriamente dito, respectivamente44 (MARX, 1991, p. 28-9). Mais concisamente, D – M se configura em D – M

<

F Mp

, uma bifurcação não só qualitativa, mas também quantitativa, pois a “quantida-

de e o tamanho dos meios de produção a comprar têm de ser adequados ao emprego dessa massa de trabalho” (Ibid., p. 29). A parte do dinheiro gasta em meios de produção precisa ser suficiente, estar nas “proporções adequadas”, mediante o “prévio cálculo”, pois caso contrário não existirá trabalho excedente (Ibid., p. 30).

outra desmedida: a “perda de referência do processo de valorização no valor produzido sob condições capitalistas” (GRESPAN, 1999, p. 138). 44 Nesses mercados, o capital encontra-se na situação de realizar as funções de dinheiro como meio geral de compra e meio de pagamento, pois a força de trabalho só é paga depois de ter operado (MARX, 1991, p. 31).

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O ciclo do capital-dinheiro pressupõe a “existência permanente da classe assalariada” e o “capital sob a forma capital produtivo” (Ibid., p. 37, grifos meus). O valor-de-uso da força de trabalho se realiza no processo de trabalho ... P ... (Ibid., p 37). A circulação é interrompida, mas permanece o processo cíclico (Ibid., p. 38). O produto final não é só uma mercadoria, mas uma mercadoria acrescida de mais-valia. Seu valor é P + m, o valor do capital produtivo P (= F + Mp) mais a mais-valia m (Ibid., p. 41). A forma de existência funcional do valor-capital é a forma capital-mercadoria M’ = m + µ, onde µ representa a mais-valia sob a forma mercadoria. No entanto, o processo não pode parar, a massa de mercadorias M’ tem de passar, completamente, pela metamorfose M’ – D’. O capitalista, que lançou D na circulação e recebeu o equivalente M, agora entrega M + µ e recebe D + d, a expressão monetária de M’. Ao efetuar a operação M’D’, realiza-se o valor do capital adiantado mais a mais-valia (Ibid., p. 41-5). A fórmula do capital-dinheiro indica que o dinheiro não é despendido como dinheiro, mas adiantado, e que a “finalidade absoluta” do movimento é o valor-de-troca e não o valor-de-uso, pois o valor tem na figura do dinheiro sua forma autônoma, palpável de manifestação, expressa na forma D ... D’, que começa e acaba realmente em dinheiro, da maneira mais contundente, o motivo que impulsiona a produção capitalista: fazer dinheiro (Ibid., p. 58).

Ao final do processo, a produção se apresenta como uma mera interrupção do processo de circulação do capital (Ibid., p. 46). “Assim, D’ aparece como a soma de valor que em si mesma se diferencia”, como “resultado sem mediação do processo donde provém” (Ibid., p. 48), pois no dinheiro, “forma equivalente comum a todas as mercadorias”, “se apagam todas as diferenças das mercadorias” (Ibid., p. 49). O capital realiza-se como capital, “como valor que gera valor” (Ibid., p. 48). 2. Capital produtivo: é a “forma em que se combinam o capital variável e constante na realização do processo de produção imediata” (GRESPAN, 1999, p. 158). O ciclo do capital produtivo tem forma oposta ao ciclo do capital-dinheiro. Lá o ciclo se mostra como D – M – D, aqui como M – D – M. A fórmula geral do ciclo é P ... M’ – D’ – M’ ... P, que representa o “funcionamento periodicamente renovado do capital produtivo”

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(MARX, 1991, p. 64). O ciclo do capital produtivo que se reproduz em escala ampliada é representado pela fórmula P ... M’ – D’ – M’ <

F Mp

... P’, onde P’ “expressa não a pro-

dução de mais-valia e sim a capitalização da mais-valia produzida”, e D’ e M’ expressam, considerados em si mesmos, não o movimento, mas o resultado desta (Ibid., p. 81). O volume de mercadorias produzidas é estabelecido pela “escala da produção e pelo imperativo de expansão contínua dela” (Ibid., p. 76). A produção em massa, para se realizar, precisa de outro capitalista, além do capitalista industrial, o comerciante por atacado. O processo de produção pode se mover em escala ampliada, “embora as mercadorias dele oriundas não entrem realmente no consumo individual ou produtivo”, pois o “consumo das mercadorias não está incluído no ciclo do capital do qual sai” (Ibid., p. 76-7). Quando se torna necessário vender a mercadoria abaixo de seu preço, o motivo não está relacionado com a procura, mas com a procura de meios de pagamento45: “Quem detém as mercadorias invendáveis tem de declarar-se insolvente ou vendê-las a qualquer preço, para pagá-las46” (Ibid., p. 77). 3. Capital-mercadoria: é o resultado do processo de produção imediato. As mercadorias acrescidas de mais-valia precisam ser vendidas para que o valor seja realizado, aparecendo na forma universal dinheiro (GRESPAN, 1999, p. 158). O ciclo do capitalmercadoria é M’ – D’ – M ... P ... M’. “M’ patenteia-se produto e pressuposto de ambos os ciclos anteriores, pois a operação D – M de um capital implica na operação M’ – D’ de outro” (MARX, 1991, p. 88). Assim como o ciclo do capital produtivo, o capital-mercadoria também tem a forma de circulação M – D – M, forma oposta ao do capital-dinheiro. Além disso, as formas capital produtivo P ... P e capital-mercadoria M’ ... M’ “são incompletas, porque não terminam com D’, com o valor-capital acrescido, reconvertido em dinheiro” (Ibid., p. 95). 45

“Essa venda nada tem a ver com a verdadeira situação da procura. Está relacionada apenas com a procura de meios de pagamento, com a necessidade absoluta de converter mercadoria em dinheiro” (Ibid., p. 77). F 46 O capitalista acumula d até atingir um montante mínimo para funcionar como D’ – M’ < Mp , nesse caso acumula dinheiro. No entanto, para tentar se prevenir das crises, esse fundo de acumulação pode desempenhar “funções acessórias”, como fundo de reserva e fundo de meios de compra ou de pagamento (Ibid., p. 85-6). O fundo de reserva tem a função de eliminar perturbações do ciclo, em razão de oscilações nos preços de F ou Mp. O fundo de meios de compra ou pagamento é a parte do capital-dinheiro reserva que se forma na continuidade do processo de produção, e tem a finalidade de realizar pagamentos nas datas de vencimento.

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O ciclo do capital-mercadoria é a “forma social sob a qual pode ser observado cada capital industrial isolado” (Ibid., p. 98), manifestando o conceito de capital social como “soma algébrica dos movimentos dos capitais individuais” (Ibid., p. 99). A forma M’ ... M’ supõe o consumo em sua totalidade, individual e produtivo: 1. o consumo individual da parte do produto excedente não acumulada pelo capitalista e o consumo individual do trabalhador; 2. o consumo produtivo como resultado da atuação de cada capitalista individual e do consumo individual do trabalhador, “uma vez que a força de trabalho, até certo ponto, está sendo continuamente produzida pelo consumo individual do trabalhador” (Ibid., p. 95). Por isso o consumo individual é suposto como ato social, o “ciclo M’ ... M’ supõe, em seu próprio decurso, outro capital industrial sob a forma M (= F + Mp)” (Ibid., p. 95 e 98).

O processo cíclico do capital é, por um lado, interrupção contínua, abandono de um estágio para entrar em outro, cada um dos estágios como condição para entrar em outro, mas, por outro lado, o que é característico da produção capitalista é a continuidade. “Todas as partes do capital percorrem sucessivamente o processo cíclico, encontrandose simultaneamente em todos os estágios e nas formas funcionais correspondentes” (Ibid., p. 105, grifos meus). Por isso as diferenças de cada ciclo particular são meramente formais ou subjetivas. “Na realidade, cada capital industrial individual encontra-se em todos os três [ciclos – EN] ao mesmo tempo” (Ibid., p. 103, grifos meus). O capital global está dividido, apresentando-se simultaneamente em suas diferentes fases, que se justapõem (Ibid., p. 107). Cada parte do valor-capital está fixada numa forma-valor, numa forma funcional determinada. Cada forma pressupõe a outra, e cada uma tem no ciclo global o seu ciclo específico (Ibid., p. 106). Cada parte deve passar ininterrupta e sucessivamente de uma forma a outra, funcionando sucessivamente em todas (Ibid., p. 107). “As formas são portanto fluidas e sua simultaneidade decorre de sua sucessão” (Ibid., p. 107, grifo meu). A existência contínua das formas depende desse movimento (Ibid., p. 106). Os ciclos particulares constituem, então, apenas elementos simultâneos e sucessivos do movimento global (Ibid., p. 107). “Só na unidade dos três ciclos (...) realiza a continuidade do processo global” (Ibid., p. 107).

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A unidade do processo cíclico é representada pela seqüência das formas, que pressupõe a diferença entre elas e, assim, a possibilidade da autonomização delas (GRESPAN, 1999, p. 159). Na cisão entre a fase de circulação e a de produção reside a possibilidade de crise, que se manifesta enquanto “paralisação, causada por possível desproporcionalidade na distribuição do valor pelo próprio capital” (Ibid., p. 159 e 162). Essa “desproporcionalidade” “pode advir do retardamento ou dificuldade em realizar alguma das metamorfoses do capital, concentrando valor em uma certa forma47” (Ibid., p. 162). O movimento do capital pelas diversas fases aparece “como uma barreira à produção, uma barreira erigida pela natureza específica do próprio capital” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 52). O processo de produção deve ser completado pelo processo de circulação, mas durante o tempo de circulação o capital não cria mais-valia. Assim, a valorização depende do movimento fluido das formas. A mais-valia não aparece determinada “por sua medida real, a proporção entre o mais-trabalho e o trabalho necessário”, mas pela magnitude do próprio capital. “Um capital de um valor determinado, em um período determinado, produz uma mais-valia determinada” (Ibid., p. 53).

1.4.3 – O mundo invertido da concorrência Nossa apresentação iniciou-se pelo capital em geral, pelo que existe de comum a todos os capitais, a “propriedade de expandir seu valor, o fato de que eles se apropriam, direta ou indiretamente, da mais-valia gerada no processo capitalista de produção” (ROSDOLSKY, 2001, p. 52). No entanto, “o processo imediato de produção não abrange a vida toda do capital. Completa-o o processo de circulação” (MARX, 1983a, p. 29). Por isso fizemos algumas considerações sobre esse processo, apresentando as diferentes formas em que se reveste o capital nos seus diversos estágios. Ao longo dessa apresentação evidenciou-se que “o processo de produção capitalista, observado na totalidade, é unidade constituída por processo de produção e processo de circulação”, o processo global de produção capitalista (Ibid., p. 29). 47

“O ciclo do capital só decorre normalmente, quando suas diferentes fases se sucedem de maneira contínua. Se o capital não se move na primeira fase D – M, o capital-dinheiro se congelará em tesouro; se isso ocorre na fase de produção, os meios de produção não serão empregados e a força de trabalho ficará desocupada; se, na fase final M’ – D’, as mercadorias invendáveis acumuladas obstruirão o fluxo da circulação” (MARX, 1991, p. 54).

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Na apresentação do capital em geral, o “trabalho que todo o capital de uma sociedade, dia a dia, põe em movimento, pode ser considerado como uma única jornada de trabalho” (MARX, 1999a, p. 353). No entanto, o capital só pode aparecer como “muitos capitais”, ‘sua autodeterminação aparece como ação e reação recíproca deles entre si’ (...); sua natureza íntima o impele a ‘repelir-se a si mesmo’. ‘A produção baseada no capital só encontra sua forma adequada na medida em que a concorrência se desenvolve’ (ROSDOLSKY, 2001, p. 50).

Vimos na apresentação do processo de circulação que o conceito de capital social é mera “soma algébrica dos movimentos dos capitais individuais” (MARX, 1991, p. 99), e seu movimento “consiste na totalidade dos movimentos de suas frações autonomizadas” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 171). Cada uma das frações se apresenta como “singularização do capital social”, “instância de sua universalidade”, como capital singular, mas, na medida em que cada fração é autonomizada, dotada de “vida individual”, cada capital existe como um “indivíduo independente”, como capital individual. No entanto, a autonomização das partes do capital social não aparecia ainda determinada pela concorrência, sua divisão era determinada pelas necessidades da reprodução (GRESPAN, 1999, p. 171-3). É só na esfera da concorrência que se evidencia “o comportamento real do capital na condição de capital” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 50), a sua relação consigo mesmo como outro capital enquanto oposição reciproca entre capitais individuais. A concorrência é o meio termo48 que estabelece a relação entre o lado da universalidade e da singularidade do capital: no lado da singularidade, “‘o lado da concorrência’ entre os múltiplos capitais”, “cada capital aparece como um indivíduo autônomo e em oposição aos demais” (GRESPAN, 1999, p. 194); no lado da universalidade está presente a “determinação comum a todo capital”, que se manifesta como “poder social” exercido sobre a “massa” de capitais singulares (Ibid., p. 194). Através dela “‘se faz sensível a dependência um do outro’ dos vários capitais, a dependência que se institui no quadro da independência exterior deles” (Ibid., p. 194). Surge então um universal que não é mera “generalidade abstrata”: 48

Cf. HEGEL, 2003, p. 169.

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a ‘massa’ da qual o capital singular é um ‘átomo’ não é soma de indivíduos diversos, e sim a ‘massa (...) de concorrentes’, apresentando o capital singular já determinado pela concorrência, pelo universal que se repele de si mesmo (Ibid., p. 195).

Só através da concorrência “aparece como necessidade externa, para cada capital, aquilo que corresponde (...) ao conceito do capital” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 50). O capital é “valor em progressão”. Essa sua “determinação essencial” “aparece e é realizada como ação recíproca dos muitos capitais uns sobre os outros” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 195). Os capitais singulares “são todos capital, perseguindo idêntico objetivo de autovalorização; e, já por isso, entram em conflito pelas oportunidades relativamente escassas de alcançarem seu objetivo comum”. Cada capital “deve realizar a sua finalidade geral [valorizar-se – EN] como se ela fosse apenas sua, até em detrimento dos outros” (GRESPAN, 1999, p. 193). A determinação essencial opera como uma “tendência interna”, como uma “lei interna”, que “se apresenta como pressão exercida pelos demais”, como uma “necessidade externa” para cada capital singular, pois é “imposta de fora pelos demais como requisito de sobrevivência e de poder” (Ibid., p. 195). No entanto, para que o capital imponha “suas leis imanentes como se fossem necessidade externa, a concorrência as inverte na aparência” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 489, grifo meu). Na “concorrência tudo se apresenta, e deve apresentar-se, invertido” (ROSDOLSKY, 2001, p. 51). Vimos que o valor da mercadoria M se expressa na fórmula M = c + v + m. Se descontarmos a mais-valia, obteremos um mero equivalente, o valor que ressarce o preço dos meios de produção e da força de trabalho. Por isso c + v é o preço de custo da mercadoria, e para o capitalista “parece necessariamente constituir o verdadeiro custo da mercadoria” (MARX, 1983a, p. 30). O capital constante aparece no preço de custo, assim como o capital variável, extingue-se a diferença entre os dois. A mais-valia, embora derive apenas da variação de v, capital variável, depois de concluído o processo de produção aparece como acréscimo de c + v, de todo o capital despendido. A fórmula M = c + (v + m) aparece como M = (c + v) + m (Ibid., p. 35 e 37). Na formação do preço de custo só aparece uma diferença, a existente entre capital fixo e circulante:

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O capital fixo empregado só parcialmente entra no preço de custo, pois só parcialmente o consome a produção de mercadoria. O capital circulante aplicado entra por inteiro no preço de custo, pois para produzir-se a mercadoria, é totalmente consumido (Ibid., p. 36).

Da diferença origina-se a distinção entre preço de custo e capital adiantado. O preço de custo é formado pelo capital adiantado que é absorvido no preço de custo. Acontece que, apesar de somente parte do capital adiantado entrar no processo de valorização, todo o capital entra no processo de trabalho efetivo. “Como fruto imaginário de todo o capital adiantado, a mais-valia toma a forma transfigurada de lucro49” (Ibid., p. 39). O capitalista está interessado na taxa de lucro, na “relação entre a mais-valia – ou valor excedente – realizada em dinheiro com a venda da mercadoria e a totalidade do capital empregado para produzi-la” (Ibid., p. 46), ou seja, na relação m/C, onde C = c + v. Isto porque a relação exprime o grau de valor do capital adiantado (Ibid., p. 49). Na taxa de lucro apaga-se a “origem e o segredo da existência” da mais-valia, pois em si mesma indica apenas um “comportamento uniforme do excedente em relação às proporções iguais do capital” (Ibid., p. 51). Em toda a produção capitalista a “tendência interna” só se impõe como tendência dominante de maneira aproximativa50, assim se manifesta a mais-valia, na forma transfigurada de lucro, e assim se manifesta o valor, na forma transfigurada preço de produção51 (Ibid., p. 185). Se o valor da mercadoria é determinado pela “totalidade do trabalho nela contido, pago e não-pago”, e o preço de custo pela “quantidade de trabalho pago nela contido”, o preço de produção determina-se pela “soma do trabalho pago, acrescida de determinada quantidade de trabalho não-pago, segundo cada ramo de produção e inde49

A origem do excedente pode, então, aparecer como a diferença entre o preço de compra e de venda. Se substituirmos na fórmula M = c + v + m o preço de custo (c + v) por k e a mais-valia m pelo lucro l, então M = k + l. Entre o valor da mercadoria M e o preço de custo k existe a possibilidade de uma série indeterminada de preços de venda, tomando o preço de custo como limite inferior. O capitalista pode vender a mercadoria abaixo de seu valor, embora com lucro, realizando apenas parte da mais-valia (MARX, 1983a, p. 40-1). 50 Cf. Ibid., p. 183. 51 Os valores das mercadorias são não só teoricamente, mas também historicamente anteriores aos preços de produção. Os preços de produção surgem com o capitalismo industrial e o trabalho assalariado. O valor não é suprimido com o preço de produção, pois a lei do valor só pode se manifestar no fenômeno através de uma inversão. O “fenômeno é um nível do real”, ou seja, “a lei do valor só é conservada ao preço da negação” (FAUSTO, 1983, p. 120). “Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia (fälscht) a produção de mercadorias quer dizer que, se a produção de mercadorias quiser se manter não falseada (unfälscht), ela não pode se desenvolver” (MARX, apud FAUSTO, 1983, p. 120).

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pendente dele”, “é portanto igual ao preço de custo mais o lucro que percentualmente se lhe acrescenta correspondente à taxa geral de lucro” (Ibid., p. 179 e 188, grifos meus). Isto porque, em virtude da diversidade das composições orgânicas52, os capitais se apropriam de quantidades muito diversas de trabalho excedente (Ibid., p. 179). A taxa geral de lucro é determinada por dois fatores: 1. “pela composição orgânica dos capitais nos diferentes ramos [de produção – EN]”; 2. pela magnitude relativa do capital aplicado em cada ramo particular que dá uma taxa particular de lucro, ou seja, “pela proporção das cotas do capital total da sociedade, absorvidas pelos ramos particulares de produção53” (Ibid., p. 185). A massa de lucro dos capitais singulares não corresponde à mais-valia produzida em cada ramo particular da produção, mas se distribui conforme o capital adiantado. Com o aparecimento dos preços de produção, as diferenças dos preços em relação aos valores deixam de ser casuais e se tornam necessárias. Se antes os preços tendiam a expressar a igualdade social dos produtores diretos, os preços de produção tendem a expressar a igualdade de direitos entre os diferentes capitais na apropriação da mais-valia. Isto não suprime o valor, que continua existindo como realidade social por trás dos preços de produção, pois os desvios dos preços de produção em relação aos valores se anulam reciprocamente, o que manifesta que os esforços humanos continuam sendo a essência 52

A composição do capital possui um duplo aspecto. Do ponto de vista do valor, o capital se divide em capital constante e variável, a relação entre os dois dá a “composição segundo valor”. Do ponto de vista da matéria que funciona no processo de produção, o capital se divide em meios de produção e força de trabalho viva, a relação entre os dois dá a “composição técnica”. Existe uma estreita correlação entre as duas composições. A composição do capital em valor, na medida em que é determinada pela composição técnica e reflete as modificações desta, chama-se “composição orgânica” (MARX, 1989, p. 712-3). 53 O preço de produção é expresso pela seguinte fórmula: P = k + ∑m . C ∑C Onde k é o preço de custo, o capital constante consumido + capital variável, ou seja, cc + v; ∑m/∑C é a taxa geral de lucro, ou seja, a taxa de lucro média do capital global; e C é o capital adiantado no ramo de produção particular. Supondo três capitais, o primeiro com composição orgânica superior, o segundo com composição orgânica inferior e o terceiro com composição orgânica média, e que todo capital constante adiantado é consumido, temos então: Capitais K 1o 90c + 10v 2o 70c + 30v 3o 80c + 20v

m' 100% 100% 100%

m 10 30 20

M 110 130 120

l' 20% 20% 20%

P 120 120 120

P-M 10 -10 0

O capital com composição orgânica superior se apropria de uma porção maior da mais-valia produzida pelo capital global; o capital com composição orgânica inferior se apropria de uma porção menor da mais-valia; e o capital com composição orgânica média se apropria de uma porção média da mais-valia global.

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do processo de valorização do capital. No entanto, a remuneração satisfatória do capital é a condição prévia para a remuneração do trabalho humano (LETÍZIA, 2003, p. 27-8). O preço de produção pode até ser apresentado como preço natural, no qual gravita em torno o preço de mercado, conseqüência “da liberdade de iniciativa econômica, que é, na prática, a liberdade de alocação dos homens nos empreendimentos que proporcionam mais lucros ao capital” (Ibid., p. 28). Com a concorrência e a inversão das “tendências internas”, o capital adquire com o lucro, forma transfigurada da mais-valia, uma nova medida para a sua valorização. Mas isto significa que o capital possui duas medidas: taxa de mais-valia e taxa de lucro. Essas duas medidas não são simplesmente diferentes, mas opostas: conforme um dos lados desta relação, o capital mede sua valorização pela taxa de lucro, como se ele fosse, enquanto capital total, o criador do valor; conforme o outro lado, porém, sua pretensão se choca com a realidade de que apenas o trabalho vivo cria valor, e a medida da valorização pela taxa da mais-valia entra em oposição com a taxa de lucro (GRESPAN, 1999, p. 213).

A oposição entre essas duas medidas define a desmedida, a perda de referência do capital a si mesmo no processo de valorização (Ibid., p. 213). A desmedida manifesta a relação contraditória do capital com o trabalho, a sua pretensão de reduzir o trabalho, “fonte de valor”, a apenas momento inessencial de sua totalidade. A conversão da mais-valia em lucro manifesta a inversão das posições entre sujeito e objeto no processo de valorização: “todas as forças produtivas subjetivas do trabalho assumem a aparência de forças produtivas do capital” (MARX, 1983a, p. 49). A “subjetividade” do capital manifesta-se na “sua capacidade de dominação das condições de sua própria realização e de subordinação das demais relações econômicas, para se constituir em totalidade” (GRESPAN, 1999, p. 254). No entanto, nossa apresentação não levou em consideração as figuras do processo em que o capital procura criar “um sistema que se movimenta com certo grau de independência do trabalhador” (Ibid., p. 133). No começo, o capital “tem de adquirir a força de trabalho como a encontra no mercado” (MARX, 1999a, p. 218), mas em seu movimento

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o capital deve realizar “revoluções no valor54”, transformando os métodos de produção, “‘deve revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho’ e não só se limitar à apropriação dos frutos deste” (GRESPAN, 1999, p. 132). No próximo capítulo apresentaremos as figuras efetivas da passagem da subsunção formal do trabalho ao capital à subsunção real.

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Cf. MARX, 1991, p. 108.

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Capítulo 2 AS FIGURAS DO PROCESSO DE SUBORDINAÇÃO DO TRABALHO AO CAPITAL Vimos no capítulo anterior que o capital manifesta a sua “subjetividade” na sua capacidade de subordinar para si as condições pré-existentes e de dominar as condições de sua própria realização, constituindo-se em totalidade. Este capítulo tem como objetivo apresentar como a subordinação do trabalho ao capital desenvolve-se gradativamente, dando a ele o poder de ser o organizador do processo produtivo. Através da apropriação das forças subjetivas do trabalho, o capital procurará criar “um sistema que se movimenta com certo grau de independência do trabalhador” (GRESPAN, 1999, p. 133).

2.1 – O conceito de mais-valia absoluta e mais-valia relativa Para que apareça a relação capitalista em geral é “preciso que se tenham desenvolvido, no quadro de um modo de produção pré-existente, meios de circulação e de produção assim como necessidades que impilam à superação das antigas relações de produção” (MARX, 1985, p. 135-6). É necessário que essas condições estejam desenvolvidas a tal ponto que se opere a “subsunção do trabalho no capital” (Ibid., p. 138). A compra e venda de força de trabalho, a transformação de uma parte do capital em capital variável, é o “fundamento absoluto” do modo de produção capitalista. O capital variável é, para o trabalhador, a “forma monetária” dos meios de subsistência. Para o capital, os meios de subsistência são uma forma material particular de se contrapor ao trabalhador, antes que ele adquira mediante a venda de sua força de trabalho (Ibid., p. 70-2). Ao final do processo de produção, o trabalhador readquire uma parte de seu próprio produto para novamente vender a sua força de trabalho, e assim de maneira incessante (Ibid., p. 136). A existência da propriedade privada dos meios de subsistência é a condição para a existência do trabalho assalariado; a existência da propriedade privada dos meios de produção é a condição para a existência do trabalho excedente. Se no início do processo de produção o trabalhador aparece como um indivíduo livre, após o

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processo descobre que é forçado a vender a sua força de trabalho, e que seu “vampiro”, o capital, “não o solta enquanto houver um músculo, um nervo, um gota de sangue a explorar” (MARX, 1999a, p. 346). A produção da mais-valia constitui o “conteúdo e o objetivo específicos” da produção capitalista, “quaisquer que sejam as modificações do próprio modo de produção, relacionadas com a subordinação do trabalho ao capital” (Ibid., p. 341). No começo, o capital apodera-se do trabalho “tal qual o encontra”, é “indiferente quanto à natureza técnica do processo de trabalho da qual se apossa” (Ibid., p. 288). Em condições de produção dadas, a taxa de mais-valia depende da extensão da jornada de trabalho para além do tempo de trabalho necessário1 (Ibid., p. 363). Pressupondo-se o modo de trabalho e o desenvolvimento da força produtiva, só é possível produzir mais-valia recorrendo-se ao prolongamento do tempo de trabalho, ou seja, sob a forma da mais-valia absoluta. Essa modalidade, como forma única de produzir mais-valia, corresponde à subsunção formal do trabalho no capital (MARX, 1985, p. 90). Na subsunção formal, o produtor é ainda empregador de si mesmo, fornecendo o mais-trabalho a outrem. O que muda, em relação a outros modos de produção, é a coação que se exerce, o método de extração do trabalho excedente: 1. a relação entre quem apropria e quem fornece o trabalho excedente é puramente monetária; 2. as condições objetivas de trabalho (meios de produção) e as condições subjetivas de trabalho (meios de subsistência) são de propriedade do comprador de força de trabalho, que se opõe ao trabalhador como capital (Ibid., p. 94). A extensão da jornada de trabalho possui dois limites: o “limite físico da força de trabalho” e a fronteira moral (MARX, 1999a, p. 270). No entanto, o capitalista possui seu próprio ponto de vista sobre o limite extremo da jornada de trabalho: Como capitalista, apenas personifica o capital. Sua alma é a alma do capital. Mas o capital tem seu próprio impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, com os meios de produção, a maior quantidade possível de trabalho excedente. 1

A extensão da jornada de trabalho além do tempo de trabalho necessário não significa em si a existência de “horas extraordinárias”, ou hora extra, como hoje é chamada, com a diferença de ser por lei remunerada. O trabalho extraordinário não significa trabalho excedente, é apenas “mera astúcia dos capitalistas para extrair mais ‘trabalho excedente’, que continuaria existindo se fosse plenamente paga a força de trabalho aplicada durante a jornada normal de trabalho” (MARX, 1999a, p. 287).

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O capital é trabalho morto que, como vampiro, se reanima sugando o trabalho vivo, e, quanto mais suga, mais forte se torna (Ibid., p. 271, grifos meus).

Da lei da troca de mercadorias não resulta nenhum limite à jornada de trabalho. Por um lado, o capitalista afirma seu direito como comprador, procurando “extrair o maior proveito possível do valor-de-uso de sua mercadoria” (Ibid., p. 271-3). Por outro lado, “o trabalhador afirma seu direito, como vendedor, quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada magnitude normal” (Ibid., p. 273). É seu direito afirmar: “Quero gerir meu único patrimônio, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer dispêndio desarrazoado” (Ibid., p. 272). “Ocorre assim uma antinomia, direito contra direito”, mas entre “direitos iguais e opostos, decide a força”, que se manifesta no “embate que se trava entre a classe capitalista e a classe trabalhadora” (Ibid., p. 273). “O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o resultado de uma luta multissecular entre o capitalista e o trabalhador” (Ibid., p. 312-3). Para o capital, aquele que trabalha durante toda a jornada de trabalho é chamado de “tempo inteiro”, aquele que a jornada de trabalho estende-se apenas até a metade da jornada normal é chamado de “meio tempo”. “O trabalhador não passa aí de tempo de trabalho personificado. Todas as diferenças pessoais se reduzem aí às categorias de tempo integral e meio tempo” (Ibid., p. 282). Como o capital constante só existe para absorver trabalho vivo, se não realiza isto, sua mera existência constitui perda para o capitalista. A solução para o capital é apropriar-se do trabalho vivo durante 24 horas. Como isso é impossível fisicamente, o capital supera essa barreira através do revezamento da força de trabalho a ser empregado no período diurno e noturno (Ibid., p. 297). As modificações operadas nos processos de trabalho são “conseqüências paulatinas da prévia subsunção de determinados processos de trabalho tradicionais ao capital” (MARX, 1985, p. 89). Se a mais-valia absoluta é a expressão da subsunção formal do trabalho no capital, por oposição, a mais-valia relativa é a expressão da subsunção real do trabalho no capital (Ibid., p. 93). A mais-valia relativa é a prolongação do tempo de trabalho excedente, através da redução do tempo de trabalho necessário. Parte do tempo em que o trabalhador reproduz o valor de sua força de trabalho transforma-se em tempo de trabalho para o capital. “O que muda não é a duração da jornada de trabalho, mas seu modo de repartir-se em trabalho necessário e trabalho excedente” (MARX, 1999a, p.

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363-4). Se na extração da mais-valia absoluta, uma vez dados os preços constantes, a mais-valia cresce porque o capital variável põe em movimento mais trabalho, produzindo mais mercadorias ao mesmo preço e contendo mais trabalho não-pago, na extração da mais-valia relativa o capital modifica o processo de trabalho, conseguindo encurtar o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria, produzindo com a mesma quantidade de trabalho, quantidade maior de valores-de-uso, ou seja, aumenta a produtividade do trabalho (MARX, 1985, p. 155; 1999a, p. 365). O valor das mercadorias, incluindo a força de trabalho, varia na razão inversa da produtividade do trabalho. Em contraposição, a mais-valia relativa varia na razão direta da produtividade do trabalho (MARX, 1999a, p. 370). A condição para a produção da mais-valia relativa é a transformação das condições técnicas e sociais do processo de trabalho pelo capital, mudando a forma de produzir com o objetivo de aumentar a força produtiva do trabalho. Mas para que caia o valor da força de trabalho, a condição é que esse aumento da força produtiva do trabalho, ou produtividade do trabalho, ocorra em ramos de produção cujas mercadorias determinam o valor da força de trabalho (Ibid., p. 366). No entanto, o capitalista, quando diminui o valor de sua mercadoria, o faz sem o objetivo de reduzir o valor da força de trabalho, mas de acordo com a imposição coercitiva da concorrência (Ibid., p. 367). Quando o capitalista, indivíduo, aumenta a produtividade de sua força de trabalho, o valor individual de sua mercadoria fica abaixo do valor social, ou seja, “custa menos tempo de trabalho do que o imenso volume dos mesmos artigos produzidos nas condições sociais médias” (Ibid., p. 368). Entretanto, o verdadeiro valor da mercadoria não é o valor individual, mas sim social. O valor é realidade apenas social, sua medida é o tempo de trabalho socialmente necessário. Se o capitalista vende a sua mercadoria pelo valor social, portanto, acima do valor individual, realiza uma mais-valia extra. Mas se o aumento da produtividade resulta em mais mercadorias, para realizá-las, o capitalista precisa aumentar as suas vendas. Por isso vende acima do valor individual, mas abaixo do valor social. Ao aumentar a produtividade de sua força de trabalho, o capitalista individual eleva a sua mais-valia, “pertença ou não sua mercadoria ao conjunto dos meios de subsistência necessários ao trabalhador” (Ibid., p. 368). Ao produzir a mais-valia extra, cada capitalista “faz individualmente o que o conjunto dos capitalistas fazem coletivamente, ao produzirem a mais-valia relativa” (Ibid., p. 369).

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Mas a verdade das satisfações particulares é a satisfação universal, a mais-valia extra se desvanece quando se generaliza o novo método de produção, desvanecendo a diferença entre o valor individual e o valor social da mercadoria (Ibid., p. 369). Manifesta-se a “determinação comum a todo capital”, o “poder social” exercido sobre a “massa” de capitais singulares (GRESPAN, 1999, p. 194): A mesma lei que determina o valor pelo tempo de trabalho e que leva o capitalista que aplica o novo método a vender sua mercadoria abaixo do valor social impele seus competidores, coagidos pela concorrência, a adotar o novo modo de produção (MARX, 1999a, p. 369).

A “tendência e o resultado” do modo capitalista de produção consiste na elevação constante da produtividade do trabalho, por conseguinte no embaratecimento das mercadorias em geral, o que não significa, “em si e para si”, nenhuma modificação na massa de mais-valia e na taxa geral de mais-valia (MARX, 1985, p. 153, grifos meus). A taxa geral de mais-valia só aumenta quando a elevação da produtividade do trabalho atinge os ramos de produção cujas mercadorias fazem parte dos meios de subsistência que constituem elementos do valor da força de trabalho (MARX, 1999a, p. 370). Esse desenvolvimento da força produtiva “não tem como fim atingir, na produção capitalista, a redução da jornada de trabalho” (Ibid., p. 371). Para o capital individual, o seu “objetivo é apenas reduzir o tempo de trabalho requerido para produzir determinada quantidade de mercadoria” (Ibid., p. 371). Para o capital em geral, seu objetivo é “reduzir a parte do dia de trabalho durante a qual o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo, justamente para ampliar a outra parte durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista” (Ibid., p. 372). As duas formas da mais-valia, mais-valia absoluta e mais-valia relativa, correspondem às duas formas separadas da subsunção do trabalho no capital, (...) das quais a primeira precede sempre a segunda, embora a mais desenvolvida, a segunda, possa constituir a base para a introdução da primeira em novos ramos de produção (MARX, 1985, p. 93).

A finalidade absoluta do modo de produção capitalista é a produção de mais-valia. Por isso “o capital, em si e para si, é indiferente em relação à particularidade de cada esfera de produção” (Ibid., p. 80). Para o capitalista, “a natureza do valor-de-uso e a índole do trabalho concreto utilizado é totalmente indiferente em si e para si” (Ibid., p. 117). Ao

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realizar o investimento, interessa-lhe a “maior ou menor dificuldade na venda das mercadorias deste ou daquele ramo produtivo” (Ibid., p. 80). Na medida em que o capital se apropria das forças produtivas do trabalho social, que passam a se opor ao trabalhador como forças produtivas do capital, o trabalho produtivo torna-se, para o trabalhador, “um meio para reprodução dos meios de subsistência que lhe são necessários” (Ibid., p. 117), independentemente de qualquer conteúdo. O trabalhador livre encontra-se, então, “predisposto e sujeito a qualquer variação da sua capacidade e atividade laborais que lhe prometa um salário melhor” (Ibid., p. 103). A apropriação das forças produtivas do trabalho social pelo capital realiza-se através de um processo. Nosso objetivo, nos próximos itens, é apresentar as figuras desse processo: “a unidade coletiva na cooperação, a combinação na divisão do trabalho, a utilização das forças naturais e das ciências, dos produtos do trabalho como maquinaria” (Ibid., p. 127). A passagem de uma à outra está estruturada a partir da noção de negação determinada. Em todas as figuras, pressupõe-se a relação capitalista de produção.

2.2 – Cooperação A produção capitalista só começa realmente quando um mesmo capital individual põe em movimento, simultaneamente, um número considerável de trabalhadores assalariados. Com isso, amplia-se a escala do processo de produção, fornecendo produtos em maior quantidade. Historicamente, no começo, a manufatura não se distingue do artesanato das corporações, do ponto de vista do modo de produção. A diferença de imediato é unicamente quantitativa. O capital aumenta a massa de mais-valia aumentando não a taxa de mais-valia, mas o número de trabalhadores (MARX, 1999a, p. 375). No entanto, essa simples reunião de um certo número de trabalhadores será capaz de operar uma mudança qualitativa, a cooperação, através dela se desvanecem todas as diferenças individuais da força de trabalho, aparecendo somente a sua “qualidade social média” (Ibid., p. 375-6, grifos meus). A cooperação é a “forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos” (Ibid., p. 378). O trabalho em conjunto ocorre em função da utilização em

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comum dos meios de produção no processo de trabalho. Os meios de produção adquirem o caráter de “condições sociais de trabalho”, embora os trabalhadores reunidos não se ajudem reciprocamente, apenas trabalham no mesmo local (Ibid., p. 378, grifos meus). Concentram-se os meios de produção para o uso comum e em larga escala porque seu valor “não cresce na mesma proporção em que aumenta o seu tamanho e efeito útil” (Ibid., p. 377, grifos meus). Os meios de produção, utilizados em comum, cedem menor valor ao produto isolado, pois o valor transferido é repartido numa quantidade maior de produtos. Em comparação com a utilização isolada de meios de produção, entram com valor relativo menor, embora com valor absoluto maior (Ibid., p. 377-8). O “efeito útil” do trabalho combinado não é a elevação da força produtiva do trabalho individual, mas a criação de uma nova força produtiva, a “força coletiva2” (Ibid., p. 379, grifos meus). A criação de “força produtiva social do trabalho” aumenta a produtividade do trabalho em razão dos seguintes motivos: 1. poupa-se “os meios de produção em virtude de seu uso comum”; 2. amplia-se “o espaço em que atua o trabalho”, permitindo a realização de certos processos produtivos que exigem amplos espaços de execução; 3. reduz-se “esse espaço em relação à escala de produção”; 4. empresta-se “ao trabalho individual o caráter de trabalho social médio”; 5. eleva-se a “potência mecânica do trabalho”; 6. realiza-se “diversas operações ao mesmo tempo”; 7. imprime-se “às tarefas semelhantes de muitos o cunho da continuidade e da multiformidade”; 8. desperta-se “a emulação entre os indivíduos”; 9. torna-se possível “mobilizar muito trabalho no momento crítico” (Ibid., p. 382). Essas múltiplas exteriorizações da força produtiva permitem: 1. o barateamento das mercadorias e por conseguinte da força de trabalho, alterando a taxa de mais-valia; 2. a alteração da relação entre mais-valia e capital total, aumentando a taxa de lucro. A condição para a existência da cooperação é a aglomeração de trabalhadores num mesmo local, o que pressupõe que o capital “compre ao mesmo tempo suas forças de trabalho” (Ibid., p. 383). Mas para que o capital possa aglomerar trabalhadores, pressupõe-se que o capitalista disponha do valor total da força de trabalho, a soma de salários a ser paga após o processo produtivo. Por isso o número de trabalhadores que cooperam,

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Para nós, essa “força coletiva” manifesta, ainda que de maneira imperfeita, a identidade entre vida genérica e existência individual, pois ao “cooperar com outros de acordo com um plano, desfaz-se o trabalhador dos limites de sua individualidade e desenvolve a capacidade de sua espécie” (Ibid., p. 382).

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a escala da cooperação, depende da magnitude do capital, tanto da parte variável como da parte constante, pois a concentração dos meios de produção é a condição material da cooperação. Para os trabalhadores, a verdade da cooperação entre si é a sua subordinação ao capital: Com a cooperação de muitos assalariados, o domínio do capital torna-se uma exigência para a execução do próprio processo de trabalho, uma condição necessária da produção. O comando capitalista no campo da produção torna-se então tão necessário quanto o comando de um general no campo de batalha (Ibid., p. 383, grifos meus).

Esse trabalho coletivo, executado em grande escala, exige uma direção que “harmonize as atividades individuais” (Ibid., p. 384). O capital assume a função de “dirigir, superintender e mediar (...) logo que o trabalho a ele subordinado se torna cooperativo” (Ibid., p. 384). No começo, o capitalista liberta-se do trabalho manual quando seu capital atinge certa magnitude, restringindo-se à função de supervisão, mas, com o desenvolvimento do modo de produção, entrega essa função a um “tipo especial de assalariados” (Ibid., p. 385). Os trabalhadores aparecem como indivíduos isolados que só cooperam em função do capital: A conexão entre as funções que exercem a unidade que formam no organismo produtivo estão fora deles, no capital que os põe juntos e os mantém juntos. A conexão entre seus trabalhos aparece-lhes idealmente como plano, e praticamente como autoridade do capitalista, como poder de uma vontade alheia que subordina a um objetivo próprio a ação dos trabalhadores (Ibid., p. 384-5, grifos meus).

Por isso a força produtiva que o trabalhador socializado desenvolve aparece como “produtividade do capital”, que nada lhe custa, pois os trabalhadores, depois de entrarem no processo de trabalho, “deixam de pertencer a si mesmos. Incorporam-se então ao capital” (Ibid., p. 386). No entanto, a cooperação, em sua forma mais simples, “não constitui nenhuma forma fixa, característica de uma época especial de desenvolvimento do modo de produção capitalista”, é apenas a sua “forma fundamental” (Ibid., p. 388, grifos meus). Na cooperação, por um lado, a massa de mais-valia aumenta de acordo com o número de trabalhadores, mas esse número não pode crescer indefinidamente, pois é limitado pela magnitude do capital. Por outro lado, a “força coletiva” do trabalho combinado, apropriado

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pelo capital, mostrou-se capaz de alterar a taxa de mais-valia. Mas o aumento da taxa é limitado porque cada um dos trabalhadores isolados entra em relação somente com o capital, mas não entre si. O capital precisa se apropriar não só da força coletiva, mas da força individual de trabalho.

2.3 – Divisão manufatureira do trabalho A condição para a existência da manufatura, assim como da cooperação simples, é o comando do capital sobre um grande número de trabalhadores (Ibid., p. 414). A diferença é que na manufatura a cooperação está fundada na divisão do trabalho (Ibid., p. 391). Historicamente, a manufatura começa de dois modos: 1. as diversas corporações de ofício perdem a sua independência, especializando-se em operações parciais da produção de uma determinada mercadoria; 2. no interior da corporação de ofício, a cooperação de artífices decompõe o ofício em suas diferentes operações particulares, individualizando-as para tornar cada uma delas uma função exclusiva do trabalhador. Qualquer que seja o começo, o efeito sobre o processo de produção é o mesmo: cria-se “um mecanismo de produção cujos órgãos são seres humanos” (Ibid., p. 393). A habilidade do trabalhador continua sendo o “fundamento do processo de produção”, mas, justamente por isso, ele é “absorvido por uma função parcial e sua força de trabalho se transforma para sempre em órgão dessa função parcial” (Ibid., p. 393, grifos meus). Os trabalhadores constituem o “mecanismo vivo da manufatura”, mas apenas na medida em que se tornam “trabalhadores parciais, limitados” (Ibid., p. 394, grifos meus). O trabalhador, que antes executava diversas operações parciais, interrompia o fluxo de seu trabalho na passagem de uma operação para outra, criando lacunas no seu dia de trabalho. Essas lacunas se desvanecem quando se realiza uma única tarefa o dia inteiro. A conseqüência é a elevação da intensidade do trabalho, pois aumenta o dispêndio de força de trabalho num dado espaço de tempo. O método do trabalho parcial é aperfeiçoado quando se torna função exclusiva de um trabalhador. A repetição contínua e a concentração exclusiva em determinada ação limitada permitem que o trabalhador encontre meios de atingir o efeito útil desejado com o mínimo esforço necessário (Ibid., p. 394). “Por isso, produz-se em menos tempo ou eleva-se a produtividade do trabalho” (Ibid., p. 394).

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Quando as diversas operações do processo de trabalho se dissociam e cada operação parcial está com um trabalhador parcial, torna-se necessário a modificação nos instrumentos de trabalho, pois a “produtividade do trabalho depende não só da virtuosidade do trabalhador, mas também da perfeição das ferramentas” (Ibid., p. 396). As modificações nos instrumentos de trabalho são determinadas pelas experiências das dificuldades encontradas no processo de trabalho. A mesma espécie de instrumento adquire formas determinadas para um emprego útil especial, e só podem operar plenamente nas mãos do trabalhador parcial especializado e na função parcial específica (Ibid., p. 396). Os trabalhadores parciais constituem “órgãos especiais do um organismo vivo” (Ibid., p. 402). A estrutura de cada trabalho parcial está fundamentada na divisão do trabalho (Ibid., p. 402). “O resultado de trabalho de um é o ponto de partida para o trabalho de outro” (Ibid., p. 400), cada trabalhador recebe do outro a sua matéria-prima. As diversas operações parciais e sucessivas no tempo transformam em “lei técnica do processo de produção o fornecimento de determinada quantidade de produto num tempo dado” (Ibid., p. 400). O transporte ininterrupto da matéria-prima de um processo parcial ao outro se torna condição necessária para estabelecer e manter a conexão entre as diferentes funções (Ibid., p. 399). No entanto, se as diversas operações parciais fossem só sucessivas no tempo, o processo de trabalho seria uma interrupção contínua, abandono de uma fase para entrar em outra. Por isso, de “sucessivas no tempo, as diversas operações parciais se transformam em justapostas no espaço” (Ibid., p. 399). A matéria-prima se encontra simultaneamente em todas as fases do processo de trabalho. “Daí o fornecimento de maior quantidade de mercadorias no mesmo espaço de tempo” (Ibid., p. 399). A cooperação simples não é suprimida, mas torna-se momento do processo de trabalho baseado na manufatura, pois nele se continua empregando simultaneamente muitos trabalhadores que realizam a mesma operação, com a diferença de estarem incorporados a uma “relação orgânica” (Ibid., p. 401). Por um lado, a divisão manufatureira do trabalho “simplifica e diversifica (...) os órgãos qualitativamente diversos do trabalhador coletivo social” (Ibid., p. 401, grifo meu); por outro lado, “cria uma relação matemática fixa para o tamanho desses órgãos” (Ibid., p. 401), onde muitos realizam o mesmo trabalho, como

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na cooperação simples, o que permite o emprego de meios de produção de modo mais econômico, em razão de sua utilização em comum (Ibid., p. 402). O resultado é o desenvolvimento de uma “subdivisão qualitativa do processo de trabalho social”, e simultaneamente uma “regra quantitativa” que estabelece a “proporcionalidade do processo social de trabalho3” (Ibid., p. grifos meus). A conexão entre os diferentes trabalhos é estabelecida pela existência da mercadoria. A divisão manufatureira do trabalho apoia-se na não produção de nenhuma mercadoria pelo trabalhador parcial, mas somente pelo conjunto deles. Por isso pressupõe a concentração dos meios de produção nas mãos do capitalista, que exerce sua “autoridade incondicional” sobre os trabalhadores (Ibid., p. 410-1). A divisão manufatureira do trabalho é apenas “método especial de produzir mais-valia relativa” através da deformação do trabalhador individual (Ibid., p. 420). Os diferentes trabalhos parciais apresentam exigências diversas: alguns mais força, outros mais destreza, ou mais concentração. No entanto, o mesmo indivíduo não possui, no mesmo grau, todas essas qualidades, mas a “estreiteza e deficiência do trabalhador parcial tornam-se perfeições quando ele é parte integrante de um trabalho coletivo” (Ibid., p. 404). A manufatura desenvolve uma “hierarquia nas forças de trabalho” de acordo com a simplicidade ou complexidade do trabalho parcial, resultando em diferentes graus de formação e, por conseguinte, valores diversos, ou seja, decorre da divisão manufatureira do trabalho uma “escala de salários” (Ibid., p. 420, grifos meus). Decorre da divisão hierárquica do trabalho a classificação dos trabalhadores em hábeis e inábeis. Para os primeiros, os custos de aprendizagem são reduzidos, pois a função deles foi simplificada. Para os segundos, não há custos de aprendizagem. “Em ambos os ca-

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Se na manufatura determinadas quantidades de trabalho e funções são divididas proporcionalmente, na sociedade, o “acaso” e o “arbítrio” distribuem os diversos produtores de mercadorias (Ibid., p. 410). Se a “divisão manufatureira do trabalho” pressupõe a “autoridade incondicional do capitalista sobre seres humanos”, a “divisão social do trabalho” está sob a “autoridade” da concorrência (Ibid., p. 411, grifos meus). As diferentes esferas da produção procuram se pôr em equilíbrio, por um lado, satisfazendo uma necessidade qualitativa da produção, produzindo valores-de-uso que satisfaçam uma necessidade social; por outro lado, satisfazendo uma necessidade quantitativa, a lei do valor determina quanto tempo uma sociedade pode despender para produzir uma mercadoria (Ibid., p. 410-1). No entanto, “essa tendência constante das diferentes esferas de produção de se porem em equilíbrio revela-se apenas através da reação contra a contínua destruição desse equilíbrio” (Ibid., p. 411). A divisão manufatureira do trabalho é fixada a priori, entretanto, a divisão social do trabalho atua sobre esta a posteriori, através das flutuações dos preços de mercado, que controlam o “arbítrio desmedido dos produtores de mercadorias” (Ibid., p. 411).

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sos, cai o valor da força de trabalho” (Ibid., p. 405). A desvalorização relativa da força de trabalho decorre da eliminação dos custos de aprendizagem, e resulta em acréscimo de mais-valia, pois “tudo o que reduz o tempo de trabalho necessário para reproduzir a força de trabalho aumenta o domínio do trabalho excedente” (Ibid., p. 405). O capital desenvolve uma única especialidade limitada no trabalhador, sacrificando a sua capacidade total, para depois “transformar numa especialidade a ausência de qualquer formação” (Ibid., p. 405). As “forças intelectuais da produção” só se desenvolvem dentro dos limites do trabalho parcial, mas o que “perdem os trabalhadores parciais, concentra-se no capital que se confronta com eles” (Ibid., p. 416, grifos meus). As forças intelectuais do processo material de produção em seu conjunto se opõem ao trabalhador “como propriedade de outrem e como poder que os domina” (Ibid., p. 416). O processo de dissociação do trabalhador das forças intelectuais do conjunto do processo de produção começa com a cooperação simples, quando o “capitalista representa diante do trabalhador isolado, a unidade e a vontade do trabalhador coletivo” (Ibid., p. 416). O processo se desenvolve na manufatura, “que mutila o trabalhador, reduzindo-o a fração de si mesmo”, e para nós “completa-se na indústria moderna, que faz da ciência uma força produtiva independente do trabalho, recrutando-a para servir ao capital” (Ibid., p. 416). Tanto na cooperação simples como na manufatura, o organismo coletivo que trabalha aparece como “forma de existência do capital” (Ibid., p. 415). Por isso o aumento da produtividade, decorrente da divisão do trabalho, aparece como aumento da produtividade do capital. No entanto, vimos que a manufatura “não só submete ao comando e à disciplina do capital o trabalhador antes independente, mas cria uma graduação hierárquica entre os próprios trabalhadores”, “revoluciona” e se “apodera” da força individual de trabalho, desenvolvendo no trabalhador uma “habilidade parcial”, que mutila o próprio indivíduo (Ibid., p. 415). Se originalmente o trabalhador vendia a sua força de trabalho ao capital porque faltam os meios de produção e subsistência, na manufatura, a força individual de trabalho “não funciona se não estiver vendida ao capital” (Ibid., p. 416). O trabalhador fica incapacitado de fazer algo independente, “só consegue desenvolver sua atividade produtiva como acessório da oficina do capitalista” (Ibid., p. 416).

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No entanto, se opunha à plena dominação da manufatura algumas barreiras históricas: 1. embora a manufatura tenha criado uma divisão hierárquica do trabalho, dividindo os trabalhadores em hábeis e inábeis, o número de inábeis era reduzido em razão da influência dos hábeis; 2. embora manufatura tenha criado o trabalhador parcial, tornando possível a exploração de mulheres e crianças pelo capital, essa tendência se chocava com os hábitos e a resistência do trabalhador adulto masculino; e 3. embora a decomposição do ofício manual reduzisse os custos de formação do trabalhador, e por conseguinte o valor de sua força de trabalho, os custos de produção ainda eram altos, e mesmo quando a aprendizagem era desnecessária o trabalhador procurava mantê-la4 (Ibid., p. 422-3). A manufatura não podia dominar a produção social em sua totalidade, nem revolucionar a sua essência, pois sua base como princípio regulador era o ofício manual5 (Ibid., p. 424). No entanto, a divisão manufatureira do trabalho produziu as máquinas, e com elas novas condições de domínio do capital sobre o trabalhador. No começo, eram utilizadas de maneira esporádica, “sobretudo para certos processos preliminares simples que têm de ser executados em larga escala e com grande emprego de força” (Ibid., p. 403). Com a extensão de seu uso, deixa de ser “necessidade técnica (...) fixar o trabalhador a uma operação parcial, por toda a vida6” (MARX, 1999a, p. 424). O “estreito fundamento técnico [da manufatura – EN], ao atingir ela certo estágio de desenvolvimento, entrou em conflito com as necessidades de produção que ela mesma criou” (Ibid., p. 424). Foi então que “caíram as barreiras que aquele princípio opunha ao domínio do capital” (Ibid., p. 424), mas a superação dessas barreiras significa a posição objetiva de uma nova figura.

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Historicamente, na Inglaterra, até o fim do período manufatureiro, que grosso modo vai até o último terço do século XVIII, vigoravam as leis que prescreviam a aprendizagem, que durava 7 anos. Só sendo postas de lado pela indústria moderna (Ibid., p. 411). 5 “Uma vez que a habilidade manual constituía o fundamento da manufatura e que o mecanismo coletivo que nela operava não possuía nenhuma estrutura material independente dos trabalhadores, lutava o capital constantemente contra a insubordinação do trabalhador” (Ibid., p. 423). 6 “O trabalho, que por isso é ao mesmo tempo mais abstrato, conduz de um lado, por sua uniformidade, à facilitação do trabalho e ao aumento da produção; de outro lado, à limitação a uma habilidade única, e assim à dependência mais incondicionada em relação à conexão social. A habilidade mesma torna-se, dessa maneira, mecânica e recebe a capacidade de deixar a máquina tomar o lugar do trabalho humano” (HEGEL, 1995b, p. 299).

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2.4 – A maquinaria e a indústria moderna Se na manufatura a condição para revolucionar o modo de produção era a força de trabalho, na industria moderna é o instrumental de trabalho. O instrumental de trabalho se transforma de ferramenta manual em máquina (MARX, 1999a, p. 427). A máquina é constituída por três partes distintas uma da outra: 1. motor: força motriz de todo o movimento; 2. transmissão: regula o movimento; 3. máquina-ferramenta: apodera-se do objeto de trabalho para transforma-lo de acordo com o fim desejado (Ibid., p. 429). O motor e a transmissão possuem a função de transmitir o movimento para a máquinaferramenta, que realiza as mesmas funções que antes eram realizadas pelo trabalhador. Quando a ferramenta se transfere do homem para um mecanismo, a máquina toma o lugar da simples ferramenta. A vantagem é que o número de ferramentas com que um trabalhador pode operar é limitado pelos seus órgãos físicos, a máquina-ferramenta supera essa “barreira orgânica”, operando um número maior de ferramentas. Por isso a ferramenta não é suprimida pela máquina, pois com ela se amplia e se multiplica. A diferença é que o capital faz o trabalhador operar não mais com a ferramenta manual, mas com a máquina que maneja as ferramentas (Ibid., p. 443). No começo a Revolução Industrial apodera-se primeiro da ferramenta, deixando para o homem a função puramente mecânica de força motriz. Quando o homem passa a atuar simplesmente como força motriz, então, torna-se possível substituir a “força humana” pela “força natural” (o vento, a água, o vapor, a eletricidade etc.) (Ibid., p. 431-2). A máquina motriz, o motor, adquire uma “forma independente, inteiramente livre dos limites da força humana” (Ibid., p. 432). A substituição da força humana pela máquina motriz é condição necessária para realizar o desejo de valorização crescente do capital, pois cria “um sistema que se automovimenta com certo grau de independência do trabalhador” (GRESPAN, 1999, p. 133). O mesmo significado possui a substituição da rotina empírica da aplicação consciente do trabalho pela ciência. A separação entre as forças intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, e a transformação delas em domínio do capital, efetiva-se na indústria moderna. Desvanece a habilidade parcial da força individual de trabalho diante da ciência, das forças naturais e da massa de trabalho social, incorporados ao sistema das

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máquinas e formando o poder do capital. A “moderna ciência da tecnologia” descobriu as formas fundamentais do movimento humano em seu trabalho, suprimindo os “mistérios” dos ofícios, criando “o princípio de considerar em si mesmo cada processo de produção e de decompô-lo, sem levar em conta qualquer intervenção da mão humana, em seus elementos constitutivos” (MARX, 1999a, p. 551, grifos meus). Se na manufatura “a organização do processo de trabalho social é puramente subjetiva, uma combinação de trabalhos parciais”, na indústria moderna o “organismo de produção” é “inteiramente objetivo”, as condições materiais de produção estão dadas para o trabalhador (Ibid., p. 442). Se na cooperação simples e na cooperação fundada na divisão do trabalho “a supressão do trabalhador individualizado pelo trabalhador coletivizado parece ser algo mais ou menos contingente”, na indústria moderna o “caráter cooperativo do processo de trabalho torna-se uma necessidade técnica imposta pela natureza do próprio instrumento de trabalho” (Ibid., p. 442). A cooperação simples não é suprimida, pois aparece, pondo-se de lado o trabalhador, na forma de máquinas-ferramentas da mesma espécie aglomeradas no mesmo local e operando ao mesmo tempo (Ibid., p. 435). A divisão do trabalho, própria da manufatura, reaparece sob a forma de máquinas-ferramentas parciais, complementares (Ibid., p. 4356). “Cada máquina parcial fornece a matéria-prima à máquina seguinte” (Ibid., p. 4356), e assim sucessivamente. No entanto, se todas funcionam ao mesmo tempo, então o produto encontra-se simultaneamente em todos os estágios do processo (Ibid., p. 437). Se na manufatura, “a cooperação direta entre os trabalhadores parciais estabelece determinadas proporções entre grupos especializados de trabalhadores”, no sistema de máquinas cria-se “uma determinada proporção com referência ao número, ao tamanho e à velocidade das máquinas” (Ibid., p. 437). Esse sistema coordenado de máquinasferramentas parciais constitui a “máquina-ferramenta combinada”, que é “tanto mais perfeita quanto mais contínuo é o processo (...), quanto menos for interrompido o transito da matéria-prima (...) e quanto mais o mecanismo elimina a interferência humana” (Ibid., p. 437). Do ponto de vista do trabalhador, a divisão do trabalho continua existindo, mas como distribuição dos trabalhadores pelas diferentes máquinas, desvanece a base técnica que fundamentava a divisão manufatureira do trabalho, ou seja, a hierarquia dos trabalhado-

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res é substituída pela tendência a igualar todos à “auxiliares das máquinas7”. A hierarquia entre os trabalhadores continua existindo apenas sob a seguinte forma, constituída por três grupos: 1. o trabalhador principal, ocupado realmente com a máquinaferramenta; 2. os auxiliares do trabalhador principal (quase exclusivamente crianças); e 3. os trabalhadores de nível superior, encarregados de controlar e reparar as máquinas (em geral pouco numerosos) (Ibid., p. 480, grifos meus). A indústria moderna, ao tornar supérflua a força muscular, permite o emprego de trabalhadores sem força muscular e com desenvolvimento físico incompleto: mulheres e crianças8. A maquinaria, meio de substituir trabalho e trabalhadores, torna-se imediatamente “meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de idade, sob o domínio direto do capital” (Ibid., p. 451). O resultado é o aumento da taxa e da massa de mais-valia, pois: 1. se antes o valor da força de trabalho era determinado pelo tempo de trabalho necessário para a manutenção do trabalhador e de sua família, quando todos os seus membros entram no mercado de trabalho, cai o valor da força de trabalho do chefe de família; 2. mesmo se pagando mais para toda família do que se pagaria só para o chefe de família, o trabalho excedente do conjunto da família é maior que o trabalho excedente de um (Ibid., p. 452). O objetivo do capitalista individual, quando emprega uma máquina, é diminuir o valor de sua mercadoria e se apropriar de mais-valia extra (Ibid., p. 427). No entanto, como qualquer outro capital constante, a máquina não cria valor novo, seu valor é apenas transferido para o novo produto (Ibid., p. 446). A eficiência da máquina é tanto maior quanto menos valor transferir para o novo produto (Ibid., p. 446), quanto maior for a diferença entre o seu valor global e a parte do valor que é periodicamente transferido para o novo produto (Ibid., p. 444). Do ponto de vista do objetivo de baratear a mercadoria, a aplicação da máquina está limitada pela condição de que “sua própria produção 7

“Com a ferramenta que se transfere à máquina segue a virtuosidade desenvolvida pelo trabalhador em seu manejo. A eficácia da ferramenta emancipa-se dos limites pessoais da força humana” (MARX, 1999a, p. 479-80). 8 A facilidade com que os menores aprendem a trabalhar com a máquina suprime a necessidade de preparar uma classe especial de trabalhadores para operar exclusivamente com as máquinas (Ibid., p. 481). Se na manufatura tratava-se de manejar a ferramenta parcial a vida inteira, na indústria moderna trata-se de servir uma máquina parcial, utilizando desde a infância o trabalhador para transforma-lo em parte da máquina parcial. O resultado é a redução dos custos de formação do trabalhador, do valor de sua força de trabalho, e a sua completa dependência do capital (Ibid., p. 482).

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exija menos trabalho que o que ela substitui com a sua aplicação” (Ibid., p. 449). Contudo, para o capital, “o limite é mais apertado” (Ibid., p. 449). A produtividade da máquina mede-se “pela proporção em que ela substitui a força de trabalho do homem” (Ibid., p. 447), que está condicionada pelo que se economiza “em trabalho pago e não em trabalho vivo geral” (MARX, 1983a, p. 462, grifos meus). A máquina se desgasta por três motivos: 1. seu uso; 2. sua inação; e 3. seu desgaste moral, ou seja, o valor da máquina não é determinado pelo tempo de trabalho materializado nela, mas pelo tempo de trabalho necessário para reproduzi-la, ou produzir uma máquina melhor. A máquina perde valor-de-troca quando se pode produzi-la com menor tempo de trabalho ou produzir máquinas melhores (MARX, 1999a, p. 462). Decorre do desgaste moral a necessidade do capital prolongar a jornada de trabalho, pois quanto “mais curto o período em que se reproduz seu valor global, tanto menor o perigo de desgaste moral, e, quanto maior a jornada de trabalho, tanto mais curto aquele período” (Ibid., p. 462). Se a máquina é o meio mais eficaz para aumentar a produtividade do trabalho, ou seja, para diminuir o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, no começo, sua aplicação é o “meio mais potente para prolongar a jornada de trabalho além de todos os limites estabelecidos pela natureza humana” (Ibid., p. 460). Para o capitalista, indivíduo, a aplicação da maquinaria é um meio de extrair mais-valia extra. Para poder aproveitar o máximo possível essa situação particular momentânea, o capitalista prolonga o máximo possível a jornada de trabalho: “Quanto mais lucra, mais quer lucrar” (Ibid., p. 464). O capital opta pelo prolongamento da jornada de trabalho porque assim pode aumentar a mais-valia sem aumentar os gastos para obtê-la, ou seja, prolongando a jornada de trabalho, explorando o mesmo número de trabalhadores, amplia-se a escala de produção sem aumentar o gasto imediato com capital constante fixo (Ibid., p. 463). A “exploração desenfreada” do trabalhador pelo capital em determinados momentos faz com que o capital se choque com os “hábitos irregulares dos trabalhadores”. Depois de prolongar demasiadamente a jornada de trabalho, o trabalhador deixa de vender a sua força de trabalho por alguns dias (Ibid., p. 543). A fábrica é um dos meios de “extirpar a

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preguiça, a licenciosidade e as divagações românticas de liberdade”, compelindo o trabalhador a estender a jornada de trabalho e a trabalhar pelo menos 6 (seis) dias por semana9 (Ibid., p. 318-9). No entanto, para suprimir a irregularidade no dispêndio de trabalho era necessário regulamentar o dia de trabalho, “distribuir mais regularmente, no decurso do ano, os trabalhadores já ocupados10” (Ibid., p. 543-4). A negociação livre do trabalhador individual com o capital o condena “à morte e à escravatura”, era necessário a negociação conjunta, como classe, e a criação de leis pelo Estado11, que funcionassem como uma “barreira social” que impedisse os trabalhadores de “venderem a si mesmos e à sua decência ao capital12” (Ibid., p. 346). O prolongamento desmedido da jornada de trabalho, produzido pela maquinaria nas mãos do capital, ao fim de certo tempo provoca (...) uma reação da sociedade, que (...) estabelece uma jornada normal de trabalho, legalmente limitado (MARX, 1999a, p. 467).

A primeira forma de aparição desse controle são às “leis de exceção”, restritas aos ramos de produção dominados pela nova forma de produzir. No entanto, a base técnica da 9

“Para atingir esse objetivo, para extirpar a preguiça, a licenciosidade e as divagações românticas de liberdade, para produzir a taxa arrecadada em benefício dos pobres, para incentivar o espírito industrial e para reduzir o preço do trabalho nas manufaturas, propõe esse fiel paladino do capital [o autor anônimo de An essay on trade and commerce, Londres, 1770 – EN] o meio eficaz, a saber, encarcerar os trabalhadores que dependam da beneficência pública, em uma palavra, os pobres, num ‘asilo ideal de trabalho’. ‘Será mister transformar esse asilo em casa de terror’. Nessa ‘casa de terror’, nesse asilo ideal de trabalho, haverá a obrigação de trabalhar ‘14 horas por dia, incluindo-se o tempo adequado para as refeições, de modo que restarão 12 horas inteiras de trabalho’. (...) A casa de terror para os indigentes, com a qual o capital ainda sonhava em 1770, ergueu-se poucos anos mais tarde, gigantesca, no cárcere de trabalho para o próprio trabalhador da indústria. Ela se chama fábrica” (Ibid., p. 318-20). 10 Na história da luta entre a classe capitalista e a classe trabalhadora, esses dois meios de suprimir a irregularidade no dispêndio de trabalho são efeitos de duas tendências opostas: 1a, tendência à extensão da jornada de trabalho: antes de surgir a indústria moderna, o capital levou séculos para prolongar a jornada de trabalho até o seu limite máximo, ultrapassando até as 12 horas (Ibid., p. 320). As diferentes tentativas se manifestaram nas leis da metade do século XIV ao fim do século XVII que prolongavam compulsoriamente a jornada de trabalho (Ibid., p. 305-20). Com o surgimento da indústria moderna, no último terço do século XVIII, “essa tendência transformou-se num processo que se desencadeou desmesurado e violento como uma avalanche. Todas as fronteiras estabelecidas pela moral e pela natureza, pela idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite foram destruídas. (...) Eram as orgias do capital” (Ibid., p. 320); 2ª, tendência à diminuição da jornada de trabalho: “a classe trabalhadora, atordoada pelo tumulto da produção, recobra seus sentidos” (Ibid., p. 321), inicia-se, então, a sua luta pela limitação legal do tempo de trabalho que, na Inglaterra, se manifestou nas leis que surgiram a partir de 1833 (Ibid., p. 320-41). 11 Para nós, essa aparição do Estado ainda não é o advento do Estado social. Este surge quando se torna necessário dotar o Estado de uma nova função para controlar o “antagonismo destruidor” entre a classe capitalista e a classe trabalhadora, qual seja, a função de “fiador da propriedade de transferência” (CASTEL, 2003, p. 344-5 e 407). 12 “Para proteger-se contra a ‘serpente de seus tormentos’, têm os trabalhadores de se unir, como classe, compelir a que se promulgue uma lei que seja uma barreira social intransponível, capaz de impedi-los definitivamente de venderem a si mesmos e a sua decência ao capital, mediante livre acordo que os condena à morte e à escravatura” (MARX, 1999a, p. 346).

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indústria moderna é “revolucionária”, progressivamente se apropria dos diferentes ramos de produção e dos sistemas de transporte e comunicação13, impelindo a legislação fabril a perder progressivamente o caráter de exceção (Ibid., p. 342, 440 e 551). Dois motivos determinam a generalização da lei fabril: primeiro a experiência sempre repetida de que o capital, quando fica sujeito ao controle do Estado em alguns pontos da esfera social, procura compensar-se nos demais, da maneira mais desmesurada; segundo, o clamor dos próprios capitalistas pela igualdade das condições de concorrência, isto é, o estabelecimento de barreiras iguais para todos os que exploram o trabalho (Ibid., p. 555).

Com a limitação da jornada de trabalho, torna-se necessário para o capital recorrer ao aumento da intensidade do trabalho e acelerar o desenvolvimento das forças produtivas. A generalização da aplicação da maquinaria e o acúmulo de experiência da classe trabalhadora, ajustada à máquina, permitem aumentar a intensidade do trabalho. No entanto, chega-se a um estágio em que extensão e intensidade do trabalho se excluem, de modo que o prolongamento da jornada de trabalho diminui a sua intensidade e a intensidade só pode aumentar com uma jornada de trabalho menor14 (Ibid., p. 467). A medida do tempo de trabalho passa a ser resultado de sua extensão e intensidade (Ibid., p. 468). A extração de mais-trabalho no mesmo espaço de tempo ocorre aumentando a velocidade da máquina, ampliando o número delas sob o comando do mesmo trabalhador e aperfeiçoando-as (Ibid., p. 470). Ao procurar evitar que a redução da jornada de trabalho diminua o ritmo do processo de acumulação, o capital faz o trabalhador se defrontar com duas situações: 1. o recurso à intensificação do trabalho, assim como o prolongamento da jornada de trabalho, destrói a saúde do trabalhador, portanto, a própria força de trabalho (Ibid., p. 476); 2. a diminuição da jornada de trabalho impele o capitalista a administrar de maneira mais severa os seus custos de produção (Ibid., p. 470), piorando as condições de trabalho, já péssimas em si, no interior da fábrica15 (Ibid., p. 478). 13

“O sistema fabril impulsiona a divisão social do trabalho muito mais do que a manufatura, porque aumenta, em grau desproporcionalmente maior, a força produtiva dos ramos que se apodera” (Ibid., p. 506). 14 “O primeiro efeito da jornada de trabalho diminuída decorre desta lei evidente: A capacidade de operar da força de trabalho está na razão inversa do tempo em que opera. Por isso, dentro de certos limites, o que se perde em duração, ganha-se em eficiência” (Ibid., p. 478). 15 “A diretriz de economizar os meios sociais de produção, diretriz que se concretiza, de maneira cabal e forçada, no sistema de fábrica, leva o capital ao roubo sistemático das condições de vida do trabalhador durante o trabalho. O capital usurpa-lhe o espaço, o ar, a luz e os meios de proteção contra condições

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O trabalho, na fábrica, suprime toda a energia física do trabalhador e toda a sua atividade livre. A máquina, sob propriedade do capital, torna-se meio não de libertar o trabalhador, mas de dominá-lo. Como o processo de trabalho é simultaneamente processo de criar mais-valia, é o instrumental de trabalho que emprega o trabalhador e não o contrário. Na indústria moderna, essa “inversão” transforma-se em “realidade técnica e palpável” (Ibid., p. 483). “Não partindo do trabalhador o movimento global da fábrica, mas da máquina, pode-se mudar o pessoal a qualquer hora sem interromper o processo de trabalho” (Ibid., p. 481). A indústria moderna produz a mobilidade do trabalhador de um ramo de produção para o outro, de acordo com o movimento de valorização do capital. Essa mobilidade, por um lado, “substitui o indivíduo parcial (...) pelo indivíduo integralmente desenvolvido, para o qual as diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua atividade16” (Ibid., p. 553). Por outro lado, a mobilidade “elimina toda a tranqüilidade, solidez e segurança da vida do trabalhador, mantendo-o sob ameaça constante de perder os meios de subsistência” (Ibid., p. 553). Vimos que na divisão manufatureira do trabalho, o capital particulariza a força de trabalho, reduzindo-a a uma habilidade limitada, o que resulta na sua desvalorização. No entanto, a superação das barreiras que impediam a plena realização dessa figura significou a posição objetiva de uma nova figura, assentada na maquinaria e na grande indústria, pois o capital, ao produzir uma “habilidade mecânica” no trabalhador, pôde colocar a máquina no seu lugar. “Quando a máquina passa a manejar a ferramenta, o valor-detroca da força de trabalho desaparece ao desaparecer o seu valor-de-uso”, ou seja, uma parte dos trabalhadores é posta fora do mercado de trabalho (Ibid., p. 491). A introdução de novas máquinas significa que para empregar o mesmo número de trabalhadores o capital global precisa ser cada vez maior. O acréscimo do número de trabalhadores passa a estar condicionado pelo progresso técnico e pelo “fluxo e refluxo do perigosas ou insalubres do processo de trabalho, para não falarmos nas medidas necessárias para assegurar a comodidade do trabalhador” (Ibid., p. 487). 16 Para nós, sob o domínio do capital, essa tendência só pode se manifestar através de uma inversão, que tem na “flexibilidade interna e externa” do trabalho a sua forma mais desenvolvida (CASTEL, 2003, p. 518).

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ciclo industrial”. A expansão quantitativa da produção absorve os trabalhadores despedidos, enquanto a mudança qualitativa afasta os trabalhadores. “Os trabalhadores são, assim, ininterruptamente repelidos e atraídos, jogados de um lado para o outro” (Ibid., p. 516). Na indústria moderna, a relação “independente e estranha” das condições de produção e do produto do trabalho com o trabalhador converte-se em “oposição completa”. O resultado imediato é a “revolta brutal do trabalhador contra esse instrumento de trabalho, a maquinaria”, pois vê nessa forma determinada dos meios de produção o “fundamento material do modo capitalista de produção” (Ibid., p. 488 e 492). No entanto, “a maquinaria em si mesma não é responsável por serem os trabalhadores despojados dos meios de subsistência” (Ibid., p. 503). Em si mesma, ela é meio de encurtar o tempo de trabalho, facilitar o trabalho, “é uma vitória do homem sobre as forças naturais”, mas a sua aplicação, sob o domínio do capital, produz resultados opostos: “prolonga o tempo de trabalho, aumenta a sua intensidade, escraviza o homem por meio das forças naturais, pauperiza os verdadeiros produtores” (Ibid., p. 503). De imediato, a aplicação da maquinaria pelo capital é meio de ampliar a mais-valia absoluta e relativa, a quantidade de produtos e o contingente de trabalhadores a sua disposição. No entanto, a produção mecanizada manifesta a “contradição imanente” do capital. “Ela transforma uma parte do capital que antes era variável, investido em força viva de trabalho, (...) em capital constante, que não produz mais-valia” (Ibid., p. 465). Dessa “contradição imanente” decorre um duplo resultado: a formação de uma superpopulação relativa e a manifestação da lei da queda tendencial da taxa de lucro.

2.5 – Repulsão de trabalhadores pelo capital Vimos que, no modo de produção capitalista, o processo de trabalho é, simultaneamente, processo de produzir mais-valia, e que, por esse motivo, é o instrumental de trabalho que emprega o trabalhador, e não o contrário. Na indústria moderna, o acréscimo no número de trabalhadores está condicionado pelo progresso técnico e pelo “fluxo e refluxo do ciclo industrial” (Ibid., p. 516). Enquanto a expansão quantitativa da produção absorve os trabalhadores despedidos, a mudança qualitativa repele os trabalhadores.

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Com o progresso técnico apoiado na maquinaria, para empregar o mesmo número de trabalhadores, o capital global precisa ser cada vez maior. Nesse item, apresentaremos por que a atração e repulsão dos trabalhadores são condizentes com os propósitos de exploração e domínio do capital. A produção de mais-valia é a “lei absoluta” do modo de produção capitalista (MARX, 1989, p. 719, grifos meus). Não se alterando a composição do capital, parte da “maisvalia que se transforma em capital adicional tem sempre de metamorfosear-se especificamente em capital variável (...). Aumentar capital é portanto aumentar o proletariado” (Ibid., p. 714). Se por um lado a valorização do capital, no processo de produção, pressupõe que o capitalista encontre, no processo de circulação, a “mercadoria especial” força de trabalho (MARX, 1999a, p. 197), por outro lado, os trabalhadores, dissociados dos meios de produção e subsistência, no processo de acumulação capitalista, “eternizam necessariamente sua relação de dependência para com seu próprio produto, personificado no capitalista” (MARX, 1989, p. 716). Os trabalhadores precisam vender continuamente a sua força de trabalho e estão na dependência da reprodução constantemente ampliada da riqueza como capital17 (Ibid., p. 720). “A força de trabalho tem de incorporar-se continuamente ao capital como meio de expandi-lo, não pode livrar-se dele” (Ibid., p. 714). No entanto, vimos que, em determinado momento do processo de acumulação, “o desenvolvimento da produtividade do trabalho social se torna a mais poderosa alavanca da acumulação” (Ibid., p. 722-3). Esse desenvolvimento manifestou-se nos diferentes “métodos particulares de produzir mais-valia relativa” (MARX, 1999a, p. 372), cada um deles era a posição objetiva de uma figura do processo de passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalhador ao capital. O estágio desse desenvolvimento, o “grau de produtividade do trabalho”, “se expressa pelo volume relativo dos meios de produção que um trabalhador, num tempo dado, transforma em produto, com o mesmo dispêndio de força de trabalho” (MARX, 1989, p. 723), ou seja, o aumento de produti17

As condições de venda da força de trabalho, mais favoráveis ou menos favoráveis ao trabalhador, não mudam a essência de sua relação com o capital. “O salário (...) pressupõe sempre, por natureza, fornecimento de determinada quantidade de trabalho não-pago por parte do trabalhador” (MARX, 1989, p. 720). Mantendo-se inalterado o valor dos meios de subsistência do trabalhador, “um acréscimo salarial significa, na melhor das hipóteses, apenas redução quantitativa do trabalho gratuito que o trabalhador tem de realizar. Essa relação nunca pode chegar ao ponto de ameaçar a existência do próprio sistema” (Ibid., p. 720).

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vidade se patenteia “no decréscimo da quantidade de trabalho em relação à massa dos meios de produção que põe em movimento” (Ibid., p. 723). O capital procura, constantemente, desprender-se dos limites da força de trabalho, e todos os métodos para elevar a produtividade do trabalho social revelam-se, ao mesmo tempo, “métodos para produzir capital com capital” (Ibid., p. 723). Com o processo de acumulação, altera-se a composição técnica do capital, cresce a massa dos meios de produção em relação à massa de trabalho que os vivifica, o que se reflete na composição do valor, no aumento do capital constante em relação ao capital variável, mas não na mesma proporção, pois “com a produtividade crescente do trabalho não só aumenta o volume dos meios de produção que ela consome, mas cai o valor desses meios de produção em comparação com seu volume” (Ibid., p. 724). A procura por trabalho é determinada não pela magnitude do capital global, mas pela magnitude do capital variável, que cai relativamente com o aumento do capital, ou seja, com o crescimento do capital global cresce a parte variável, mas em proporção cada vez menor (Ibid., p. 731). O aumento do número de trabalhadores, com o aumento do capital variável, está sempre associado a “absorção mais difícil da população trabalhadora adicional pelos canais costumeiros” (Ibid., 732). No entanto, a variação do capital variável não é só resultado da variação do número de trabalhadores. O capital variável pode aumentar se o trabalhador individual fornecer mais trabalho, aumentando o seu salário, sem significar aumento do preço de seu trabalho (Ibid., p. 737). Decorre do processo de acumulação que: 1. um capital variável maior põe em movimento quantidade maior de trabalho, sem aumentar o número de trabalhadores; 2. um capital variável de mesma magnitude põe mais trabalho em ação, aumentando a sua intensidade, sem aumentar o número de trabalhadores (Ibid., p. 738). O processo de acumulação produz o aumento absoluto do capital variável e, simultaneamente, “uma população trabalhadora supérflua relativamente”, ou seja, “que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo, excedente” (Ibid., p. 731, grifos meus). A própria população trabalhadora, “ao produzir a acumulação de capital, produz, em proporções crescentes, os meios que fazem dela, relativamente, uma população supérflua” (Ibid., p. 732).

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A “superpopulação relativa” é “produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza no sistema capitalista”, e revela-se como uma “alavanca da acumulação capitalista” (Ibid., p. 733), pois é “material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital”, sempre pronta para ser explorada, “independentemente dos limites do verdadeiro incremento da população” (Ibid., p. 734). Ela permite que o capital se lance em novos ramos de produção, sem precisar prejudicar os ramos de produção antigos. Ela está sempre disponível ao capital conforme as suas necessidades nas fases do ciclo industrial. “Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se fosse criado por ele” (Ibid., p. 7334, grifos meus). Para que a força de trabalho possa funcionar conforme a necessidade do capital não basta o incremento natural da população, é necessário um exército industrial de reserva, cuja formação não depende desse limite natural (Ibid., p. 737). O processo de acumulação adapta continuamente o número de trabalhadores disponíveis conforme as necessidades do capital (Ibid., p. 748). “A procura de trabalho não se identifica com o crescimento do capital, nem a oferta de trabalho com o crescimento da classe trabalhadora” (Ibid., p. 742). Oferta e procura não são duas forças independentes que atuam uma sobre a outra, pois o “capital age ao mesmo tempo dos dois lados” (Ibid., p. 742). Quando aumenta a acumulação de capital, aumenta a procura por força de trabalho, mas, simultaneamente, aumenta a sua oferta, pois parte dos trabalhadores são “liberados” (Ibid., p. 742). Por conseguinte: 1. os salários não são determinados pelas variações do número absoluto da população, mas pela relação entre a classe trabalhadora empregada e o exército industrial de reserva (Ibid., p. 739); 2. o capital cria uma certa independência entre oferta de trabalho e oferta de trabalhadores, pois “a pressão dos desempregados compele os empregados a fornecerem mais trabalho” (Ibid., p. 742). Cria-se uma concorrência entre os trabalhadores: o trabalho excessivo dos trabalhadores empregados pressiona a favor do aumento do exército industrial de reserva, enquanto o exército industrial de reserva compele o trabalhador empregado “ao trabalho excessivo e a sujeitar-se às exigências do capital” (Ibid., p. 738). Portanto, para o capital, essa

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concorrência entre a classe trabalhadora opera ao seu favor, como “fonte de enriquecimento18” (Ibid., p. 738). Todo trabalhador é parte da superpopulação relativa quando está desempregado ou parcialmente empregado. No ciclo industrial, a superpopulação relativa aparece em “forma aguda” nas crises e em “forma crônica” nos períodos de estagnação (Ibid., p. 743, grifos meus). No entanto, além dessas duas formas principais que aparecem periodicamente, existem outras três, assumidas continuamente: 1. forma flutuante: trata-se dos trabalhadores que emigram conforme a emigração do capital, são trabalhadores ora repelidos, ora atraídos em quantidade maior, de modo que, no conjunto, aumenta o número de empregados, embora em proporção decrescente com a escala da produção, por isso essa forma aparece preponderantemente nos períodos de crescimento industrial (Ibid., p. 743-4); 2. forma latente: quando a produção capitalista apodera-se da agricultura, o aumento da produtividade diminui a procura por trabalhadores. A repulsão dos trabalhadores não é contrabalançada por maior atração, como ocorre na indústria não-agrícola. Parte da população rural, então, se encontra na iminência de transformar-se em proletariado urbano. O fluxo de trabalhadores para a cidade pressupõe uma superpopulação latente no campo (Ibid., p. 745); 3. forma estagnada: constitui parte dos trabalhadores empregados, mas com ocupação totalmente irregular. São trabalhadores supérfluos na grande indústria, na agricultura e nos ramos de atividade em decadência. A condição de vida desses trabalhadores encontra-se abaixo do nível médio de vida do conjunto da classe, e por isso é a base ampla de exploração para alguns ramos de produção do capital. Sua existência é caracterizada pela duração máxima da jornada de trabalho e pelo mínimo salário. Essa forma aumenta à medida que o processo de acumulação aumenta o número de trabalhadores supérfluos (Ibid., p. 746). Historicamente, com o desenvolvimento industrial, na primeira metade do século XIX, parte da superpopulação relativa é jogada no “inferno da indigência, do pauperismo” (Ibid., p. 746). Pondo-se de lado o “rebotalho19” do proletariado, essa “camada social” é constituída por três categorias: 1. os aptos para o trabalho: seu número varia de acordo 18

“A condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada, em virtude do trabalho excessivo de outra parte, torna-se fonte de enriquecimento individual dos capitalistas e acelera ao mesmo tempo a produção do exército industrial de reserva numa escala correspondente ao progresso da acumulação social” (Ibid., p. 738-9). 19 Marx (1989, p. 746) refere-se aos “vagabundos, os criminosos, as prostitutas” etc.

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com o ciclo industrial; 2. os órfãos e filhos de indigentes: são recrutados em tempo de grande prosperidade; 3. os incapazes de trabalhar: são degradados e desmoralizados socialmente. Estão nessa situação porque são incapazes de se adaptar ao desenvolvimento da divisão do trabalho, ultrapassam a idade normal de um trabalhador, ou são vítimas da indústria, ou seja, os mutilados, os enfermos, as viúvas etc. (Ibid., p. 747). Em relação aos outros momentos históricos, a novidade que aparece na figura do pauperismo é que se trata de “uma indigência que não é devida à ausência de trabalho, mas sim à nova organização do trabalho”, essa figura surge com a liberalização do mercado de trabalho, com a supressão de todas as regulações da “sociedade pré-industrial20”. É, portanto, “filha da industrialização”, “o efeito direto da nova organização do trabalho” (CASTEL, 2003, p. 284-5). Enquanto a figura do vagabundo manifestava “um vadio que ficava na periferia do espaço social e seu drama decorria do fato de ser posto fora da ordem produtiva”, o pauperismo manifesta “o perigo de uma desfiliação21 em massa inscrita no próprio cerne do processo de produção das riquezas” (Ibid., p. 298). A situação de indigência adquire um “caráter de massa”, que não designa mais pessoas “fora do regime comum”, marginalizados como os “vagabundos” ou “mendigos” (Ibid., p. 219). Não existe uma separação rígida – mesmo no caso dos “marginalizados” – entre os que estão “out” e os que estão “in”, integrados à sociedade, pois as decisões dos que estão integrados interferem naqueles que não estão integrados. “Integrados, vulneráveis e desfiliados pertencem a um mesmo conjunto, mas cuja unidade é problemática” (Ibid., p. 34). É a acumulação de capital que produz a superpopulação relativa, a repulsão de trabalhadores é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital e atraem trabalhadores. “Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista” (MARX, 1989, p. 747). No modo de produção capitalista, todos os métodos para elevar a produtividade do trabalho coletivo são aplicados às custas do trabalhador individual; todos os meios para desenvolver a produção redundam em meios de dominar e explorar o produtor, mutilam o trabalhador, reduzindo-o a um fragmento de ser humano, degradam-no à categoria de peça de máquina, destroem o conteúdo de seu trabalho transformado em tormento; tornam-lhe estranhas as po20 21

Cf. CASTEL, 2003, p. 43. Cf. Ibid., p. 26.

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tências intelectuais do processo de trabalho na medida em que este se incorpora a ciência como força independente desfiguram as condições em que trabalha, submetem-no constantemente a um despotismo mesquinho e odioso, transformam todas as horas de sua vida em horas de trabalho e lançam sua mulher e seus filhos sob o rolo compressor do capital. Mas todos os métodos para produzir mais-valia são ao mesmo tempo métodos de acumular, e todo aumento da acumulação torna-se, reciprocamente, meio de desenvolver aqueles métodos (Ibid., p. 748).

Por conseguinte, se para o capital o processo de acumulação é acumulação de riqueza, para o trabalhador o processo se revela como “acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral”. Decorre da acumulação de capital a piora da situação do trabalhador, mesmo subindo ou descendo a sua remuneração22 (Ibid., p. 749). O pauperismo manifesta “uma espécie de imoralidade que se faz natureza a partir da degradação completa dos modos de vida dos operários e de suas famílias” (CASTEL, 2003, p. 287). A condição da classe trabalhadora é degradada de tal forma que grande parte dela é colocada nas “fronteiras da associabilidade” (Ibid., p. 289). A classe dominante procurou contornar os efeitos do processo de acumulação através da elaboração de um conjunto sistemático de procedimentos para moralizar a classe trabalhadora23. No entanto, a miséria do pauperismo era um “fenômeno de massa”, um “efeito da industrialização”, que não podia ser contornada “por meio de técnicas que, individuais ou coletivas, impostas ou propostas, pertenciam à esfera da moral institucionalizada” (Ibid., p. 342). Para nós, era necessário um Estado capaz de “negociar compromissos entre posições diferentes”, que ficavam cada vez mais patentes à medida que a classe trabalhadora elaborava seus próprios modos de organização social, era necessário reformar o Estado

22

:Um dos motivos dessa piora é a queda do “salário relativo”: “Nem o salário nominal, ou seja, a soma de dinheiro em troca da qual o trabalhador se vende ao capitalista, nem o salário real, ou seja, a soma das mercadorias que ele pode comprar em troca desse dinheiro, esgotam as relações contidas no salário. O salário é determinado, antes de tudo, por sua relação com o lucro do capitalista; é um salário relativo. O salário real expressa o preço do trabalho em relação ao preço das demais mercadorias, enquanto o salário relativo expressa a participação do trabalho no novo valor criado por ele, em relação à participação que, nesse valor, cabe ao trabalho acumulado, ao capital” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 245-6). O salário é “relação social” (Ibid., p. 553), “é determinado pelo confronto hostil entre o capitalista e o trabalhador” (MARX, 2004, p. 23), mas distinção entre “salário nominal”, “salário real” e “salário relativo” permite a existência de variações no salário, nominal ou real, sem alterar a taxa de lucro. Pode crescer o salário real e/ou nominal enquanto cai o salário relativo, ou seja, a situação do trabalhador piora relativamente. 23 Cf. CASTEL, 2003, p. 319-33.

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liberal, que deixava “face a face, sem mediações, dominantes e dominados” (Ibid., p. 344-5). Para o capital, essa repulsão dos trabalhadores do processo de acumulação possui um significado diferente da sua intenção inicial, pois lá onde o capital esperava ter conquistado a sua total independência do trabalho, através do desenvolvimento das forças produtivas, manifestou algo inverso: mesmo os trabalhadores supérfluos em relação às necessidades imediatas de valorização do capital precisam estar disponíveis, “a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital” (MARX, 1989, p. 734). Simultaneamente, a lei geral da acumulação capitalista, que se patenteia no “decréscimo relativo do capital variável (...) com o desenvolvimento da produtividade social”, põe “outra maneira de expressar-se o desenvolvimento do progresso da produtividade”, na lei da queda tendencial da taxa de lucro (MARX, 1983a, p. 243 e 254). Nessa lei fica patente que o capital, ao procurar livrar-se dos limites da força de trabalho, choca-se com seus próprios limites.

2.6 – Lei da queda tendencial da taxa de lucro A queda da taxa de lucro é conseqüência necessária do aumento da composição orgânica média, ou seja, é uma manifestação da lei geral da acumulação capitalista. Com o processo de acumulação, a “massa de trabalho vivo empregado decresce sempre em relação à massa de trabalho materializado” (Ibid., p. 243-4), por conseguinte “a parte não-paga do trabalho vivo, a qual se concretiza em mais-valia, deve continuamente decrescer em relação ao montante de valor do capital global aplicado” (Ibid., p. 244). A taxa de lucro cai porque se emprega menos trabalho em relação ao capital global aplicado, e não porque se explora menos o trabalhador (Ibid., p. 283). Vimos que a massa de mais-valia é determinada por dois fatores: a taxa de mais-valia e o número de trabalhadores empregados a essa taxa. Dada a taxa de mais-valia, a massa de mais-valia depende do número de trabalhadores; dado o número de trabalhadores, ela depende da taxa de mais-valia. Portanto, a massa de mais-valia “depende conjuntamente da magnitude do capital variável e da taxa de mais-valia” (Ibid., p. 268). Poder-se-ia, então, imaginar que são duas grandezas complementares, no entanto, na produção da mais-valia

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relativa repousa uma “contradição imanente” (MARX, 1983a, p. 268; 1999a, p. 465, grifos meus), pois “as mesmas causas que aumentam a taxa de mais-valia relativa diminuem a massa da força de trabalho empregada” (MARX, 1983a, p. 268). Taxa e massa de mais-valia possuem um “movimento antagônico”, determinado por “tendências opostas”, pois as causas que aumentam a taxa de mais-valia diminuem a massa de mais-valia e, por conseguinte, a taxa de lucro, correspondente a dado capital (Ibid., p. 267-8). Patenteia-se, então, que taxa de mais-valia e taxa de lucro não são somente duas medidas diferentes de valorização do capital, mas sim opostas. A taxa de mais-valia é calculada apenas em relação ao capital variável, e seu acréscimo implica em decréscimo da massa de mais-valia. No entanto, a taxa de lucro é calculada através da relação entre a massa de mais-valia e o capital global, não pode aumentar sem que aumente a massa de maisvalia (Ibid., p. 270). A queda da taxa de lucro é conseqüência não do decréscimo absoluto do capital variável, mas de seu decréscimo relativo ao capital global, em relação à parte constante (Ibid., p. 248). É necessidade do modo de produção capitalista o crescimento absoluto da massa de trabalhadores e, portanto, da massa de mais-valia ou de lucro (Ibid., p. 249). A lei da queda tendencial da taxa de lucro possui uma “dupla fisionomia”: as mesmas causas que diminuem a taxa de lucro aumentam a massa absoluta de lucro (Ibid., p. 251). A “dupla fisionomia” é conseqüência da própria lei geral da acumulação capitalista, pois nela se patenteia que, com o decréscimo relativo do capital variável, resultado do desenvolvimento da produtividade social do trabalho, uma massa cada vez maior de capital é necessária para pôr a mesma quantidade de força de trabalho em movimento (Ibid., p. 254). Para que a massa de lucro cresça é necessário que o capital variável cresça em termos absolutos, mas, como aumenta a composição orgânica, é necessário que o capital global cresça em proporção maior que o decréscimo relativo do capital variável (Ibid., p. 255). Portanto, a queda da taxa de lucro e a acumulação acelerada são “aspectos diferentes de um mesmo processo”, ou seja, “ambas expressam o desenvolvimento da produtividade” (Ibid., p. 278). O processo de acumulação diminui a taxa de lucro e, simultaneamente, aumenta a massa de lucro, pois aumenta a massa de trabalhadores, mas numa composi-

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ção orgânica mais alta (Ibid., p. 278). Por isso, as mesmas causas que fazem cair a taxa de lucro favorecem a acumulação (Ibid., p. 256). Se do ponto de vista do capital a lei da taxa decrescente de lucro se expressa no acréscimo da massa de lucro, do ponto de vista da mercadoria a lei se expressa na baixa do preço das mercadorias e no crescimento da massa de lucro contido na totalidade das mercadorias, realizada por meio da venda (Ibid., p. 258). O desenvolvimento da produtividade do trabalho reduz o preço da mercadoria, a massa de lucro contida em cada uma delas, e a taxa de lucro relativa à totalidade das mercadorias, mas aumenta-se o número de mercadorias e a massa de lucro correspondente à totalidade das mercadorias (Ibid., p. 264). A mais-valia produzida se materializa em mercadorias. Sua produção encerra o primeiro ato do processo capitalista de produção, o processo imediato de produção. O processo de acumulação, expresso em taxa cadente de lucro, expande imensamente a massa de mais-valia. Começa então o segundo ato e, com ele, a necessidade de vender a massa de mercadorias, repondo o capital constante, o capital variável e realizando a mais-valia (Ibid., p. 281). Para o trabalhador, se não existir essa venda ou se ela realizar apenas parte dos preços, “terá (...) sido explorado, mas essa exploração não se concretizará em resultado para o capitalista” (Ibid., p. 281). Não existe uma identidade imediata entre exploração e realização da exploração, elas se diferem “no tempo e no espaço e ainda em sua natureza” (Ibid., p. 281). As condições de exploração “têm por limite apenas à força produtiva da sociedade”, enquanto a realização da exploração, “a proporcionalidade entre os diferentes ramos e o poder de consumo da sociedade” (Ibid., p. 281). O objetivo do capital é produzir lucro e não satisfazer as necessidades sociais. A finalidade é alcançada através de métodos que regulam a produção pela escala da produção. “Por isso, terá sempre de haver discrepância entre as dimensões limitadas do consumo em base capitalista e uma produção que procura constantemente ultrapassar o limite que lhe é imanente” (Ibid., p. 294). Se o capital é valor que “põe uma mais-valia ou se valoriza” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 98) e só se “produz mais-valia quando se ma-

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terializa em mercadorias” (MARX, 1983a, p. 281), então “a superprodução de capital implica (...) a de mercadorias” (Ibid., p. 294). No entanto, existe superprodução porque o capital-mercadoria não pode se converter em capital-dinheiro, ou só pode através de enorme contração nos preços, e não porque existem mercadorias além das necessidades sociais. Existe superprodução de capital, e não de mercadorias isoladas. A acumulação é excessiva porque a produção ultrapassou as condições de valorização do capital. As mercadorias existem em excesso para o capital, simultaneamente pode existir uma população em condições de completa exclusão (Ibid., p. 295). “Não se produz riqueza demais. Mas a riqueza que se produz periodicamente é demais nas formas antagônicas do capitalismo” (Ibid., p. 296). É superprodução de mercadorias apenas na medida em que elas estão subordinadas ao objetivo de expandir o valor do capital. A produção capitalista encontra seus limites em certo grau de expansão, “no ponto exigido pela produção e realização do lucro e não pela satisfação de necessidades”, ou seja, é “certo nível da taxa de lucro (...) que determina a decisão de expandir ou restringir a produção, e não a relação entre produção e necessidades sociais24” (Ibid., p. 296-7). A produção existe para o capital, “capital e sua auto-expansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da produção” (Ibid., p. 287). “A taxa de lucro é a força propulsora da produção capitalista, e só se produz o que se pode e quando se pode produzir com lucro” (Ibid., p. 297). Na posição da medida do capital, a taxa de lucro, fica patente que a “barreira efetiva da produção capitalista é o próprio capital” (Ibid., p. 287), pois o seu “meio” de valorização, o “desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais”, “conflita” com o seu “objetivo limitado, a valorização do capital existente25” (Ibid., p. 288, grifos meus).

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“É exato e correto afirmar que a superprodução é apenas relativa, e o modo capitalista de produção é por inteiro modo relativo de produção, com limites que não são absolutos, embora para ele, em relação à base em que assenta, sejam absolutos. Do contrário, como explicar que falte procura das mercadorias de que precisa a massa do povo, e que se tenha de buscar essa procura no exterior, em mercados longínquos, a fim de ser possível pagar os trabalhadores do país a quantia regular para os meios de subsistência? É que nessa contextura especificamente capitalista, e nela apenas, o produto em excesso recebe forma que só permite ao possuidor pô-lo à disposição do consumo, depois de reconvertido para ele em capital” (MARX, 1983a, p. 295). 25 “(...) a contradição do modo capitalista de produção consiste justamente na tendência para desenvolver, de maneira absoluta, as forças produtivas que colidem sempre com as condições específicas da produção, nas quais se move o capital e as únicas em que se pode mover” (Ibid., p. 295).

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O processo de acumulação não tardaria a levar à catástrofe a produção capitalista se, além da tendência a queda na taxa de lucro, não existissem tendências contra-atuantes. A lei da queda da taxa de lucro opera como “tendência”, ou seja, “como lei cuja efetuação absoluta é retardada, enfraquecida pela ação de circunstâncias opostas” (Ibid., p. 269, grifo meu). A “lei” é, portanto, “esta conexão interna e necessária entre dois [termos] aparentemente contraditórios” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 215), ou seja, na lei as diferenças são captadas imediatamente como diferença interior, diferença em si mesma26. Lei e diferenças são ambas o contrário delas mesmas, por isso “as mesmas causas que produzem a tendência à queda da taxa de lucro moderam também a efetivação (Verwirklichung) desta tendência” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 216).

Quadro 1: Fatores que podem funcionar como contra-tendências 1. Aumento do grau de exploração do trabalho: a taxa de mais-valia pode aumentar através do aumento da intensidade do trabalho, através do desenvolvimento da produtividade do trabalho e/ou através da extensão da jornada de trabalho. Apesar da sua “barreira natural”, só a mais-valia absoluta pode atuar efetivamente como contra-tendência, pois tanto no caso do aumento da intensidade do trabalho, como na produção de mais-valia relativa, “as mesmas causas que provocam aumento da taxa de mais-valia podem implicar em queda da massa de mais-valia” (MARX, 1983a, p. 267); 2. Redução dos salários: “é um dos fatores mais importantes que detêm a tendência à queda da taxa de lucro” (Ibid., p. 270); 3. Baixa do preço dos elementos do capital constante: em razão da imposição coercitiva da concorrência, todos os capitais individuais buscam realizar uma mais-valia extra, por conseguinte, os motivos imediatos para o aumento da produtividade são indiferentes quanto ao ramo de produção (GRESPAN, 1999, p. 221). Por isso, “o valor do capital constante [pode – EN] não crescer na mesma proporção do volume material” (MARX, 1983a, p. 270), o mesmo desenvolvimento que aumenta a quan-

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“(...) é preciso deixar de lado a noção comum de ‘lei’ como enunciado de uma relação constante e nãocontraditória entre fenômenos (...). Em vez de um nexo não-contraditório entre fenômenos ou entre estes e sua causa, a relação é ‘lei’ exatamente quando seus termos se apresentam como aspectos contraditórios de um fundamento comum, definidos como contrário um do outro” (GRESPAN, 1999, p. 215). Cf. HEGEL, 2003, p. 120-5.

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tidade do capital constante em relação ao variável pode diminuir o valor de seus elementos materiais (Ibid., p. 271); 4. Superpopulação relativa: os ramos de produção em que predomina o capital constante liberam trabalhadores, tornando-os abundantes e baratos. Outros ramos de produção, sobretudo os novos, podem empregá-los com salário inferior à média, de modo que a taxa e a massa de mais-valia são altas (Ibid., p. 271-2); 5. Comércio exterior: permite a importação com preço reduzido em relação à produção local de elementos do capital constante e de meios de subsistência em que se converte o capital variável. A expansão do comércio exterior é “necessidade interna” do capital, pois amplia o mercado, aumenta a escala da produção e permite a elevação da taxa de lucro através da exportação de mercadorias acima do valor – embora com valor menor que a dos países competidores – para países com menores facilidades de produção (Ibid., p. 273); 6. Aumento do capital por ações: são capitais aplicados em grandes empreendimentos, onde é enorme o capital constante em relação ao variável, de modo que tais empreendimentos “não entram no nivelamento da taxa geral de lucro”, pois caso entrassem, “fariam esta cai muito mais” (Ibid., p. 276). Tais empreendimentos são possíveis “apenas como capital que dá um rendimento, ou seja, um juro”, os chamados “dividendos” (Ibid., p. 275-6).

A lei não é “anulada” pelas contra-tendências, é apenas “retardada”, “detida” temporariamente, ou seja, sua “necessidade não implica ‘execução absoluta’, (...) que seus efeitos sempre estejam manifestos, que a taxa de lucro esteja sempre baixando na realidade” (GRESPAN, 1999, p. 216-7). Por isso, “as tendências gerais e necessárias do capital devem ser diferenciadas de suas formas de aparecimento” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 222). Entre a “essência” e as “formas de aparecimento” existem uma “série de mediações”, possibilitando às “tendências gerais” não “aparecerem” (GRESPAN, 1999, p. 222, grifos meus). A lei tem, então, “estatuto de possibilidade”, que confere à tendência o “estatuto de necessidade”, que não é “absoluta”, mas “relativa”, ou seja, “que admite sempre a possibilidade do oposto e que depende de condições externas para se realizar, subordinando a si condições favoráveis ou desfavoráveis como ‘contingências’” (Ibid., p. 223, grifos meus).

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O modo como se combinam tendências e contra-tendências determina o momento do ciclo econômico, nele a “oposição entre valorização e desvalorização” se apresenta separada no tempo, como “fases distintas do processo de acumulação”, uma após a outra, não apenas como “momentos simultaneamente presentes na ‘lei’”, justapostos no espaço, uma ao lado da outra (GRESPAN, 1999, p. 225; MARX, 1983a, p. 286). A queda da taxa de lucro, expressão do desenvolvimento da produtividade, retarda a formação de novos capitais e produz a depreciação dos capitais existentes (MARX, 1983a, p. 278 e 286). A queda da taxa de lucro é, portanto, o fundamento da crise, que “implica que o capital seja posto na ociosidade e mesmo parcialmente destruído, até o montante do valor de todo capital adicional ∆C ou de, pelo menos, parte dele” (Ibid., p. 291, grifo meu). Para que o capital adicional ∆C possa funcionar como capital, valorizar-se, é necessário deixar parte na ociosidade, parcialmente desocupado, depreciando-se27 (Ibid., p. 291). O desenvolvimento ilimitado das forças produtivas, meio imanente do capital acelerar o processo de acumulação, o faz chocar-se com os seus limites, as suas condições específicas de valorização. O desenvolvimento da produtividade, expresso na queda da taxa de lucro, gera “uma lei que em certo ponto se opõe frontalmente a esse desenvolvimento e por isso tem de ser constantemente superada por meio de crises” (Ibid., p. 296), que funcionam como “soluções momentâneas e violentas das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito” (Ibid., p. 286), capacitando o capital a retomar novamente o processo de acumulação. Se no momento de expansão do capital, a crise aparece como “fim” do processo de acumulação, “inversamente” ela se torna a seguir “meio” para a retomada do processo (GRESPAN, 1999, p. 235), ou seja, os “efeitos se tornam, por suas vez, causas” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 235), “perde-se a rigidez da determinação de cada 27

Cabe à luta da concorrência decidir qual parte do capital global se desvalorizará: “Enquanto tudo vai bem, gera a concorrência, conforme se patenteou no caso do nivelamento da taxa geral de lucro, a irmandade prática da classe capitalista, que então reparte entre os membros, na proporção da magnitude da cota empregada por cada um, o esbulho coletivamente efetuado. Mas, quando não se trata mais de repartir os lucros e sim as perdas, procura cada um reduzir ao máximo possível a parte que tem nelas, transferindo-a para os outros. As perdas são inevitáveis para a classe. Quanto cada um terá de suportar delas, até onde terá de nelas participar, é problema a ser resolvido pela força e pela astúcia, transformando-se a concorrência em luta entre os irmãos inimigos. Positiva-se então a contradição entre o interesse de cada capitalista e o da classe, do mesmo modo que antes, por meio da concorrência, se impunha a identidade desses interesses” (MARX, 1983a, p. 290-1, grifos meus).

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um como efeito ou causa, fim ou meio” (GRESPAN, 1999, p. 235). Em cada momento do ciclo alterna-se o predomínio da tendência e o da tendência oposta: “uma delas tem de ficar latente para que a outra se manifeste, e depois tem de se manifestar, fazendo a outra passar à mera latência” (Ibid., p. 238). A passagem de cada momento do ciclo ao seu oposto não é apenas “possível”, mas “necessária”, pois cada um deles desenvolve em si as potencialidades do outro (Ibid., p. 239). “Mais do que a referência negativa ao outro, deve haver em ambos também uma referência positiva” (Ibid., p. 248). Por isso, nenhum dos momentos pode se absolutizar, pois cada um é determinado pelo oposto. Eles são opostos porque, por um lado, “eles se excluem reciprocamente”, “cada um predomina a seu tempo sobre o outro”, mas, por outro lado, “eles se incluem um no outro”, “na fase de valorização se preparam as condições de desvalorização e vice-versa” (Ibid., p. 239). Mas como cada momento nega a si próprio no seu movimento, cada um deles é também uma contradição em si. A apresentação desenvolvida até o momento poderia nos levar ao seguinte resultado: se o capital é o que comporta em si a sua negação, se, nas suas leis, tendências e contratendências se determinam reciprocamente, então teríamos como resultado que “o simples da lei é a infinitude” (HEGEL, 2003, p. 128), pois o infinito é justamente aquilo que porta em si a sua negação. Mas, assim como não é possível afirmar o colapso do capitalismo, pois significaria absolutizar a necessidade da tendência sobre a contratendência, também não é possível afirmar a sua infinitude, pois “o que ocorre, ocorre necessariamente; mas não numa ordem predeterminada28” (GRESPAN, 1999, p. 271). No entanto, para o capital nenhuma dessas alternativas está posta. Paralelamente ao processo efetivo de acumulação, desenvolve em magnitude sempre maior a acumulação de capital-dinheiro emprestável. A manifestação da crise implica, por um lado, que uma parte do capital fique ocioso, por outro lado, que um dos “irmãos inimigos” está em condições de se opor aos demais como em nenhuma outra fase do ciclo econômico. Em geral, essa condição é evanescente, pois está subordinada à posição efetiva da fase. Esse 28

Nem através da “dimensão da consciência possível dos agentes, nem através da dimensão estritamente sistêmica em que as ‘leis’ operam à revelia da consciência deles, é possível demonstrar como inevitável a eternização do capitalismo, ou como inevitável o seu colapso, ou ainda como inevitáveis e regulares suas transições e transformações. O que acontecer será a realização de uma necessidade imanente ao capital; mas com isso não está predeterminado o que vai acontecer e tampouco a forma assumida por sua realização no tempo” (GRESPAN, 1999, p. 283). Cf. HEGEL, 2003, p. 543-4.

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“irmão” é o capital portador de juros, forma capitalista do usurário, e como irmão mais velho possui potencialidades para dominar os demais, que são desenvolvidas pelas próprias relações capitalistas. Essas potencialidades tornam-se ato quando determinadas condições estão postas.

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Capítulo 3 A RELAÇÃO IMEDIATA DO CAPITAL CONSIGO MESMO Este capítulo tem como objetivo apresentar: 1. a relação entre o capital portador de juros e o capital industrial, “forma fundamental da relação do capital”; 2. a passagem da possibilidade efetiva da posição da dominance financière à sua posição objetiva; 3. a posição das “barreiras sociais” à valorização do capital; 4. a dissolução dessas barreiras e a relação entre a dominance financière e os modos de extração da mais-valia.

3.1 – A expansão do capital portador de juros: a dominação pressuposta

3.1.1 – A relação entre o capital produtivo e o capital portador de juros (Das zinstragende Kapital) O dinheiro possui o valor-de-uso geral de representar (vorstellen) efetivamente o valor de todas as mercadorias, e por isso torna-se a “expressão autônoma do valor”. Ao acionar o processo de produção capitalista, o dinheiro adquire um outro valor-de-uso, isto é, “o de funcionar como capital (als Kapital zu fungieren). Seu valor-de-uso consiste agora justamente no lucro que produz, uma vez transformado em capital”. Nessa qualidade de “capital potencial (mögliches Kapital)”, “meio de produzir lucro” (Mittel zur Produktion des Profts), o dinheiro se torna mercadoria, cujo valor-de-uso é produzir lucro, capacitar os capitalistas a se apropriar de trabalho alheio, mais-valia, trabalho não-pago (MARX, 1983b, p. 392). Enquanto mercadoria, o empréstimo é a forma particular de circulação do capital. O proprietário lança-o na circulação, faz dele “mercadoria capital (Ware as Kapital)” não só para si, mas também para outrem. O dinheiro é cedido ao capitalista ativo (fungierenden Kapitalisten), responsável por torná-lo capital efetivo (wirkliches Kapital), empregando-o na compra de meios de produção e força de trabalho ou mercadorias (no caso do capital mercantil). Esse dinheiro adiantado (vorgeschossen), exteriorizado (en-

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täusserte) sob a “forma de empréstimo (Form des Verleihens)”, precisa retornar com juros, sob a “forma de reembolso (Form des Rückzahlung)”. O juro é a designação especial de parte do lucro, que o capitalista ativo, em vez de embolsar, entrega ao proprietário de capital (Ibid., p. 392-3 e 397-8). A relação entre o prestamista (Verleiher) e o capitalista industrial (industriellen Kapitalisten), sob a ótica do ciclo do capital-dinheiro, se apresenta da seguinte forma: FT D–D–M 1° ato: Mera transferência

... P … M’ – D’ – D’ Mp1

D + ∆D Capital efetiva duplo retorno

2° ato: Movimento realizado pelo capitalista ativo

3° ato: Juro retorna ao prestamista

1° ato (Akt): O prestamista cede o seu capital, transfere para o capitalista industrial sem receber equivalente, pois na relação não se transfere propriedade. A cessão não constitui ato do processo cíclico efetivo do capital, não exprime metamorfose alguma; 2° ato: O capitalista industrial efetiva o ciclo; 3° ato: O retorno do dinheiro ao prestamista completa o primeiro ato, a cessão do capital (Ibid., p. 401). Esse pagamento do juro não corresponde a nenhuma “justiça natural”, é apenas uma necessidade interna do capitalismo, e não formas jurídicas que se autodeterminam com conteúdo próprio. Estas se limitam a expressar o modo de produção. “Esse conteúdo é justo quando corresponde, é adequado ao modo de produção. Injusto quando o contraria” (Ibid., p. 393). Essa relação manifesta que: 1. O adiantamento de capital se apresenta como uma “relação do capital consigo mesmo”, como “dinheiro que gera dinheiro (Geld heckendes Geld)” sem movimento mediador (Ibid., p. 399), tudo se passa como se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma dinheiro. (...) a cessão e o retorno resultam exclusivamente de uma transação jurídica entre o proprietário do capital e a outra pessoa. 1

Meios de produção.

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Apenas cessão e restituição. Desaparece tudo o que se passa de permeio. (Ibid., p. 403-4).

A transação jurídica pressupõe que o dinheiro seja realmente aplicado como capital, voltando ao seu ponto de partida acrescido de mais-valor. “Se o prestatário não desembolsa o dinheiro como capital, o problema é seu” (Ibid., p. 404); 2. O prazo de retorno não parece decorrer do tempo de reprodução do capital, mas de mera convenção entre o prestamista e o prestatário (Ibid., p. 403). A oposição da riqueza material em relação ao trabalho, na condição de trabalho assalariado, já se expressa, dissociada do processo de produção, no direito de propriedade. Dinheiro e mercadoria revelam-se, em si mesmos, capital “latente, potencial (latent, potentiell)”, ao darem direito ao ato de se apropriar de trabalho alheio (fremder Arbeit)2 (Ibid., p. 411, grifos meus). Vimos que o juro é “designação especial de parte do lucro”, determinação meramente quantitativa. O lucro bruto (Bruttoprofit) se divide em duas partes, que remuneram o capitalista ativo (aktiven Kapitalisten) e o capitalista financeiro (Geldkapitalisten). O juro surge, portanto, da separação do capitalista em dois, é somente a concorrência entre essas duas espécies (Sorten) de capitalista que gera a taxa de juro (Ibid., p. 428 e 430). A divisão do lucro bruto em juro (Zins) e ganho do empresário (Unternehmergewinns) torna-se necessária independentemente do fato de se estar trabalhando com capital próprio ou não. Durante o tempo em que o dinheiro funciona como capital ele não está disponível nem para o capitalista ativo nem para o prestamista, gerando lucro e juro. Vimos também que o juro se impõe, não se limitando a ser uma porção quantitativa do lucro bruto, é grandeza determinada autonomamente, sem relação com a produção. Essa forma autônoma da divisão quantitativa gera uma divisão qualitativa (Ibid., p. 433).

2

O juro, contudo, não está em “oposição direta (direktem Gegensatz)” ao trabalho, pelo contrário, apresenta-se como uma “simples relação entre dois capitalistas (Bloβes Verhältnis eines Kapitalisten zum andern)”, e não entre capitalista e trabalhador (MARX, 1983b, p. 440).

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Qualitativamente, o juro flui para o prestamista por este ser o detentor de um título de propriedade fora do processo produtivo; para o capitalista ativo, o lucro flui porque opera o capital, coloca em movimento, independente de ser proprietário dele (Ibid., p. 431). O juro ao se impor, autonomamente, faz com que o ganho do empresário se torne excedente do lucro bruto e sua grandeza passa a depender da “astúcia e diligência (Schlanheit und Betribsamkeit)” do capitalista em explorar a força de trabalho (Ibid., p. 431). Basicamente, isso ocorre do seguinte modo: 1. Se o lucro bruto é igual ao lucro médio, então o ganho do empresário é função da taxa de juros; 2. Se o lucro bruto é diferente do lucro médio, então o ganho do empresário será determinado por “fatores conjunturais (Konjunkturen bestimmt)”, que temporariamente fazem a taxa de lucro de um ramo particular de produção desviar-se da taxa média de lucro, como: a) Fora do processo produtivo: possibilidade de comprar ou vender acima ou abaixo do preço de produção, apropriando-se de parte maior ou menor da mais-valia global; b) No processo produtivo: métodos com produtividade acima da média, economia de capital constante, maior exploração da força de trabalho, etc. (Ibid., 431). A passagem da determinação quantitativa para a qualitativa se manifesta efetivamente com o seguinte conteúdo: Quadro 2: Passagem da determinação quantitativa à determinação qualitativa da divisão entre juro e lucro (ganho do empresário) Determinação quantitativa Juro Lucro Parte do lucro bruto que se constitui a priori Restante do lucro bruto sem relação com a produção A forma autônoma da divisão quantitativa do juro gera a divisão qualitativa Determinação Qualitativa Juro Lucro Fruto da mera propriedade do capital [“capi- Resultado da função de não-proprietário do tal por excelência” (Ibid., p. 434)] capitalista ativo, que se esforça, “trabalha” para explorar o trabalho produtivo

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Resultado: “A forma autônoma das duas partes em que se divide o lucro e portanto a maisvalia faz esquecer que ambas são meras frações desta e que repartir a mais-valia nada pode alterar na natureza, na origem e nas condições de sua existência” (Ibid., p. 438). Essa “forma antinômica (gegensätzliche Form)” em que se divide o lucro e o juro possui também as seguintes determinações: Taxa de lucro

Taxa de juro

1. Na concorrência, “os desvios que as taxas particulares de lucro têm da taxa geral ou média são corrigidos por se nivelarem assim os preços médios das mercadorias aos preços de produção” (Ibid., p. 423);

1. A existência histórica anterior do capital usurário favorece a consolidação da taxa de juro3 (Ibid., p. 424);

2. “As taxas particulares de lucro nos diferentes ramos de produção são mais ou menos incertas”; “o lucro médio não se configura em fato imediato dado, mas em resultado final” (Ibid., p. 424); 3. Não há uniformidade nas taxas de lucro, estas, “ao aparecerem, o que se revela não é a uniformidade e sim a diversidade delas. A própria taxa geral de lucro aparece apenas como o limite mínimo do lucro, e não como figura empírica, logo visível, da taxa efetiva de lucro” (Ibid., p. 423). Isto porque “a taxa de lucro, ao contrário [da taxa de juro – EN], pode diferir até dentro do mesmo ramo para mercadorias com preços iguais, segundo as condições diversas em que os vários capitais produzem a mesma mercadoria, pois a taxa de luro de cada capitalista não é determinada pelo preço de mercado da mercadoria, mas pela diferença entre preço de mercado e preço de custo” (Ibid., p. 425).

2. O mercado mundial possui influência imediata muito maior na fixação da taxa de juro, sem depender das condições de produção de um país, comparado com a influência que tem sobre a taxa de lucro (Ibid., p. 424); 3. O capitalista prestamista oferece uma mercadoria homogênea: dinheiro. “Desvanecem-se todas as figuras particulares de produção ou circulação em que se aplica. Passa o capital a existir na figura que não se diferencia, do valor autônomo, sempre igual a si mesmo – o dinheiro. Anula-se a concorrência entre os diversos ramos, procurando todos conjuntamente tomar dinheiro emprestado, e o capital confronta-os todos na forma em que não lhe importa a maneira como vai ser empregado” (Ibid., p. 424-5); 4. A oscilação no preço é feita de maneira uniforme para todos. Contrastando com a taxa geral de lucro, “imagem nebulosa, evanescente”, a taxa de juro “oscila de maneira uniforme para todos os prestatários, confrontando-os como taxa fixa, dada” (Ibid., p. 425); 5. A taxa de juro é imediatamente a taxa geral de juro, “determinada diretamente pela relação entre oferta e procura” (Ibid., p. 425), não possuindo um parâmetro, um preço de produção, no qual o preço de mercado pode oscilar;

3

“A luta de classes do mundo antigo desenrola-se principalmente sob uma luta entre credor e devedor, e, em Roma, leva à ruína o devedor plebeu, convertido em escravo” (MARX, 1999a, p. 162, grifo meu).

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6. A oferta é feita em bloco4, uma massa uniforme de capital sob a forma de dinheiro se confronta com o capital operante. Na procura (Nachfrage), “o empuxo de uma classe se confronta com o capital de empréstimo, que, na oferta (Angebot), se apresenta em bloco” (Ibid., p. 425).

3.1.2 – Taxa de juros e ciclo de negócios As oscilações na taxa de juros, provocadas pela oferta e demanda de capital-dinheiro, são importantes para caracterizar os momentos do ciclo econômico: estabilidade, animação crescente, prosperidade, superprodução, crise e estagnação. Em geral, taxa de juros e ciclo dos negócios se relacionam da seguinte forma: Estabilidade e animação: a taxa de juros é baixa em razão do volume de capitaldinheiro ocioso em poder dos bancos e da pequena procura por parte dos industriais e comerciantes. O crédito é essencialmente comercial nesse momento. A correlação de forças é favorável ao capitalista ativo. Apesar dos salários crescentes, o dinheiro reflui rapidamente para os capitalistas ativos, diminuindo a necessidade de novos empréstimos. O dinheiro exerce preponderantemente a função de meio de compra; Prosperidade: O crédito comercial alcança uma extensão muito grande, que repousa na base sólida da produção expandida e dos retornos fáceis. O juro continua baixo, embora acima do nível mínimo. O aspecto positivo desse momento é que ele é o único em que a baixa taxa de juros e, por conseguinte, a abundância relativa de capital de empréstimo (relative Reichlichkeit des verleihbaren Kapitals) coincidem com a expansão efetiva do capital industrial (Ibid., p. 561); Superprodução: aparece em cena um número considerável de embusteiros que trabalham sem capital de reserva, sem qualquer capital, operando totalmente na base do crédito 4

Efetivamente essa oferta em bloco se manifesta com o seguinte conteúdo: “com o desenvolvimento da indústria moderna, o capital-dinheiro, ao aparecer no mercado, é cada vez menos representado pelo capital isolado, pelo dono desta ou daquela função do capital existente no mercado, e cada vez mais constitui massa concentrada, organizada que, distinguindo-se totalmente da produção real, encontra-se sob controle dos banqueiros que representam o capital social” (MARX, 1983b, p. 425).

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monetário. Acresce aí a grande expansão de capital fixo em todas as formas e a fundação em massa de novas e vastas empresas. O juro chega ao seu nível médio (Ibid., 561);

Crise (Krise) e estagnação: no momento em que a produção volta a atingir o seu máximo, irrompe uma nova crise, quando o crédito cessa de súbito. Os juros atingem o seu máximo. O dinheiro é procurado essencialmente pelos capitalistas para exercer a função de meio de pagamento, saldar dívida passadas. A correlação de forças é favorável para o capitalista financeiro, que se aproveita do fato do capitalista ativo precisar de dinheiro a qualquer custo. Estancam-se os pagamentos, paralisase o processo de reprodução, resultando em desemprego da força de trabalho5 (Ibid., p. 518), capitais ociosos e mercadorias invendáveis.

3.1.3 – A oposição entre a circulação de dinheiro e a circulação de dinheiro como capital Do ciclo de negócios depreende-se que a circulação de dinheiro está cindida em duas partes opostas: 1. “O meio de circulação exerce a função de moeda (dinheiro), quando é meio para dispêndio de renda (Verausgabung von Revenue)”; 2. “o dinheiro é capital quando é meio de transferência de capital (Übertragung von Kapital), seja como meio de compra (meio de circulação), seja como meio de pagamento” (Ibid., p. 512). Embora o dinheiro funcione mais como meio de circulação quando é despendido como renda, e mais como meio de pagamento quando é capital, meio de circulação e meio de pagamento são diferentes funções do próprio dinheiro, sendo comum a ambas as formas de como o dinheiro é despendido, isto é, renda e capital (Geldform der Revenue und Geldform des Kapitals) (Ibid., p. 512-4).

5

Para nós, só o desemprego em massa da força de trabalho não constitui ainda uma crise, sua posição será um dos motivos do surgimento do Estado social.

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Quadro 3: Adiantamento de capital (Vorschuß von Kapital) e adiantamento de dinheiro (Vorschuß von Geld)6 Ocorre adiantamento de capital quando o banco concede ao cliente empresário empréstimo baseado simplesmente no crédito pessoal, sem que o devedor ofereça garantias imediatas. O cliente recebe adiantamento de um valor determinado não só na forma dinheiro, mas também na forma capital-dinheiro. Quando o cliente recebe dinheiro adiantado, sob a condição de devolução, em troca de título é porque o industrial ou o comerciante já possui capital, sob a própria forma de título, mas precisa de dinheiro. Nesse caso há adiantamento de dinheiro, não de capital. Quando o banco fornece dinheiro, mediante desconto de título, desaparece até a forma adiantamento. Há apenas uma troca de posição: o cliente que possuía título passa a ter dinheiro e o banco que possuía dinheiro passa a ter título. Não há adiantamento nem de capital nem de dinheiro.

Nos períodos de prosperidade, os meios de pagamentos se expandem, mas, simultaneamente, expandem-se os meios de circulação despendidos como renda em conseqüência do aumento da massa salarial. A expansão dos meios de circulação e meios de pagamento é limitada pela maior velocidade de circulação de ambos. No caso dos meios de circulação, isso faz como que o dinheiro reflua mais facilmente para os capitalistas, diminuindo a necessidade de criação de novos meios de pagamento. Nessa fase predomina a procura de meios de circulação para dispêndio de renda, e a procura por crédito é satisfeita como facilidade (Ibid., p. 516-7 e 520). Nos períodos de crise predomina a procura por meios de circulação entre os capitalistas, ou seja, a procura por meios de circulação e meios de pagamento para transferência de capital (Ibid., p. 520). A massa de meios de circulação para dispêndio de renda se contrai em conseqüência da queda da massa salarial (Ibid., p. 518). Simultaneamente, todos abstêm de converter dinheiro em capital de empréstimo e retiram os meios de pagamento existentes (bilhetes de banco – Banknoten) da circulação, cada um procura guardá-los 6

Cf. MARX, 1983b, p. 495-6.

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para satisfazer as suas necessidades efetivas de pagamento7 (Ibid., p. 610). Procura-se tomar emprestado não para comprar, mas para pagar (Ibid., p. 529). A corrida violenta aos meios de pagamento cria a aparência de que se trata de crise de crédito e de dinheiro, já que a satisfação da procura por crédito é mais difícil. Essa dificuldade não é resultado do aumento da procura. As letras (Wechsel) (promessas de pagamento) não podem ser conversíveis em dinheiro porque representam (repräsentieren), na maioria dos casos, compras e vendas reais (wirkliche), cuja expansão ultrapassa de longe as carências da sociedade (gesellschaftliche Bedürfnis), o que constitui em última análise a razão de toda crise (Ibid., p. 563).

3.1.4 – Concentração de capital de empréstimo A atuação dos bancos consiste em reunir grandes massas (Massen) de capital-dinheiro emprestável (verleihbare Geldkapital). Substituindo o prestamista isolado, os bancos representam (repräsentieren) todos eles ao se confrontar com os capitalistas industriais e comerciais, tornam-se “administradores gerais do capital-dinheiro” (Ibid., p. 463). Em geral, seu lucro consiste em tomar emprestado a juro mais baixo do que aquele que cobra ao emprestar (Ibid., p. 463). O capital bancário (Bankkapitals) consiste em dinheiro em espécie e títulos de crédito8 provenientes de: Reservas que todo comerciante ou industrial detém como fundo de reserva ou recebe em pagamento (Ibid., p. 464); Depósitos dos capitalistas financeiros (Geldkapitalisten) individuais que lhes transferem a tarefa de emprestá-los (Ibid. p. 464); Poupança de todas as classes sociais (Ibid., p534). 7

“(...) cada um depende do outro para receber esses meios de pagamento e ninguém sabe se o outro é capaz de pagar no dia do vencimento, surge terrível luta para conquistar os meios de pagamento existentes no mercado, os bilhetes de banco (Banknoten). Todos entesouram a quantidade deles que podem obter, e assim os bilhetes desaparecem da circulação no dia em que mais se precisa deles” (MARX, 1983b, p. 606). 8 “O capital bancário abrange 1. dinheiro de contado – ouro e bilhetes [dinheiro de crédito (Kreditgeld) – EN], e 2. títulos. Estes podem ser classificados em dois grupos: papéis comerciais, letras que se vencem a prazos diversos, constituindo o desconto delas o negócio propriamente dito dos banqueiros; e papéis lançados ao público, como apólices, obrigações do tesouro, ações de toda espécie, enfim, papéis que rendem juros e se distinguem essencialmente das letras comerciais. As hipotecas podem ser incluídas no segundo grupo” (Ibid., p. 534).

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Em nada altera se o banco atua com dinheiro próprio ou alheio. Toda renda monetária que compõe o capital bancário transforma-se em capital portador de juros (zinstragende Kapital), derive ela ou não de um capital (Ibid., p. 535). O fluxo de capital-dinheiro para os bancos recebe o impulso do desenvolvimento do crédito, necessário para a reprodução capitalista pelos seguintes motivos: Freia a queda na taxa de lucro: uma vez que o lucro aí assume a pura forma de juro, tais empresas ainda são possíveis quando rendem juros apenas, e esta é uma das causas que freiam a queda da taxa de lucro, pois essas empresas, onde é enorme o capital constante em relação ao variável, não entram necessariamente no nivelamento da taxa de lucro9 (Ibid., p. 506);

Reduz os custos de circulação, o que é feito do seguinte modo: a) substituindo a moeda metálica e a moeda-papel na função meio de circulação por títulos de crédito; b) evitando o pagamento da maior parte dos títulos mediante compensação; c) substituindo parte da moeda metálica por dinheiro de crédito, ou seja, moeda-papel e bilhetes de banco; e d) acelerando o movimento dos meios de circulação10 (Ibid., p. 503-4). Põe em circulação a própria riqueza social concentrada nos bancos. Os bancos podem se aproveitar do aumento da acumulação de capital de empréstimo, resultado da renda proveniente da acumulação real: toda renda, destine-se a renda ou a acumulação, é parte do valor do capital-mercadoria convertida em dinheiro e, por isso, expressão e resultado da acumulação real, embora não seja o próprio capital produtivo (Ibid., p. 579).

9

Cf. Quadro 1. O desenvolvimento do crédito se por um lado permite acelerar a velocidade da circulação das mercadorias, por outro, permite o prolongamento do intervalo entre os dois atos da circulação de mercadorias, compra e venda, servindo de base para a especulação (Ibid., p. 504).

10

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Toda renda, desde que consumida pouco a pouco, pode tornar-se capital-dinheiro de empréstimo: renda dos capitalistas, renda fundiária, salários nas formas superiores, etc. (Ibid., p. 579). Esse é um dos motivos do capital de empréstimo ser sempre maior que capital propriamente dito (capital ativo), o que significa outra forma de benefício para os bancos. O capital de empréstimo é maior porque: 1. os rendimentos pessoais dos capitalistas e de parte dos assalariados podem virar capital de empréstimo (Ibid., p. 579, 581 e 583); 2. libera-se dinheiro quando se economiza investimento com o barateamento do capital mobilizado na produção (Ibid., p. 581); 3. libera-se dinheiro quando há interrupção dos negócios, sobretudo no comércio, ou é preciso acumular mais para viabilizar investimentos maiores (Ibid., p. 582); e 4. os capitalistas ativos podem se transformar em meros capitalistas financeiros (Ibid., p. 582). Essa massa de capital-dinheiro emprestável permite que o capitalista seja poupado de maiores riscos. O capital não é mero fruto da poupança pessoal do capitalista. O que os capitalistas ganham se transforma em capital-dinheiro emprestável, mas todo o dinheiro que eles investem assume a forma não de dinheiro que os capitalistas adiantam, mas de dinheiro que tomam emprestado. É o dinheiro do público em geral que é posto a serviço dos capitalistas pelos bancos (Ibid., p. 581 e 583-4). A acumulação de capital de empréstimo é apenas “dinheiro que se amontoa como dinheiro que se pode emprestar”, e “difere muito da conversão real em capital”. A acumulação de capital-dinheiro emprestável pode “resultar” da acumulação real ou de fatores que acompanham mas dela divergem por completo, ou ainda “resultar mesmo de interrupções da acumulação real” – como é o caso, após as crises, do capital-dinheiro ocioso em poder dos bancos. É a diferença entre a transformação de dinheiro em capital de empréstimo e a efetiva transformação de dinheiro em capital que, por um lado, impele o processo de produção capitalista a chocar-se periodicamente com os seus limites (Ibid., p. 583, grifo meu); e, por outro, permite a centralização de uma massa uniforme de capital sob a forma dinheiro que fortalece o capital portador de juros para se confrontar com o capital ativo (Ibid., p. 425).

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3.1.5 – Expansão de capital fictício e suas formas O capital fictício (fiktives Kapital) pode se expandir através das quatro formas de transmissão da riqueza produtiva para a financeira: o capital-dinheiro de empréstimo, os depósitos, as ações e os títulos da dívida pública. O movimento autônomo dessas quatro formas são quatro modos de ser da “figura autônoma” do capital portador de juros na posição independente do juro perante o lucro. A “finalidade absoluta” do modo de produção capitalista, a valorização do capital, determina que o impulso do movimento é o valor-de-troca e não o valor-de-uso. Esse valor-de-troca pode se realizar através de um “mero representante de dinheiro”, ou seja, sob a “forma de um direito sobre o dinheiro a receber”. O dinheiro funciona como meio de pagamento, serve como “meio ideal de compra”, existe só na promessa de pagamento futuro, e só na data do pagamento o dinheiro entra realmente em circulação (MARX, 1999a, p. 162-3, grifo meu). A existência de meios de pagamento permite, por um lado, que o capitalista ativo realize compras (Mp11 – M) sem vendas (M – D) e reinicie o ciclo do capital sem a realização efetiva das mercadorias. Quanto maior a facilidade de obter adiantamentos sobre mercadorias não vendidas, mais a produção pode se expandir de maneira desmedida, sem relação com as reais possibilidades de realização da produção. Por outro lado, obtendo meios de pagamento, o capitalista não precisa eventualmente liquidar as suas mercadorias abaixo do preço (MARX, 1983b, p. 469 e 494). Os meios de pagamento, na medida que permitem a continuidade do ciclo do capital, funcionam como capital-dinheiro, que é direito de propriedade sobre trabalho alheio. A acumulação de meios de pagamento representa a ampliação do processo real de reprodução, mas os meios de pagamento já existentes podem ser negociados por si mesmos, como se fossem mercadorias, circulando ilusoriamente (illusorich) como valor-capital, que varia sem depender do valor do capital real que representa como título jurídico (Ibid., p. 549).

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Meios de pagamento.

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O capital-dinheiro de empréstimo é formado a partir dos depósitos (Depositen) “feitos em dinheiro, em ouro, ou bilhetes, ou em cheques”, que se encontram de fato nas mãos dos industriais e comerciais, em virtude dos descontos das letras e dos adiantamentos. No entanto, além de funcionar como capital portador de juros, em vez de ficar no caixa dos bancos, os depósitos desempenham uma segunda função: movimentam-se apenas contabilmente, quando os saldos dos depositantes se compensam de maneira recíproca com os cheques sobre os respectivos depósitos e se fazem os correspondentes lançamentos nas contas (Ibid., p. 540-1).

Para isso, tanto faz se os depósitos estão no mesmo banco, ocorrendo só a compensação entre as contas, ou se estão em bancos diversos, só compensando os saldos (Ibid., p. 541). Nessas operações de compensação, os depósitos funcionam como capital para os banqueiros, desde que sejam emprestados (Ibid., p. 541). Só que a “maior parte deste ‘capital-dinheiro’ é puramente fictícia” (Ibid., p. 541), pois a mesma peça de dinheiro (Geldstück) pode efetuar diferentes compras – de acordo com a velocidade de circulação – e diferentes empréstimos12. Com exceção do fundo de reserva (Reservefonds), “todos os depósitos, embora sejam créditos contra o banqueiro, não tem existência efetiva” (Ibid., p. 541). No entanto, mesmo o fundo de reserva também duplica a sua existência. Seu montante é, por um lado, “o capital do banqueiro à disposição do Banco e ao mesmo tempo o fundo de reserva para os próprios depósitos13” (Ibid., p. 545). Diferentemente das letras, as ações (Aktien) representam (vorstellen) direitos sobre a mais-valia futura, assim como os títulos da dívida pública, que são direitos sobre a arrecadação futura do Estado14 (Ibid., p. 535 e 537). As ações representam o capital que elas põem em movimento. Trata-se de representação de capital real enquanto ele existir e funcionar, mas esse capital não existe duas vezes, isto é, como capital investido e ações. Por isso, efetivamente, elas são apenas direito à parte da mais-valia a ser realizada 12

“Os banqueiros entre si pagam os cheques recíprocos sobre depósitos que na realidade não existem, fazendo as deduções correspondentes nos saldos contábeis” (Ibid., p. 541). 13 “No sistema de crédito, tudo se duplica e triplica e se converte em pura fantasmagoria, e o mesmo se aplica no ‘fundo de reserva’ onde se esperava finalmente encontrar algo sólido (Solides)” (Ibid., p. 543). 14 Essa dívida estatal é dita “dívida pública” porque “o público é intitulado devedor dela e deve pagá-la com suas contribuições tributárias. Mas as instituições capitalistas, que são as principais detentoras de títulos do estado, além de ganhar com a intermediação desses títulos, também se beneficiam do fato de que tanto detentores como não-detentores de títulos pagam com seus tributos os juros dessa dívida, sendo que normalmente é a massa dos que menos têm que mais paga” (LETÍZIA, 2005a, p. 16).

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(MARX, 1983b, p. 537). O desenvolvimento do capital por ações transforma o “capitalista realmente ativo” em “mero dirigente, administrador de capital alheio”, e os proprietários de capital em “puros proprietários, simples capitalistas financeiros” (Ibid., p. 505). Os títulos da dívida pública são capitais que já não existem mais, pois já foram gastos pelo Estado. O credor adquire um título de dívida contra o Estado que dá direito a participar em suas receitas futuras, tomar para si certas quantias do montante de tributos. O credor não pode exigir que o devedor lhe restitua o empréstimo, a recuperação só é possível por meio da venda do título. O título da dívida pública é capital puramente fictício, mas a sua “aparência de capital” só se desfaz quando, eventualmente, os títulos de crédito se tornam invendáveis (Ibid., p. 535). O “movimento autônomo” do valor dos títulos e das ações dá a aparência (Schein) de que constituem “capital efetivo (wirkliches Kapital)”. “Convertem-se em mercadorias, com preço que varia e se fixa segundo leis peculiares” (Ibid., p. 537). O “valor de mercado (Markwert)” é determinado: a) pelo montante e segurança dos rendimentos proporcionados; b) pela taxa de juros, com o preço variando na sua razão inversa, isso porque são tratados como capitais que se autovalorizam, como se fossem capitais portadores de juros; e c) pelo rendimento esperado, o que revela o seu conteúdo especulativo (spekulativ) (Ibid., p. 537-8). Nos momentos de crise, o que acontece com o capital fictício, assim como o capitalmercadoria, é a perda da capacidade de “representar capital-dinheiro potencial” (Ibid., p. 566). No caso dos títulos da dívida pública e das ações, os preços sofrem uma dupla pressão por baixa: 1o porque o juro sobe; e 2o porque são lançados em massa no mercado para se transformarem em dinheiro. No caso das ações, a tendência à baixa de seus preços é reforçada por motivo especulativo: as perturbações do processo de reprodução causam uma diminuição da confiança no desempenho futuro do capital ativo individual (Ibid., p. 538). A especulação mostra que, se não existe “obstáculo positivo” à aplicação do capital excedente, “há obstáculos em virtude das leis de valorização do capital, em virtude dos limites dentro dos quais o capital pode valorizar-se na condição de capital” (Ibid., p.

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583). A violência dessa relação é exercida indiretamente sobre a classe trabalhadora: “ganhar e perder por meio das oscilações desses títulos” é “resultado da especulação, do jogo. Este, e não o trabalho, aparece na condição do modo original de adquirir capital, substituindo também a violência direta” (Ibid., p. 549); mas também, sobre a população geral, pois “essa gente”, os especuladores, “considera o dinheiro público propriedade sua e acredita possuir o direito à conversibilidade permanente das letras que descontam” (Ibid., p. 614). É obrigação do banco central15 redescontar de qualquer modo as letras apresentadas pelos grandes estabelecimentos.

3.1.6 – A determinidade qualitativa da expansão quantitativa do dinheiro de crédito: o Estado No sistema capitalista universaliza-se a existência da riqueza na “forma social” valorde-troca, suprimindo a produção que cria valores-de-uso destinados ao consumo imediato. “O crédito, forma social também da riqueza, expulsa o dinheiro, usurpando-lhe a posição”. Com o seu desenvolvimento, a produção capitalista empenha-se em “suprimir” a “barreira metálica (metallne Schranke)”, esse “limite” material ao movimento dela16. “A confiança no caráter social da produção dá à forma dinheiro dos produtos o aspecto de algo evanescente (Verschwindendes) e ideal (Ideales), de mera representação (bloße Vorstellung)17” (MARX, 1983b, p. 658-9, grifos meus). Através da função meio de pagamento, o dinheiro adquire “formas próprias de existência no domínio das grandes transações”, deixando a moeda de ouro e prata “relegadas 15

Marx (1983b, p. 621) refere-se somente ao Banco da Inglaterra, que na época possuía uma posição de “instituto semi-estatal (halbes Staatsinstitut)”. 16 “Quebrando a cabeça contra esse obstáculo” nos momentos de crise. Com o abalo do crédito impõe-se “efetiva e bruscamente converter em dinheiro, em ouro e prata, a riqueza real toda” (Ibid., p. 658-9). 17 O “vazio” encontrado pelo entendimento tem realidade efetiva nos meios de pagamento que não podem ser conversíveis em dinheiro em espécie, pois ultrapassam as carências da sociedade. “Se nada mais houvesse a fazer com o interior e o ser-concluído-junto com ele através do fenômeno, somente restaria ater-se ao fenômeno, isto é: tomar por verdadeiro algo que sabemos não ser verdadeiro [para preencher este vazio]. Um vazio que veio a ser, primeiro, com o esvaziamento das coisas objetivas, mas que sendo esvaziamento em si dever ser tomado com esvaziamento de todas as relações espirituais e diferenças da consciência como consciência. Para que haja algo nesse vazio total, que também se denomina sagrado, há que preenchê-lo, ao menos com devaneios: fenômenos que a própria consciência para si produz” (HEGEL, 2003, p. 117-8). Para esses papéis resta somente ater-se às suas “leis peculiares”, à sua autovalorização como capital portador de juros, até que “o negativo do objeto, ou o superar a si mesmo” (Ibid., p. 530) seja posto através da crise, mas, nesse caso, somente para pôr posteriormente a mesma exteriorização, tal como se fosse uma consciência que sofresse da doença de Alzheimer.

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para o comércio a retalho”. O “dinheiro de crédito” surge da função do dinheiro como meio de pagamento, circula como certificado de dívidas relativas às mercadorias vendidas, com o objetivo de transferir a outros o pagamento delas (MARX, 1999a, p. 166, grifos meus). Emitir uma letra significa “transformar mercadoria numa forma de dinheiro de crédito”, do mesmo modo que descontar uma letra é “converter esse dinheiro de crédito em outro, o bilhete do banco” (MARX, 1983b, p. 493). A quantidade de letras e bilhetes que circulam efetivamente é determinada pela mesma “lei (Gesetz)” que “rege (herrscht)” a quantidade de dinheiro, isto é, “pelos preços das mercadorias e pelo número das transações, supondo-se dadas a velocidade da circulação [do dinheiro – EN] e a economia dos pagamentos” (Ibid., p. 599). O ouro é apenas uma “barreira metálica” que a produção capitalista empenha-se em “suprimir”. O funcionamento do crédito comercial manifesta que não é necessário a “interferência do dinheiro” propriamente dito. “Cada um dá crédito com uma mão e recebe-o com a outra”, e desse modo pode se dar a reprodução do capital (Ibid., p. 551). Nos momentos de crise, as letras deixam de circular, mas os bilhetes emitidos pelo Banco da Inglaterra não18. A “confiança” “inabalável” nos bilhetes explicita que a nação inteira, com toda a sua riqueza, está por trás do Banco da Inglaterra e desses símbolos de valor (Ibid., p. 621 e 638). Vimos que o surgimento da moeda decorre da função meio de circulação, tornando-se depois responsabilidade do Estado, com a invenção através do poder de seigneuriage. O surgimento do dinheiro de crédito decorre da relação entre credor e devedor, da função meio de pagamento, e, do mesmo modo, depois se torna responsabilidade do Estado (LETÍZIA, 2005a, p. 14). A origem do dinheiro de crédito oficial do Estado, a moeda de crédito, está nos seus gastos além de suas receitas fiscais, seguidos pela retenção do dinheiro emitido em excesso mediante a venda de títulos públicos. Esses títulos são dinheiro na função meio de 18

“(...) no momento da crise, pára por completo a circulação de letras; ninguém pode usar promessa de pagamento, pois todo mundo só quer pagamento de contado; só o bilhete de banco, pelo menos até agora na Inglaterra, mantém a capacidade de circular, pois a nação com toda a sua riqueza está atrás do Banco da Inglaterra” (MARX, 1983b, p. 621).

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pagamento, mas enquanto os meios de pagamento privados realizam compras antecipadas (Mp – M) que são sucedidas por vendas que pagam as compras (M – D), os meios de pagamento emitidos pelo Estado realizam compras sem receita (Mp – M) que não são sucedidas por vendas futuras do Estado, mas por vendas sem compras do próprio público (M – D – Mp), que reserva valor sob a forma de títulos19. A intervenção do Estado ocorre por meio de um banco oficial (banco central), não necessariamente estatal, que tem como função “fazer o último desconto (redesconto) dos títulos de crédito postos em circulação pelos capitalistas” (LETÍZIA, 2005a, p. 14). Essa nova forma de intervenção do Estado possui um duplo significado para a produção da vida material: por um lado, aumenta a força expansiva do capital através da capacidade de expansão ampliada do dinheiro de crédito sob a forma moeda-papel oficial; por outro lado, aumenta o poder do próprio Estado, pois da emissão da moeda de crédito decorre a administração de uma taxa de juro (taxa de redesconto), que regula as taxas de juros privadas, influindo nos preços das mercadorias – através do nível de atividade da economia real – e nos interesses dos credores e devedores (Ibid., p. 14). Esse duplo significado determina-se reciprocamente, pois a intervenção tem como único resultado “transferir direitos sobre valor real, gerado pelo trabalho, de um grupo social para outro” (Ibid., p. 14). No entanto, “moeda-papel (símbolo de valor)” e “moeda de crédito (símbolo de valorcapital)” relacionam-se contraditoriamente, pois a moeda de crédito se expande conforme o “ímpeto do capital, que acumula direitos sobre a produção real, mas também acumula direitos sobre produção não realizada” (Ibid., p. 17). Essa relação contraditória se desenvolve com a transformação do entesouramento em poupança remunerada. Tal transformação significa uma inversão que suprime a reserva de valor real para pôr “puros direitos sobre a riqueza social no momento do saque da poupança”, tais direitos não são definidos pela grandeza de dinheiro poupado, mas “pelo volume de dinheiro transformado em capital bancário, que cresce automaticamente por acumulação de juros compostos” (Ibid., p. 16), independentemente da criação de riqueza efetiva pelo capital ativo na produção, ou seja, essa inversão põe uma oposição entre direitos de poupadores

19

Cf. LETÍZIA, 2003, p. 35.

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sobre a riqueza da sociedade e a capacidade efetiva de criação de riqueza pela sociedade (Ibid., p. 16). Essa relação contraditória põe como negação determinada o papel-moeda, sem lastro metálico, em substituição à moeda-papel, no momento em que o Estado “se vê forçado a abandonar formalmente o compromisso de responder com ouro real por suas emissões de papel representativo de mercadorias fantasmagóricas” (Ibid., p. 17). Apesar da forma dinheiro papel-moeda20 receber o nome de moeda fiduciária, trata-se de moeda de curso forçado21 (Ibid., p. 17), pois a condição necessária para o fim do lastro metálico é a existência de uma “confluência de interesses” entre os capitalistas, principais acumuladores de moeda fiduciária, e o Estado22, motivada pela apropriação de parte da receita fiscal desviada para o serviço da dívida e pela sustentação da moeda fiduciária (LETÍZIA, 2003, p. 35). Amplia-se o poder do Estado de transferir riqueza social por meio da manipulação da moeda23, transformando a falsificação da moeda em regra de condução da política monetária (LETÍZIA, 2005a, p. 17). O poder aquisitivo da moeda circulante é definido pela disposição do Estado para endividar-se. A dívida pública “funciona como um falso lastro monetário, que não garante o 20

Trata-se da forma dinheiro mais desenvolvida, nela “aparece à luz do dia o que o ouro ocultava. Este nunca fizera outra coisa a não ser permitir que as mercadorias comparassem seus valores entre si, embora parecesse que só o ouro fosse capaz de medir-lhes o valor” (LETÍZIA, 2005a, p. 18). 21 A explicação para o uso do nome moeda fiduciária (do latim: fiducia = confiança) para a forma dinheiro papel-moeda, talvez possa ser dada através de Hegel: “Acredita-se expressar por meio do termo ‘isto’ algo perfeitamente determinado, mas não se vê que a linguagem, enquanto obra do entendimento, enuncia apenas o universal, salvo no caso do nome de um objeto individual; o nome individual, todavia, carece de sentido justamente porque não exprime o universal, e aparece como algo meramente posto [ein bloss Gesetztes], tão arbitrário quanto o são, pelas mesmas razões, os nomes próprios arbitrariamente escolhidos e que se pode dar ou alterar de modo igualmente arbitrário” (HEGEL, apud ARANTES, 1996, p. 388). No entanto, essa arbitrariedade existe na própria forma moeda: “O nome de uma coisa é extrínseco às suas propriedades. Nada sei de um homem por saber que se chama Jacó. Do mesmo modo, todo vestígio de relação de valor desaparece dos nomes das moedas libra, táler, franco, ducado etc.” (MARX, 1999a, p. 128). Mas, no caso da moeda fiduciária, a arbitrariedade existe na relação entre o Estado e a população em geral. A relação de confiança existe, só que restringida ao Estado e os capitalistas. 22 O surgimento da moeda metálica implicava na contradição direta entre o Estado e os mercadores. Por um lado, o Estado estava “interessado em manipular a moeda com maior liberdade possível”; por outro, os mercadores estavam “interessados em garantir o valor de seus ganhos em dinheiro, ligando-os firmemente ao metal físico” (LETÍZIA, 2003, p. 21). 23 Mais do que todas as outras, a forma dinheiro papel-moeda “introduz diferenças entre as classes sociais, quanto às possibilidades de defesa contra as manipulações monetárias abusivas do estado. Os capitalistas e os ricos em geral dispõem de variados meios de defesa contra desvalorizações rápidas da moeda, ao passo que os trabalhadores diretos e os pobres em geral precisam despender grande esforço organizativo para travar as difíceis lutas sociais necessárias à defesa de poder aquisitivo de seus salários” (LETÍZIA, 2005a, p. 17).

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poder aquisitivo da moeda, mas define um nível de preços arbitrário24”. Desse modo, embora “só parte dos gastos do Estado exija cobertura com a emissão de títulos, toda moeda emitida passa a funcionar como moeda de crédito a partir do momento em que a dívida pública é expressa em moeda fiduciária” (LETÍZIA, 2003, p. 36, grifos meus). Vimos que a dívida pública nunca é realmente paga pelo Estado. Os credores recebem valor transferido de tributos ou papel-moeda simplesmente emitido com menor poder aquisitivo. Mas a moeda de crédito é estabilizada pelo próprio desinteresse dos credores no pagamento da dívida pública, a qual pode crescer conforme os interesses do capital financeiro (Ibid., p. 36). Por isso, a “era da moeda de crédito é a era do capital financeiro” (Ibid. p. 36). A “dominance financière25” consiste no poder desse capital em “subordinar os investimentos a interesses não centrados na produção” (LETÍZIA, 2003, p. 36). A associação com o Estado confere ao capital financeiro uma capacidade de expansão autônoma em relação à produção, apoiada na apropriação de mais-valor via serviço da dívida pública, inflada ao ritmo dos juros compostos pagos pelo Estado.

3.2 – A posição da dominação do capital portador de juros Vimos que, ao contrário do capitalista ativo, o capitalista prestamista oferece uma mercadoria homogênea, em que se desvanece todas as diferenças entre preço de produção e preço de mercado: dinheiro. Vimos também que a oferta de capital-dinheiro é feita em bloco, ou seja, que uma massa uniforme de capital sob a forma dinheiro se confronta com a multiplicidade de capitais operantes, e que essa acumulação de capital-dinheiro é sempre maior que a acumulação de capital efetivo. Vimos que a verdade da lei geral da acumulação capitalista é a lei da queda tendencial da taxa de lucro. A queda da taxa de lucro, expressão do desenvolvimento da produtividade, retarda a formação de novos capitais e produz a depreciação dos capitais existen24

O padrão de medida é uma cesta de mercadorias que fornece um índice oficial que só indica a variação no poder aquisitivo, mas não o determina (LETÍZIA, 2003, p. 38). A variação do poder aquisitivo é controlada por meio da taxa de juros. 25 Cf. CHESNAIS, 1998b.

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tes, ou seja, a crise “implica que o capital seja posto na ociosidade e mesmo parcialmente destruído até o montante do valor de todo capital adicional ∆C ou de, pelo menos, parte dele” (MARX, 1983a, p. 278, 286 e 291, grifo meu). “A taxa de lucro é a força propulsora da produção capitalista, e só se produz o que se pode produzir com lucro” (Ibid., p. 297), portanto, o investimento do capital adicional ∆C na produção está condicionado à taxa de lucro. Vimos também que, no momento em que a produção atinge o seu máximo, irrompe uma crise e o crédito cessa de súbito. Nesse momento, o juro atinge o seu nível máximo, pois pouco importa que os lucros estejam em queda, o juro é fato imediato dado, é parte do lucro bruto que se constitui a priori, sem relação com a produção, como resultado da mera propriedade do capital. Nosso objetivo nesse item é reconstituir o movimento geral do capital que resultou na posição da dominance financière, não enquanto momento do ciclo dos negócios, mas como “configuration spécifique du capitalisme26”. A apresentação (Darstellung) desse movimento levará em consideração a intervenção do Estado, pois o desenvolvimento da apresentação no item anterior mostrou que essa intervenção é necessária para a valorização de algumas formas do capital portador de juros. Nosso objetivo específico é compreender como a posição da dominance financière não suprime a “forma fundamental da relação do capital”, que “domina a sociedade burguesa”, o “capital industrial27” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 493).

3.2.1 – Acumulação de capital-dinheiro e manifestação da lei da queda tendencial da taxa de lucro A possibilidade da posição da dominance financière foi se tornando possível à medida que se desenvolvia a acumulação de capital efetivo. No entanto, tratava-se de uma acumulação determinada, que surgiu de um acordo (Bretton Woods), que manifestava a hegemonia absoluta de um país, os EUA, na concorrência intercapitalista, e as necessidades herdadas da crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial para o financiamento da 26

Cf. CHESNAIS, 2004, p. 15. “(...) O capital industrial, que é a forma fundamental da relação do capital, domina a sociedade burguesa. Todas as demais formas parecem ser derivadas ou secundárias; derivadas como capital que recebe juros; secundárias, quando o capital ocupa uma função particular (integrante do processo de circulação), como capital comercial (...)” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 493, grifos meus).

27

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acumulação (CHESNAIS, 1996, p. 250). Era necessário dar uma nova forma ao sistema monetário internacional, que pudesse restabelecer o dinheiro mundial e a conversibilidade das moedas européias e que contivesse dispositivos de ajuste no balanço de pagamentos diferentes da época do padrão-ouro, que se apoiava na taxa de juros28. Pelo acordo, os países se comprometiam a manter as taxas de câmbio fixas. O dólar foi lastreado ao ouro (US$ 35 por onça) e as demais moedas tinham como lastro o dólar. Pequenas mudanças nas taxas podiam ser feitas, mas alterações acima de 10% deviam ser aprovadas por um fundo, o FMI. Pelo acordo também era permitido manter restrições às transferências de capital29. O acordo e a existência de autoridades estatais dotadas de instrumentos que permitiram controlar minimamente a criação de crédito asseguravam a relativa subordinação do capital portador de juros ao capital operante (CHESNAIS, 1996, p. 250). No entanto, a validade da forma estava condicionada a particularidade do momento: tratava-se do recomeço de um processo de acumulação. Para os EUA, um dos objetivos do acordo era reativar o comércio europeu, base da realização de parte das suas mercadorias, mas a barreira era restabelecer a conversibilidade das moedas européias. No entanto, junto com a massa de dólares, fluíam para a Europa e o Japão parte do seu capital produtivo, que internacionalizava suas atividades. Quando a barreira da conversibilidade foi superada, começaram a se manifestar os primeiros déficits da balança comercial dos EUA30. A posição plena do período de prosperidade significava a passagem para o período seguinte, era o começo das grandes especulações cambiais que atingiram primeiro a libra esterlina e depois a validade da própria forma do sistema monetário. Esses dólares formaram uma massa uniforme de capital-dinheiro que constituiu o mercado de eurodólares, que crescia à medida que a queda taxa de lucro se manifestava como tendência31. A sua vantagem estava na maior liberdade de movimento em relação às moedas locais, regulamentadas. As praças financeiras offshore manifestavam uma necessidade do capital por maior liberdade.

28

Cf. EICHENGREEN, 2000, p. 134 e 151. Cf. BLOCK, 1989, p. 85-6. 30 Cf. CHESNAIS, 1996, p. 250-3. 31 Cf. Ibid., p. 250. 29

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3.2.2 – Acumulação financeira mundializada O fim do acordo foi decretado pelos EUA e apenas formalizava o que já estava posto efetivamente, pois a massa de dólares circulantes, que crescia ao ritmo do seu duplo déficit, orçamentário e comercial, não podia ser conversível em ouro. Era o início das taxas de câmbio flexíveis. A mundialização financeira foi o efeito da liberalização e desregulamentação dos mercados financeiros, que pôs fim ao controle dos movimentos de capitais. Os sistemas monetários nacionais não foram suprimidos, mas incorporados ao sistema mundial de forma imperfeita e incompleta, manifestando plenamente suas diferentes particularidades nos momentos de crise. O efeito da liberalização financeira foi a quase completa perda de controle pelos bancos centrais sobre o nível da taxa de juros (CHESNAIS, 1996, p. 2001). Sua elevação generalizada, a começar pelo FED, estancou os fluxos de crédito para os países periféricos, que se industrializavam no período, exigindo deles um enorme sacrifício, na forma de transferência de riqueza real, materializada em mercadorias exportadas, para saldar dívidas passadas32. Os países centrais tornaram-se os principais tomadores de empréstimos. A liberalização e desregulamentação não ficaram restritas aos mercados financeiros, pois envolveram todas as esferas do capital. A dominance financière, para se constituir como configuration spécifique du capitalisme, precisa subordinar para si todas as esferas em que se apresenta o capital, fazer com que todas as exigências de apropriação da riqueza se formem em torno de suas necessidades (CHESNAIS, 2001). Forma-se uma espécie de totalização da consciência rentista definida a priori para todos os capitais.

32

O caráter desigual da relação centro-periferia está no fato de que os créditos criados a partir dos eurodólares não significavam transferência de riqueza efetiva para a periferia. Cf. CHESNAIS, 1996, p. 255-6.

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3.2.3 – A consciência rentista A centralização do capital-dinheiro não é feita mais só pelos bancos, mas também pelos fundos de pensão, mutual funds, companhias de seguro e grandes grupos predominantemente industriais. Esses diferentes fundos são os principais controladores de capitaldinheiro, pois acumulam poupanças sobre salários melhorados, resultado das conquistas sociais dos trabalhadores33, elevados ao status de “parceiros sociais”, que para nós significou a posição da “sociedade salarial34”. Esse capital-dinheiro centralizado desenvolve a “accumulation financière35”, ou seja, é aplicado em ativos financeiros – divisas, títulos da dívida pública e ações –, mantendose fora da produção de mercadorias. No entanto, tais empresas manifestam que os interesses do capital portador de juros e do capital operante estão confundidos36, pois a mesma empresa pode realizar investimentos em capital produtivo e/ou em aplicações financeiras, de acordo com as possibilidades de valorização. Por isso surgem normas de gestão de empresa como a holding37 e o corporate governance38. As possibilidades de valorização do capital aplicado em ativos financeiros condiciona o investimento do capital adicional ∆C na produção a altas taxas de lucro. As altas taxas de juro criam as seguintes barreiras para o investimento produtivo: 1. põem como norma taxas mínimas elevadas de lucro, como se este fosse fato imediatamente dado, assim como o juro; 2. favorecem os projetos de investimento com retorno em curto prazo; 3. pressionam os devedores a reduzir os custos de produção; 4. reduzem o prazo para a reposição de estoques para que esse capital-dinheiro liberado possa render juros; e 5. possibilitam que as empresas continuem se valorizando nos períodos de estagnação dos lucros através dos ativos financeiros (GUTTMANN, in: CHESNAIS, 1998a, p. 75-6). A determinação quantitativa da divisão do lucro bruto torna-se indistinta, em razão da proximidade da escolha entre aplicação e investimento, e faz da sua origem, a mais33

Cf. CHESNAIS, 1998a, p. 28-9; LETÍZIA, 2003, p. 41 e 43. Cf. CASTEL, 2003, p. 415-93. 35 Cf. CHESNAIS, 2004, p. 17-8. 36 Cf. LETÍZIA, 2005b, p. 10. 37 Cf. SERFATI, in: CHESNAIS, 1998a, p. 146-8. 38 Cf. FARNETTI, in: CHESNAIS, 1998a, p. 206. 34

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valia, mera lembrança distante e indesejável. Essa aparente identidade imediata é conservada na passagem à determinação qualitativa. A “astúcia e diligência” do capitalista estão não mais só em explorar a força de trabalho, mas em dar máxima eficiência ao capital-dinheiro39, seja transformando-o em capital-mercadoria, colocando em movimento o processo de produção, ou valorizando-o da mesma forma em que começa. Esse capital-dinheiro que pode se valorizar na esfera financeira nos períodos de estagnação dos lucros parece negar o “conteúdo e o objetivo específicos” da produção capitalista, a produção de mais-valia (MARX, 1999a, p. 341). Uma “hipertrofia financeira40” permanente parece tornar possível a valorização do capital sem se mobilizar na produção.

3.2.4 – Hipertrofia financeira permanente: a função do dólar como dinheiro mundial-moeda de crédito A gradual substituição do ouro pelo dólar trouxe como conseqüência um maior poder de compra para os EUA, pois todos os países realizam vendas-sem-compras, ou exportações-sem-importações para os EUA, com o objetivo de obter reservas em dólares, o que permite o governo norte-americano fazer novas emissões (LETÍZIA, 2003, p. 38-9). Para o resto do mundo trata-se da autonomização da primeira metamorfose: M – D; para os EUA, da autonomização da segunda metamorfose: D – M. A situação é diferente da época em que a libra esterlina desempenhava a função de dinheiro mundial, pois a existência de outras potências imperialistas competindo com a Inglaterra impedia o Banco da Inglaterra de fazer emissões que se distanciassem muito da sua participação internacional no comércio de mercadorias e na circulação de capitais (Ibid., p. 39). 39

“Há certa analogia (Analogie) entre o capital (...) emprestado e a força de trabalho em sua relação com o capitalista industrial. Mas, enquanto o valor da força de trabalho é pago (zahlt), o do capital emprestado é restituído (zurückzahlt) por esse capitalista. Para ele o valor da força de trabalho consiste em produzir com seu emprego mais valor (lucro) que possui e custa. Esse valor excedente é para o capitalista industrial o valor-de-uso. Do mesmo modo, o valor-de-uso do capital-dinheiro emprestado se revela na capacidade que possui de produzir e acrescer o valor” (MARX, 1983b, p. 406, grifo meu). O que é apenas uma analogia se torna na cabeça do burguês prático e de seus porta-vozes uma identidade imediata efetiva. 40 Cf. CHESNAIS, 1996, p. 243.

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Enquanto os EUA eram os principais credores do mundo só o povo norte-americano suportava a função do dólar como moeda de crédito, pagando impostos ao Estado. Quando a situação se inverte com os EUA tornando-se os principais devedores do mundo, o resto do mundo passa a suportar a função do dólar como dinheiro mundial-moeda de crédito, transferindo tributos para os EUA na forma de exportação de mercadorias e dinheiro. A conseqüência é a manutenção do poder aquisitivo do dólar e a condenação da moeda absorvida pela dívida pública norte-americana a permanecer retirada da circulação ou retornar depreciada (Ibid., p. 39). São as reservas monetárias do mundo todo que sustentam a dívida externa dos EUA (LETÍZIA, 2005b, p. 11). A situação subalterna dos demais países só é possível em razão da confluência de interesses entre o capital financeiro mundial e os EUA. O país adquire valor real, mercadorias, em troca de papel, dólar e títulos da dívida pública. O povo norte-americano e os demais detentores de dólar podem tirar proveito do poder aquisitivo da moeda. O capital financeiro preserva e infla a sua riqueza sem precisar integrá-la ao ciclo produtivo (LETÍZIA, 2003, p. 39-40). No entanto, essa transferência permanente de valor real é resultado não só de uma confluência de interesses, mas uma “necessidade absoluta” para a continuidade da accumulation financière, que remunera o capital ocioso não mobilizado na produção, e para a própria reprodução do capital produtivo, que transfere mais-valia realizada no mundo todo para sustentar o dinheiro mundial, que funciona como lastro estabilizador do poder de compra das demais moedas. Por isso as políticas econômicas no mundo todo são orientadas para a geração de crescentes superávits comerciais, para nós cada vez mais condicionados à liquidação das conquistas sociais dos trabalhadores (LETÍZIA, 2005b, p. 11-2). Como dinheiro mundial-moeda de crédito, o dólar realiza as funções de meio de compra, reserva de valor e meio de pagamento, mas não pode transferir riqueza absoluta entre os Estados soberanos, pois a quitação de débitos atrasados significaria questionar a posição do dólar, mantida enquanto existirem fluxos adicionais de valor para os EUA e enquanto o seu déficit em transações correntes não se torne insustentável para o resto do mundo (LETÍZIA, 2003, p. 40-1). Por enquanto, ele é necessário para remunerar o capi-

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tal ocioso e realizar grande parte das mercadorias produzidas no mundo todo (LETÍZIA, 2005b, p. 11-2). Como moeda que serve de “meio para o comércio e a finança”, que é o “primeiro lugar nas reservas de divisas de bancos centrais não americanos”, que é a “mais demandada pelos estrangeiros detentores de capital-dinheiro”, e que é o “porto seguro dos mercados de ativos financeiros” (BUNHOFF, in: CHESNAIS, 2004, p. 63, tradução nossa), o dólar possibilita que o FED e o Departamento do Tesouro norte-americano sejam a “institution de la ‘liquidité’41”, que atua “para criar liquidez e outros meios necessários para conter a crise” (CHESNAIS, 2004, p. 49). No entanto, vimos que a posição do dólar como dinheiro mundial-moeda de crédito depende da transferência de riqueza efetiva do mundo todo para os EUA. A apresentação do processo de acumulação sob dominância financeira nos trouxe ao seu fundamento, ou melhor, ao fundamento do modo de produção capitalista: o capital industrial.

3.2.5 – A posição do fundamento Vimos que a compra e venda de força de trabalho, a transformação de uma parte do capital em capital variável, é o “fundamento absoluto” do modo de produção capitalista (MARX, 1985, p. 72), pois seu “conteúdo e o objetivo específicos” é a produção de mais-valia (MARX, 1999a, p. 341). A “força de trabalho (Arbeitskraft)” é a “mercadoria especial” porque seu valor-de-uso possui a “propriedade peculiar de ser fonte de valor” (Ibid., p. 197). No entanto, vimos que “o valor-de-uso do capital-dinheiro emprestado se revela na capacidade que possui de produzir e acrescer o valor” (MARX, 1983b, p. 406), mas vimos também – na apresentação das três figuras da reprodução do capital no processo de circulação – que o ciclo do capital-dinheiro pressupõe a “existência da classe assalariada” e o “capital sob a forma capital produtivo” (MARX, 1991, p. 37). O capital industrial (capital produtivo) é a “forma fundamental da relação capitalista”, que “domina a socie-

41

Cf. CHESNAIS, 2004, p. 48.

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dade burguesa” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 493), pois “sua existência implica a do antagonismo de classes entre capitalistas e assalariados” (Ibid., p. 485), e ‘o trabalho objetivado e o trabalho vivo (...)’ constituem ‘os dois fatores sobre os quais repousa a produção capitalista e o trabalho assalariado’, eles são ‘os únicos funcionários e fatores de produção cuja relação e cujo enfrentamento nascem da essência do modo de produção capitalista’ (ROSDOLSKY, 2001, p. 44).

Como “forma fundamental da relação capitalista”, todas as demais formas do capital “não só se subordinam” ao capital industrial e são por ele modificadas, “mas passam a mover-se tendo-o como base. Vivem e morrem, mantêm-se ou não, junto com essa base” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 485). Todo fundamento só é fundamento apenas enquanto funda, “é fundamento somente enquanto é fundamento de Algo, de um Outro” (HEGEL, 1995a, p. 238), ou seja, enquanto funda a forma capital-dinheiro e a forma capital-mercadoria. No entanto se assim for, “o que derivou do fundamento é ele próprio; e aí reside o formalismo do fundamento”, pois o “fundado e o fundamento são um só”, a diferença é a “simples diferença-de-forma da relação consigo mesmo, e da mediação ou do ser-posto” (Ibid., p. 238), ou seja, o capital é essa “relação consigo próprio”, de “diferenciar-se de si em cada uma de suas formas e resgatar-se permanentemente na unidade do processo fluido de uma a outra” (GRESPAN, 1999, p. 157). Falta ao fundamento “um conteúdo determinado em si e para si”, o que só é posto pelo conceito (HEGEL, 1995a, p. 240 e 292). O capital em geral se particulariza no capital industrial42 porque este expressa o “caráter historicamente determinante do modo de produção capitalista”, sua “relação específica historicamente determinada: a relação do trabalho assalariado” (ROSDOLSKY, 2001, p. 51), ele é o “único modo de existência do capital no qual não só a apropriação da mais-valia, ou de mais-trabalho, mas também sua criação é função do capital” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 485). O capital “mostra-se em seu processo como desenvolvimento de si mesmo” (HEGEL, 1995a, p. 294), “que em tudo penetra e a tudo domina”, abarcando a “totalidade das relações sociais” (ROLSDOLSKY, 2001, p. 48), “é a potência econômica da sociedade burguesa, que domina tudo” (MARX, 1999b, p. 45), por isso os capitais que aparecem antes do capital industrial “não só se subordinam a ele e são por ele modificados (...), mas pas42

“O universal é, de um lado, uma differentia specifica ideal, mas, ao mesmo tempo, uma forma real particular, ao lado da forma do particular e do singular” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 54).

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sam a mover-se tendo-o como base” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 485). Por conseguinte, a dominance financière é resultado do próprio processo de acumulação capitalista43 e seu movimento, apesar de autônomo, pressupõe que o ciclo do capital possa se completar, sem interrupções, com a realização da produção44. Por isso a autonomia do capital financeiro só pode ser uma “autonomia relativa45”, pois o “lucro (Profit) que constitui a fonte de acumulação (Akkumulationsquelle) desses capitalistas financeiros (Geldkapitalisten) é dedução (Abzug) da mais-valia que os capitalistas reprodutivos obtêm” (MARX, 1983b, p. 577), ou seja, o capital financeiro “não cria nada”, seu “ganho” é resultado de um “jogo de soma zero: o que alguém ganha dentro do circuito fechado do sistema financeiro, o outro perde” (CHESNAIS, 1996, p. 241). No capital portador de juros, o seu retorno ao ponto de partida, assume “uma configuração inteiramente exteriorizada (äußerliche), dissociada do movimento efetivo de que é a forma” (MARX, 1983b, p. 402), ou seja, no capital portador de juros “está perfeita e acabada a representação fetichista do capital (Vorstellung vom Kapitalfetisch)” (Ibid., p. 459), a “relação social reduz-se a relação de uma coisa, dinheiro, consigo mesmo” (Ibid., p. 451), “e nessa forma desaparecem todas as marcas de sua origem” (Ibid., p. 451). No entanto, essa autonomia é apenas sobre uma “base. Vivem ou morrem, mantêm-se ou não, junto com essa base” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 485). Por isso o “capital fictício que se joga na Bolsa, (...) é tão-somente a compra e venda de títulos (...) e (...) não pode ser compreendido a partir do conceito simples de capital produtivo” (Ibid., p. 487), mas sua existência depende de sua capacidade de “representar capital-dinheiro potencial” (MARX, 1983b, p. 566). A aparente indistinção entre juro e lucro não suprime a oposição entre o capital portador de juros e o capital operante, nem a determinação quantitativa e qualitativa da divisão do lucro bruto, pois é a “forma antinômica das duas partes em que se divide o lucro e portanto a mais-valia [que – EN] faz esquecer que ambas são frações desta”, como se o 43

Cf. CHESNAIS, 1998a, p. 258. Cf. CHESNAIS, 1998b, p. 28. Existe, sem dúvida, uma contradição, mas uma contradição do objeto, pois “o capital em processo é uma verdadeira ‘contradição viva’” (ALVES, 2000, p. 62, grifos meus). 45 Cf. CHESNAIS, 1996, p. 241. 44

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lucro ou a mais-valia se fundamentasse na forma antinômica das duas partes (Ibid., p. 438-9). No entanto, a autovalorização do capital portador de juros e a existência de uma massa de capital ocioso atraem o capital-dinheiro potencial para a accumulation financière. Ao priorizar o “ganho financeiro” sobre o ganho empresarial, as empresas tornam-se “mais dependentes da valorização de seus ativos financeiros, gerando uma situação de fragilidade crônica do capital produtivo” (LETÍZIA, 2005b, p. 10). A “sensibilidade extrema46” do sistema financeiro hipertrofiado às modificações na conjuntura, por mínimas que sejam, manifesta que o capital financeiro só pode se mover tendo o capital industrial como base47. No entanto, as “crises financeiras” têm como particularidade não se manifestar necessariamente no auge do ciclo econômico, não ser necessariamente determinada por uma crise de superprodução e não ser necessariamente seguida pelo desmoronamento da produção e do comércio (CHESNAIS, 1998a, p. 252). A “raiz da crise financeira” e de sua “fragilidade sistêmica” está no “volume extremamente elevado de créditos sobre a produção futura”, combinado com o “crescimento lento [da acumulação de capital efetivo – EN], em relação ao montante de capitais que buscam se valorizar sob a forma de aplicações”, e sua magnitude depende da “aptidão das autoridades monetárias para intervirem no tempo desejado e para criar meios monetários necessários para sustentar a liquidez” (CHESNAIS, 2004, p. 45). No entanto, a “seletividade48” dos investimentos posta em razão da possibilidade de autovalorização do capital portador de juros conduz o capital operante a realizar mudanças no processo de produção, que aumentam a taxa de mais-valia49. Por isso o capital procura suprimir a “barreira social50” construída pela classe trabalhadora, que impede a sua livre negociação com o trabalhador individual. Essa barreira social ainda não foi totalmente suprimida. A sua supressão pode significar novamente a posição da relação capital-trabalho na forma como vimos na figura da industria moderna, no entanto com uma diferença: considerada sob a forma irracional do juro, desaparece qualquer limite qualitativo para a mais-valia, “o limite é apenas quantitativo e desafia qualquer imaginação” (MARX, 1983b, p. 459). 46

Cf. CHESNAIS, 1996, p. 309-10. Cf. MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 485. 48 Cf. CHESNAIS, 2004, p. 50. 49 Cf. CHESNAIS, 1998a, p. 253. 50 Cf. MARX, 1999a, p. 346. 47

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3.3 – A posição da barreira social Vimos, na figura da cooperação, que a simples reunião de um certo número de trabalhadores tinha como “efeito útil” a criação de nova força produtiva, a “força coletiva” (MARX, 1999a, p. 379). Vimos que, na divisão manufatureira do trabalho, os trabalhadores tornavam-se “trabalhadores parciais” para constituir “órgãos especiais de um organismo vivo” (Ibid., p. 402). As lacunas no tempo de trabalho que se desvaneciam ao eliminar a passagem de uma atividade a outra, pois o trabalho parcial especializado era função exclusiva de um trabalhador, permitiam a elevação da intensidade do trabalho. A repetição contínua e a concentração exclusiva em determinada ação limitada permitiam ao trabalhador encontrar meios de atingir o efeito útil desejado com o mínimo esforço, aumentando a produtividade (Ibid., p. 394). No entanto, na divisão manufatureira do trabalho, a habilidade do trabalhador parcial era o “fundamento do processo de produção” (Ibid., p. 393), o que impedia o capital de dominar a produção em sua totalidade. Mas, na manufatura, a ausência de formação já era uma especialidade (Ibid., p. 405) e a habilidade “mecânica” permitia que a máquina tomasse o lugar do trabalhador (HEGEL, 1995b, p. 299), determinando a posição da indústria moderna. Na indústria moderna, o “organismo de produção” é “inteiramente objetivo”, as condições de trabalho estão dadas para o trabalhador (MARX, 1999a, p. 442), pois com a ferramenta que se transferiu à máquina seguiu a “virtuosidade desenvolvida pelo trabalhador em seu manejo” e a “eficácia da ferramenta emancipa-se dos limites pessoais da força humana”, o que reduzia os trabalhadores a meros “auxiliares das máquinas” (Ibid., p. 479-80). Na grande indústria, a relação “independente e estranha” das condições de produção e do produto do trabalho com o trabalhador converte-se em “oposição completa” (Ibid., p. 488). O “taylorismo” e o “fordismo” apenas desenvolveram as condições de produção

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que já estavam postas, por isso vigoraram na grande indústria51, não consistindo em si novas figuras. O desenvolvimento dentro dessa base consistiu 1. numa maior parcialização das funções, mas sem significar o retorno da posição da habilidade parcial como fundamento do processo de produção; 2. na posição de uma “organização científica” do trabalho, que substituiu a coerção externa pessoal por um encadeamento de operações técnicas cuja duração é cronometrada; e 3. na maior exteriorização do ritmo de trabalho através da existência de uma linha de montagem52. Taylorismo e fordismo são métodos de aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho, necessários para a valorização do capital em razão das barreiras sociais que lhe foram impostas à medida que os trabalhadores se uniam como classe. À medida que a jornada de trabalho diminuía, impunha-se a lei: “o que se perde em duração, ganha-se em eficiência” (MARX, 1999a, p. 478). No entanto, vimos que a grande indústria punha o pauperismo, um “fenômeno de massa” que era o efeito da própria industrialização (CASTEL, 2003, p. 342), ou seja, tratava-se de uma manifestação do próprio processo de acumulação de capital, que para o trabalhador se revelava “acumulação de miséria, escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral” (MARX, 1989, p. 749). Essa situação tentou ser resolvida por meio de técnicas que pertenciam à esfera da “moral institucionalizada” (CASTEL, 2003, p. 342), o que adiou mas não suprimiu a necessidade da formação dos trabalhadores como classe, pois o Estado liberal, que deixava “face a face, sem mediação, dominantes e dominados” (Ibid., p. 344), permitiu que os trabalhadores experimentassem neles mesmos a “pura negatividade53” e o mundo como o negativo deles mesmos54. A força de trabalho é a “negatividade referida a si55”, o que é resultado da relação “independente e estranha56” das condições de produção e de sua “exclusão da riqueza objetiva57”. Na grande indústria, não apenas “as relações com o capitalismo que ela torna insuportável para o operário, mas também o próprio trabalho” (MARX; ENGELS, s/d, 51

Cf. ANTUNES, 2003b, p. 36. Cf. ANTUNES, 2003a, p. 25; CASTEL, 2003, p. 426; MARQUES, 1990, p. 21. 53 Cf. HEGEL, 2003, p. 149. 54 Cf. KOJÈVE, 2002, p. 30-1. 55 Cf. MARX, apud GRESPAN, 2002, p. 39. 56 Cf. MARX, 1999a, p. 492. 57 Cf. MARX, apud GRESPAN, 2002, p. 39. 52

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p. 75). Os trabalhadores, quando unidos, formam uma classe e só nessa condição podem manifestar os seus interesses58 e ser reconhecidos como um “sujeito social59”, pois mediante “livre acordo” com o capital, os trabalhadores isolados estavam “condenados à morte e à escravatura” (MARX, 1999a, p. 346). O “Estado social” surge com “um terceiro” que “gerencia” o antagonismo entre classes (CASTEL, 2003, p. 361, grifos meus), sua função específica é a de “fiador da propriedade de transferência” (Ibid., p. 406), que pressupõe a posição da “propriedade social”, que não é a supressão da propriedade privada, mas confere ao trabalho um estatuto que produz “proteções tradicionalmente asseguradas pela propriedade”, ou seja, que identifica seguridade e trabalho (Ibid., p. 387). O seguro obrigatório fornece um meio de “repatriar” os trabalhadores inseridos no processo produtivo, mas desfiliados “em relação às normas coletivas e aos modos de vida dominantes” (Ibid., p. 408). A relação salarial passa a assegurar direitos, “dá acesso a subvenções extratrabalho (doenças, acidentes, aposentadoria) e permite uma participação ampliada na vida social: consumo, habilitação, instrução e até mesmo, a partir de 1936, lazer” (Ibid., p. 416). Essa relação que “reconhece o trabalhador como membro de um coletivo dotado de um estatuto social” significou a posição do “direito do trabalho”, que põe o contrato coletivo, substituindo o “face-a-face” da definição liberal de contrato de trabalho por uma convenção-lei que regula as relações de duas classes sociais (Ibid., p. 434-5). No entanto, a “sociedade salarial” não significou o “triunfo da condição operária”, nem que os “trabalhadores braçais” foram “vencidos na luta de classes”, sua posição significou a “generalização da condição de assalariado”, ou seja, a “proliferação de situações salariais sempre superiores [ao salariado operário – EN]” (Ibid., p. 417 e 454). A “generalização da condição de assalariado” não suprimiu a parte da superpopulação relativa “marginalizada”, com “ocupações instáveis, sazonais e intermitentes” e que “ocupam as posições mais penosas e mais precárias na empresa, têm os salários mais baixos e são os menos cobertos por direitos sociais” (Ibid., p. 475-6). Nesse momento,

58

“Os indivíduos isolados formam uma classe pelo fato de terem de encetar uma luta comum contra uma outra classe” (MARX; ENGELS, s/d, p. 79). 59 Cf. CASTEL, 2003, p. 432.

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esses “vulneráveis” eram apenas “trabalhadores periféricos” (Ibid., p. 476). A sociedade salarial parecia ter como característica “um irresistível movimento de promoção” e “progresso indefinido” (Ibid., p. 417 e 493), mas esse progresso era na verdade a sua condição de existência, ou seja, a continuidade da posição da sociedade salarial dependia do crescimento econômico e do crescimento do Estado social (Ibid., p. 479). No entanto, vimos que a acumulação capitalista não comporta um “progresso indefinido”, pois “na fase de valorização se preparam as condições de desvalorização e vice-versa” (GRESPAN, 1999, p. 239).

3.4 – Tendência anômica Vimos que no momento em que uma crise irrompe paralisa-se o processo de reprodução do capital, resultando em desemprego da força de trabalho, capitais ociosos e mercadorias invendáveis. Nesse momento, o juro atinge o seu nível máximo e a correlação de forças entre os capitalistas é favorável ao capital portador de juros. Vimos também que parte desse capital ocioso pode se valorizar sob a forma de capital portador de juros. Vimos que a dominance financière é resultado do próprio processo de acumulação capitalista, que produz uma acumulação de capital-dinheiro sempre maior que a acumulação de capital efetivo. A existência da hipertrofia financeira está condicionada à transferência de valor real do capital produtivo que sustenta o dinheiro mundial-moeda de crédito, que remunera os capitais ociosos. A autovalorização do capital portador de juros e a existência de uma massa de capital ocioso atraem capital-dinheiro potencial para a accumulation financière e criam uma “seletividade” nos investimentos, conduzindo o capital operante a realizar mudanças no processo produtivo que aumentam a taxa de maisvalia. O capital procura então superar as barreiras sociais que lhe foram impostas. Do outro lado, a “sociedade salarial” dissolveu aquele “sujeito social”, que aspirava reconhecimento e determinou a aparição do Estado social, que com a dissolução se sustenta apenas enquanto “materialização” de um “coletivo abstrato”60 (CASTEL, 2003, p.

60

Por isso existe uma verdade superficial no “fim das classes sociais” e no “fim do mundo do trabalho”. Uma classe “só existe quando é tomada numa dinâmica social que a torna portadora de um projeto histórico que lhe é próprio, como pôde ser a classe operária” (CASTEL, 2003, p. 472). No caso do “fim do

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509). No processo produtivo, a posição do “toyotismo”, como negação determinada do “taylorismo” e do “fordismo” como métodos de aumentar a intensidade e a produtividade do trabalho, tem como condição a dissolução desse “sujeito social”61, pois sua verdade é a dissolução das barreiras sociais. A “flexibilização da organização do trabalho”, condição para a “acumulação flexível”, surge como meio de suprimir essas barreiras sociais, repondo o modo de organização que é “intrínseco à produção capitalista62” (ANTUNES, 2003a, p. 34; ALVES, 2000, p. 22-3), ou seja, como meio de “fragmentar o direito do trabalho63”, desregulamentando e flexibilizando o mercado de trabalho e repondo a individualização das relações de trabalho64. Essa “flexibilidade” não se reduz à mera necessidade técnica de ajustar o trabalhador a uma tarefa pontual, mas é meio de adaptar a produção às variações da demanda, reduzindo a magnitude do capital variável, os estoques, e recorrendo ao prolongamento da jornada de trabalho e contratações temporárias nos momentos de expansão da demanda (CASTEL, 2003, p. 517; ANTUNES, 2003a, p. 36), com isso libera-se capital-dinheiro. A mobilidade do trabalhador não significa a posição de um indivíduo “polivalente65”, “para o qual as diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua atividade” (MARX, 1999a, p. 553), pois sob o domínio do capital a posição dessa mobilidade possui um significado inverso: a “flexibilização interna66” do trabalhador desqualificado67, que se sujeita à qualquer atividade. Essa mobilidade não se reduz às atividades no interior do processo imediato de produção, pois se manifesta no processo de circulação, na conversão de dinheiro em força de

mundo do trabalho”, os “homens que trabalham por um salário continuam numerosos, porém não mais constituem um mundo próprio, com vida e alma de homem em gestação” (LETÍZIA, 2005b, p. 9). 61 Para Antunes (2003a, p. 42) a “forma do estranhamento” no “toyotismo” é um “envolvimento cooptado” do trabalhador. 62 Alves (2000, p. 156) afirma a existência no Brasil de uma “flexibilidade estrutural” do mercado de trabalho. 63 Cf. CASTEL, 2003, p. 607. 64 Cf. ANTUNES, 2003a, p. 73-5. 65 Cf. ALVES, 2000, p. 35. 66 Cf. CASTEL, 2003, p. 517-8. 67 Cf. ALVES, 2000, p. 35.

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trabalho (D – F), como “flexibilidade externa68” ou “terceirização69”, ou seja, como uma conversão confiada a empresas-satélites que não seguem a convenção-lei nem oferecem qualquer proteção e por isso podem descartar a força de trabalho facilmente. Por meio dessa “flexibilidade externa”, o capital produtivo se move pelo mundo nivelando os direitos dos trabalhadores por baixo70, o que lhe dá condições de controlar o exército industrial de reserva, que cresce com as mudanças qualitativas e a expansão quantitativa limitada do processo de acumulação71, possibilitando o rebaixamento dos salários. O desvanecimento da figura da “sociedade salarial” parece pôr, como tendência, os países periféricos como a “vanguarda do capitalismo”, ou seja, uma “periferização do planeta72”, pois o que se põe nos países centrais com a supressão das barreiras sociais são as relações de trabalho que já estavam postas na periferia73: 1. a “desestabilização” dos trabalhadores estáveis; 2. a “instalação na precariedade”, ou seja, o trabalho aleatório se põe como norma para os desempregados; e 3. uma aparente “inutilidade social74” de trabalhadores “incapazes de trabalhar75” (CASTEL, 2003, p. 527-8 e 530-1), mas que desempenham sua função como superpopulação relativa. Nos países periféricos essas relações de trabalho estão mais “avançadas”. Em geral, a crise da dívida, num momento em que essas economias estavam relativamente fechadas e existiam altas taxas de inflação, a queda do salário real levava os trabalhadores a pro68

Cf. CASTEL, 2003, p. 517-8. Cf. ANTUNES, 2003a, p. 52. 70 Cf. LETÍZIA, 2005b, p. 8 71 Cf. CHESNAIS, 1998b, p. 252-3 72 Cf. ARANTES, 2005, p. 8. 73 “(...) há bem pouco tempo, discutir as formas disfarçadas de remuneração do trabalho, o setor informal, a exclusão, era um tanto estranho em razão de sua presença incipiente, pouco visível, nos países desenvolvidos. Desde o fim dos anos 70, entretanto, o desemprego, o trabalho informal e a exclusão lá estavam, desenvolvendo-se sob formas que lembram aquelas predominantes nas economias latino-americanas” (SALAMA, in: CHESNAIS, 1998a, p. 212). 74 O Estado então procura preencher o vazio, que é produzido à medida que deixa de ser o “terceiro” na relação capital-trabalho, com políticas assistenciais, como o Renda Mínima de Inserção (RMI), que manifesta a incapacidade do modo de produção gerir a existência do trabalho como modo de inserção social: “o solicitador não tem mais nada a apresentar senão o relato de sua vida, com seus fracassos e suas privações: escruta-se este pobre material para identificar uma perspectiva de reabilitação a fim de ‘construir um projeto’, de definir um ‘contrato de inserção’. Os fragmentos de uma biografia esfacelada constituem a única moeda de troca para o acesso a um direito. Não é verdade que esse tratamento do indivíduo convenha a um cidadão pleno” (CASTEL, 2003, p. 609). 75 Cf. MARX, 1989, p. 747. 69

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longar a jornada de trabalho, diretamente ou através de um segundo emprego. A inflação suportada pelos trabalhadores, que em geral não possuíam “moeda indexada”, era meio de transferência de valor, que aparecia sob a forma de “poupança forçada”. Foi essa “poupança” que financiou o serviço da dívida externa, tanto que a taxa de poupança voluntária não aumentou (SALAMA, in CHESNAIS, 1998a, p. 231). Num segundo momento, a abertura dos mercados e o retorno dos fluxos de capital-dinheiro para a periferia permitiram um pequeno crescimento econômico e a posição das formas “flexíveis” de organização do trabalho existentes nos países centrais. No entanto, trata-se de capital-dinheiro que exige a diminuição do “custo país”, ou seja, a supressão das barreiras sociais à valorização do capital, por menores que elas fossem na periferia, pois esse capital-dinheiro está subordinado à remuneração do “capital ocioso superdimensionado” (LETÍZIA, 2005b, p. 12). Parte desse capital ocioso flui em razão das possibilidades de acumulação financeira na periferia, que remunera títulos da dívida pública com altas taxas de juros. O resultado é o aumento do desemprego e de atividades precárias voltadas para a “estrita sobrevivência” (SALAMA, in: CHESNAIS, 1998a, p. 247). A combinação entre a supressão das barreiras sociais à valorização do capital e a “seletividade” dos investimentos posta pela possibilidade de autovalorização do capital portador de juros parece pôr uma “tendência anômica76” determinada pela própria necessidade de valorização do capital, uma necessidade que torna possível a suspensão de sua própria relação fundamental, pois os trabalhadores, mediante livre acordo com o capital, são “condenados à morte e à escravatura77”, ou seja, aparentemente a possibilidade aberta é a possibilidade de uma indistinção entre a anomia e a normalidade da relação salarial capitalista, que permite ao trabalhador “repetir amanhã a mesma atividade, sob as mesmas condições de saúde78”. Em outros momentos, as “potencialidades desestabilizadoras79” do mercado não puderam se manifestar completamente em razão das barreiras pré-capitalistas ou construídas pela classe trabalhadora. Estas últimas estão sendo suprimidas, aparentemente sem nenhuma possibilidade efetiva de posição de um sujeito. 76

Cf. AGAMBEN, 2004, p. 111. Cf. MARX, 1999a, p. 346. 78 Cf. Ibid., p. 201. 79 Cf. CASTEL, 2003, p. 563. 77

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Talvez o dilaceramento dessas conquistas sociais dure um pouco mais, pois só assim esse sujeito pressuposto pode encontrar a sua verdade.

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CONCLUSÃO: A VERDADE DA IMEDIATICIDADE DA RELAÇÃO DO CAPITAL CONSIGO MESMO O capital industrial é a “forma fundamental da relação do capital”, que “domina a sociedade burguesa” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 493), mas apenas na medida que deixa de ser só fundamento, possuindo conteúdo determinado em si e para si, ou seja, na medida em que “capta a differentia specifica do capital, em oposição a todas as demais formas de riqueza” (Ibid., p. 53), a compra e venda de força de trabalho, “fundamento absoluto1” do modo de produção capitalista, pois o “capital industrial é o único modo de existência do capital no qual não só a apropriação de mais-valia, ou de maistrabalho, mas também sua criação é função do capital” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 485). No entanto, a posição do fundamento absoluto é a sua aparência, o fundamento aparece como fundamento negado. A aparência é a posição porque é só através da concorrência que “aparece como necessidade externa, para cada capital, aquilo que corresponde (...) ao conceito de capital” (Ibid., p. 50). O capital é “valor em progressão” (MARX, 1999a, p. 185) e essa “determinação essencial” “aparece e é realizada como ação recíproca de muitos capitais uns sobre os outros” (MARX, apud GRESPAN, 1999, p. 195). No entanto, na “concorrência tudo se apresenta, e deve apresentar-se, invertido” (ROSDOLSKY, 2001, p. 51), ou seja, para que o capital imponha “suas leis imanentes como se fossem necessidade externa, a concorrência as inverte na aparência” (MARX, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 489, grifo meu). Por isso “a lei do valor só se conserva ao preço da negação” (FAUSTO, 1983, p. 120), ou seja, o valor se manifesta na forma transfigurada preço de produção. Através dos preços de produção a massa de lucro dos capitais singulares não corresponde à mais-valia produzida em cada ramo particular, mas se distribui conforme o capital adiantado, pois “o capital mede a sua valorização pela taxa de lucro, como se fosse, enquanto capital total, o criador de valor” (GRESPAN, 1999, p. 213). Na taxa de lucro apaga-se a “origem e o segredo da existência” da mais-valia, pois em si mesma indica apenas um “comportamento uniforme do excedente em relação às proporções iguais do 1

Cf. MARX, 1985, p. 72.

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capital” (MARX, 1983a, p. 51), no preço de custo extingue-se a diferença entre capital constante e capital variável. A condição para a posição dos preços de produção é a existência desenvolvida do capitalismo industrial e da relação do trabalho assalariado. No entanto, na posição da indústria moderna tem-se a posição da “produção pela forma de uma matéria adequada” (FAUSTO, 2002, p. 120), a maquinaria, pois com ela “as condições objetivas do trabalho ganham uma autonomia” (MARX, apud FAUSTO, 2002, p. 177). O capital libertase dos “limites da força humana” (MARX, 1999a, p. 432) e se encontra em condições de repelir trabalhadores do processo produtivo. O trabalho objetivado se torna “um corpo sempre mais poderoso”, “deve crescer em relação ao trabalho vivo” (MARX, apud FAUSTO, 2002, p. 177). Mas libertar-se dos limites da força de trabalho significa chocar-se com seus próprios limites, pois na aplicação da maquinaria o capital substitui capital variável por capital constante, que não produz mais-valia. As crises manifestam que o “avanço é um retorno ao fundamento, ao originário e verdadeiro2”, mas a verdade desse fundamento negado é a “contradição imanente3” do capital, pois se por um lado, enquanto “momento corporificado nos meios de produção, ele exclui de si o outro momento, o trabalho vivo; por outro lado, enquanto totalidade, ele inclui em si o ‘seu outro’ como capital variável” (GRESPAN, 2002, p. 36). A crise implica por um lado que “o capital seja posto na ociosidade e mesmo parcialmente destruído” (MARX, 1983a, p. 291, grifo meu), manifestando os “limites dentro dos quais o capital pode valorizar-se na condição de capital” (MARX, 1983b, p. 583), mas, por outro lado, nela positiva-se “a contradição entre os interesses de cada capitalista e o da classe” (MARX, 1983a, p. 291). No momento da crise o capital portador de juros está em condições de se opor aos outros capitais como em nenhum outro momento do ciclo econômico, pois é quando a taxa de juros atinge o seu nível máximo (MARX, 1983b, p. 561).

2 3

Cf. HEGEL, apud ROSDOLSKY, 2001, p. 488. Cf. MARX, 1999a, p. 465, grifos meus.

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A oposição entre o capital portador de juros e o capital operante faz parecer que a maisvalia é resultado da oposição entre dois capitalistas, pois, de um lado, aparece como resultado da mera propriedade do capital e, por outro lado, como resultado da função de não-proprietário do capitalista ativo, de “trabalhador”, que se esforça para explorar o trabalho produtivo (Ibid., p. 438). No entanto, o “lucro (Profit) que constitui a fonte de acumulação (Akkumulationsquelle) desses capitalistas financeiros (Geldkapitalisten) é dedução (Abzug) da mais-valia que os capitalistas reprodutivos obtêm” (Ibid., p. 577), ou seja, o capital financeiro “não cria nada” e por isso a sua autonomia só pode ser uma “autonomia relativa” (CHESNAIS, 1996, p. 241). Fica patente então que a verdade da imediaticidade da relação do capital portador de juros, “dinheiro que gera dinheiro (Geld heckendes Geld)” (MARX, 1983b, p. 393), pressupõe a “existência da classe assalariada” e o “capital sob a forma capital produtivo” (MARX, 1991, p. 37). A “dominance financière4” é resultado da acumulação de capital-dinheiro que acompanha em nível sempre maior a acumulação de capital efetivo, mas sua característica, enquanto “configuration spécifique du capitalisme5”, é a existência de uma massa de capital ocioso não mobilizado na produção, mas remunerado pela transferência de valor real do mundo todo para o país emissor de dinheiro mundial-moeda de crédito6. As possibilidades de autovalorização do capital portador de juros criam uma “seletividade7” dos investimentos, conduzindo o capital operante a realizar mudanças no processo produtivo que aumentam a taxa de mais-valia, através da dissolução das “barreiras sociais8” à valorização do capital impostas pelos trabalhadores unidos como classe, repondo, sem nenhuma mediação, a relação salarial, compra e venda de força de trabalho, “fundamento absoluto” da produção capitalista. No entanto, a livre negociação do trabalhador individual com o capital parece pôr uma “tendência anômica9”, a possibilidade de uma indistinção entre a anomia e a normalidade da relação salarial capitalista, pois condena o trabalhador “à morte e à escravatura10”, mas só o “livre acontecer contingen-

4

Cf. CHESNAIS, 1998b. Cf. CHESNAIS, 2004, p. 15. 6 Cf. LETÍZIA, 2005b, p. 11-2. 7 Cf. CHESNAIS, 2004, p. 50. 8 Cf. MARX, 1999a, p. 346. 9 Cf. AGAMBEN, 2004, p. 111. 10 Cf. MARX, 1999a, p. 346. 5

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te11” determinará se o sujeito pressuposto ficará “endurecido diante das surpresas12” ou encontrará a sua verdade nessa dissolução.

11 12

Cf. HEGEL, 2003, p. 543. Cf. KAFKA, 2003, p. 16.

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