A teoria da fotografia na A Arte Photographica (1884 - 1885)

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A teoria da photographia na A Arte Photographica António Barrocas

A ARTE PHOTOGRAPHICA. Revista Mensal dos Progressos da Photographia e das Artes Correlativas que passaremos a designar simplesmente por A Arte Photographica1, surge como a primeira revista portuguesa a dedicar-se especificamente à fotografia. Ela é publicada durante dois anos consecutivos, 1884 e 1885. Os temas presentes na revista, demonstram o leque de interesses do conjunto de pessoas que a produziam, escrevendo textos, traduzindo, recolhendo e organizando, toda a informação possível sobre o mundo da fotografia, no final do século XIX, e disponibilizando-a aos leitores portugueses. Poderíamos, grosso modo, dividir a informação disponibilizada na revista, nas seguintes áreas: 1) informação técnica e prática (máquinas fotográficas e acessórios, procedimentos químicos, material de impressão e gravura); 2) informação teórica ( relativa a textos de natureza pedagógica e estética); 3) informação de carácter geral relativa a acontecimentos relacionados com a fotografia, tanto a nível nacional como internacional; 4) correspondência recebida e transcrita no corpo da revista. Os textos sobre teoria2 distribuem-se ao longo dos dois anos, embora em 1885, o número de referências seja claramente maior com treze referências enquanto que, em 1884, temos apenas seis. No total este campo abrange aproximadamente cem páginas. O grosso das referências é tomado pela tradução do livro de Henry Peach Robinson Do Effeito Artístico em Photographia. Um outro texto importante é a tradução do texto alemão “O Photographo Considerado Como Artista”. Este texto, embora seja uma tradução, é pertinente já que a sua publicação pressupõe a aceitação total das ideias nele defendidas. Referindo que nos primórdios da fotografia o fotógrafo era mal visto, o autor refere que essa situação se alterou: “Hoje as cousas mudaram de figura. Considera-se um bom photographo como 1

Nas notas de rodapé utilizamos a abreviatura : AP – A Arte Photographica. Entendemos aqui a ‘teoria’ como o discurso produzido sobre os procedimentos fotográficos, seja no âmbito de uma técnica ou de uma prática. A teoria entende-se como uma reflexão sobre esses procedimentos e sobre as imagens a produzir.

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A  TEORIA    DA  PHOTOGRAFIA  NA  ‘A  ARTE  PHOTOGRAPHICA’    -­‐  ANTÓNIO  BARROCAS  

egual a um bom pintor”. Lamenta-se, em seguida, pelo facto de qualquer pintor ser naturalmente chamado ‘artista’ enquanto que os fotógrafos não o são. Estes terão de ‘exceder’ em qualidade o ‘que se faz todos os dias’. Seguidamente reconhece que ‘falta a muitos photographos uma educação e uma disposição artisticas’. Uns porque nunca frequentaram ‘galerias de quadros’ ou ‘folhearam um album de gravuras’, outros porque desprezam a contemplação de ‘productos d’outras artes differentes’. Daí a ausência do ‘sopro esthetico’ nas suas obras. Embora essa ausência não seja prejudicial para determinadas ‘especialidades’ da ‘sciencia photographica’ ela não é possível no retrato e na paisagem. O trabalho do ‘amador’ é em seguida valorizado pelo autor: “Porque o amador tem o cuidado de exercer a vista na contemplação do bello e não considera a photographia senão como um processo que fixa fielmente aquelle todo porque o seu espírito se enthusiasmou.”3. Qual então a diferença entre um ‘photographo de profissão’ e um ‘amador’ na realização de imagens a partir de ‘umas bellas ruinas encastoadas n’uma paizagem romantica’? O primeiro procurará a ‘nitidez das pedras’ desprezando a paisagem. O segundo utilizará as ruínas como um primeiro plano, combiná-lo-à com a paisagem circundante criando uma ‘disposição dos planos uma harmonia que nos captiva’. Relativamente ao retrato o autor reconhece que as coisas são mais complicadas, o amador precisa de mais qualquer coisa ‘alem do sentimento artistico’ – é o ‘tour de main, que só pode dar uma larga experiencia’, e este (tour de main) é formado pelo ‘sucesso ou melhor na voga’ (ou a moda, diríamos nós). Assim, é possivel no retrato haver ‘muitos operadores habeis mas sem o sentimento essencialmente esthetico’. Recomenda então a estes, a frequencia de ‘galerias de quadros’, a leitura ‘d’um bom jornal illustrado’, a observação das poses e da iluminação no teatro. Terminará rematando que os ‘photographos de profissão’ não usam conveniente a pintura e a escultura para ‘desenvolver o gosto’. Este é um texto que deixa muitos recados aos ‘amadores’ (e a outros) insistindo na necessidade de ‘desenvolver o gosto’, de cultivar um ‘sentimento esthetico’. Para quê? 3

AP, vol. I, 1884, p.106.

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Para criar imagens harmoniosas, conscientemente construídas, que se afastem do aspecto mecânico e indexal da fotografia. Utiliza-se a técnica. Mas com uma intenção clara, o domínio técnico é do campo do sintáctico, o mais importante está para além dele, na capacidade criativa do fotógrafo. A notícia de ‘O incendio d’um atelier’4, da autoria de Ildefonso Correia, permite-nos aperceber de um outro conjunto de ideias sobre a fotografia e o fotógrafo. O atelier em causa é, na opinião do autor, ‘um atelier inferior’, pertencia, no entanto, a um fotógrafo respeitado: “Souza Fernandes era um photographo habil e serio, muitissimo estudioso, devotado de corpo e alma à photographia. Ainda hoje são considerados alguns dos seus retratos e sobretudo os de costumes, onde tinha uma collecção excessivamente pittoresca e 5

abundante.” , era também ‘um espirito lucido e um operador habil’, ‘um homem ...

favorecido de bem educadas faculdades artisticas’. No entanto, por razões económicas teve de dedicar-se ao retrato comercial, o que fez, num espaço ‘de pessimas condições’. Após a sua morte o atelier é ocupado ‘por estraga-chapas impenitentes’ e o seu espólio perde-se. Idefonso Correia não lamenta a destruição do atelier já que permitirá ter no Porto ‘uma nova galeria... perfeitamente moderna, bem proporcionada, sob todas as condições aconselhadas pelos mestres’. Adriano Pinto publica um artigo intitulado ‘Com a prata da casa – Palestra para amadores principiantes’6. O estado do tempo abre o texto, num parágrafo visual que na opinião do autor estimula o ‘photographo amador’ a partir ‘em demanda do pittoresco’7 (e aqui temos os nossos ‘flaneurs’ rurais). No passado, como refere, uns fariam ‘aquarella’, outros ‘um magro esboço a lapiz’, hoje, ‘expõe meia duzia de chapas’. Salienta que não é preciso viajar muito para ‘fazer uma boa produção’. O que é preciso é ‘saber ver’, ter ‘gosto artistico’ (mais importante do que ‘reunir milhares de acessorios ou planos’). Este ‘saber ver’ é algo que aprende, que se adquire: “E não me digam que isso é um dom da Natureza que não há conseguir-se.

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AP, n.º 7 de 1884, pp. 213-216. Op. cit.. p. 213. 6 AP, n.º 8 de 1884, pp. 231-239. 7 “Passados que são os rigores do Inverno, quando o arvoredo principia a revestir-se de folhagem, e as aves saudam mais alegremente o raiar da alvorada, o sol é mais puro e mais quente, os prados se douram e as aguas se prateam, o habitante das cidades sente o irresistivel desejo de sahir, pela madrugada, a sorver soffregamente o ar oxigenado e leve dos campos.”, op. cit., p.237. 5

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- Estudem, estudem hoje, e amanhã, e sempre; e à medida que forem conhecendo os elementos constituintes de bello, menos exigentes serão, e menor importancia ligam aos grandes effeitos scenicos. 8.

- Para mim, o pittoresco em toda a sua simplicidade, é a mais brilhante creação de Deus.” Este ‘pittoresco’ é o alvo do esforço do fotógrafo que deverá apanhar o ‘caracter’: “- Nos clichés de folego, arrojados, que tenho visto, salvo rarissimas excepções, a verdadeira qualidade de que a scena dependia, o cunho da vastidão e do sublime, o verdadeiro caracter do quadro, emfim, nunca é definido. - Reproduziram a paysagem em todos os seus detalhes, estão cuidadosamente tratados os 9.

planos, a linha do horisonte está bem collocada, tudo teem – menos o caracter.” E esta falta não se deve ao ‘branco e negro’, mas sim ao facto de ‘ligarem pouca importancia aos valores do ceo e da atmosphera, de se occuparem dos accessorios em toda a sua prosa e minuciosidade, desprezando a impressão poetica do quadro (s.n.)’.

Para encontrar esta impressão poética dá um conselho: ‘- Vejam com os olhos – desprezem a lente.’. E o que haveria para ver com estes olhos de oitocentos? Adriano Pinto esclarece-nos sobre isto: “Todos os mil pequeninos e curiosos incidentes da nossa poetica vida e folgares dos campos, fragmentosinhos de paysagem observados aqui e além, feiras de gado, o mesmo pascer do gado, ou quando elle vae dissedentar-se nos regatos sombreados e manos, os casebres de colmo, os valados, os atalhos, uma encrusilhada, um choupo, um outeiro, uma rocha, um adro de velha egreja, umas ruinas, e tudo quanto é extraordinariamente simples e bello, emfim, casando sempre o ceo e os componentes do quadro à fórma graciosa e verdadeira da paysagem... - Fariamos bocadinhos de oiro com a prata de nossa assevero-lhes eu.”

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Neste pequeno

texto, simples e claro, o leque de hipóteses visuais que Adriano Pinto nos deixa e, mais importante, deixava aos seus contemporâneos na defesa e orientação de um gosto. Um anónimo ‘Belfegor’ escreve dois artigos intitulados ‘Entre Amadores – Ao meu amigo Adriano R. Pinto’ I e II11. No primeiro artigo, congratulando-se com o tempo ideal para fotografar – é o número de Agosto – descreve as condições atmosféricas ideais para fotografar: “... umas manhãs deliciosas de luz, tepidas, sem uma brisa a rumorejar

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Op. cit., p.238. Op. cit., p. 239. 10 Op. cit., p. 239. 11 AP, números 20 e 22 de 1885, pp.225-228 e 289-292 respectivamente. 9

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na folhagem. E’ esta hora a melhor para o estudo do campo: o vento é nullo. Até às sete horas ainda há um leve nevoeiro indeciso nos valles, nos planos longiquos onde as montanhas azulam. Mas nos primeiros planos, que a photographia traduz tão bem, a luz incide nitidamente d’angulo: áquella hora as plantas têm uma suave frescura, todos os acidentes destacam com um relevo forte. 12

E o proprio nevoeiro dos longes ajuda à perspectiva aerea (...).” .

Esta última referência mostra-nos uma forma de ‘reproduzir’ um efeito da pintura, manipulando o uso do nevoeiro para obter o ‘sfumato’. Para estes espaços o ‘photographo’ deverá partir modestamente ‘sem grandes apparatos de artista’. Deverá ir sózinho ‘antes só que mal acompanhado e em photographia é isto indiscutivelmente verdadeiro’, evitando amigos que falem de ‘hespanholas e de sport’, distraindo do fundamental, tal como Robinson o recomenda. A companhia de outro fotógrafo amador também não é de considerar, já que de alguma forma podem-lhe os louvores, pelo obra realizada, ser atribuídos. Muito menos pessoas de família. A família dos outros é também um perigo, pois corre-se o risco de a ter de fotografar: “(...) os grupos, as combinações originaes das meninas romanticas que querem ser photographadas, encostadas a 13

um penedo, um livro aberto na mão e a marquezinha negligentemente estendida ao lado...” .

No número seguinte continua o artigo, elogia indirectamente Robinson, e conta que voltou de uma excursão com dois amadores onde andou ‘à procura de pontos de vista’, experiência algo dolorosa e que critica detalhadamente14. Mais à frente refere o novo livro de Robinson A Photographia ao ar livre. Termina este artigo com a descrição daquilo que considera um sítio ideal para fotografar e que nos transmite numa ‘imagem dita’: “... na confluencia de dous pittorescos rios, o Ave e o Vizela. – Alli sim, é que o photographo não tinha mãos a medir: o que há de mais pittoresco em scenario junto ao que há de mais bello e solemne na composição da natureza! Não se póde avaliar o que foi o momento expansivo d’este encontro ...”

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e, continua mais à frente “... uns pequenos açudes cortavam

cruamente, com a sua espuma murmurosa, a serenidade da agua. Havia um moinho coberto de colmo, d’uma construçcão enegrecida pelo tempo, coberto de heras tyrannicamente prezas, 12

Op. cit., p.225. Op. cit., p.227. 14 “Tu não imaginas o que é um photographo amador – à procura de pontos de vista! Raibeau escreveu a lamentavel historia de Gerome Patourot à procura d’uma posição social e encheu mais de 600 páginas com a triste exibição de desalentos. Que faria se tivesse fixado em paginas immortaes a peregrinação do photographo amador – por montes e vales, o seu apparelho e as suas chapas debaixo do braço! Que lagrimas que elle arrancava aos corações sensíveis!”, op. cit., p. 290. 15 Op. cit., p. 291. 13

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n’uma immobilidade de parasitas, às paredes rugosas.

E perto dous enormes alamos

equilibravam maravilhosamente as linhas da construcção e as diagonaes das montanhas, - um 16

quadro promptinho, para pressa, sem fatigar muito a imaginação do artista.” .

Alongámo-nos na citação pois é fundamental para entender o que se procura, quando se quer fotografar a natureza, e como as palavras dizem a imagem fotográfica. Apercebemo-nos também como para os fotógrafos que se pretendem ‘artistas’ a natureza se constitui como o referente fundamental. A fotografia de paisagem tem assim um papel fundamental neste período. No n.º 21, de Setembro de 1885, Adriano Pinto responde ao ‘amigo Belfegor’ agradecendo o artigo e atirando-lhe uma indirecta – de cujo alcance não nos podemos aperceber completamente – “ – se tu cahiste em fallar de Robinson – o teu homem, o teu Deus, o teu tudo!?...”. Adriano Pinto conta então uma história recente ocorrida em Paris em torno de uma questão de propriedade de negativos. Dois aristocratas franceses pretendem recuperar os negativos de retratos realizados num atelier comercial, no entanto, os herdeiros da casa comercial opõem-se e a história acaba em tribunal. A apresentação da opinião de Adriano Pinto, permite-nos aperceber claramente da sua opinião em relação ao estatuto da fotografia. Em primeiro lugar a distanciação em relação a um período em que a fotografia era considerada como uma técnica mecânica: “A opinião que em outro tempo se fazia que a photographia não passava de uma operação mechanica, não se assimilhando em coisa alguma ao trabalho do pintor e do esculptor que criam e que inventam, essa opinião que, em verdade se diga, não deixava de ter algun fundamento, pois que a nova arte, ainda na infancia, se limitava a transmitir servilmente ao papel as imagens mais ou menos perfeitas fixadas no vidro pelo único effeito da luz – essa opinião, hoje, - não 17

tem razão de ser!” .

Adriano Pinto assume claramente que ‘a photographia conquistou já um logar distincto entre as Bellas-artes’. As ‘provas photographicas’ têm um ‘caracter artistico’, pois apesar de serem criadas pela camara escura e pela luz elas são um ‘... producto do espirito, do bom gosto e da intelligencia do operador’ e os resultados obtidos dependem de opções deste, nomeadamente: “... escolha do assumpto e da combinação dos effeitos de luz e sombra na payzagem e no retrato: da pose do modelo, e do arranjo das roupas e accessorios; attendendo a isto – é justo que se deva reconhecer ao photographo um direito de propriedade às suas 16 17

Op. cit.. AP, n.º 21 de Setembro de 1885, p. 258.

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obras.” . Muito clara a definição da componente não-mecânica – mas com domínio da

técnica – que o fotógrafo introduz: a escolha do asssunto; a combinação dos efeitos de luz e sombra; a pose do modelo; a selecção de acessórios. Além disso a venda de um ‘cliché’ é ainda mais problemática já que qualquer um pode realizar uma prova positiva de má qualidade o que pode prejudicar a ‘reputação legítima adquirida pelo artista’. No n.º 3, de 1884, Ildefonso Correia, dedica um artigo ao ‘photographo ambulante’. Considera-o ‘um verdadeiro typo, bem digno de attenção e de estudo’, é no entanto ‘quasi sempre um estraga-chapas e um desgostoso da vida’ que sabe muito pouco de photographia. Ignorante da photographia e com pouca saída na cidade – ‘nem mesmo a sopeira o procurava’ – parte para a província onde poderia encontrar ‘gente um pouco mais ignorante do que elle’. O artigo continua enumerando e criticando duramente a atividade do fotógrafo ambulante e dos seus clientes. Numa descrição de um estúdio improvisado, a referência à câmara destaca-se: “A camara, uma antiga camara de gaveta, escalavrada de todo, coberta de nitrato, escancarava a ferrugenta objectiva anonyma, 19

ameaçadora, e terrivel como um olho de cyclope!” . No entanto, ele acaba por ter sucesso

noutras àreas: “Allia maravilhosamente o collodio e as ternuras do coração, mais sensível ainda que uma chapa de gelatina. E da sua objectiva anonyma tira milhares d’atracções – todas 20

as sopeiras lhe passam lá, submissas e escravas.” .

A apresentação do texto de H. P. Robinson Do Effeito Artistico em Photographia, em primeira tradução, forneceu aos leitores da A Arte Photographica um texto fundamental de teoria da arte e, especificamente de teoria da arte aplicada à fotografia. Visa-se, como o próprio título indica, ensinar a produzir um ‘effeito artistico em photographia’. É um texto extenso que é traduzido do original em inglês. No entanto, consideramo-lo com um nível de pertinência grande, pois ele é perfeitamente assumido na revista e constitui, como procuraremos demonstrar, um texto fundamental em termos teóricos e estéticos. Certamente influenciou desde os próprios editores e simultaneamente ‘amadores’ – da revista – aos leitores que aqui se puderam apropriar de um conjunto de regras, de um vocabulário próprio da tradição da pintura. Robinson pondo de lado as questões técnicas - já que parte do pressuposto que os leitores serão ‘operadores hábeis’ - centra-se nas 18

Op. cit.. AP, n.º 3 de 1884, p. 71. 20 Op. cit., p. 72. 19

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questões de aplicação da linguagem artística, apresentando os seus elementos fundamentais, de forma a conseguir a produção do ‘effeito artístico’. O texto encontra-se dividido por capítulos que abordam uma série de questões fundamentais para o domínio da linguagem no domínio das artes visuais. É difícil não recordar os textos de Rudolf Arnheim sobre arte e percepção visual, ou mesmo sobre a importância do ‘centro’21. Apresenta assim um vocabulário específico, recorrendo a exemplos daqueles que considera figuras tutelares da pintura, nomeadamente Reynolds, Turner, Constable e Rembrandt, e aplica-o à fotografia – estabelecendo as suas limitações e as suas especificidades. Constrói o que poderíamos designar de um modelo para a imagem fotográfica, um receituário. Este modelo ou ‘esqueleto’ como ele próprio refere, não incide sobre os ‘assumptos’ – adopta os clássicos a paisagem e o retrato – mas sim sobre a forma de os apresentar, ou, mais corretamente, de os representar. Remetemos a apresentação da estrutura da obra para nota 22, e seguimos a sua leitura procurando deixar claro quais as regras e ‘receitas’ propostas para construir um efeito artístico utilizando os procedimentos fotográficos. No fundo, procurámos seguir o percurso de leitura que um ‘amador’ oitocentista também seguiria interrogando-se sobre o modo de aplicar estas ideias à fotografia. No prefácio Robinson refere que a maioria dos fotógrafos não tem ‘a menor noção de arte’, uns estão convencidos que lhes basta a ‘habilidade manual’, outros deixam-se absorver pelos ´principios scientificos’ – não produzindo ‘uma obra’ – apenas um grupo restrito considera a ‘sciencia’ como um ‘meio de dar corpo às suas ideias’. Recusando a separação entre ‘a arte e a photographia’, o autor insiste na ‘necessidade de comprehender as regras principaes da composição e do claro escuro que, em todas as manifestações da arte, devem ser a base do effeito artistico’.23

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Referimo-nos aos livros arte y percepcíon visual, Madrid, Alianza Editorial e El poder del centro. Estudio sobre la composición en las artes visuales, Madrid, Alianza Editorial, 1982. 22 O texto de Robinson distribui-se por vinte e sete capítulos: I – Introdução; II – Do sentimento e do golpe de vista artistico; III – Equilibrio das linhas e contraste; V (sic) – Equilibrio – Exemplos; VI – Unidade; VII – Exemplos (continuação) – Expressão; VIII – Pratica escolha d’um assumpto; XIX – Regras elementares; X – Das figuras na paizagem. Da verdade; XI – O ceo; XII – Da necessidade dos ceos nas paizagens; XIII – Da composição da Figura; XIV – Formas pyramidais; XV – Variedade e Repetição; XVI – Variedade e Repetição. Repouso –Conveniencia; XVII – retrato; XVIII – retrato – Arranjo modelo; XIX – Do retrato – a pose; XX – retrato – Grupo – Proporção; XXI – Dos fundos; XXII – Dos accessorios; XXIII – De algumas ideias antigas a respeito dos quadros; XXIV – Do claro escuro; XXV – Claro escuro – Definição; XXVI – Claro escuro – Das diversas disposições da luz e da sombra; XXVII. 23 AP, pag. 303.

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Apesar da necessidade de qualquer candidato a artista ter de possuir, a priori, um ‘certo senso artistico’ só se atinge a ‘perfeição e o sucesso’ através da aprendizagem das regras e dos principios do ‘effeito artistico’. Robinson fala assim da ‘construção d’um quadro; de facto proponho-me a descrever o corpo, ou talvez o esqueleto e não a alma; o que é tangível e não o que não é; o que póde ser ensinado e não o que deve ser sentido.”

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Os fotógrafos têm limites25 não podem fazer ‘certas mudanças nas paizagens e vistas’ nem ‘embelezar ou melhorar estes assumptos como por exemplo a figura’. Podem, no entanto, “...modificar e até de recusar representar certos objectos que, apezar de todos os seus esforços, nunca poderiam produzir effeito’26. Critica os fotógrafos que pensam poder atingir a perfeição apenas através da ‘representação e a nitidez de certos detalhes’. É preciso perceber que os ‘conhecimentos técnicos são um meio e não um fim’. Recusando a ideia de que a arte e a fotografia nada têm em comum, dado que o objectivo da fotografia é, de acordo com o autor, ‘reproduzir a natureza’ (sob a sua forma mais literal) e o da arte ‘de dar à natureza o ideal’ de ‘transfigurar e glorificar a natureza, poetisando-a’27, Robinson refere que só aquele que conhece ‘as leis de que dependem as obras da pintura’ aquele que se interessa sobre o ‘que é o bello e porquê?’, pode descobrir na natureza as ‘bellezas accidentais’. O mesmo acontece em relação ao retrato, onde além da semelhança também é fundamental ‘a disposição artística’. Robinson referirá o carácter artístico da fotografia baseando-se no pressuposto das características criativas de cada indivíduo: “Urge que todos os que se oppõem a reconhecer que a photographia é uma arte, admittam que o mesmo assumpto, representado por differentes photographos, produzirá resultados diferentes e isto invariavelmente, não só porque se empregam objectivas e produtos differentes, mas porque há no espirito de cada um qualquer cousa de differente que de tal ou qual maneira se communica aos dedos e d’ahi as suas

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AP, p. 304. “Ainda que o campo aberto aos effeitos artisticos seja vasto para os photographos, estes não tem a faculdade que possuem os outros artistas de fazer certas mudanças nas paizagens e vistas que comprehendem grandes extensões, como tambem não podem embelezar ou melhorar estes assumptos, como por exemplo a figura, se bem que o raciocinio e a destreza sejam auxiliares poderosos. (...) E’ preciso confessar e comprehender completamente que a photographia tem os seus limites. Com quanto seja preciso explicar as leis fundamentaes da composição, a applicação d’ellas à photographia é limitada por causa da falta relativa de plasticidade dos utensílios do photographo; trata-se de utilizar a luz por meio das objectivas e dos produtos chimicos.” AP, p. 304. 26 Op. cit.. 27 Op. cit., p. 305. Muitos anos depois Bernardo Pinto de Almeida voltará a esta ideia de que a fotografia ‘se torna poesia quando transfigura’, vide Imagem da Fotografia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 56. 25

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produções.” . Salienta mesmo que os fotógrafos podem ter algo parecido com um

‘estilo’29. Como se pode ver que um fotógrafo estudou arte? “Pela escolha do ponto de vista, pela posição d’um personagem, pela hora do dia, ou por um excesso ou falta de desenvolvimento ou bem por processos contrarios que podem produzir effeitos atmosphericos delicados e suaves ou contrastes brilhantes, se é necessario, o photographo póde dar a representação da paizagem d’este modo ou seccamente, como um mappa exacto da vista, ou como uma interpretação convindo admiravelmente ao assumpto, vista sob os seus aspectos mais favoraveis que, evidentemente, o photographo provará que possue o que se chama o sentimento 30

da arte, sentimento que se eleva quasi até à poesia.” .

No III capítulo define a composição e a harmonia31. A composição estrutura-se das seguintes formas: triângulo / pirâmide; diagonal e seus contrastes; círculo e suas modificações. A diagonal utiliza-se particularmente na paisagem. No VI capítulo, Robinson trata da ‘Unidade’. Esta é para ele ‘um dos constituintes essenciaes de toda a composição’. Como refere ‘a unidade é uma cousa mais facil de sentir do que de escrever’, definindo-a pode-se dizer que ‘ella é a ligação de todas as partes do quadro que d’elle fazem um todo perfeito’32. Para construir a ‘unidade’ devese pois seguir o Genesis: ‘descreve-se sempre o desenho geral, como tendo sido executado primeiro, as minudencias veem depois’. A ‘unidade’ é fundamental quando se fotografa já que “A obra deve constituir um todo; deve completamente pronunciar a sua significação própria; nada se deve deixar a uma explicação verbal [s. n.]”33. Mais à frente Robinson salienta esta ideia da importância da ‘significação’ da obra34. Na ‘intenção que quer exprimir’ é fundamental ter em conta a 28

AP, p. 306. “Admittido isso, segue-se naturalmente que é possivel aos photographos uma interpretação original da natureza, em certos limites; mas limites sufficientes para imprimir o cunho do auctor sobre certas obras de modo que possam ser reconhecidos e nomeados pelos que tratam de photographia, como dos quadros são conhecidos e nomeados seus autores pelos que possuem conhecimento profundo de quadros.”, AP, p. 334. 30 Op. cit., pp. 334-335. 31 “São a unidade, o equilibrio e a faculdade d’adaptar o todo à amplidão pela luz e sombra, qualidades pelas quaes o obbjecto principal d’um quadro ( tal como, por exemplo, a cabeça n’um retrato) é posto em eivdencia do modo mais proeminente ficando ainda assim ligado às outras partes, de sorte que os olhos possam ver primeiramente o centro do objecto principal e sejam agradavelmente e gradualmente guiados para todo o quadro. Alem destas necessidades primarias da composição, ha um grande numero de subdivisões pertencendo à harmonia – taes como o repouso, a unidade, a subordinação, a repetição, a variedade, etc. – de que se tratará a seu tempo, quando se tiverem comprehendido os principios geraes.”, AP, 1885, p. 26. 32 Op. cit., p. 44. 33 Op. cit., p. 45 e salienta ainda “Um quadro não deve precisar de algum que lhe faça o elogio; um quadro que não diz nada de per si o que significa é tão enfadonho como um livro recheado de notas e de anotações destinadas a explicar o que não deveria demandar explicação.” 34 “(..) que todo o quadro para ser bem succedido, deve ter uma unidade de fim ou de intenção, uma unidade de episodio, uma unidade de pensamento, uma unidade de linhas, uma unidade de luz e sombra. Cada cousa deve ter 29

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‘unidade’ e o ‘equilíbrio’, e Robinson salienta a importância do saber ‘exprimir’ os ‘pensamentos’35. A presença da figura, numa imagem fotográfica, deve obedecer a critérios rigorosos que têm a ver com a função que ela ocupa: “Se há uma figura, ella preenche uma função importante na composição, quer para guiar a vista, para dar mais relêvo a um ponto, para recuar a distancia, quer para juntar as luzes ou as sombras dispersas, o que dá a amplidão e serve para 36

evitar confusões.” . Mais à frente Robinson volta a esta questão para referir que a

introdução das figuras na composição de ser feita de tal maneira que elas só possam ocupar aquele lugar e nenhum outro. A relação entre figura e paisagem é clara: “A figura e a paizagem nunca devem ter uma importancia egual no que diz respeito a interesse e valor pictural. Uma deve ser subordinada a outra. O quadro deve consistir em figuras com um fundo de paizagem (se ellas são representadas ao ar livre) ou em uma paizagem em que se collocaram figuras simplesmente com o fim de reforçar um ponto ou dar vida a uma scena mais importante. E’ verdade comtudo que se obtem bons effeitos nos quadros, fazendo o contrario – as figuras rivalisando de interesse com a paizagem; mas os assumptos devem ser bellos e a destreza do 37

artista, grande; sem isso, o sucesso será mediocre.” .

A fotografia tem como qualidade a ‘sua expressão perfeita’ e esta é uma das ‘qualidades mais preciosas’. E, como se vê a ‘expressão’ na fotografia? “Póde-se duvidar que uma cousa como a expressão seja possivel em photographia, mas a cousa existe e n’ um alto grao’38. Seguidamente Robinson analisa três fotografias e, descrevendo-as, salienta de que modo está presente a ‘expressão’ em cada uma delas. As descrições são extensas, ricas naquilo que é uma leitura de uma fotografia no século XIX. Podemos sintetizá-la em torno dos momentos do dia: ‘o effeito do começo da manhã que, ao vel-a, sentimos o ar fresco e vivificante d’aquella hora do dia’; ‘o effeito do começo do crepusculo’;

uma significação e a significação deve ser o objecto do quadro: nada deve ser deixado de parte.”, p. 79. E não podemos deixar de sentir aqui algo semelhante ao conceito de Arnheim de ‘configuração espacial’, vide, p. 35 “E ligo uma importância tanto maior a esta idéa inicial quanto é certo que frequentemente a educação artística dada aos photographos é de preferencia dirigida sobre os pensamentos a exprimir e não sobre a maneira de os exprimir; é de toda a inutilidade querer ensinar a um a escrever poesia, antes de elle ter aprendido a soletrar.”, AP, p. 80. 36 AP, p. 81. 37 Op. cit.. 38 AP, p. 82.

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‘exprime a Natureza por um dia de vento’39. A ‘expressão’ é importante de modo a conseguir paisagens com ‘vida’. No VIII capítulo apresenta-se o receituário a utilizar na ‘Pratica escolha d’um assumpto’: devem ter-se em conta as ‘combinações de linhas’ (que contrastem umas com as outras); ter ‘um primeiro plano vigoroso’; um ‘segundo plano que delicadamente se esbata nas montanhas situadas no ultimo plano e no céo’. Tudo deve contribuir para orientar o olhar - ‘a vista’. Ter-se-ão em atenção as condições metereológicas: dia sem vento – com exceção das ‘marinhas’ – dia de sol, de preferência com nuvens. Ter atenção em não captar o movimento dos objetos photographados – este é dos defeitos o ‘peor’ – principalmente o movimento da folhagem. É na escolha do assumpto que o ‘discipulo tem de mostrar se tem alguma aptidão artistica’. Robinson refere seguidamente que vale mais fazer uma obra ‘de primeira ordem’ do que ‘uma quantidade de coisas ordinarias, mediocres, fracas, sem caracter’. A questão da ‘verdade’ é fundamental no excitar das sensações: “Mas o fim do artista é de representar uma verdade agradavel ou, pelo menos, uma verdade que não fira a vista, assim como uma falta de prosodia é desagradavel aos ouvidos. Estou certo – e n’isto vou mais longe do que ninguém – que o prazer real da arte está na proporção da verdade absoluta.”

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.

Apresenta-nos o conceito de ‘verdade agradável’ o que seria particularmente pertinente relativamente aos usos da fotografia. Lembremo-nos das reações que suscitavam em determinados meios as ‘verdades’ do naturalismo e do realismo. A ‘verdade’ é particularmente importante para a fotografia e o resultado da imagem fotográfica decorre do ‘espirito e conhecimento com que a verdade foi apresentada’41. A questão da representação do céu é referida nos XI e XII capítulos. O céu é um ‘auxiliar poderoso do effeito de paizagem’. Deve ter na paisagem uma função 39

AP, pp. 82-83. AP, p. 111. 41 “A fórma só não daria isso, nem a luz e a sombra sós, mas a reunião de dous elementos, apezar da côr estar ausente (ella é comtudo necessaria à belleza perfeita) inspira ao espirito esta verdade que é uma das grandes funções da arte. E é esta verdade a melhor qualidade d’uma photographia, essa representação absoluta da fórma, da luz e da sombra, e sabendo o photographo que está collocado em condições inferiores, porque não póde traduzir a côr, deve ser tanto mais cuidadoso em tirar proveito de tudo quanto lhe pódem dar todas as qualidades que a sua arte possue, qualidades a que não podem attingir o pintor e o esculptor. O photographo não póde produzir os seus effeitos desviandose dos factos da natureza, como o fizeram os pintores por estirados seculos; mas deve servir-se de todos os meios ligitimos para contar do modo mais agradavel a historia que tem de contar e o seu mais imperioso dever é evitar o que é chato, baixo e feio; tentar elevar um assumpto, evitar as fórmas esquerdas e corrigir o que não é pittoresco.”, AP, p. 111. 40

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semelhante aos ‘fundos’ no retrato. Depende também da utilização de um negativo especial que se imprime por sobreposição. A ‘Conveniência’, que Robinson analisa seguidamente, é considerada como uma ‘grande origem da belleza’:

“... é o applicar convenientemente os meios à nossa

disposição para chegar a um fim determinado; é o que se chama a conveniencia.”42. Esta regra implica que a fotografia só apresente ‘o que visivelmente pode existir’. A ‘photographia deve representar a verdade’, no entanto, esta ‘verdade’ na arte pode existir sem uma rigorosa ‘observação absoluta dos factos’, mas sem exageros: ‘O photographo nunca se deixará tentar pela sua invenção e representar por qualquer meio uma scena qualquer que se não apresente na natureza...”, se o fizer ‘expõe ao desprezo, ao ridiculo a sua arte, pela simples razão de que viola as regras da conveniência’. No XVII capítulo, abordando o retrato, Robinson refere os vários usos da fotografia43, para chegar a uma conclusão: “Mas de todas as applicações de que a photographia é susceptivel em proveito da espécie humana, não há outra ser comparada à applicação da photographia ao retrato: de resto foi n’isso que os inventores da photographia pensaram a 44

principio e póde dizer-se que a nossa arte se applica maravilhosamente ao retrato.” .

Voltamos a ouvir um discurso sempre presente: “A photographia não tem feito mais do que desenvolver e animar o desejo que o homem tem de possuir a reproducção das feicções d’aquelle que ama, honra e admira: e a photographia attingiu o seu fim proporcionando-nos os meios de produzir retratos que estão ao alcance de todas as bolsas, não só por causa do seu 45

preço modico, mas egualmente por causa da sua verdade incontestavel.” .

A aplicação da fotografia ao retrato foi quase uma ‘revolução n’este ramo da arte; e comtudo noventa e nove retratos em cem, são as cousas mais abominaveis que uma arte qualquer alguma vez produziu’. Isto deve-se ao predomínio na fotografia de muita gente sem qualidades, esta tornou-se um ‘refugio de desempregados’. 42

Ap., p. 178. “Tem-se empregado a photographia para representar tudo o que existe sob o sol que nos illumina. Tem-se ido até mais longe: conseguiu-se obter reproducções das entranhas da terra onde a luz dos ceos não penetra nunca, mas em que ella foi subistituida por uma simples fita de magnesio. A photographia conseguiu até arrancar às pyramides do Egypto alguns dos seus segredos e obter a representação exacta das catacumbas de Roma: ela é maravilhosa na traducção dos aspectos da terra, do mar e do ceu; ella propaga as obras do genio, ou sejam em marmore ou em pintura ou sejam esses maravilhosos monumentos edificados pelos ousados architectos de remotas eras. Nas suas criminosas tentativas, o falsario recorrre à photographia que, pelo seu lado, ajuda a justiça a executar a lei; e é tal a importancia que a photographia possue aos olhos da lei que se considera como um testemunho irrefutavel. Ella é o auxilio do commerciante que anuncia os seus produtos; vem em socorro do astronomo para a representação dos astros; fórça a electricidade a escrever, e isto tudo de tal modo que até agora nada se lhe pôde comparar.”, AP, p. 180. 44 Op. cit.. 45 AP, p. 181. 43

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Apresenta diversas recomendações para uma fotografia de retrato, acabando por referir que a sua finalidade é que ‘o operador deve previamente vêr no seu espirito o resultado a obter’ 46 . Este deve para conseguir um ‘effeito artistico em photographia’ “... reproduzir o aspecto do modelo o mais caracteristico e mais agradavel, o mais conforme à verdade.”47. As opções na pose aconselham que ‘a face deve ser voltada contra a luz, o perfil se coloque ‘meio termo entre o perfil perfeito e os tres quartos’, deve-se ‘escolher o lado mais avantajado do modelo’48. Retoma-se a preferência pelos ‘tres quartos’ – o terçado de Holanda – pois ‘Um retrato de frente em photographia raramente é tão agradavel como um retrato com o rosto livremente voltado’. A cabeça é alvo de uma atenção especial: ‘... a cabeça é o objecto principal, a que todas as coisas devem ser subordinadas, que deve ser mais cuidadosamente posta em fóco, que deve receber a mais forte luz e que merece toda a 49

attenção...” . As mãos ‘devem ser objecto d’uma consideração especial’, pois são ‘um

orgão de expressão’. Relativamente à representação de ‘Grupos’ (refere-se ao retrato em grupo) Robinson defende que para formatos maiores ´é sempre mais facil e egualmente, mais recommendado fazer o grupo, imprimindo-o por combinação’50. Os ‘Fundos’ são abordados no XXI capítulo. O Fundo que ‘tem sido muitas vezes desprezado no retrato’ tem segundo Robinson, um papel importante ‘na composição e no claro escuro’. Robinson dá exemplos citando obras de Joshua Reynolds e os Elementos de Desenho de John Ruskin. Também Adam Salomon e o seu ‘systema’ são referidos: “consiste em dar relevo por meio da sombra do lado mais illuminado do personagem e oppôr a luz à parte mais escura’51. Salienta a importância dos Fundos que servem para ‘dar relevo à Figura’ e lamenta-se por não se encontrarem no comércio os fundos que considera ideais - os ‘fundos esbatidos’.

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E começa a surgir a noção de ‘pré-visualização’ que será central na aplicação do Zone-System. O fotógrafo ‘vê’ dentro de si a imagem que quer captar e posteriormente manipula todos os parametros para atingir esse fim. Como se diria no século XVI vê com ‘os olhos da alma’. 47 AP, p. 245. 48 Ap, p. 246. 49 AP, p. 247. 50 Esta é uma das poucas referências de Robinson ao seu método preferido de trabalho a ‘combination print’ que consiste na construção de uma imagem através da combinação / impressão de vários negativos diferentes. O autor realizava um esboço prévio construindo depois a imagem. 51 AP, p. 283.

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Fundamental no retrato são os ‘Accessorios’. Analisa um conjunto de fotografias os acessorios habitualmente utilizados critica o uso da ‘coluna’ e da ‘cortina’ que são de ‘pura convenção’ não fazendo pois sentido numa ‘nova arte como a photographia’52. Pior ainda ‘imitações pintadas em perspectiva’ assim como as cadeiras e as mesas e tudo o que serve de apoio. No entanto, Robinson admite a presença de elementos artificiais desde que ‘a mistura do real e do artificial’ produza um ‘effeito natural’53. O ‘claro escuro’ é fundamental para obter os efeitos até agora referidos, questionandose o autor sobre ‘qual é a maneira mais vantajosa de dispor a luz e a sombra, de molde a produzir o maximo do effeito sob o ponto de vista esthetico e pictural.’54. O ‘claro escuro’ permite obter ‘profundidade, modelado e espaço’55. A utilização do ‘claro escuro’ deve evitar colocar o tema principal no ‘centro’ - ‘o centro é a parte mais fraca do quadro’. Aborda a questão do ‘Foco’ e critica a teoria de Emerson56, pois defende que os olhos apesar de só verem um ponto nítido de cada vez, percorrem tão rapidamente o espaço que focam sucessivamente os pontos que lhe interessam. No entanto, a teoria aqui criticada pode ter alguma pertinência já que quando ‘se deseja obter um effeito pictural ella deve ser esfumada’ realçando apenas o objecto principal57.

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Insiste que a fotografia apresenta resultados que são ‘a reproducção directa da natureza’, e não deve, pelo menos neste aspecto obedecer a ‘rotinas’. A fotografia é para Robinson, uma arte que ‘não tem precedentes’ referindo claramente: “Nós, os trabalhadores dos primeiros cincoenta annos da photographia é que creamos os precendentes.”, cfr. AP, p. 285. 53 AP, p. 300. Continua referindo que “Não é o facto da realidade que se exige, mas a verdade da imitação que constitue um verdadeiro quadro. Os espiritos cultivados não exigem crer que são enganados e que veem a natureza real quando teem deante da vista uma representação pictoral.”, op. cit.. 54 AP, p. 306. 55 Robinson define a utilização do claro escuro na fotografia de uma forma muito clara: “O claro escuro tem primeiramente por fim dar a todo o quadro um effeito geral agradavel, dividindo o espaço em massas de luz e sombra, o que dá a amplidão ao effeito e evita a confusão e a indecisão inherentes à vista que se sente attrahida simultaneamente por numerosas partes de egual importancia. Em segundo logar colloca immediatamente deante do espectador o principal objecto representado, de modo que logo o olhar o veja logo e em seguida seja levado gradual e insensivelmente a considerar o todo do quadro; pôr certas partes na sombra e dar relevo a outras, segundo o seu valor sob o ponto de vista pictural. E em terceiro logar, provocar o sentimento e expressão do quadro.”, AP, p. 307. O ‘claro escuro’ é definido segundo valores tonais: “Se bem que entre o branco e o negro, há uma infinita variedade de graduações, será bom de as dividir: claro (1), meio claro (2), tom medio (3), meio escuro (4), escuro (5); se o quadro não se compozesse senão de claro e meio claro, o effeito seria fraco e chato.”, op. cit., p. 345. 56 Paul Emmerson defendia, como vimos atrás, a teoria aqui criticada por Robinson: “Diz-se algumas vezes que os detalhes do quadro não devem estar em foco; esta theoria não admitte discussão. A theoria é que os olhos não veem senão um só ponto em perfeito foco n’um dado momento e que há o que quer que é de desagradavel, de desgracioso e de imperfeito, mesmo para os menos experimentados quando no quadro, tudo, as roupas, os acessorios etc, estão representados minuciosamente com o mesmo acabado que a cabeça.E’ uma cousa fallaciosa que levou a um erro bastantes pintores e dos mais habeis.”, AP, p. 347. 57 “Sente-se que o quadro é verdadeiro e natural quando a vista é levada immediatamente a descansar no grupo ou objecto principal. Quando o pintor é senhor da sua arte consegue por graduações insensiveis diminuir as partes que poderiam prejudicar o centro de attracção ... O mesmo deveria ser em todas as obras produzidas pela luz.”, Ap., p. 348.

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Mais uma vez se referem os limites da fotografia. Os fotógrafos não podem, de acordo com Robinson, criar certos efeitos, como por exemplo, a mistura da luz do dia com a sombra da noite, tal como Tintoretto ou Caravagio. Não podem também ‘desviar se da natureza’, mesmo que sejam ‘um genio audacioso’, porque como refere ‘... a natureza é um guia seguro, segundo porque ainda não está perfeitamente estabelecido que seja um genio audacioso, quando se trata de photographia’58. Robinson termina realçando a necessidade de trabalhar, tal como um pintor : “... os photographos deveriam dizer: “Esta paizagem é tão digna de toda a minha attenção e da minha pericia como a d’um pintor que não hesitaria em passar algumas semanas a pintal-a” E então 59

provavelemente chegariam os melhores resultados.” .

Termina o seu texto defendendo o método de trabalho que prefere: “N’unca consegui saber porque se devia limitar a uma só exposição para o primeiro plano e para os longes, como não seria correcto dizer que uma gravura a agua forte deve ser o resultado d’uma só 60

morsure.” .

O aspecto que mais nos surpreendeu, na leitura do texto, foi o das poucas – duas referências ao tipo de imagem fotográfica construída por Robinson – imagens realizadas a partir de uma montagem em que se imprimem no mesmo papel / superfície uma série de negativos diferentes. De resto, todo o texto aponta para um tipo de imagem próximo do naturalismo com uma intenção clara da construção de uma imagem fotográfica ‘bella’ e ‘pitoresca’, utilizando como modelo ideal, a natureza. A imagem fotográfica resultante será a da paisagem. O outro campo ‘nobre’, o do retrato, é referido no texto como uma área mais difícil. A estrutura profunda do texto constrói-se a partir de referências claras a uma teoria da pintura e a um conhecimento rigoroso dos procedimentos de composição da imagem, tanto em termos estruturais (linhas de força) como através da utilização do claro escuro e da luz. É interessante a noção de ‘unidade’ a conseguir através da conjugação de todos 58

AP, p. 350. Particularmente interessante esta referência de Robinson à indefinição do momento naquilo que é ‘um génio’ em fotografia. Sendo clara a definição deste conceito para a pintura (Robinson classifica assim, por exemplo, Tintoretto e Caravaggio, pintores que ‘terão sempre os seus direitos e a sua maneira própria’) o autor não arrisca à sua aplicação no campo da fotografia. 59 AP, p. 352. 60 Op. cit.. Robinson deixa aqui uma lamento final aos que criticam a sua técnica da ‘combination print’, sugerindo que poderiam ser feitas várias ‘exposições’ para uma mesma imagem final. Este conceito é particularmente pertinente porque revela uma concepção final da fotografia enquanto resultado de uma montagem – trabalho artificial – opondose à ‘exposição’ única ( defendida por exemplo por Emerson). É uma posição coerente com as ideias apresentadas já que para ele o que interessa é a ‘verdade’ da imagem final, mesmo que esta verdade seja obtida através da mistura do ‘real’ com o ‘artificial’ ou com um trabalho mais ‘artificial’ do fotógrafo.

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os elementos estruturais. Diversas vezes se salienta que não podendo construir totalmente toda a imagem – tal como o pintor o pode fazer – o fotógrafo deve dominar o olhar e o ver de forma a encontrar o local ideal a fotografar, observar a luz ao longo do dia, assim como o vento, de forma a encontrar o melhor momento para capturar. É um texto que fornecia a informação teórica em termos de composição da imagem e a disponibilizava a qualquer leitor da A Arte Photographica. A nós abre-nos uma série de hipóteses para a leitura das fotografias oitocentistas. A partir da análise dos textos presentes na A Arte Photographica podemos formular um quadro de referências técnicas e estéticas relativamente aos processos de fotografar e, também, às imagens desejadas. Poderemos destacar, entre outros, os seguintes: a ideia de uma transição do estatuto do fotógrafo desde o início da fotografia, ganhando este agora ( estamos em 1884, 1885 ) mais prestígio; a semelhança entre o ‘bom fotógrafo’ e o pintor; a necessidade de uma cultura estética; a indispensável presença do ‘sopro esthetico’ na paisagem e no retrato; a caraterística específica do ‘amador’ que é a da procura do ‘bello’;o necessário equilíbrio entre a ‘nitidez’ e o efeito que se pretende; o domínio da pose e da iluminação particularmente no caso do retrato; a descrição textual daquilo que esses fotógrafos ‘viam’ quando olhavam, particularmente para a paisagem. A compreensão das dimensões culturais, estéticas e ideológicas das imagens oitocentistas não pode ser feita sem o recurso a todos estes textos que são parte integrante dessas imagens.

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