A Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade em Habermas

July 6, 2017 | Autor: Vicente Marçal | Categoria: Epistemology of the Social Sciences
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VICENTE EDUARDO RIBEIRO MARÇAL

A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE EM HABERMAS

Londrina 2004

VICENTE EDUARDO RIBEIRO MARÇAL

A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE EM HABERMAS

Monografia apresentada ao Curso de Filosofia Habilitação Licenciatura da Universidade Estadual de Londrina, em cumprimento às exigências da disciplina 3FIL062 Trabalho de Conclusão de Curso II. Orientação: Prof. Ms. Gilvan Luiz Hansen

Londrina 2004

VICENTE EDUARDO RIBEIRO MARÇAL A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE EM HABERMAS Monografia apresentada ao Curso de Filosofia Habilitação Licenciatura da Universidade Estadual de Londrina, em cumprimento às exigências da disciplina 3FIL062 Trabalho de Conclusão de Curso II. Orientação: Prof. Ms. Gilvan Luiz Hansen

BANCA EXAMINADORA

__________________________________ Prof. Ms. Gilvan Luiz Hansen Universidade Estadual de Londrina

__________________________________ Prof. Dr. Aylton Barbieri Durão Universidade Estadual de Londrina

__________________________________ Prof. Dr. Elve Miguel Cenci Universidade Estadual de Londrina

Londrina, _____ de ___________________ de 2004

DEDICATÓRIA

À minha doce e amável Leila Orquizas, pelo amor incondicionado que tem me dedicado

AGRADECIMENTOS

A meus pais, Elias Marçal e Aniram de Castro Ribeiro Marçal, sem os quais não teria realizado tal tarefa. Ao caro amigo de todas as horas, sem o qual não poderia ter escrito estas linhas, que mais que um orientador foi um amigo, Prof. Ms. Gilvan Luiz Hansen. Aos professores e professoras que se dedicaram, nestes quatro anos, a ensinar a difícil arte do questionar filosófico. Aos amigos e colegas da turma que tiveram a paciente tarefa de me acompanhar nestes quatro anos de formação e proporcionaram momentos de debate e intensa troca de conhecimentos. A todos àqueles que direta ou indiretamente me incentivaram e auxiliaram no desenvolvimento acadêmico.

Por meio de uma revolução poderá talvez levar-se a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Immanuel Kant

MARÇAL, Vicente Eduardo Ribeiro. Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade em Habermas. 2004. Monografia para conclusão do Curso de Filosofia Habilitação Licenciatura da Universidade Estadual de Londrina.

RESUMO Intentamos numa reconstrução da Teoria do Conhecimento na Modernidade, resgatando o conceito de Razão e o valor a ele atribuído desde o nascedouro da Modernidade até sua consolidação. Nesta reconstrução percebemos que no nascedouro da Modernidade, mais precisamente com Bacon e Descartes, a Razão ocupa lugar primordial, chegando mesmo à infalibilidade de seu poder de propiciar o conhecimento ao ser humano. Sendo que nos períodos posteriores, com Hume e Kant, está é criticada e se estabelece seus limites, compreendendo o que é e o que não é possível de se conhecer mediante a Razão. Seguindo o itinerário, temos em Hegel e Marx a fundamentação de uma crítica à Dedução Transcendental de Kant, desprezando a Teoria do Conhecimento. Um mediante o Saber Absoluto o outro por via do Trabalho Social. Propiciando, assim, a investida do Positivismo se auto-proclamando como fundamento das ciências, substituindo a Teoria do Conhecimento por uma Teoria da Ciência. Por fim, estabelecemos a crítica habermasiana, que resgata os conceitos de Interesse da Razão e da Auto-Reflexão trabalhando-os para fundamentar a Teoria do Conhecimento como uma Teoria Crítica da Sociedade.

Palavras-Chave: Teoria do Conhecimento, Modernidade, Razão, Sociedade, Kant, Habermas.

MARÇAL, Vicente Eduardo Ribeiro. Theory of Knowledge as a Theory of Critique of the Society in Habermas. 2004. Thesis for the conclusion of the Curse of Philosophy of Universidade Estadual de Londrina.

ABSTRACT We begin this work with the reconstruction of the Theory of Knowledge in Modernity, rescuing the concept of Reason and the value attributed to it since the beginning of Modernity until its consolidation. In this reconstruction we perceive that in the beginning of Modernity, more precisely with Bacon and Descartes, Reason occupies a significant place, even reaching the infallibility power of propitiating knowledge to the human being. Subsequent periods, with Hume and Kant, Reason is criticized and establishes its limit, which comprehends what is and what is not possible to be known through Reason. Following the itinerary, we have in Hegel and Marx the foundation of a critique to Kant’s Transcendental Deduction, despising the Theory of Knowledge: One through the Absolute Knowledge and the other through Social Work. In that sense, propitiating the advancement of Positivism self-proclaimed as the foundation of science, replacing the Theory of Knowledge for a Theory of Science. Finally, we establish the Habermasian critique, which rescues the concepts of the Interest of Reason and the Self-Reflexion, using them to establish a Theory of Knowledge as a Theory of Critique of the Society.

Keys-Words: Theory of Knowledge, Modernity, Reason, Society, Kant, Habermas.

SUMÁRIO

SUMÁRIO ................................................................................................................. 9 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 10 1. A TEORIA DO CONHECIMENTO NA MODERNIDADE ......................... 12 1.1. O EMPIRISMO DE FRANCIS BACON ...........................................................14 1.2. O RACIONALISMO DE DESCARTES............................................................22 1.3. A CRÍTICA CÉTICA DE DAVID HUME........................................................29 1.4. O CRITICISMO DE IMMANUEL KANT ........................................................37 1.5. O POSITIVISMO COMTEANO .....................................................................48 2. A CRÍTICA DE HABERMAS AO POSITIVISMO, UMA RECONSTRUÇÃO. ............................................................................................. 55 2.1. A CRÍTICA DE HEGEL A KANT...................................................................56 2.1.1. Um conceito normativo de ciência............................................ 65 2.1.2. Um conceito normativo de EU................................................... 67 2.1.3. Distinção entre razão pura e razão prática............................... 68 2.2. METACRÍTICA DE MARX A HEGEL – SÍNTESE MEDIANTE O TRABALHO SOCIAL .......................................................................................................73

2.3. A CRÍTICA DE HABERMAS AO POSITIVISMO DE COMTE...........................82 3. A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE....................................................................................................... 89 3.1. O INTERESSE DA RAZÃO: FUNDAMENTO DA TEORIA CRÍTICA ................90 3.2. FREUD E A PSICANÁLISE: PILARES DE SUSTENTAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE ...........................................................................94 3.3. A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE EM HABERMAS ..........................................................................................98

4. CONCLUSÃO ................................................................................................... 107 5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................... 109

INTRODUÇÃO

O conhecer sempre nos foi provocador de inquietações e questionamentos. A situação atual da sociedade, principalmente no que tange aos chamados progressos científicos também. Sem falar nas facilidades de acesso à informação da sociedade contemporânea que gera uma falsa ilusão de que acumulo de informação é conhecimento. Com o decorrer do curso de graduação em Filosofia os desafios foram se acentuando, levando-nos a propor um projeto de pesquisa para o trabalho de conclusão do curso que nos levasse a duas compreensões: busca da resposta à pergunta: como se dá o conhecimento? E, concomitantemente, como esse conhecimento afeta a sociedade em que vivemos? Assim, sob a orientação do Professor Mestre Gilvan Luiz Hansen, iniciamos o trabalho acerca da Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade em Habermas. Nossa intenção se pautou em reconstruir a trajetória da Teoria do Conhecimento na Modernidade, por compreendermos que é nesse momento do pensamento filosófico que a Razão ocupa a centralidade e também é criticada, tal empreitada é feita em nosso primeiro capítulo. Uma

reconstrução

da

Teórica

do

Conhecimento

na

Modernidade nos leva à busca de compreender as críticas que Hegel, Marx e o próprio Habermas fazem a Kant, juntamente com a compreensão habermasiana

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da psicanálise numa busca de resgatar do conceito de Interesse da Razão e da auto-reflexão como conceitos que reposicionam a Teoria do Conhecimento como posição filosófica frente à Teoria da Ciência proposta pelo Positivismo, esse é nosso intuito no segundo capítulo. A intenção habermasiana em reposicionar a Teoria do Conhecimento, abandonada pelo Positivismo, como fundamentação de um conhecimento possível, bem como salientar que tal conhecimento tem implicações intrínsecas com a sociedade, pois é mediante o conceito de Interesse da Razão e a auto-reflexão que se viabiliza uma crítica da sociedade é o trabalho que pretendemos no terceiro capítulo. Desse modo, compreendemos a pertinência de tal trabalho, ao entendermos que acumulo de informação não é sinônimo de conhecimento; existe uma necessidade de fundamentar de forma coerente um conhecimento possível que tenha implicações para o mundo da vida, na terminologia habermasiana, gerando uma crítica terapêutica da sociedade.

1. A TEORIA DO CONHECIMENTO NA MODERNIDADE

A Modernidade é um movimento que apresenta grande complexidade. Traz em seu nascedouro uma ruptura com a tradição, principalmente no que tange à compreensão da racionalidade, além de ser um momento de mudanças históricas consideráveis. Seu surgimento pode ser fixado em meados do século XVI, momento em que a Europa Ocidental passa por mudanças profundas no que diz respeito a suas relações humanas (política, sociedade, religião etc.), como nos afirma Hansen: (...) a formação de centros comerciais e culturais provocaram uma gradativa alteração da mentalidade advinda da Idade Média. O Feudalismo entra em colapso em vários países da Europa e, com isso, os papéis sociais passaram por redefinições drásticas: o servo da gleba, por exemplo, perde a segurança do sistema feudal, embasada num sistema de obrigações mútuas entre servo e senhor; precisa, se adaptar, então, às novas condições de trabalho, migrando para as cidades e se inserindo no trabalho artesanal e semi-artesanal das manufaturas.1

Essas mudanças têm como raiz o fato de que, desde seus primórdios, a Modernidade valorizou a Razão como seu aspecto primordial A Razão é, de fato, o elemento comum a todos os seres humanos e, por isso, assume a condição de fundamento a partir do qual o mundo deve ser organizado. É ela quem deve, a partir de agora, dar unidade e sentido a todas as esferas que compõem a existência humana. Tudo quanto pretenda ter legitimidade para existir necessita, pois, de submeter-se ao crivo da Razão2.

HANSEN, Gilvan Luiz. Modernidade, Utopia e Trabalho. Londrina:Edições CEFIL, 1999, p. 35. 2 Ibidem, p. 37. 1

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Na Modernidade, o grande tribunal que determina a validade, a verdade e a existência é a Razão. Todas as mudanças que o período histórico apresenta têm conseqüências marcantes para tal fato. O aumento de cidades, as navegações que fazem com que a circulação de pessoas por toda a Europa e mundo conhecido seja intensificado que, conseqüentemente, trazem consigo todo o conhecimento que adquiriam nas mais fantásticas viagens não só maravilham aqueles que os ouvem como também trazem a necessidade de que tais conhecimentos possam ser averiguados. A Razão, para a Modernidade, vai ter papel fundamental em todo esse processo, levando aos teóricos de seu tempo à célebre pergunta pelo fundamento último do Conhecimento. Tal questionamento também vai suscitar, mediante a Razão “(...) critério de fundamentação das esferas constitutivas da existência humana (...)”3, outro elemento constitutivo da Modernidade: a Subjetividade. Com esses dois elementos, que consideramos fundamentais para constituição da Modernidade em seus primórdios: Razão e Subjetividade, iremos traçar a trajetória da Teoria do Conhecimento na Modernidade. Num primeiro momento, analisaremos o Empirismo de Bacon, logo depois o Racionalismo de Descartes, como bases do nascedouro da Modernidade, em seguida, analisaremos a Crítica Cética de David Hume, até chegarmos ao Criticismo de Immanuel Kant, que consolidam a Modernidade, por fim, o Positivismo de Auguste

3

Ibidem, p. 41.

Comte. Tal empreitada nos será útil para

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compreendermos a crítica que Habermas fará à Teoria do Conhecimento para lançar os fundamentos de sua compreensão de que a Teoria do Conhecimento é uma Teoria Crítica da Sociedade.

1.1. O EMPIRISMO DE FRANCIS BACON

O filósofo inglês Francis Bacon (1561 – 1626) trabalha uma crítica à Tradição, apontando como infrutífera toda a produção filosófica desde Aristóteles, incluindo a deste, pois esta careceu de uma metodologia que lhe propiciasse dar frutos práticos. É um crítico atroz afirmando que toda a Tradição poderia ser desconsiderada, para dar novo alento à Filosofia iniciando-se com a mente purificada4. Já em seu primeiro aforismo, Bacon demonstra entender o homem como aquele que pode interpretar a natureza. Tal interpretação se dá mediante a observação fenomênica ou pelo labor intelectual orientado pela ordem da natureza. Em suas palavras: O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais5.

Na compreensão baconiana, o homem conhece mediante o uso de sua Razão orientado por uma metodologia que o guia na observação da

DURANT, W. A História da Filosofia.Tradução Luiz Carlos do Nascimento Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 136 a 137 (Col. Os Pensadores). 5 BACON, Fracis. Novum Organom – Livro I Aforismo I. Bacon. Tradução José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo:Nova Cultural, 1999, p. 33 (Col. Os Pensadores). 4

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natureza. Demonstrando sua repugnância ao conhecimento até então produzido, pela sua inutilidade, Bacon intenta reconstruí-lo a partir de sua praticidade, ou seja, dos resultados práticos à sociedade que tais conhecimentos podem gerar. Conforme Hansen: (...) sobre tal inspiração, [Bacon] vai desenvolver a idéia de que “saber é poder”, de sorte que o conhecimento não tem um sentido em si próprio, mas deve proporcionar resultados concretos ao ser humano, principalmente no sentido de permitir domínio e poder sobre a natureza.6

Seu intuito estava na busca de construir uma sociedade organizada sob os auspícios da Razão, fundamentalmente orientada pela ciência empírica. Nessa empreitada, Bacon vislumbra dois grandes momentos de sua obra. Um caracterizando-se pela destruição dos elementos constitutivos do empecilho ao desenvolvimento da ciência moderna7 e o outro, construtivo, consistindo numa catalogação sistemática da evolução das ciências, expondo o método adequado ao seu desenvolvimento e na realização dos primeiros axiomas advindos de tais experimentos. No primeiro momento, o destrutivo, Bacon vai utilizar a noção de ídolo* para criticar falsas concepções tidas por conhecimento. O ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem, a ponto de ser difícil o acesso à verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, ressurgirão como obstáculos à própria instauração das

HANSEN, op. cit., p. 42 Ibidem, loc. cit. * Aqui vemos a influência de sua mãe em sua formação, a utilização de ídolo aponta para sua formação protestante que trata a idolatria e o ídolo de forma avessa à boa religião. Portanto, a figura utilizada por Bacon é de repulsa ao identificar a origem do conhecimento com ídolos. 6 7

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ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam8.

Segundo Bacon, os ídolos são: Ídolos da Tribo: assim chamados por referenciar à natureza humana, ou à sua raça, ou à sua pertença à constituição social denominada tribo. Tal ídolo alude ao conhecimento, tido por verdadeiro pelo homem, advindo de seus sentidos, não considerando que as suas sensações podem estar apresentando uma realidade parcial. Nas palavras de Bacon: “(...) É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas (...)”9. Para Bacon, o intelecto humano reflete, como um espelho, de forma distorcida e corrompida. Bacon considera que os conhecimentos advindos do ídolo da tribo têm sua origem (...) na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na incompetência dos sentidos ou no modo de receber as impressões.10

Assim, para Bacon pautar o conhecimento nos ídolos da tribo leva a uma compreensão parcial do universo apreendendo-o de uma maneira simplória, ficando muito aquém da verdade que este expressa, levando até mesmo a crendices e superstições descabidas. Portanto, aqui Bacon contrapõe a

ANDRADE, José A. R. de. Vida e Obra. Bacon. Tradução José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo:Nova Cultural, 1999, p. 12. (Col. Os Pensadores). 9 BACON. Novum Organom, Livro I Aforismo XLI, p. 40. 10 Ibidem, Livro I Aforismo LII, p. 44. 8

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noção pitagórica, que permeou a Tradição, que afirma: “O homem é a medida de todas as coisas”11 Ídolos da Caverna: numa alusão clara à alegoria da Caverna de Platão*, Bacon critica o conhecimento adquirido mediante a subjetividade individualista e absolutizada12, pois (...) cada um [homem] — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem como proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.13

A crítica de Bacon dirige-se especificamente àqueles que fazem de seus conhecimentos os únicos possíveis e, quando partem para uma investigação mais apurada, já estão tão envolvidos por suas fantasias que não conseguem desvencilhar-se delas, impondo-as a si mesmo e a outros. Bacon cita o exemplo de Aristóteles em seu aforismo de número LIV afirmando que este “(...) de tal modo submete a sua filosofia natural à lógica que a tornou quase inútil e mais afeita a contendas. (...)”14.

DURANT, op. cit., p. 137. Alusão clara, contudo metafórica, pois o sentido não é correspondente. 12 HANSEN, op. cit., p. 42. 13 BACON. Novum Organom, Livro I Aforismo XLII, p. 40. 14 Ibidem, Livro I Aforismo LIV, p. 45. 11 *

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Ídolos do Foro: problemas advindos da linguagem. Bacon vai afirmar que os homens se associam devido à linguagem*, contudo, aponta que, se usada de forma inadequada, a linguagem produz bloqueios ao intelecto. Bacon afirma que nem os mais doutos com suas explicações e definições podem restituir a ordem das coisas em certos domínios que foram perturbados pelo uso incorreto da linguagem. A utilização da linguagem de forma inadequada pode trazer grandes prejuízos ao conhecimento humano, a ponto de Durant afirmar: “(...) Talvez a maior reconstrução na filosofia devesse ser simplesmente pararmos de mentir.”15 Essa afirmação está pautada no fato de que muitas de nossas elocubrações situam-se de maneira estranha à própria construção da língua, e que afetam a compreensão daquilo que estamos querendo falar. Seguindo assim a compreensão de Bacon, ao falar sobre os ídolos do foro. Bacon vai mais longe e afirma: Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências sofísticas e inativas. As palavras, tomando quase sempre o sentido que lhes inculca o vulgo, seguem a linha de divisão das coisas que são mais potentes ao intelecto vulgar. Contudo, quando o intelecto mais agudo e a observação mais diligente querem transferir essas linhas para que coincidam mais adequadamente com a natureza, as palavras se opõem. Daí suceder que as magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com freqüência, acabem em controvérsia em torno de palavras e nomes, caso em que melhor seria (conforme o uso e a sabedoria dos matemáticos) restaurar a ordem, começando pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente esse mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, visto que as próprias definições constam de palavras e as palavras engendram No aforismo XLIII, do Novum Organom, Livro I, ele se refere ao termo discurso, que aqui estamos optando pelo termo linguagem. 15 DURANT, op. cit., p. 139. *

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palavras. Donde ser necessário o recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries (...)16.

Ídolos do Teatro: para Bacon toda a Tradição apresentou ao espírito humano doutrinas e filosofias que se pretendiam, ou pior, auto firmavam-se como verdadeiras, mas que não passavam de imaginações, ilusões, falsos conhecimentos, e por isso são denominados de ídolos do teatro, pois iludiam ao espírito humano em vez de conduzi-lo à verdade. Apesar de dirigir essa severa crítica à Tradição, Bacon não se limita apenas a criticá-la, mas estende sua crítica aos conhecimentos produzidos por seus contemporâneos que seguem esses mesmos modelos. Bacon continua sua argumentação quanto aos ídolos do teatro afirmando que os mesmos não são inatos, muito menos foram se infiltrando às escondidas, pelo contrário, foram abertamente construídos, incutidos e recebidos por meio das fábulas e sistemas derivados do que ele chama de as pervertidas leis da demonstração17. Portanto, segundo Bacon, não chegamos à verdade nova alguma, pois sempre partimos de uma verdade já pré-estabelecida sem submeter esta verdade e a nossa hipótese ao teste da observação e do experimento. No segundo momento, o construtivo, Bacon não consegue levar ao fim tal intento, apenas “(...) quanto à metodologia adequada para a

16 17

BACON. Novum Organom. Livro I Aforismo LIX, p. 46. Ibidem, Livro I Aforismo LXI, p. 48.

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construção da ciência moderna é que ele apresentou um trabalho mais elaborado (...)”18. Parte do aforismo LXXXII do Livro I do Novum Organom apresenta de forma resumida a concepção que Bacon tem da metodologia que norteia a observação e o experimento, ele afirma: (...) a experiência pura e simples que, quando ocorre por si, é chamada de acaso e, se buscada, de experiência. Mas essa espécie de experiência é como uma vassoura desfiada, como se costuma dizer, mero tateio, à maneira dos que se perdem na escuridão, tudo tateando em busca do verdadeiro caminho, quando muito melhor fariam se aguardassem o dia ou acendessem um archote para então prosseguirem. Mas a verdadeira ordem da experiência, ao contrário, começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por uma experiência ordenada e medida — nuca vaga e errática —, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos experimentos. (...)19.

Podemos compreender esse aforismo com o qual Bacon descreve a metodologia da experiência. Pois, necessita iniciar o caminho ao acender o archote, aqui temos a hipótese tomada que norteia o trabalho científico e, por conseguinte, norteia também a verificação da mesma a partir de observações apuradas e documentadas da experiência que trará bases sólidas para a compreensão do fenômeno que a hipótese procura explicar, é o alumiar e seguir do caminho. Assim, com persistência e zelo chegar-se-á aos axiomas que, por sua vez, orientarão novas experiências e observações para que o progresso da ciência siga seu rumo. É interessante notar que em seu começo, o aforismo mostra uma experiência sem metodologia, que tateia no escuro em busca de seu

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HANSEN, op. cit., p. 42. BACON. Novum Organom, Livro I Aforismo LXXXII, p. 64.

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caminho. Ela nem mesmo tem consciência de que pode esperar clarear o dia para poder seguir o caminho certo e, muito menos, que pode servir-se de meios como um archote para que cumpra sua missão. Vemos aqui, mais uma vez, Bacon criticando a Tradição como aquela que tateia em busca da verdade. Assim, vemos que para Bacon a metodologia é algo que difere radicalmente do que até então se vinha propondo para o desenvolvimento do conhecimento. E, por isso, não adianta esforçar-se por acrescer conhecimento a esse modelo decadente, mas haveria a necessidade radical de se mudar a maneira de se fazer ciência. Isso porque a base que a Tradição lançou está completamente equivocada. Bacon apresenta a necessidade de se reestruturar a ciência desde seus fundamentos, voltando os esforços investigativos aos fenômenos e fatos concretos oriundos da experiência para se chegar às formas gerais constituintes das leis e causas20. Por mais que não tenha alcançado seus reais objetivos, o projeto baconiano de reforma do conhecimento lançou os alicerces sobre os quais a ciência moderna pode ser edificada, pois buscou reformular tanto a estrutura quanto os estatutos do conhecimento que a Tradição havia formulado até então. Entretanto, Bacon não consegue se desvencilhar totalmente da Tradição. Ao admitir que a natureza teria um status ontológico, anterior à Razão, cuja regularidade o homem deve procurar apreender pelo método por 20

HANSEN, op. cit., p. 43.

22

ele exposto e assim dominá-la, aponta para uma postura metafísica presente em seu pensamento. E não só essa compreensão ontológica da natureza, mas a compreensão de verdade apresentada por Bacon não difere da noção de verdade da Tradição, afirmando ser, ainda, a verdade uma adequação do intelecto ao objeto. Afinal, seu método conduz a experiência à constatação da verdade já contida nos objetos e, “(...) caso existam conflitos interpretativos ou diferentes ‘verdades’ é porque ainda não desenvolvemos instrumentos suficientemente precisos para atingir a verdade (...)”21. Portanto, são duas fortes âncoras que prendem o pensamento baconiano à Tradição, impedindo que sua audaciosa reformulação do conhecimento e que a ruptura da Medievalidade para a Modernidade se concretize.

1.2. O RACIONALISMO DE DESCARTES

Os primórdios da Modernidade apresentam, na Inglaterra, Francis Bacon e seu Empirismo, a partir de sua cosmovisão bem distinta da Idade Média. No continente, poderemos apontar para René Descartes (1596 – 1650) como aquele que trará, também, uma nova visão de mundo bem distinta da Tradição, alicerçada na Razão, assim como a baconiana, contudo, sob um outro aspecto. 21

HANSEN, op. cit., p. 50-51.

23

O grande objetivo do Racionalismo Cartesiano, assim como do Empirismo Baconiano, era de “(...) fundar uma nova ciência, um novo sistema do saber a substituir o antigo [a Tradição].”22 Descartes afirma que a Razão é algo inerente ao homem, as diferenças existentes em termos de conclusões se dão pelo fato de a Razão não ser utilizada da mesma maneira por todos, ou seja, “(...) não é suficiente ter o espírito bom, o principal é saber aplicá-lo bem. (...)”23 Descartes aponta para a Razão como algo distintivo entre o homem e os animais. É esse valor atribuído à Razão que coloca Descartes, junto a Bacon, nos primórdios da Modernidade. Mas não só isso, a subjetividade será algo profundamente marcante na metafísica cartesiana. Uma subjetividade que aponta para uma Razão autônoma, ou seja, que independe da experiência ou mesmo de pressupostos advindos de emanações de entidades divinas ou míticas. Ao contrário, Descartes aponta com sua metafísica para o fato de o homem, de forma autônoma e solitária, questionar sobre os fundamentos últimos de sua existência, pois “(...) não julgaria dever contentar-me, um só momento, com as opiniões de outrem, se não me propusesse empregar o meu próprio juízo em examiná-las (...)”24. Como nos diz Hansen:

SANTIAGO, Homero, Introdução. In: Meditações Metafísicas – René Descartes. Tradução Maria Ermantina Galvão e Homero Santiago. São Paulo:Martins Fontes, 2000, p. XIII. 23 DESCARTES, René. Discurso do Método. Descartes. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo:Abril Cultural, 1983, p. 29 (Col. Os Pensadores). 24 Ibidem, p. 44. 22

24

A autonomia da razão é fundamental para o conhecimento e para a existência, pois somente uma razão despojada de pressupostos e livre das amarras sócio-culturais pode colocar tudo sob discussão, de sorte a não aceitar coisa alguma como verdadeira sem antes dissecá-la nos mínimos detalhes.25

Tal dissecamento será proposto por Descartes a partir de seu método, que se constitui em26: 1. Regra da evidência: consiste em jamais admitir coisa alguma como verdadeira se não a reconhecer evidentemente como tal; a não ser que se imponha como evidente, de modo claro e distinto, não permitindo a possibilidade da dúvida; 2. Regra da análise: consiste em dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis para se reduzir a complexidade do problema em seus componentes simplificados; 3. Regra da síntese: consiste em concluir, por ordem, os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos para, aos poucos, chegar-se aos mais complexos. A partir da regra dois, ir resolvendo os problemas e remontando até se chegar à solução do problema complexo que foi decomposto;

25 26

HANSEN, op. cit., p. 45. A descrição do método cartesiano está baseada em sua apresentação do mesmo no “Discurso do Método” e a denominação das partes do método usamos as de Hilton Japiassú em seu artigo “O Realismo Cartesiano”. JAPIASSÚ, Hilton. O Realismo Cartesiano. In: REZENDE, A. (org.). Curso de Filosofia, 11ª Ed., Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2002, p. 105.

25

4. Regra do desmembramento: consiste em fazer enumerações as mais exatas possíveis a ponto de estar certo de nada ter omitido. A justificativa para a utilização do método cartesiano se pauta em estendê-lo da Matemática27, que sempre se utilizou dessa metodologia, para fora de seu âmbito, tornando-o um modelo para o conhecimento universal. Aplicando

seu

método

ao

saber

tradicional,

Descartes

preocupa-se em primeiro lugar a averiguar se realmente lhe é permitido estendê-lo para tais conhecimentos, fora do âmbito da Matemática. Desse modo, procura descobrir, ao aplicar seu método, se existe uma verdade que tenha as características da clareza e da distinção, em outras palavras, uma verdade indubitável para lançá-la como fundamento do saber. Ao aplicar seu método ao saber tradicional, Descartes se depara com a ruína do mesmo, pois nenhuma verdade resiste ao método e esmorece diante da dúvida. Como afirma Descartes: (...) aplicar-me-ei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para atingir esse desígnio, provar que são todas falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, visto que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de crer nas coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis do que naquelas que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que aí encontrar bastará para fazer-me rejeitar todas. E para tanto não é preciso que eu examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito;

27

Para maiores detalhes sobre esta discussão ver DURÃO, Aylton Barbieri. Acerca da possibilidade do uso do método geométrico na filosofia. In: Revista de Filosofia e Ciências Humanas. Passo Fundo: EDIUPF, Ano 10, n. 1, jul.-set. 1994. p. 29-39.

26

mas, porque a ruína dos fundamentos arrasta necessariamente consigo todo o resto do edifício (...)28.

Claro que, em Descartes, a dúvida não se assemelha à dúvida dos céticos, que duvidam por duvidar sem contribuir em nada para o conhecimento, somente suspendem o juízo pelo simples fato de pôr em dúvida a tudo. Descartes utiliza a dúvida para alcançar a verdade e, por isso, é denominada de dúvida metódica. Vemos, então, que há em Descartes duas posições, uma de fundar um novo saber em substituição à Tradição e outra a de combater o ceticismo que tem por prazer a tudo duvidar sem nada oferecer para satisfação da dúvida. Todo esse movimento realizado por Descartes o levará à primeira certeza indubitável: eu penso, logo existo. Ao se por a duvidar, consciente e metodicamente, Descartes se depara com a seguinte possibilidade: “(...) adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. (...)”29, ou seja, chega à conclusão de que a dúvida é um ato de consciência que nos oferece a certeza indubitável da existência da res cogitans. Pois, nas próprias palavras de Descartes: “(...) o que é que sou então? Uma coisa que pensa [res cogitans]. O que é uma coisa que pensa? Isto é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. (...) “30.

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução Homero Santiago e Maria Ermantina Galvão. São Paulo:Martins Fontes, 2000, p. 30. 29 DESCARTES. Discurso do Método, p. 46. 30 DESCARTES. Meditações Metafísicas, p. 47-48. 28

27

Assim, Descartes fundamenta seu método de pesquisa “(...) na certeza adquirida de que o nosso ‘eu’ ou a consciência de si mesmo como realidade pensante se apresenta com as características da clareza e da distinção.”31 E, a partir dessa certeza indubitável, é que todo o conhecimento deverá se fundamentar. Ou seja, a verdade de uma proposição deverá obedecer aos critérios da clareza e da distinção, assim como a verdade primeira o faz. “(...) Desse modo, a filosofia não é mais a ciência do ser, mas sim a doutrina do conhecimento. (...)”32 E como nos afirma Hansen: A razão autônoma parece ter finalmente triunfado frente às concepções metafísicas que a atrelavam a conteúdos externos a si própria; a subjetividade superou as amarras da superstição e da magia (...) Eis o tão sonhado reino da razão desmistificada.33

Uma Razão desmistificada, pois a fundamentação desta está nela mesma, não sendo necessário nenhum elemento externo ou anterior, em outras palavras, ocorre como autofundamentação. “(...) A razão é que, de maneira autônoma, sustenta a si própria.”34 Hansen aponta duas questões muito interessantes e que, para nosso intuito aqui, devemos considerá-las: (...) a certeza que o eu tem de si próprio é confirmada apenas no instante em que o ato da dúvida está ocorrendo. Como, então, garantir

REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Do Humanismo a Kant. São Paulo:Paulus, 1990, p. 368 32 Ibidem. 33 HANSEN, op. cit., p. 48 34 Ibidem, p. 52

31

28

a unidade das experiências e dos atos de consciência (duvidando, por exemplo)? Ou ainda, como garantir a objetividade do conhecimento?35

Segue

argumentando

que

Descartes,

consciente

dessas

questões, irá trabalhar para que as mesmas possam ser sanadas. É aqui que vemos que a intenção de ruptura com a Medievalidade para a Modernidade será tênue, pois Descartes, para resolver essas duas questões, recorrerá a um argumento muito utilizado na Idade Média e consagrado por Santo Anselmo: o Argumento Ontológico. Em seu Discurso do Método, Descartes retoma o Argumento Ontológico ao afirmar que não lhe é possível, por ser um ser imperfeito e por estar num mundo imperfeito, possuir a idéia de perfeição, contudo tal idéia existe. Ora, sendo imperfeito essa idéia não pode ter sido gerada em si mesmo, e não pode ter sido apreendida do mundo sendo este, também, imperfeito. Portanto, deve existir um ser que, além de possuir a perfeição como atributo, possa ter comunicado tal idéia a mim, este ser é Deus. Descartes, a partir de idéia de perfeição e do Argumento Ontológico, conclui que existem idéias inatas, colocadas no “eu” por Deus e que garantiria a unidade das experiências de consciência e, vai além delas, garantindo, assim, a objetividade do conhecimento que o “eu” pode possuir do que lhe é exterior, pois a Razão poderá “(...) dispensar o material advindo da experiência, porque a res cogitans

35

Ibidem, loc. cit.

29

apresenta em si um arcabouço suficientemente consistente para deduzir a partir de si própria a res extensa.”36 Vemos, então, em Descartes, que o emprego do Argumento Ontológico e a noção de Deus para se garantir, com as idéias inatas, a validade dos atos de consciência da res cogitans, a unidade das experiências e a objetividade do conhecimento da res extensa vai atenuar a ruptura, fazendo com que Descartes permaneça preso à Tradição, principalmente no que diz respeito à Metafísica. Não podemos negar a contribuição desses pensadores para o advento da Modernidade. O Empirismo e o Racionalismo trouxeram grandes avanços para o pensamento, principalmente pelas críticas que se seguiram a eles que possibilitou a consolidação da Moderniade37, o que veremos adiante na crítica cética de David Hume, numa tentativa de síntese entre Empirismo e Racionalismo e no Criticismo de Immanuel Kant, desperto do sono dogmático por David Hume.

1.3. A CRÍTICA CÉTICA DE DAVID HUME

David Hume (1711 – 1776), traz para o nosso contexto, preciosas críticas que são contribuições inestimáveis para a consolidação da Modernidade. Tais críticas são dirigidas ao Racionalismo e ao Empirismo, este

36 37

HANSEN, op. cit., p. 53. HANSEN, op. cit., p. 55-88.

30

último como sendo a corrente filosófica à qual Hume assume-se como partícipe, apesar de seus contemporâneos, e mesmo os posteriores a ele, o considerarem um cético. Em sua obra Investigações sobre o entendimento humano, sob a qual estaremos baseando nossos comentários aqui, Hume expõe argumentos no sentido de apontar para os equívocos cometidos pelo Racionalismo e o Empirismo. Sua principal preocupação consiste em aproximar as duas correntes filosóficas, como nos afirma Hansen: Assim, o intento de Hume é superar a postura de racionalistas e empiristas, quebrando com o aparente antagonismo irreconciliável de ambos, e chegar deste modo a desenvolver uma nova filosofia, mais adequada às exigências históricas de sua época38.

Podemos ver, então, que as críticas de Hume buscam elaborar uma nova filosofia que se propõe como síntese entre Racionalismo e Empirismo, deixando de lado os equívocos cometidos por ambos e buscando conciliar seus acertos. O próprio Hume afirma que: (...) Ficaríamos felizes se pudéssemos unir as fronteiras das diferentes correntes de filosofia [Racionalismo e Empirismo], reconciliando a investigação profunda com a clareza e a verdade com a originalidade. E mais felizes ainda se, raciocinando desta maneira fácil, pudéssemos destruir os fundamentos da filosofia abstrusa, que até agora apenas parece haver servido de refúgio à superstição e de abrigo ao erro e ao absurdo39.

É nesse horizonte de preocupações, é nessa busca de uma filosofia que fosse uma síntese entre Racionalismo e Empirismo que ocorrerão 38 39

HANSEN, op. cit., p. 56 HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Hume. Tradução Anoar Aiex. São Paulo:Nova Cultural, 1999, Seção I, p. 34-35 (Col. Os Pensadores).

31

as contribuições mais significativas de Hume para a consolidação da Modernidade, principalmente no que diz respeito à Teoria do Conhecimento. Hume, ao traçar seu itinerário crítico sobre o Racionalismo e Empirismo, trabalha a sua Teoria do Conhecimento iniciando por uma argumentação sobre a origem das idéias. Nesse ponto se mostra profundamente vinculado à corrente empirista, visto defender que todo conhecimento procede da experiência. Isso porque, para Hume, são as impressões as geradoras das idéias e estas são mais fracas que aquelas, nos dizeres do próprio Hume: (...) Podemos por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade denominá-las impressões, empregando essa palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressões, entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões diferenciam-se das idéias, que são as percepções menos vivas, das quais temos consciência, quando refletimos sobre quaisquer das sensações ou dos movimentos acima mencionados40.

O que Hume afirma pode ser sintetizado da seguinte maneira, todo o nosso conhecimento, as idéias que temos são provenientes das impressões, estas se dão pela experiência (externa ou interna) que temos. Em outras palavras, as idéias simples são produto de suas impressões correspondentes. Portanto, nós só temos idéias depois de termos impressões, e

40

HUME, op. cit., Seção II. p. 35-36.

32

somente estas são originárias41. As idéias complexas, Hume afirmará que são formadas mediante o poder criador de nossa mente, ou seja, “(...) embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada [de criar], verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir as matérias que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência (...)42

Toda essa argumentação de Hume poderia levá-lo a um empirismo ingênuo, em que ver-se-ia impossibilitado de explicar a validade dos conhecimentos geométricos ou matemáticos, pois estes são independentes de qualquer experiência para comprovarem-se como válidos e verdadeiros. Para sair desse impasse, Hume trabalha com conceitos que são fundamentais para compreender sua obra. Primeiramente, Hume trabalha a conexão das idéias que se dão por três princípios: semelhança (similitude— distinção), contigüidade (espaço—temporal) e causalidade (causa—efeito). Esses três princípios regem as ligações que se estabelecem entre as idéias/pensamentos. Num segundo momento, Hume trabalha as relações de idéias e as questões de fato.

Essas são duas classes de objetos investigados pelo

entendimento humano43. As relações de idéias são “(...) toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. (...) As proposições deste gênero

REALE, op. cit., p. 560. HUME, op. cit., Seção II. p. 36. 43 HANSEN, op. cit., p. 58. 41 42

33

podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não dependem de algo existente (...)”44. Elas obedecem ao princípio lógico da não-contradição. Assim, Hume consegue desvencilhar-se da problemática sobre os conhecimentos lógico-formais, como a Geometria e a Matemática, cuja validade e verdade independem da experiência45. As questões de fato, por sua vez, compreendem os objetos da razão humana que não podem ser determinados como os anteriores, pois estes podem, sem problema algum, diz Hume, ter contradições. Contrariando, assim, o princípio lógico da não-contradição. Segundo Hume, isso se dá, pois “(...) os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito (...)”46. A concentração maior de Hume se dá com as questões de fato, haja visto que para ele as relações de idéias apresentam uma estrutura analítica, em assim sendo, não acrescentam novos elementos ao conhecimento que a Razão já possui. As questões de fato oferecem novos elementos ao conhecimento que a Razão possui. Contudo, trazem em si uma complicação, sendo este o primeiro grande golpe desferido contra as concepções metafísicas vigentes até então47. Tal complicação se pauta em demonstrar que o princípio da

HUME, op. cit., Seção IV. p. 47-48. HANSEN, op. cit., p. 58. 46 HUME, op. cit., p. 49. 47 HANSEN, op. cit., p. 59. 44 45

34

causalidade, até então sustentado como condição a priori do entendimento, se constituirá “(...) como princípio relacional oriundo da experiência (...)”48. Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. (...) Todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os ligasse, a inferência seria inteiramente precária. (...) Se analisamos todos os raciocínios desta natureza, encontraremos que se fundam na relação de causa e de efeito e que esta relação se acha próxima ou distante, direta ou colateral. (...) Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito. Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjuntados entre si.49

Ao apontar a causalidade como oriunda da experiência, Hume tem de responder como isso se dá e, desta feita, ele apresenta o conceito de Hábito, ou Costume, como solução para a questão. Assim sendo, a causalidade deixa de ser um elemento a priori do entendimento, como também um elemento que poderia estar contido no objeto, podendo ser extraído deste pela Razão para, segundo o próprio Hume, ser uma conjunção costumeira. Assim,

as

experiências

vividas

pelos

seres

humanos,

transformadas em hábito ou costume, vão sendo consolidadas historicamente a ponto de fazer crer que tais hábitos são, na verdade, leis deduzidas da natureza

48 49

Ibidem, loc. cit. HUME, op. cit., p. 49-50.

35

de maneira apriorísitca. “(...) Portanto, todas as inferências tiradas da experiência são efeitos do costume e não do raciocínio”50. Os argumentos humeanos são mais contundentes contra a metafísica vigente, pois não só colocam em jogo o conceito de causalidade, mas vão além, atingindo os conceitos de substância e identidade. Para Hume, nós captamos parcialmente as impressões e idéias. Em virtude da constância com que captamos essas impressões e idéias parciais, somos levados a imaginar a existência de um fundamento de coesão entre essas percepções. Contudo, tal fundamento não é uma impressão obtida na experiência, somente uma maneira que imaginamos a realidade externa a nós. Do mesmo modo, Hume critica a existência de uma substância espiritual, um EU “(...) entendido como realidade dotada de existência contínua e autoconsciente, idêntica a si mesma e simples”51. O argumento humeano aponta para o fato de que se houvesse uma idéia de EU, esta derivaria de uma impressão que fosse imutável, contudo, não existe nenhuma impressão que não seja mutável, portanto, para Hume, a idéia de EU enquanto categoria ontológica não existe, somos apenas uma coleção de percepções parciais de impressões e idéias. Deve haver uma impressão determinada para dar origem a toda idéia real. Mas eu ou pessoa não é uma impressão determinada, mas aquilo que se supõe que nossas várias impressões e idéias têm como referência. Se alguma impressão dá origem à idéia de eu, essa impressão deve manter-se invariavelmente a mesma, durante todo o

50 51

Ibidem, p. 62. REALE, op. cit., p. 569.

36

curso de nossas vidas, uma vez que se considera que o eu existe dessa maneira. Mas não há nenhuma impressão constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedem-se umas às outras, e nunca existem todas ao mesmo tempo. Não pode ser, portanto, de nenhuma dessas impressões, nem de nenhuma outra, que a idéia de eu é derivada, e conseqüentemente essa idéia simplesmente não existe.52

Desse modo, não é difícil chegarmos à conclusão de que Hume descarta por completo a Metafísica vigente em sua época, por ela não se posicionar de maneira coerente diante de questões complexas que ele levanta em sua obra. Hume se contrapõe justamente ao fato dos autores metafísicos recorrerem a pressupostos externos ao sistema para poderem justificar suas respostas, tendo na figura de Deus o principal sustentáculo lógicoargumentativo para tal53. Devemos ressaltar que o pensamento humeano está sujeito a diversas críticas. Apontamos aqui a que Hansen54 salienta, ou seja, o fato de o mesmo ter negligenciado pontos importantes à temática da Teoria do Conhecimento como os a priori e, assumimos também com Hansen, o inegável valor que Hume tem para a Modernidade. Hume traz uma contribuição decisiva para a consolidação da Modernidade, pois fornece todos os elementos necessários para uma verdadeira revolução no pensamento de então.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. In: REZENDE, Antonio (org.). Curso de Filosofia. 11.ed. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2002, p. 122. 53 HANSEN, op. cit., p. 63. 54 Ibidem, loc. cit.

52

37

1.4. O CRITICISMO DE IMMANUEL KANT

Numa continuidade explícita em se compreender o processo de consolidação da Modernidade, principalmente no que tange à Teoria do Conhecimento, não poderíamos deixar de abordar a imensa contribuição que o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724 – 1804) nos deixou. Bem vale lembrar que foi em “(...) Kant, por cujo questionamento lógico-transcendental a teoria do conhecimento atingiu pela primeira vez consciência de si mesma (...)”55 A

obra

kantiana

é

extremamente

complexa.

Ele

“(...)

discriminava três faculdades da mente humana: conhecer, julgar, querer. (...)”56, pois a sua preocupação está em compreender todo o processo do conhecimento humano e como este influi no cotidiano. Não podemos aqui simplesmente dividir a obra kantiana para que possamos abordar um aspecto que nos pareça relevante, isso, com certeza, fará com que nossa interpretação seja parcial e incorreta. O trabalho desse filósofo se dá nessas três vertentes e sob elas é que deve ser interpretado. É nosso objetivo aqui analisarmos de forma isolada a Teoria do Conhecimento de Kant, para que possamos chegar a uma compreensão profunda da mesma. Teremos em mente que ela não está dissociada das Teorias

HABERMAS, Jüergen. Conhecimento e Interesse. Tradução José N. Heck. Rio de Janeiro:Editora Guanabara, 1987. p. 26. 56 FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona: A questão da moralidade. Campinas:Papirus, 1992, p. 46. 55

38

Moral e Estética e apontaremos, quando se fizer necessário, as relações estabelecidas por Kant em sua tríade conceitual. Kant inicia a introdução da Crítica da Razão Pura afirmando que Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; do contrário, por meio do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através de objetos que toquem nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las e, desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? (...)57

Ele afirma que todo conhecimento tem início na experiência, contudo, vai mais longe que Hume, aquele que o despertou do sono dogmático, acrescentando que isso não implica necessariamente que todo conhecimento provenha da experiência, mas que poderia muito bem “(...) acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento (...) fornece de si mesma (...)”58. Assim, Kant chega à conclusão de que temos três possibilidades de juízos: analíticos, sintéticos a priori e sintéticos a posteriori. Sua concentração maior se dará em demonstrar a existência dos juízos sintéticos a priori. Como nos afirma Hansen: O movimento argumentativo kantiano tem por objetivo demonstrar a imperiosidade dos juízos sintéticos a priori, posto que os mesmos são os únicos a possuírem o caráter de universalidade e necessidade que evitam a forçosa assunção de uma atitude falibilista e relativista com KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Kant. Tradução Valério Rohden e Udo Baldur Moosnburger. São Paulo:Abril Cultural, 1983, p. 23 (Col. Os Pensadores). 58 Ibidem, loc. cit.

57

39

relação ao conhecimento. Ademais, graças ao seu caráter sintético, eles garantem o progresso do conhecimento e afastam a possibilidade do dogmatismo baseado em verdades absolutas e conhecimentos imutáveis.59

A grande questão que Kant vai colocar é: “(...) o verdadeiro problema da razão pura está contido na pergunta: como são possíveis juízos sintéticos a priori?”60. Vemos, então, já na introdução de sua obra, que Kant pretende ir além da Metafísica tradicional, como também das correntes filosóficas predominantes de seu tempo, tais como Racionalismo, Empirismo e Ceticismo (que já vimos ulteriormente) aproveitando as contribuições que essas correntes modernas da Filosofia lhe legaram, principalmente da Crítica Cética de David Hume, levando às últimas conseqüências e sendo radicalmente distinto desta. (...) David Hume, que dentre todos os filósofos mais se aproximou desse problema [responder à questão dos juízos sintéticos a priori] sem contudo sequer de longe pensá-lo determinado o suficiente e em sua universalidade, mas se detendo apenas na proposição sintética da conexão do efeito com suas causas (principium causalitatis), creu estabelecer que tal proposição a priori fosse inteiramente impossível; segundo suas conclusões, tudo o que denominamos Metafísica desembocaria em mera ilusão de uma pretensa compreensão racional daquilo que de fato foi simplesmente tomado emprestado da experiência e que pelo hábito se revestiu da aparência de necessidade.61

Essa afirmação de Kant aponta para a limitação de que Hume não tenha compreendido a questão em sua universalidade e que se seu argumento fosse válido, não teria possibilidades de haver uma ciência que

HANSEN, op. cit., p. 66. KANT, op. cit., p. 30. 61 Ibidem, p. 31. 59 60

40

contivesse juízos sintéticos a priori, como a Matemática e a Física (chamada, por ele, de ciência da natureza). Para Kant, as ciências em geral trabalham com juízos sintéticos a posteriori, pois acrescentam elementos ao conhecimento advindos da experiência, ou mesmo por juízos analíticos, ou tautológicos, utilizados para explicitar conteúdos já presentes no objeto estudado e que desta feita não acrescentam novos conhecimentos ao objeto. Atuando dessa forma, as ciências podem chegar a novas conclusões, de caráter limitado e contingente, pois seus resultados não são universais nem necessários por estarem dependentes da experiência, sendo sempre passíveis de modificação62. Contudo, Kant destaca a Física e a Matemática de seu tempo como modelos de conhecimento, pois tais ciências possuem em seu cabedal teórico proposições sintéticas a priori. Pretensão essa que a própria Metafísica almejava. Com nos diz Chauí, “(...) Kant vinculou essa conclusão ao fato de que a

matemática

e

a

física

apresentavam-se

constituídas

por

verdades

indiscutíveis, enquanto que a metafísica pretendia a mesma validez. (...)”63. Dessa forma, Kant toma a Física e a Matemática de seu tempo como modelos de conhecimento, pois conseguiram cercar com maestria seu objeto de estudo. Isso é tão forte em Kant que o mesmo tenta empregar esse modelo de conhecimento para a Metafísica, apontando para as antinomias da

62 63

HANSEN, op. cit., p. 67. CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e Obra. In: KANT. Tradução: Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 2.ed. São Paulo:Abril Cultural. 1983. p. IX.

41

Razão, ou seja, para os enganos e contradições que a Razão pode encontrar ao tentar falar de temas que estão além de seus limites tais como: Deus, liberdade, imortalidade da alma. Temas que vão além das possibilidades do conhecimento humano. Como nos afirma Hansen, “(...) A Crítica da Razão Pura busca demarcar os limites dentro dos quais é possível o conhecimento humano e, por conseguinte, a própria Metafísica enquanto forma de conhecimento.”64 Assim, Kant compreende a Razão de forma diferenciada da Tradição que lhe antecedeu e, até mesmo das correntes filosóficas predominantes em seu tempo, pois este estabelece seus limites para o conhecer, gerando na Modernidade um cuidado todo especial quanto à validade dos conhecimentos gerados e sua objetividade. Além de propiciar uma crítica a toda e qualquer tentativa de absolutização e dogmatização de conhecimentos proferidos tanto pela Tradição quanto para intentos posteriores, Kant afirma Em todos os seu empreendimentos a razão tem que se submeter à crítica, e não pode limitar a liberdade da mesma por uma proibição sem que isto a prejudique e lhe acarrete uma suspeita desvantajosa. No que tange à sua utilidade, nada é tão importante nem tão sagrado que lhe seja permitido esquivar-se a esta inspeção atenta e examinadora que desconhece qualquer respeito pela pessoa. Sobre esta liberdade repousa até a existência da razão; o veredito desta última, longe de possuir uma autoridade ditatorial, consiste sempre em nada mais do que no consenso de cidadãos livres dos quais cada um tem que poder externar, sem constrangimento algum, as suas objeções e até o seu veto.65

64 65

HANSEN, op. cit., p. 68. KANT, op. cit., p. 363.

42

Assim, Kant compreende que, sem tal crítica, a Razão fica relegada a um estado de natureza66, imperando o conflito. Não assegurando suas afirmações a reivindicações a não ser pela força bruta. Mas a crítica pode, mediante suas regras fundamentais e autoridade inquestionável, propiciar o apaziguamento desses conflitos. A paz é garantida pela sentença da crítica de que tal conhecimento não violou os limites da Razão. Tal crítica se dá antes mesmo de se postular um conhecimento adquirido como confiável, exigindo-se que seja certificado “(...) das condições do saber possível, em princípio, naquele contexto. Somente com a ajuda de critérios fidedignos sobre a validade de nossos juízos podemos conferir se há sentido em estarmos seguros de nosso saber. (...)”67. Temos,

até

o

presente

momento,

duas

importantes

contribuições de Kant para a consolidação da Modernidade, a saber: a Matemática e a Física como modelos de conhecimento e a Crítica do Conhecimento sob a qual se verificam as condições do saber possível. Mas não poderíamos deixar de mencionar, ainda, outras duas grandes contribuições para tal feito, que são: o conceito de identidade como pressuposto formal e não substancial e o aparato cognitivo que é o órganon sob o qual se viabiliza no ser racional o conhecimento.

Aqui, Kant faz uso da compreensão hobbesiana de Estado de Natureza do Homem, onde este vive em conflito com seus semelhantes até a assinatura do Contrato Social que dá origem à Sociedade apaziguando tais conflitos. Cf. KANT, op. cit., p. 369. 67 HABERMAS, op. cit., p. 28. 66

43

Para compreendermos a questão do ‘eu penso’ kantiano, vamos recorrer aos argumentos apresentados por Durão, da interpretação de Habermas à Dedução Transcendental de Kant. Tal reconstrução nos ajudará nesta compreensão. Para Habermas, Kant teve o grande mérito de romper com o objetivismo reinante (...) Em lugar de aceitar o primado do objeto sobre o conhecimento, instaura a investigação das condições do conhecimento dos objetos como constituidoras dos objetos.68

O que tem sido chamado69 de revolução copernicana, ou seja, essa virada na ótica da Teoria do Conhecimento proposta por Kant, de se estabelecerem as condições que nos permitem conhecer os objetos, e não os objetos determinando como o conhecimento se dá. Assim, a verdade passa a estar na relação entre o sujeito cognoscível (o ‘eu penso’) e o objeto que se dá a conhecer e não somente no objeto. Tal revolução se dá, pois o “(...) objetivismo se equivoca porque ignora justamente esse movimento reflexivo da consciência aceitando o objeto como um dado que se impõe à própria consciência. (...)”70. Ou, como nos diz o próprio Kant O eu penso tem que poder acompanhar todas as minhas representações; pois do contrário, seria representado em mim algo que não poderia de modo algum ser pensado, o que equivale a dizer que a representação seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada.71

DURÃO, Aylton Barbieri. A crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant. Londrina:EdiUEL. 1996. p. 13. 69 CHAUÍ, op. cit., p. IX-X. 70 DURÃO, op. cit., p. 13. 71 KANT, op. cit., p. 85. 68

44

Ao considerarmos essa representação, temos de ter em mente que tais atos de consciência são sintéticos e, por isso, a experiência, e todo material cognoscível oferecido por ela, não estão pressupostos por essa estrutura formal. A reflexão, pois, é que consiste na possibilidade do sujeito em captar essas operações sintéticas e propiciar, mediante a autoconsciência, a síntese transcendental.72 Isso porque, em “(...) referência ao entendimento, o princípio supremo da mesma é: todo o múltiplo da intuição está submetido às condições de unidade sintética originária da apercepção. (...)”73. A reviravolta que Kant propõe com esse conceito está no fato de que o sujeito pensante não é uma substância dada a priori, mas sim uma unidade do pensamento, portanto, formal. Tal problema remonta a Descartes, pois este propõe uma consciência substanciada, pois “(...) Serve somente para a abertura da consciência ao conhecimento da objetividade dos objetos, trata-se apenas de um método que reconhece, na substância pensante, extensa e infinita, a verdade que buscava.”74 Assim, continua Durão, Habermas vai apontar que Kant não comete o equívoco cartesiano, pois, entende que o objeto só pode ser pensado enquanto tal através das “(...) operações sintéticas do sujeito, que de forma alguma pode ser considerado substância. (...)”75. Portanto, o sujeito é somente esta unidade sintética

DURÃO, op. cit., p. 13. KANT, op. cit., p. 86. 74 DURÃO, op. cit., p. 16. 75 Ibidem, p. 17. 72 73

45

(...) que acompanha todas as representações como condição para que possam ser representações de uma única consciência. Sem esta condição as representações não poderiam ser sintetizadas de modo a formar objetos, pois nem sequer se poderia pensá-las como ligadas à mesma consciência.76

Em continuidade à reconstrução do pensamento kantiano, no que diz respeito à Teoria do Conhecimento, temos de analisar a contribuição que ele dá quanto ao Aparato Cognitivo. É bem interessante notar que Kant não está preocupado em dar uma descrição precisa sobre o Aparato Cognitivo, tem em mente somente a intenção de apontar para a existência do mesmo, como nos afirma Hansen: (...) Kant se dedica a duas tarefas: por um lado, procura fazer uma descrição da estrutura da consciência quando do momento em que esta se lança na aventura de conhecer; por outro lado, tenta precisar os elementos que se colocam como condição de possibilidade ao próprio ato de conhecer. (...) o próprio Kant vai deixar claro que a tarefa mais importante é a segunda. (...) A contribuição mais relevante do filósofo de Könningsberg reside no estabelecimento das condições de possibilidade do conhecimento, pois é isso que vai garantir a objetividade do mesmo e permitir até mesmo a consecução de ações racionais e a vivência em sociedade.77

Mas, efetivamente, em que consiste esse Aparato Cognitivo? Ele é composto pela sensibilidade e as categorias do entendimento78. A sensibilidade se expressa em duas formas: espaço e tempo. Quanto ao espaço, o próprio Kant diz: O espaço não é um conceito empírico abstraído de experiências externas. Pois a representação de espaço já tem que estar subjacente para certas sensações se referirem a algo fora de mim (...) O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições Ibidem, loc. cit. HANSEN, op. cit., p. 68. 78 CHAUI, op. cit., p. X-XII. 76 77

46

externas. (...) O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal de relações das coisas em geral, mas sim uma intuição pura. (...) O espaço é representado como uma magnitude infinita dada. (...) A representação originária do espaço é, portanto, intuição a priori e não conceito. 79

Fica claro com essa passagem da Crítica da Razão Pura, que para Kant o espaço não é algo dado pela experiência e, muito menos, algo que surge pela percepção do sujeito cognoscente ao se relacionar com os objetos externos, mas, ao contrário, o espaço é que auxilia ao sujeito cognoscente a intuir os objetos externos a si mesmo e distribuídos espacialmente. Quanto ao tempo, Kant afirma: O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência. (...) O tempo é uma representação necessária subjacente a todas intuições. (...) Sobre essa necessidade a priori também se funda a possibilidade de princípios apodíticos das relações do tempo, ou de axiomas do tempo em geral. (...) O tempo não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal, mas uma forma pura da intuição sensível. (...) A infinitude do tempo nada mais significa que toda magnitude determinada do tempo só é possível mediante limitações de um tempo uno subjacente.80

Como podemos ver, Kant argumenta de forma análoga ao espaço demonstrando que o tempo é uma intuição a priori. Pois, o sujeito cogniscente não poderia perceber os objetos de forma sucessiva no tempo se essa sensibilidade não lhe auxiliasse no manejo das informações apropriadas pela experiência. Assim, teríamos no espaço e tempo, “(...) duas condições sem as quais é impossível conhecer, mas o conhecimento universal e necessário não se 79 80

KANT, op. cit., p. 41. Ibidem, p. 44-45.

47

esgota neles. É preciso também o concurso dos elementos apriorísticos do entendimento.” 81 Kant parte, na Analítica Transcendental, de juízos que ele mesmo classifica em quatro grupos distintos a saber: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Cada um desses juízos possui as seguintes categorias correspondentes: quantidade: universais, particulares e singulares; qualidade: afirmativos, negativos e indefinidos; relação: categóricos, hipotéticos e disjuntivos; modalidade: problemáticos, assertórios e apodíticos. Chauí nos auxilia a compreender essa questão com a seguinte argumentação: (...) O primeiro argumento de Kant em favor da legitimidade das categorias é o de que as diversas representações formadoras do conhecimento necessitem ser sintetizadas, pois de outra forma não se poderia falar de propriamente conhecimento.82

Aqui fica claro, também, que o tempo, enquanto elemento formal constitutivo da sensibilidade é muito importante, pois apresenta na consciência da diversidade uma unidade, um eu unificado. Isso é apontado por Kant como fundamental na constituição da unidade sintética da apercepção, ou seja, do eu penso já discutido anteriormente. Mas isso não foi suficiente para Kant, principalmente por se colocar , após essa argumentação, o seguinte problema: “(...) como é possível

81 82

CHAUÍ, op. cit., p. X. CHAUÍ, op. cit., p. XI.

48

que duas coisas heterogêneas, como são as categorias, por um lado, e os fenômenos, por outro, possam ligar-se entre si? (...)”83 Na resposta a esse problema, Kant vai ressaltar ainda mais a importância do tempo como elemento catalisador entre as categorias e os fenômenos, pois “(...) por um lado, é homogêneo ao sensível por ser a própria condição do sensível e, por outro lado, é universal e necessário, enquanto conceito. (...)”84 Assim, temos a contribuição de Kant quanto ao Aparato Cognitivo, que não tem a pretensão de esgotar a questão, mas simplesmente apresentar que tal aparato é um fato, é formal, ou seja, não substancial e que propicia todo o desenvolvimento posterior da Crítica da Razão Pura no intento de estabelecer os limites próprios da Razão na busca pelo conhecimento. Chegamos assim à conclusão da imensa contribuição de Kant à consolidação da Modernidade. Principalmente no que tange à Teoria do Conhecimento, para o que o mesmo propõe, como vimos, uma revolução só comparada à copernicana.

1.5. O POSITIVISMO COMTEANO

Para finalizarmos essa reconstrução da Teoria do Conhecimento na Modernidade, não poderíamos deixar de expor, em linhas gerais, a

83 84

Ibidem, p. XII. Ibidem, loc. cit.

49

contribuição de Auguste Comte (1798 – 1857). O resgate do pensamento positivista se faz necessário para compreendermos a crítica que Habermas vai fazer a tal sistema, a qual será objeto de nosso segundo capítulo. Comte busca compreender a marcha do pensamento humano na história para poder encontrar as bases fundamentais do positivismo. Em suas palavras Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história.85

É seguindo essa perspectiva que Comte afirma chegar à formulação do que considera a lei fundamental do pensamento humano: a lei dos três estados.86 Comte afirma que cada uma de nossas formulações teóricas principais, em qualquer ramo do conhecimento, passa por três estados históricos distintos, a saber: o teológico ou fictício, o metafísico ou abstrato e o científico ou positivo. E tal evolução se dá tanto no campo da sociedade humana como individualmente, chegando a identificar cada estado a uma fase do crescimento humano, assim o teológico é identificado com a infância, o metafísico à juventude e o positivo à maturidade.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. Comte. Tradução José Arthur Giannotti. 2.ed. São Paulo:Abril Cultural, 1983. p. 3 (Col. Os Pensadores). 86 Ibidem, loc. cit.

85

50

Mas, precisamente, a que correspondem tais estados do conhecimento humano? Vamos buscar uma compreensão de cada um segundo a argumentação do próprio Comte em seu texto Curso de Filosofia Positiva. O Estado Teológico ou Fictício compreende o estágio do conhecimento humano em que este se preocupa com “(...) a natureza íntima dos seres, ou seja, com as causas primeiras e fins de todos os efeitos que o tocam (...)”87. Buscando compreender o fim último das coisas, acaba por julgar que os fenômenos são efeitos da ação direta de seres sobrenaturais, “(...) cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.”88 Em sua evolução, o estado teológico chega ao mais alto grau de perfeição no monoteísmo, pois “(...) substitui, pela ação providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades independentes, que primitivamente tinham sido imaginadas. (...)”89. O Estado Metafísico ou Abstrato é compreendido como um estado intermediário. Sua única função é propiciar uma passagem mais tranqüila para o pensamento humano, do estado teológico para o estado positivo. Ao conceber entidades particulares, no lugar de seres sobrenaturais para cada fenômeno, até mesmo no lugar de uma única divindade provedora, o estado metafísico manifesta um aprimoramento do primeiro estado, facilitando a passagem deste para o estado mor, ou seja, o positivo. Como diz Comte:

Ibidem, p. 4. Ibidem, loc. cit. 89 Ibidem, loc. cit. 87 88

51

(...) reportando-se à formação de nossos conhecimentos, não é menos certo que o espírito humano, em seu estado primitivo, não podia nem devia pensar assim. Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, é igualmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa duma teoria qualquer. Se, contemplando os fenômenos, não os vinculássemos de imediato a algum princípio, não apenas nos seria impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto, mas seríamos inteiramente incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos passariam despercebidos aos nossos olhos.90

Essa afirmação de Comte leva a entender que a passagem do estado teológico para o estado metafísico propiciou ao espírito humano a possibilidade de compreender um princípio nos fenômenos, que o levaria a concatenar suas observações, podendo, dessa forma, evoluir para o estado maior do pensamento, a saber: o positivo. Afinal, o estado teológico manteria o espírito humano vinculado aos seres sobrenaturais (sejam em que quantidade for) sem que esse ousasse dar um salto qualitativo em suas observações da natureza. O Estado Científico ou Positivo consiste no estado maior do pensamento humano. Ele reconhece “(...) a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude.”91

90 91

Ibidem, p. 5. Ibidem, p. 4.

52

Comte propõe o estado positivo como aquele que supera os anteriores, trazendo o verdadeiro conhecimento. Pois este vem observar a natureza e concluir, junto com o raciocínio, suas leis. Como afirma: Percebe-se, pois, graças a este conjunto de considerações, que, se a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele para o qual sempre tendeu progressivamente, não deixou de precisar, no início e durante uma longa série de séculos, quer como método, quer como doutrina provisória, da filosofia teológica; filosofia cujo caráter é ser espontânea e, por isso mesmo, a única possível na origem, a única também capaz de oferecer a nosso espírito nascente o devido interesse. (...) 92

Vemos, pois, a fixação de Comte em que a Filosofia Positiva é o ápice do espírito humano. Para a qual este progrediu por meio de sua composição histórica que, por ter caráter espontâneo, a filosofia teológica serviu de berço e a filosofia metafísica serviu de transição para a sublime filosofia positiva. Com essa lei fundamental do desenvolvimento humano, Comte compreende que a natureza da filosofia positiva tem por base o entendimento de que os fenômenos estão sujeitos a leis naturais invariáveis “(...) cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços (...)”93. Assim, para empreender todos os nossos esforços com o intuito de encontrar as leis que regem os fenômenos, temos de dirigir nosso espírito por metodologias de observação que possam nos levar ao cumprimento dessa tarefa. Comte afirma que

92 93

Ibidem, p. 6. Ibidem, p. 7.

53

Tal deve ser o primeiro grande resultado direto da filosofia positiva, a manifestação pela experiência das leis que nossas funções intelectuais seguem em suas realizações, e, por conseguinte, o conhecimento preciso das regras convenientes para proceder de modo seguro na investigação da verdade.94

Ou seja, nossas funções intelectuais devem ter um regimento que as conduzam de forma diligente ao encontro da verdade, mediante a investigação e observação dadas pela experiência. Em suma, o grande resultado da filosofia positiva está em dirigir o espírito humano na construção de uma metodologia que lhe propicie instrumentos precisos para a descoberta da verdade. Assim, como conseqüência, temos a necessidade de reformar o sistema educacional para uma educação positiva. Por fim, Comte compreende que somente a filosofia positiva pode prover uma base sólida para a reorganização social. Ele entende que os sistemas sociais de sua época encontravam-se em uma verdadeira anarquia intelectual, proveniente de estarem ainda nos estados primitivos do espírito humano. Somente com a filosofia positiva poder-se-ia construir uma nova sociedade, como ele mesmo afirma: (...) a filosofia teológica e a filosofia metafísica disputam entre si a tarefa, muito superior às forças de cada uma, de reorganizar a sociedade. Sob esse aspecto, só elas permanecem lutando. A filosofia positiva interveio até agora na contestação apenas para criticar a ambas, e nisto se saiu suficientemente bem para desacreditá-las inteiramente. Coloquemo-la, enfim, no estado de desempenhar um papel ativo, sem nos inquietar por mais tempo com debates que se tornaram inúteis.95

94 95

Ibidem, p. 15. Ibidem., p. 18-19.

54

Assim, acredita Comte que a filosofia positiva tem plenas condições de se lançar à construção dos novos modelos de sociedade, pois é o ápice da formação do espírito humano a ponto de apaziguar “(...) a crise revolucionária, que atormenta os povos civilizados (...)”96.

96

Ibidem, p. 19.

2. A CRÍTICA DE HABERMAS AO POSITIVISMO, UMA RECONSTRUÇÃO.

No capítulo introdutório de nosso trabalho, intentamos reconstruir os pressupostos da Teoria do Conhecimento na Modernidade. Sendo justificado pela nossa intenção de reconstruir a Teoria do Conhecimento de Habermas como Teoria Crítica da Sociedade. Assim, para lograrmos êxito, não poderíamos deixar de trabalhar na reconstrução da crítica que Habermas faz ao Positivismo, como prenúncio de sua teoria. Dessa forma, procuraremos fazer tal reconstrução, iniciando pelo

contexto

propiciador

do

advento

do

Positivismo

como

auto-

fundamentador das Ciências, que o próprio Habermas salienta, em seu texto Conhecimento e Interesse (que teremos como base teórica). Trabalhando as críticas que Hegel e Marx fazem, o primeiro ao pensamento kantiano e o segundo ao pensamento hegeliano, que são assumidas por Habermas, como nos afirma Durão, ao “(...) recuperar o conceito de reflexão de Hegel, Habermas pretende radicalizar a teoria do conhecimento inaugurada por Kant, mas nunca suprimila (...)”97, ao contrário, seu interesse é levá-la mais adiante em seu propósito, mas principalmente, salientando que tais críticas deram o pano de fundo para o surgimento e consolidação do Positivismo como fundamento último das ciências. 97

DURÃO, op. cit., p. 78.

56

2.1. A CRÍTICA DE HEGEL A KANT

Ao trabalharmos a Teoria do Conhecimento de Kant (vide O Criticismo de Immanuel Kantiano) salientamos que, para Kant, existe a necessidade de uma crítica da Razão para que o conhecimento adquirido possa ser confiável, no intuito de ser um saber possível, ou seja, que esteja dentro dos limites da Razão. É, justamente nessa crítica à Razão, que Hegel (1770 - 1831) vai desferir seu primeiro golpe ao pensamento kantiano, como nos afirma Habermas “(...) Entretanto, como poderia a faculdade cognitiva ser examinada criticamente se tal crítica deve igualmente reivindicar, ela própria, ser verdadeiro conhecimento?”98. Aprofundando mais a questão, com uma citação do próprio Hegel: O desafio é, portanto, o seguinte: conhecer a faculdade cognitiva antes mesmo de conhecer. Seria o mesmo que propor-se a nadar antes de haver entrado na água. O exame das potencialidades do conhecimento é, ele mesmo, um saber; não pode chegar aquilo que pretende ser, eis que já é um saber em si.99

A crítica de Hegel que Habermas está reconstruindo se funda no que este vai chamar de círculo, sobre o qual Durão afirma: A crítica de Hegel a Kant, que permite radicalizar a teoria do conhecimento, pretende flagrá-la no círculo (Zirkel) do conhecimento. Esse círculo é próprio da filosofia transcendental; ocorre porque o sujeito cognoscente, para poder confiar nos seus conhecimentos adquiridos precisa certificar-se das condições do saber possível. Deste modo a faculdade cognitiva deve ser examinada criticamente para que

98 99

HABERMAS, op. cit., p. 28. HEGEL. Preleções sobre a história da Filosofia. Apud HABERMAS, op. cit., p. 28.

57

a crítica possa conhecimento.100

reivindicar

ser,

ela

própria,

verdadeiro

Contudo, ao tentar estabelecer a crítica do conhecimento, essa crítica é ela própria conhecimento, assim necessita, também, ser criticada para que possa ser um saber possível, e assim ad eternum na busca do fundamento último do saber possível. Reinhold pretendeu dar solução ao problema do círculo apelando para o que denominou ‘procedimento problemático’101, contudo, tal procedimento não é satisfatório, apesar de ainda hoje estar sendo recomendado em contexto metodológico do positivismo102. O procedimento problemático consiste em não se colocarem todas as proposições de uma única vez em questionamento, assim se poderia estar particionando as proposições, e a “(...) infinita possibilidade de se repetir tal processo seria garantia suficiente no sentido de todas as pressuposições serem, em princípio passíveis de questionamento (...)”103. Habermas vai apontar que a arbitrariedade com que se escolhem as proposições coloca em dúvida o processo, pois o procedimento está baseado num convencionalismo que acaba por excluir do processo de fundamentação enunciados básicos, além do que “Habermas considera que Kant jamais aceitaria o procedimento problemático, pois estava absorvido pela

DURÃO, op. cit., p. 79. HABERMAS, op. cit., p. 28. 102 Ibidem, loc. cit. 103 Ibidem, loc. cit. 100 101

58

idéia da filosofia primeira (...)”104. Sendo que a teoria do conhecimento tem, por aspiração de uma filosofia primeira, “(...) um empreendimento que toma o todo por seu objetivo; interessa-lhe a justificação crítica das condições do conhecimento possível enquanto tal. (...)”105. Habermas aponta para o fato de que a Teoria do Conhecimento não pode desistir de sua radicalidade, o que significa: “(...) não pode dispensar a

necessidade

incondicionada

da

dúvida.

(...)”106

e,

principalmente,

compreender que o “(...) conhecimento somente poderia ser seguro se começasse, desde as origens, por um fundamento absolutamente certo.”107 Durão continua sua argumentação, demonstrando que é justamente esse fundamento último que a crítica do círculo de Hegel nega. (...) Por mais que Kant julgasse não pressupor nada e tudo fosse demonstrado pela razão pura, o círculo prova exatamente que ele parte de pressupostos que não reconhece como tal, exatamente porque ignora a origem da própria crítica do conhecimento. O conhecimento das condições do conhecimento possível já é conhecimento, porém não conhecimento sem pressupostos, mas deve remeter a uma dimensão precedente da qual a própria consciência crítica emergiu.108

Assim, Habermas apresenta os argumentos de Hegel, que de antemão renega a Teoria do Conhecimento ao se deparar com o círculo cognitivo, pois o considera como prova da inverdade do criticismo. Habermas

Durão, op. cit., p. 79-80. HABERMAS, op. cit., p. 28-29. 106 Ibidem, p. 29. 107 DURÃO, op. cit., p. 80. 108 Ibidem, loc. cit. 104 105

59

vai adiante e, no lugar de renegar a Teoria do Conhecimento, a radicaliza por compreender que Reflexivamente a consciência não pode, de qualquer modo, fazer transparente outra coisa do que o próprio referencial de sua concepção. O círculo que Hegel exibe à teoria do conhecimento como sendo uma péssima contradição será, por sua vez, justificado na experiência fenomenológica enquanto forma de reflexão. Faz parte da estrutura do conhecer-SE que se tenha conhecido para poder conhecer de forma explícita: tão-somente algo que se sabe anteriormente pode ser trazido à memória como resultado e percebido em sua gênese.109

Habermas apresenta um ponto de contradição na crítica de Hegel ao apontar o círculo cognitivo. Tal contradição se pauta no fato de que Hegel faz, acertadamente, a crítica à Teoria do Conhecimento, contudo ele utiliza-se da dúvida condicional para atingir seu objetivo. Assim sendo, Habermas vê que o procedimento de Hegel não levaria à desconfiança do criticismo, ao contrário, radicalizá-lo-ia ainda mais. Como nos afirma Durão: (...) Hegel também se move dentro da estratégia da dúvida incondicional. Nesse caso, ao flagrar o criticismo na contradição do círculo cognitivo, ele não considera que a reflexão fenomenológica pode redimir a teoria do conhecimento do absolutismo ao assumir pressupostos irrefletidos, recusando a pretensão de filosofia primeira e dirimindo uma falsa consciência pela recordação analítica de sua gênese. A fenomenologia tem antes a tarefa de retomar a dúvida incondicionada que o criticismo não realizou por assumir pressupostos irrefletidos.110

Em vez de redimir a Teoria do Conhecimento, como nos diz Durão, Hegel de forma sorrateira o nega como uma abstração, tomando-o como indício de pseudoverdade, como nos diz Habermas

109 110

HABERMAS, op. cit., p. 29. DURÃO, op. cit., p. 82.

60

(...) Hegel pensa estar indo além da crítica do conhecimento ao pilhar em flagrante o absolutismo de uma teoria do conhecimento calcada sobre pressupostos irrefletidos, ao demonstrar a mediação da reflexão por algo que a antecede, torpedeando assim a restauração da filosofia originária, elaborada na base do transcendentalismo. (...)111

Temos de reconhecer que tal atitude de Hegel se pauta no fato de este supor um conhecimento absoluto, conhecimento que, segundo Habermas, não tem necessidade de passar pelo crivo do criticismo, mesmo já tendo sido radicalizado pela reflexão fenomenológica. (...) A fenomenologia aparece marcada, portanto, por uma ambigüidade: ela dispunha da força para obrigar a teoria do conhecimento à reflexão sobre seus próprios pressupostos; em lugar disso suprime a teoria do conhecimento como uma falsa consciência em nome de um novo começo incondicionado.112

Assim, Habermas aponta para uma fraqueza da crítica feita por Hegel, que em virtude de levar em consideração um saber absoluto, pretende na verdade renegar a contribuição de Kant, com o criticismo, em vez de radicalizá-lo pela reflexão fenomenológica. Dessa forma, o criticismo transcendental sucumbe diante de seus adversários positivistas. Em

continuidade

à

nossa

reconstrução

da

Teoria

do

Conhecimento de Kant, apresentamos a compreensão que este tem do Aparato Cognitivo*. É sobre esse que Hegel desferirá seu segundo golpe no pensamento kantiano. Durão afirma que

HABERMAS, op. cit., p. 30. DURÃO, op. cit., p. 82. Aqui, estamos assumindo a seqüência apresenta por Habermas das críticas feitas por Hegel a Kant em sua obra Conhecimento e Interesse. Fazemos tal consideração por não termos seguido essa ordem na reconstrução da Teoria do Conhecimento de Kant neste trabalho.

111 112 *

61

O que Hegel censura à teoria do conhecimento é a teoria do órganon cognitivo, que caracteriza exatamente o criticismo transcendental. O sujeito transcendental dispõe das condições do conhecimento possível, as quais servem ou de instrumento (Instrument) para constituir o objeto ou como um espaço intermediário (Medium) receptivo ao que provém do objeto.113

O órganon cognitivo seria, como vimos, um instrumento pelo qual o sujeito construiria o conhecimento do objeto ou o meio pelo qual tomaria conhecimento do objeto. Contudo, Hegel afirma que tal procedimento é inútil, pois ao subtrairmos tudo que tal aparato realizou nessa mediação do conhecimento, teríamos o conhecimento do objeto em-si. Hegel afirma Se subtraímos de uma coisa aquilo que o instrumento nela realizou, então a coisa — aqui o absoluto — volta a ser o que já era antes de fazermos esses esforços inúteis... Ou, quando o exame do conhecimento, por nós representado como Medium, ensina-nos a reconhecer a lei de sua refração luminosa nada resolve subtrair essa refração do resultado, pois o conhecimento não é a quebra do raio mas o próprio raio pelo qual a verdade nos toca.114

Hegel não admite a possibilidade do Aparato Cognitivo por compreender que o conhecimento é absoluto e, enquanto tal, não pode ser mediado na sua relação com o sujeito. É um retorno ao objetivismo, pois implica termos o conhecimento no objeto, enquanto absoluto e não na relação que existe entre o sujeito e o objeto como compreendemos no criticismo transcendental de Kant. (...) Dentro da dúvida incondicional de Hegel, são os pressupostos do conhecimento que impedem o conhecimento. A verdadeira dúvida incondicionada deve negar esses pressupostos, mas se for assim, o saber deve saber a coisa em-si, sem os limites do quadro categorial.

113 114

DURÃO, op. cit., p. 82. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. Apud HABERMAS, op. cit., p. 31.

62

Na medida em que esse saber se sobrepõe a qualquer limite é um saber absoluto.115

Habermas se mantém firme na postura de compreender o criticismo transcendental radicalizado, como vimos anteriormente. Ou seja, ele não vai abrir mão, até mesmo porque o (...) quadro categorial desempenha, para Habermas, uma papel semelhante ao que lhe atribuiu Kant. A objetividade do conhecimento possível não pode ser pensada fora das condições do conhecimento possível através de um quadro categorial (...)116

Habermas continua sua argumentação afirmando que Hegel pressupõe uma separação entre o absoluto e o conhecimento em-si, reportando para um conhecimento embasado na relação absoluta entre sujeito e objeto. Afirma ainda Para o criticismo, porém, tudo isso apresenta-se de outra forma. Como é órganon que gera o mundo — e só em seu seio é possível surgir algo como a realidade — ele só pode, a cada vez, revelá-la, e não disfarçála sob as condições de seu funcionamento.117

Como afirma Habermas, não faz muito sentido para a filosofia transcendental pensar o saber possível sem identificarmos as condições pelas quais tal saber se torna possível. Isso apresenta a inconsistência da crítica levantada por Hegel, pois esta pressupõe justamente o que o órganon põe em questão, a saber, um conhecimento absoluto. Desta forma, o que Habermas almeja, ao recuperar a crítica de Hegel a Kant, não é eliminar os pressupostos da teoria do conhecimento, e sim DURÃO, op. cit., p. 82-83. Ibidem, p. 83. 117 HABERMAS, op. cit., p. 32. 115 116

63

mostrar para si próprio os pressupostos que ela julga não possuir; pois a teoria do conhecimento é concebida como uma filosofia primeira dentro da estratégia da dúvida incondicional, segundo a qual nada pode ser assumido pela razão que provenha da autoridade externa, mas o seu caráter autônomo lhe permite colocar tudo a qualquer momento, em dúvida.118

Para Habermas, a crítica do órganon cognitivo de Hegel tem um ponto justificável, a saber, o “(...) desdobramento dos dois modelos cognitivos, o do instrumento e o da mediação (...)”119, pois trazem à tona pressuposições implícitas em um arcabouço teórico que pretende não possuir pressupostos de modo algum. Recordemos, como nos diz Durão, que (...) a contradição que Habermas descobre no criticismo não é suficiente para invalidar a filosofia transcendental. O que ele pretende é mostrar tão somente que a filosofia crítica não parte de um começo incondicionado, como julgava, mas tem que recordar os pressupostos que a tornam possível. (...) O que fica vedado é a alternativa de fundamentação última, inclusive para a filosofia transcendental (mesmo nas versões contemporâneas como a de Apel), pois sempre resta a possibilidade de se aplicar, sobre a filosofia transcendental, os argumentos transcendentais que ela mesma justifica e revelar os pressupostos de quem pretende nada pressupor, ou, pelo menos, não pressupor mais do que julga pressupor.120

Habermas aponta que ao reconhecermos o conhecimento mediatizado pelo órganon temos que a crítica está obrigada a subentender, por vários conceitos pressupostos, o sujeito cognoscente assim como sobre a categoria do verdadeiro saber, pois (...) ao partirmos, por um lado, de juízos considerados certos e, por outro, do Eu para o qual a certeza vige, reconstruímos a organização

DURÃO, op. cit., p. 84-85. HABERMAS, op. cit., p. 33. 120 DURÃO, op. cit., p. 87-88. 118 119

64

da faculdade cognitiva como núcleo das condições transcendentais, sob as quais o saber se torna possível. (...)121

Habermas lembra que no princípio da crítica nada mais há que a dúvida incondicional. Esta, desde Descartes a Kant, não necessita de fundamentação122 mas está em si mesma legitimada “(...) como um momento de razão (...)”123. A própria consciência que se critica, vai afirmar Habermas, não necessita ser incluída na dúvida metódica, haja visto ser ela o “(...) Medium no qual a consciência constitui-se como consciência certificada de si mesma (...)”124. Essas são evidências que não satisfazem mais como hipóteses básicas do racionalismo. Desse modo, há a necessidade de se compreender que para “(...) duvidar devem-se admitir como válidas determinadas pressuposições sem as quais a dúvida se auto-refuta, pois solapam as condições da própria dúvida”125. À dúvida radical, que não precisa ser nem fundamentada e nem exercitada, não mais lhe é concedida uma função transcendental; no máximo, ainda uma psíquico-cognitiva. É por isso que, na teoria da ciência mais recente, a dúvida metódica dá lugar a uma postura crítica que continua, sem dúvida, comprometida com os princípios fundamentais do racionalismo mas, em si mesma, é incapaz de uma fundamentação.126

Esta afirmação de Habermas aponta para a teoria da ciência proposta por Popper, demonstrando que apesar de a dúvida metódica ceder

HABERMAS, op. cit., p. 33. Ibidem, loc. cit. 123 Ibidem, loc. cit. 124 Ibidem, loc. cit. 125 DURÃO, op. cit., p. 86. 126 HABERMAS, op. cit., p. 33. 121 122

65

lugar a uma postura mais crítica profundamente comprometida com os princípios do racionalismo, não pode ser fundamentada, pois do “(...) contrário recairia na pretensão da filosofia primeira da dúvida incondicionada, que acredita poder fundamentar a si mesma, pois nada pressupõe se não a autonomia da razão para duvidar”127. Diante de tal argumentação, resta-nos solucionar o seguinte problema que se levantou: quais são as pressuposições que se escondem no órganon cognitivo enquanto Medium do conhecimento possível? Habermas apresentará três pressuposições para responder a esse problema, a saber: um conceito normativo de ciência, um conceito normativo de EU e a distinção entre razão teórica e razão prática. Vejamos cada um deles para compreendermos a reconstrução da crítica de Hegel a Kant feita por Habermas.

2.1.1. Um conceito normativo de ciência

Vimos, em nossa reconstrução da Teoria do Conhecimento de Kant, que o mesmo toma como modelo de conhecimento a Matemática e a Física de sua época por terem conseguido delimitar com precisão seus objetos de estudo. Habermas acrescenta a isso que aparentemente

127

DURÃO, op. cit., p. 87.

66

(...) ambas as disciplinas destacam-se, em termos relativos, por um continuado progresso cognitivo. Elas satisfazem a um critério que Kant reveste com a fórmula estereotipada ‘andamento seguro da ciência’. (...)128

Kant está maravilhado com a Matemática e a Física de seu tempo, pois aparentavam trilhar caminhos por demais seguros na construção de seus conhecimentos específicos, em detrimento de outros saberes que pareciam mais com o tatear de um cego no escuro, tal era o caso da Metafísica. Principalmente por esta sempre reiniciar o processo do conhecimento, renegando tudo que os predecessores pareciam ter construído. Como o próprio Habermas nos afirma (...) Kant sente-se não apenas psicologicamente animado a refazer a metafísica de acordo com o mesmo parâmetro básico; ele depende, muito mais, deste exemplo, já que a crítica do conhecimento, aparentemente isenta de pressupostos, precisa arrancar com um precedente, isto é, com um critério de validade inerente aos enunciados científicos, um critério não-identificado mas, ao mesmo tempo, obrigatório.129

Podemos concluir, dessa afirmação de Habermas, que Kant aponta para a pressuposição inicial, que devido ao órganon cognitivo, temos um conceito normativo de ciência, ou seja, um modelo de conhecimento com o qual a crítica ao se lançar sobre a verificação de possibilidade de um determinado saber tentará enquadrá-lo. Assim, Kant acaba se equivocando, pois deixa de lado a propriedade histórica do saber, cristalizando um modelo de forma a-

128 129

HABERMAS, op. cit., p. 34. HABERMAS, op. cit., p. 35.

67

histórica, não prevendo a possibilidade de desenvolvimento formativo que a consciência do sujeito cognoscente tem. Como nos diz Durão, A sugestão que Habermas vai buscar em Hegel para radicalizar a crítica do conhecimento está em que a consciência crítica evite assumir um pré-conceito do que deve valer como ciência e se deixa envolver com o saber que se mostra de modo a poder acompanhar o próprio processo formativo da consciência.130

2.1.2. Um conceito normativo de EU

No intuito de construir um tribunal em que fosse possível proferir sentenças sobre os equívocos da Razão, por ter seu emprego deslocado da experiência, Kant aponta, sem titubear, para a realização desse tribunal na autoconsciência em que estamos disponíveis para nós mesmos como o ‘eu penso’, ou seja, como unidade sintética originária da apercepção, estando o ‘eu penso’ adaptado ao órganon congnitivo. Pois, enquanto “(...) ‘eu penso’, ele deve poder acompanhar todas as minhas representações como uma unidade abstrata capaz de realizar as operações sintéticas dessas representações.”131 Hegel vê esse ‘eu penso’ como uma identidade vazia. Para ele, essa identidade deve estar atenta à experiência da reflexão fenomenológica. Em tal reflexão, as relações do eu com os objetos da experiência vão se dando de forma que o sujeito cognoscente tenha plenas condições de recordar a experiência vivida pela consciência durante todo o processo. “(...) A

130 131

DURÃO, op. cit., p. 90. DURÃO, op. cit., p. 91.

68

autoconsciência que emerge desta experiência não é mais a abstração da autoconsciência transcendental, mas a rica multiplicidade de seu vir-a-ser.”132 Desse modo, para Habermas, uma reflexão que atente para um conceito normativo de ciência como para um conceito normativo do EU “(...) está condenada àquilo que Hegel chama de experiência fenomenológica (...)”133, ou seja, transformar a ciência e a consciência que a interpreta de forma fenomenológica, invalidando, assim, a possibilidade de uma dedução transcendental que pode apreender somente pelo quadro categorial com base no órganon cognitivo134. Vemos aqui o rompimento de Habermas com Hegel, pois este, para continuar sua argumentação contrária ao conceito normativo do EU, parte para o conceito de saber absoluto, como nos afirma Durão: (...) Habermas não pode mais acompanhar Hegel, porque o “nós” da fenomenologia chega ao ponto de vista do saber absoluto a partir do qual contempla o movimento da consciência na constituição dos objetos da experiência. Para Habermas o “nós” também é arrastado para dentro da reflexão ao invés de contemplar um passado que deixou atrás de si e do qual se desvencilhou.135

2.1.3. Distinção entre razão pura e razão prática

Habermas salienta que, na Crítica da Razão Pura, Kant aponta para uma concepção de EU distinta do da razão prática, ou seja, na primeira ele vê o EU como unidade da autoconsciência, já na razão prática define o EU como Ibidem, loc. cit. HABERMAS, op. cit., p. 36. 134 DURÃO, op. cit., p. 91. 135 DURÃO, op. cit., p. 91. 132 133

69

livre poder de decisão, implicando, até mesmo como algo evidente, uma separação entre a crítica do conhecimento e a crítica do agir racional. Habermas afirma (...) Esta diferença torna-se, porém, problemática quando a consciência crítica tem que emergir, ela mesma, da reflexão do surgir histórico da consciência. Neste caso ela é elemento do processo formativo, não importando como esse se encerre; neste processo corrobora-se, em cada fase, a renovada compreensão íntima de um novo posicionamento: a reflexão rompe — isto já vale para o primeiro degrau, para o mundo da certeza sensível — com uma falsa concepção das coisas e, ao mesmo tempo, com o dogmatismo de uma existência que apenas se mantém por costume e tradição. (...)136

Tal argumentação aponta para o fato de compreendermos a reflexão como um ato de conhecer, que nos liberta das amarras de falsas consciências tendo, assim, um fim prático, ou como nos diz Durão, a “(...) reflexão realiza a unidade entre razão pura e razão prática, pois ela guarda semelhança

com

o

ideal

socrático

de

libertação

através

do

auto-

conhecimento.”137 Habermas parte do conceito hegeliano de negação determinada. Para compreendermos essa negação, compartilhamos da descrição feita por Durão que afirma “(...) negação não é o puro nada, mas o nada daquilo do qual resulta. (...)”138. Portanto, tal negação não atinge nenhuma conexão lógicoimanente, porém, compreende o progresso de uma reflexão que implica que razão teórica e razão prática são uma e a mesma coisa.

HABERMAS, op. cit., 37. DURÃO, op. cit., p. 92. 138 Ibidem, loc. cit. 136 137

70

Assim, “(...) consideremos que nesse tipo de consciência categorias de concepção-de-mundo e normas de ação estão entrelaçadas, então se torna plausível aceitar o momento afirmativo que se esconde precisamente na negação (...)”139 de um momento de consciência, ou como diria Durão, de um Lebensform, ou forma de vida. Habermas está demonstrando que um momento de consciência anterior não é de todo descartado ao superá-lo num momento de consciência seguinte, ao contrário, o momento anterior não sai de cena simplesmente, mas deixa vestígios no momento que o substitui. “(...) O estado superado é, ao mesmo tempo, conservado no ato revolucionário, porque a compreensão interna da nova situação consiste, precisamente, na experiência do rompimento revolucionário (...)”140 com o momento de consciência anterior, dando-se como um processo formativo da espécie. Com a argumentação baseada no conceito de negação determinada, Habermas aponta um sentido para, ainda, se considerar a fundamentação como algo válido, não como fundamentação última, mas, também, não a abandonando totalmente como o faz o falibilismo de Popper. Desta feita, compreendemos que nossas escolhas não são arbitrárias, seguindo “(...) um potencial de razão, porque um novo modelo se fundamenta pela recordação analítica dos fracassos do modelo anterior. (...)”141

HABERMAS, op. cit., p. 38. Ibidem, loc. cit. 141 DURÃO, op. cit., p. 93. 139 140

71

Habermas é categórico ao constatar que a semelhança entre razão teórica e razão prática se dá somente nesse processo emancipatório, como nos afirma Durão: Como a emancipação que se obtém pelo recordar analítico das dissoluções das falsas formas de vida é tanto um processo cognitivo quanto prático, razão pura e razão prática vão coincidir apenas nesses atos emancipatórios (...) Mas na práxis cotidiana, ao menos na forma de vida moderna, com sua cultura de especialistas, razão pura e razão prática se distinguem, afinal a reflexão não foi institucionalizada, pelo menos ainda, nas sociedades ocidentais existentes.142

Habermas considera que Hegel poderia ter radicalizado a crítica do conhecimento ao submeter seus pressupostos à autocrítica; este, ao contrário,

pretende

pela

reflexão fenomenológica

suprimir o modelo

transcendental. Entretanto, Habermas demonstra que a “(...) experiência fenomenológica movimenta-se em uma dimensão onde as determinações transcendentais se auto-consntituem (...)”143, ou seja, a reflexão apreende a história como “(...) sucessão de modelos transcendentais interpretadores do domínio do objeto. (...)”144. Hegel está, digamos, obcecado pelo conceito de saber absoluto, que lhe impede de ter essa compreensão sobre a crítica do conhecimento. Sendo assim, Hegel é induzido por esse conceito a pressupor, como nos diz Durão145, a identidade entre sujeito e objeto, fato inimaginável na crítica transcendental.

Ibidem, loc. cit. HABERMAS, op. cit., p. 39. 144 DURÃO, op. cit., p. 93. 145 DURÃO, op. cit., p. 94. 142 143

72

Implodindo, assim, com esta última, principalmente no quesito do órganon cognitivo, em vez de radicalizá-la. Como vimos, Kant, em sua crítica do conhecimento, deixou-se deslumbrar pela física de seu tempo, derivando desta, enquanto conceito empírico de ciência, os critérios de uma ciência possível. E que Hegel, ao criticar Kant, compreende que a crítica do conhecimento não pode deixar-se levar por um conceito normativo de ciência, mas permitir que os parâmetros que a conduzam brotem de dentro para fora da experiência reflexiva. Não procede coerentemente com essa crítica, antes, em vez de radicalizar a crítica do conhecimento a suprime, chegando ao conceito de ciência especulativa, pois relativiza tal crítica do conhecimento sob os pressupostos da identidade filosófica. Eis a porta aberta para o Positivismo, segundo Habermas. Pois, Hegel acaba por colocar a filosofia numa posição anterior à crítica kantiana, possibilitando que “(...) as ciências que atuam metodicamente, sejam as da natureza, sejam as do espírito, só podem evidenciar-se como limitações do saber absoluto e, enquanto tais, envergonharem-se de sua situação (...)”146 Assim, o que vemos é uma radicalização ambivalente da crítica do conhecimento, pois não consegue se colocar numa posição esclarecida da

146

HABERMAS, op. cit., p. 43.

73

filosofia frente à ciência, ao contrário “(...) as relações entre filosofia e ciência evaporam-se de todo na discussão. (...)”147

2.2. METACRÍTICA DE MARX A HEGEL – SÍNTESE MEDIANTE O TRABALHO SOCIAL148

A intenção de Habermas na reconstrução dessa crítica de Marx a Hegel está em demonstrar a releitura que Marx (1818 – 1883) faz da filosofia hegeliana sem, contudo, utilizar-se da filosofia da identidade. Dando assim os pressupostos necessários para que Habermas reconstrua a teoria crítica do conhecimento radicalizada pela reflexão fenomenológica149. Este lacre da filosofia da identidade, posto sobre o saber absoluto, parte-se quando a exterioridade da natureza (...) não apenas é concebida de forma aparente, mas assinala a imediatez de um substrato do qual o espírito depende de maneira contingente. Sendo assim natureza antecede o espírito, mas no sentido de um processo natural que produz, de igual modo, o ser natural do homem e sua natureza circundante (...)150

Habermas salienta que Marx, na sua primeira tese contra Feuerbach, a tematização do homem não tem um caráter antropológico, contudo, um sentido teórico-cognitivo. Marx busca compreender a parte ativa, que foi desenvolvida pelo idealismo, de maneira materialista. Em outras palavras, Marx compreende que a significação do objeto é apreendida como atividade humana, adquirindo o sentido específico da constituição dos objetos.

Ibidem, loc. cit. Optamos por manter o título que o próprio Habermas dá a essa seção em seu livro Conhecimento e Interesse. 149 DURÃO, op. cit., p. 109. 150 HABERMAS, op. cit., p. 44. 147 148

74

De maneira natural, compartilham do momento em-si do objeto, mas pela “(...) atividade humana trazem consigo o momento da essência do objeto produzido. (...)”151, ou seja, além de produzir os objetos que lhe asseguram a sobrevivência e o homem produz, concomitantemente, o significado desses objetos. (...) Por um lado, a atividade objetivada é entendida por Marx como realização transcendental; a ela corresponde a construção de um mundo no qual a realidade se submete às condições da objetividade de objetos possíveis. Por outro lado, Marx vê aquela efetivação transcendental fundada em processos reais de trabalho. Sujeito da constituição-de-mundo não é uma consciência transcendental em si, mas a espécie humana concreta, que reproduz sua vida sob condições naturais. (...) 152

É no trabalho social que Marx compreende que o ser humano é capaz de atuar e transformar a natureza que lhe cerca, não só produzindo os objetos que lhe são necessários, mas também, conceituando-os. “(...) Por essa razão é que o objeto, como atividade objetivada, é uma realização transcendental, pois é o trabalho que oferece as condições para sua constituição, preservando, ao mesmo tempo, o seu em-si (...)”153 Compreende que o trabalho é uma condição existencial que independe das formas societárias e de agrupamento do gênero humano. “(...) Natureza decompõe-se, em nível antropológico, em natureza subjetiva do homem e em natureza objetiva de seu meio ambiente; ao mesmo tempo que ele se medeia pelo processo de reprodução do trabalho social.”154

Ibidem, p. 45. Ibidem, loc. cit. 153 DURÃO, op. cit., p. 111. 154 HABERMAS, op. cit., p. 46. 151 152

75

Para Marx, o trabalho é um processo que medeia a interação homem-natureza, regulando e controlando pela própria ação da natureza e das forças e capacidades do homem de colocar sua capacidade de transformar o material da natureza em forma útil à sua vida. Desse modo, o trabalho não é somente uma categoria antropológica, mas também uma categoria da Teoria do Conhecimento. Como afirma Habermas (...) O sistema da atividade objetivada forja as condições fáticas de uma possível reprodução da vida social e, ao mesmo tempo, as condições transcendentais da objetividade possível de um objeto da experiência. Quando concebemos o homem sobe a categoria de um animal que fabrica instrumentos, referimo-nos, de uma só vez, a um esquema do agir e a um esquema de concepção-de-mundo. (...) 155

Assim, o trabalho é mais que um agir natural é a regulação metabólica e constituinte do mudo, sendo possuidor de um valor referencial de síntese entre o homem e a natureza. O conceito de síntese aqui apresentado por Habermas, com referência ao pensamento de Marx, é distinto do conceito de síntese do idealismo alemão. Pois, “(...) ao entendermos trabalho social como uma síntese privada de seu sentido idealista, corre-se o risco de um mal-entendido lógicotranscendental. (...)”156, desse modo, faz-se necessária uma pequena digressão, acompanhando o próprio desenvolvimento da argumentação habermasiana, para que compreendamos corretamente a questão da síntese pelo trabalho social de Marx.

155 156

Ibidem, loc. cit. Ibidem, loc. cit.

76

Durão apresenta-nos que (...) no idealismo alemão, síntese é um conceito da lógica material. Ao invés de uma lógica meramente formal, o idealismo alemão correlaciona forma e conteúdo, na medida em que o juízo é uma relação formal entre termos, mas é também um produto do entendimento, da autoconsciência ou do espírito, as quais produzem a síntese como unidade do sujeito e predicado no juízo.157

Assim, podemos perceber que no idealismo alemão a síntese tem a característica de unir sujeito e predicado no juízo predicativo, com o intuito de se poder afirmar algo objetivamente e não somente de forma subjetiva. Desse modo, o juízo é composto ligando-se sujeito e predicado pela cópula “é”, com o objetivo de tornar o juízo inteligível não somente para aquele que o enuncia, no momento que o faz, mas também que o “(...) juízo possa representar

uma

propriedade

objetiva

enunciada

com

pretensão

de

universalidade pelo enunciador. (...)”158, sendo que a unidade sintética originária da apercepção, o “eu penso” kantiano que acompanha todas as minhas representações, é que dá garantias de que a síntese entre sujeito e predicado possa ser realizada, de forma objetiva, pela cópula “é”. Em Marx, a síntese não se dá nesse Medium do pensamento, mas pelo trabalho social. Habermas afirma que O ponto de referência para uma reconstrução das atividades sintéticas não é a lógica mas a economia. Não a concentração irrepreensível de símbolos, mas o processo sócio-vital, a geração material e a apropriação dos produtos oferecem então o estofo material no qual a

157 158

DURÃO, op. cit., p. 112. Ibidem, loc. cit.

77

reflexão pode tomar impulso, trazendo à consciência as realizações sintéticas subjacentes.159

Podemos constatar que para Marx a síntese materialista consiste na “(...) produção material da espécie como uma outra natureza (natureza subjetiva)”160 sobre a natureza objetiva e não nas conjunções de uma lógica simbólica. Contudo, vale ressaltar, que tal síntese não incorre no risco de absolutizar-se, pois o ponto de partida marxiano não é a filosofia da identidade, garantindo a diversidade de forma, da mesma maneira que na apercepção originária kantiana161. Habermas salienta que as formas não compõem as categorias do entendimento, mas da atividade objetivada, bem como a unidade da objetividade de objetos possíveis não se formam na consciência transcendental e sim na “(...) matéria disponível do agir instrumental (...)”162. Todo material disponível na natureza não adquire forma se não pelo trabalho social e no processo cognitivo, visto que o trabalho social apresenta-se como modelagem da natureza, ou seja, sujeição dessa a um propósito subjetivo do homem que a molda. Habermas aponta ser justamente nisso que se pontua a distinção entre Marx e Kant, ou seja, entre “(...) material de trabalho, instrumentos de trabalho e trabalho vivo [Marx] com material de percepção

HABERMAS, op. cit., p. 49. DURÃO, op. cit., p. 113. 161 HABERMAS, op. cit., p. 52. 162 Ibidem, loc. cit. 159 160

78

sensitiva, categorias de compreensão e capacidade de imaginação [Kant] (...)”163. Desse modo, a síntese idealista da apercepção intuitiva, que é executada pela imaginação, tem, efetivamente, sua unidade sob o domínio das categorias do entendimento. Já a síntese materialista do trabalho, realizada mediante o trabalho social, tem, efetivamente, sua unidade sob o domínio das categorias do homem operante. O que nos mostra que “(...) o momento kantiano no conceito de uma síntese mediante trabalho social pode ser desenvolvido por uma teoria cognitiva de cunho instrumental. (...)”164. Como também argumenta Durão Acontece que Habermas interpreta o sentido de transcendental a partir do modelo do instrumento. E conseqüentemente também o caráter transcendental do trabalho social passa a ser visto sob a ótica do instrumento, daí apresentar-se como ação instrumental. Essa interpretação tem origem já na primeira geração de Frankfurt. Quando Adorno e Horkheimer concebem a razão formal e depois a razão instrumental, eles pensam no sentido do trabalho como instrumento sobre a natureza externa e interna que manipula objetos transformando-os em coisas.(...)165

Essa forma de reconstruir o argumento de Marx, com bases no trabalho social e no conceito transcendental instrumentalizado, permite a Habermas fazer uma conexão entre o transcendental, o trabalho social e a ação “(...) numa teoria materialista do conhecimento que se apropria das contribuições

de

Ibidem, loc. cit. Ibidem, p. 53. 165 DURÃO, op. cit., p. 117. 166 Ibidem, p. 118. 163 164

Kant,

Marx

e

Pierce.

(...)”166,

reinterpretando,

79

materialisticamente, os elementos constituidores do idealismo transcendental. Como nos afirma Durão (...) A consciência transcendental dá lugar à espécie que surge e permanece sob condições contingentes (a consciência transcendental surgia de forma incondicionada). A síntese conceitual é substituída pelo trabalho social, este não opera sobre o sujeito e predicado, mas impõe as condições subjetivas sobre a natureza, de tal forma que o produto não é o juízo, mas a mercadoria.167

Habermas continua sua argumentação demonstrando que o pensamento de Marx aponta, também, para um segundo momento, que ele denomina de momento não-kantiano. Tal momento se dá em virtude de Kant conceber que não só a coisa-em-si seria imutável, mas também, o fenômeno que depende de um quadro categorial específico168. Habermas nos afirma que (...) Pressupondo-se que sujeito e objeto não sejam idênticos, um conhecimento intelectivo-categorial só se torna possível, caso uma síntese primeva venha a subsumir, sob a unidade de uma apercepção, as múltiplas representações disponíveis. A síntese das representações realiza-se, assim, pelo fato de eu mesmo imaginar a identidade da consciência nessas representações. Isto ocorre na autoconsciência. (...)169

Tal momento reflexivo distingue-se pelo fato de não ocorrer no plano das coisas, que estão sob a rigidez do quadro categorial-instrumental, mas sim no plano de nossas linguagens teórico-interpretativas que se lançam a interpretar o objeto, clarificando assim “(...) a possibilidade de uma capacidade cognitiva, dividida em sensibilidade e entendimento, Kant precisa admitir uma

Ibidem, loc. cit. DURÃO, op. cit., p. 120. 169 HABERMAS, op. cit., p. 54. 167 168

80

faculdade que unifica, em uma autoconsciência, todas as minhas representações (...)”170 e estas pertencentes a mim. Habermas compreende que o conceito materialista da síntese mediante o trabalho social possibilita a Marx sistematizar sua concepção da história da espécie humana na dinâmica do pensamento iniciado por Kant, de maneira bem peculiar pela influência do pensamento de Fichte e, assim, retoma a objeção de Hegel ao ponto de partida da crítica do conhecimento. Entretanto, Habermas deixa claro que tal interpretação materialista não tem a força necessária para radicalizar a crítica do conhecimento pela reflexão fenomenológica, que possibilitaria uma força maior a esta contra a atrofia do pensamento imposta pelo positivismo. Como ele mesmo afirma (...) A razão disto eu vejo, em perspectiva imanente, na redução do ato autogerador da espécie ao trabalho. Ao lado das forças produtivas, nas quais o agir instrumental se sedimenta, a teoria societária de Marx introduz também, de saída, o quadro institucional: as relações de produção. (...)171

Demonstrando que o conceito materialista de síntese é débil demais para uma radicalização plena, impede-se que o próprio Marx compreenda como proceder sob este aspecto, ou seja, de uma crítica radical do conhecimento172.

HABERMAS, op. cit., p. 54-55. Ibidem, p. 59. 172 HABERMAS, op. cit., p. 59-60. 170 171

81

Concluímos,

então,

essa

fase

de

nossa

reconstrução

compreendendo que Kant coloca a ciência de sua época num lugar de destaque ao elevá-la como modelo de conhecimento, postulando-a como conceito normativo de ciência. Assim, a ciência passa a ocupar um espaço na reflexão que antes não ocupava, ainda mais, passa a ser normatizadora da possibilidade do saber. Hegel, com sua auto-reflexão fenomenológica, poderia ter propiciado uma radicalização da crítica do conhecimento kantiana. Entretanto, não levou às últimas conseqüências sua crítica, antes preferiu suprimir a crítica do conhecimento como pseudoverdade diante do saber absoluto. Ao postular seu saber Absoluto, relega, também, a ciência a um conhecimento canhestro, pois o saber do múltiplo torna-se insignificante diante do saber uno e totalizante do Absoluto. Essa atitude propicia o deslocamento da Filosofia de sua posição de crítica do conhecimento possível, não só proporciona o deslocamento como a faz renunciar de tal posição. Marx, que com sua metacrítica a Hegel, poderia ter devolvido a radicalização da crítica do conhecimento, demonstra uma postura muito acanhada para lhe permitir compreender completamente seu modo de proceder. Pois, justamente no ponto em que ele impede que Hegel logre êxito de sua crítica a Kant, é que ele mesmo é impedido de entender adequadamente

82

a intenção de sua investigação, ou seja, “(...) Marx reduz o curso da reflexão ao nível do agir instrumental. (...)”173. De tal sorte que a posição da filosofia diante da ciência poderia ter sido explicitamente esclarecida. Marx não realizou tal crítica, antes sucumbiu por tão acanhada posição, permitindo que o cientificismo materialista mais uma vez confirmasse a consumação do idealismo absoluto. Comte não precisou mais que tomar a Marx ao pé da letra para que o Positivismo, diante da renúncia da Filosofia, se tornasse autofundamentação da ciência. Habermas não concorda com tal postura e critica o Positivismo duramente. A reconstrução dessa crítica será objeto de nossa próxima seção.

2.3. A CRÍTICA DE HABERMAS AO POSITIVISMO DE COMTE

Habermas considera que o positivismo assinalou o fim da teoria do conhecimento proclamando uma teoria das ciências. Essa compreensão se dá ao constatar que a questão lógico-transcendental, que visa estabelecer as condições do conhecimento possível, explicitando o sentido inerente ao conhecimento enquanto tal, fora suplantada pelo positivismo, ao entender que essa questão perdeu o sentido com o advento das ciências modernas. Afirma ele A questão transcendental sobre as condições de um conhecimento possível só pode, em conseqüência, ser ainda colocada na forma de uma inquirição metodológica acerca das regras da montagem e do 173

HABERMAS, op. cit., p. 60.

83

controle, correspondentes às teorias científicas. Verdade é que também Kant aceitou tacitamente, através da física de sua época, um conceito normativo de ciência (...) Kant tomou a forma da ciência moderna como ponto de partida para uma investigação acerca da constituição de possíveis objetos de um conhecimento analítico-causal. O positivismo perde esta dimensão de vista não pelo fato de a ciência moderna não colocar de modo algum a questão do sentido do saber mas porque, para ele, esse fato a decide de antemão. (...)174

Habermas argumenta que o positivismo dogmatiza a fé das ciências nelas mesmas e assume uma posição bélica em relação à auto-reflexão em termos de uma teoria do conhecimento, garantindo a elas a não aproximação da filosofia. Assim, a prática da metodologia científica torna-se, ela mesma, a teoria do conhecimento. O positivismo postula a substituição de uma teoria do conhecimento pela teoria da ciência, mediante a supressão do sujeito cognoscente enquanto sistema de referência no ato de conhecer. Dessa forma, a teoria da ciência não mais pergunta pelo sujeito cognoscente, ao contrário, esse não é mais importante, mas sim as ciências enquanto sistema de proposições e metodologias procedimentais. Outra

característica

do

positivismo,

enquanto

auto-

fundamentação de uma teoria da ciência, é a autonomização da lógica e matemática, enquanto ciências formais, desvinculadas do conjunto de problemas do conhecimento. Coloca nas metodologias procedimentais das ciências os pressupostos de validade da lógica e matemática formais. Relegadas às ciências formais, não passam de procedimentos metodológicos que 174

HABERMAS, op. cit., p. 89.

84

instrumentalizam as ciências da natureza, nesse sentido, perdem de vista o atode-se-constituir dos objetos de uma experiência possível. Estando arrancadas da reflexão transcendental, perdem a origem “(...) das regras para a concatenação simbólica; ambas ignoram, em terminologia kantiana, as realizações sintéticas do sujeito cognoscente. (...)”175. O positivismo reprimiu persistentemente as tradições mais antigas da teoria do conhecimento e monopolizou de maneira tão eficiente a autocompreensão das ciências que, depois da auto-supressão da crítica do conhecimento por Hegel e Marx, a quimera objetivista não mais pode ser rompida por um regresso a Kant mas, tão-somente, de forma imanente através de uma metodologia sequiosa de seus próprios problemas e forçada a auto-refletir.176

Habermas demonstra que, já em seu nascedouro, o Positivismo é paradoxal. Tal pradoxo se dá ao exibir-se como uma nova filosofia da história, contradizendo-se por afirmar que o conhecimento possível está no âmbito das ciências experimentais. Comte apresenta a lei dos três estados enunciando uma regra de consumação da formação intelectual dos indivíduos, como da espécie. Habermas aponta para uma inconstância lógica em sua formação, pois “(...) o saber que Comte reivindica para interpretar o significado do saber positivo não está ele mesmo, subsumido sob as condições do espírito positivo. (...)”177, tal paradoxo é explícito ao compreendermos o objetivo do positivismo, ou seja, “(...) a propagação pseudocientífica do monopólio cognitivo da ciência.”178 Em

Ibidem, p. 91. Ibidem, loc. cit. 177 Ibidem, p. 92. 178 Ibidem, loc. cit. 175 176

85

outras palavras, propagar que somente a ciência tem condições de fornecer o verdadeiro conhecimento. Isso se dá pelo fato de não poder a teoria do conhecimento ser substituída pela teoria da ciência sem a mediação dessa colocação paradoxal do positivismo. Ao dotar a ciência de sentido próprio ao da filosofia da história impede que esta torne-se irracional, pois o sentido da teoria do conhecimento já havia sido aviltado. Como nos diz Habermas (...) O exame histórico-filosófico de uma conjuntura empírica, a saber, a análise tanto da história da pesquisa moderna quanto das conseqüências sociais do progresso científico institucionalizado passam a ocupar o lugar da reflexão do sujeito congnoscente acerca de si mesmo.179

O positivismo fundamenta a fé das ciências nelas mesmas, mediante a construção da história da espécie humana enquanto história do espírito positivo. Como pudermos ver no capítulo introdutório, é na lei dos três estados, que Comte justifica tal evolução humana para o estado positivo. Desse modo, Comte consegue seu intento de impor a teoria da ciência apoiando-a sobre a filosofia cientificista da história. Nessa busca cientificista, Comte propõe uma separação radical entre ciência e metafísica mediante uma contraposição factual. Tal argumento, segundo Comte, se respalda na necessidade que o espírito humano tem de voltar-se aos objetos de pesquisa que tenham plenas condições de serem analisados de forma criteriosa, deixando de lado as quimeras da imaginação. Assim, limitando “(...) à esfera do objeto de uma análise científica possível aos

179

Ibidem, p. 92-93.

86

‘fatos’, o positivismo pretende eliminar questionamentos carentes de sentido pelo fato de serem indecifráveis(...)”180. Tais questionamentos, referenciados por Habermas, são as proposições metafísicas. Habermas critica tal posicionamento comteano, afirmando não haver uma preocupação em distinguir entre fato e quimera “(...) por meio de uma imediata determinação ontológica do fatual. (...)”181, demonstrando que para o positivismo fato é tudo o que pode vir a ser objeto de rigorosa investigação científica. Ficando, assim, o positivismo carente em sua definição de ciência, como afirma Habermas: “(...) De acordo com os princípios sancionados pelo positivismo, ciência só se deixa definir através das regras metodológicas próprias ao modo de proceder do mesmo positivismo”182. Isso leva o positivismo a recuperar conceitos empíricos para sustentar seu posicionamento contrário à metafísica. Dois conceitos são importantes para esta compreensão: a busca de uma certeza sensível para validar todo e qualquer conhecimento; e, igualmente importante, a certeza metódica. A retomada desses conceitos pelo positivismo o leva à conclusão da precedência do método diante do fato investigado, simplesmente para podermos nos informar acerca do fato pelo auxílio dos métodos e formas procedimentais da ciência. Portanto, todo conhecimento terá sua validade garantida

exclusivamente por sua certeza

empírica, evidenciada sensivelmente bem como por sua certeza metódicoprocedimental exclusiva. Ibidem, p. 95. Ibidem, loc. cit. 182 Ibidem, loc. cit. 180 181

87

Dessa forma, não é difícil ao positivismo chegar a duas exigências sobre o conhecimento: exatidão e utilidade. Tornando-os, juntamente com o critério de certeza, as três condições necessárias para a cientificidade de nossas proposições.

Com isso, Habermas demonstra a relatividade do

conhecimento gerado pelo positivismo, pois afirma (...) O saber que se orienta em leis, controlado pela experiência e adquirido metodicamente, conversível em prognósticos tecnicamente aplicáveis, é um saber relativo na medida em que não pode continuar pretendendo conhecer o ente em sua essência, isto é, conhecer em termos absolutos: o conhecimento científico não é, em oposição ao conhecimento metafísico, um saber da origem das coisas. (...) Comte não entende, por certo, a relatividade do conhecimento no sentido da teoria do conhecimento, a saber, como uma questão relativa à constituição de um mundo de objetivações possíveis da realidade. Ele afirma, muito mais, a antinomia abstrata entre ciência e metafísica. (...)183

Habermas demonstra que o positivismo alega total desinteresse às questões metafísicas, apontando-as como quimeras da imaginação. Fixa-se única e exclusivamente aos fatos como propiciadores do verdadeiro conhecimento. Contudo, acaba por permitir, diante da polaridade por ele mesmo criada, a reivindicação de realidade por parte dos fenômenos considerados irrelevantes. Nisso, elementos metafísicos são conservados na polêmica positivista, tendo somente seus valores alterados. Assim, a interpretação positivista continua cativa da metafísica clássica. Concluímos essa etapa do trabalho observando que o Positivismo negou a Teoria do Conhecimento em prol de uma Teoria da Ciência. Tal negação se respaldou no fato de Hegel e Marx terem fomentado o 183

Ibidem, p. 98.

88

que Habermas denomina de auto-supressão da teoria do conhecimento pela Filosofia devido às críticas feitas por esses autores que, se levadas às últimas conseqüências, não a aboliriam, mas sim a radicalizariam a ponto de dar-lhe força argumentativa suficiente para resistir às investidas do Positivismo. Esse logrou grande êxito na “(...) tarefa de elaborar uma metodologia das ciências (...)”184, tarefa essa que foi abandonada tanto pela teoria crítica do conhecimento quanto fora julgada desnecessária por Hegel e Marx. Habermas aponta a redução da Teoria do Conhecimento numa Teoria da Ciência encenada pelo positivismo comteano, num primeiro momento, mas levada adiante pelas correntes positivistas posteriores. Assim, salienta-se a necessidade da recorrência ao conceito do interesse da razão em Kant para clarear-se a conexão entre conhecimento e interesse, preservando-a diante de interpretações errôneas. Com isso, Habermas lançará mão de exemplo da psicanálise para resgatar a auto-reflexão irrompendo do seio do próprio Positivismo, pois, pensa que Freud consegue juntar elementos suficientes para termos uma reflexão de orientação terapêutica, que pode conduzir o positivismo a vias normais. Tal procedimento será objeto de reconstrução de nosso próximo e último capítulo.

184

Ibidem, p. 78.

3. A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE

Ao deparar-se com a redução da Teoria do Conhecimento numa Teoria da Ciência realizada pelo positivismo, Habermas se vê desafiado a levar sua argumentação adiante buscando um reposicionamento coerente para a Teoria do Conhecimento e esta como uma Teoria Crítica da Sociedade. A reconstrução dessa argumentação nos levará a compreender que o conceito de Interesse da Razão é o fundamento para a construção da Teoria Crítica da sociedade, principalmente no que diz respeito à conexão entre conhecimento e interesse, como descoberta metodológica que o preserve de interpretações equivocadas. Essa

reconstrução

somente

não

será

suficiente

para

compreendermos a Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade, será necessário construir sobre esse fundamento os pilares de uma auto-reflexão fundada na psicanálise, pois busca extrair do próprio positivismo uma reflexão de orientação terapêutica. É percorrendo esse caminho argumentativo que pretendemos chegar à Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade proposta por Habermas.

90

3.1. O INTERESSE DA RAZÃO: FUNDAMENTO DA TEORIA CRÍTICA

Habermas inicia sua argumentação sobre o conceito de Interesse da Razão demonstrando que Pierce e Dilthey com sua lógica da ciência recuperam a teoria do conhecimento abandonada pelo positivismo. Entretanto, por se preocuparem diretamente com as regras metodológicas e a organização dos processos de pesquisa e não com a lógica transcendental nem com a organização da razão transcendental, levam-na a uma compreensão que a reduz ao pisicologismo ou naturalismo do conceito de Interesse da Razão. Como nos afirma Durão (...) Pierce e Dilthey estiveram em condições de detectá-lo [conceito de Interesse da Razão] na metodologia reflexiva da ciência que empreenderam, mas como não conseguiram superar o meio positivista dominante, acabaram permitindo que o interesse técnico das ciências da natureza e o interesse prático das ciências do espírito fossem mal entendidos como reduções psicológicas que contaminavam a metodologia.185

Durão186 prossegue afirmando que Habermas compreende que o conceito de Interesse da Razão tem papel fundamental, justamente para evitar esse reducionismo pisicologista ou naturalista do conhecimento, ou seja, reduzir o conhecimento ao seu aspecto instrumental. Como, também, nos afirma Hansen, Habermas (...) move-se primeiramente no sentido de criticar a pretensão da ciência moderna de construir um discurso exato, isento de referências subjetivas, tecnicamente neutro. Isso porque no bojo de tal pretensão está implícita uma depreciação dos interesses no que tange à

185 186

DURÃO, op. cit., p. 142. Ibidem, loc. cit.

91

construção do conhecimento, mediante a submissão destes a um caráter secundário, notadamente instrumental da ação.187

Para Habermas, interesses da razão são “(...) orientações básicas que

aderem a

certas

condições fundamentais da

reprodução e

da

autoconstituição da espécie humana: trabalho e interação. (...)”188, isso implica em dizer que tais orientações não possuem o objetivo de uma satisfação de necessidades empíricas imediatas, ao contrário, buscam solucionar problemas sistêmicos. Habermas demonstra que os interesses da razão, orientadores do conhecimento, estão relacionados aos problemas de conservação da vida e formação da espécie, pois trabalho e interação “(...) englobam ipso facto processos de aprendizagem e de compreensão recíproca; e tais processos necessitam estar assegurados na forma de uma investigação metódica, caso o processo formativo da espécie não deva correr o risco de estagnação. (...)”189, isso distingue, nitidamente, que os interesses do conhecimento, aqui comprometidos com a conservação da espécie, não podem ser concebidos sob categorias da biologia, mas sim, como categorias antropológicas por estarem intrinsecamente ligados à cultura e à reprodução da vida social. Assim, afirma (...) É por isso que o “interesse do conhecimento” perfaz uma categoria sui generis, a qual tampouco se sujeita à distinção entre determinações empíricas e transcendentais ou fáticas e simbólicas como àquela entre determinações inerentes à motivação e ao conhecimento. Pois, conhecimento não é nem mero instrumento de adaptação de um organismo a um circum-ambiente em alteração, nem

HANSEN, Gilvan Luiz, Os Riscos da Crítica da Sociedade, in: Crítica – Revista de Filosofia. Londrina:EDIUEL, Vol. 3, n. 12, p. 361. 188 HABERMAS, op. cit., p. 217. 189 Ibidem, p. 218.

187

92

ato momentâneo de um puro ser racional e, como contemplação, subtraído às conexões da vida enquanto tal.190

Habermas continua sua argumentação afirmando que essa idéia de processo de formação do sujeito da espécie humana, enquanto ator de sua auto-constituição, já havia sido elaborada por Hegel sendo posteriormente retomada por Marx, numa interpretação materialista. Entretanto, afirma que sob o positivismo tal idéia seria um retorno à Metafísica. Tal caminho de retorno é percorrido por Pierce e Dilthey enquanto “(...) refletem sobre a gênese das ciências a partir de um complexo vital objetivo e praticam, assim, a metodologia na perspectiva da teoria do conhecimento. (...)”191. Habermas assegura que tal caminho percorrido por Pierce e Dilthey, não é percebido por esses, pois ignoram a experiência de reflexão desenvolvida por Hegel na Fenomenologia, enfatizando a força emancipatória da reflexão. Aqui, concordamos com a afirmação de Hansen, ao dizer que “(...) a partir do resgate do conceito de interesse da razão, Habermas se defrontou com a necessidade de explicar outro conceito importante, qual seja, o conceito de reflexão.”192 Assim, ao compreender que o conceito de Interesse da Razão se dá no momento em que a Razão Pura se torna prática, pois esta “(...) não se contenta em julgar os dados empíricos, mas ela tem uma propulsão para si própria. A razão tem um interesse em si mesma que a leva a tentar realizar a Ibidem, loc. cit. Ibidem, p. 219. 192 HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 362. 190 191

93

razão. (...)”193 sendo esse realizar-se da Razão que nos remete ao conceito de reflexão. Como afirma Habermas (...) Na auto-refelxão um conhecimento entendido com o fim em si mesmo chega a coincidir, por força do próprio conhecimento, com o interesse emacipatório; pois, o ato-de-executar da reflexão sabe-se, simultaneamente, como movimento da emancipação. Razão encontrase, ao mesmo tempo, submetida ao interesse por ela mesma. Podemos dizer que ele persegue um interesse emancipatório do conhecimento e que este tem por objetivo a realização da reflexão.194

E justamente pelo fato de Pierce e Dilthey não compreenderem sua lógica da ciência como auto-reflexão é que eles não atingem a intersecção entre conhecimento e interesse. O conceito de Interesse da Razão aliado ao conceito de Reflexão, retomados por Habermas, possuem uma aproximação muito grande com a prerrogativa socrática do “Conhece-te a ti mesmo”, como nos afirma Durão, Sócrates intui “(...) pela primeira vez, essa idéia de que desejamos o auto-conhecimento e com ele nos tornamos livres da prisão da ignorância, ao mesmo tempo, podemos conhecer porque desejamos o auto-conhecimento.”195 Contudo, é diante de um conceito insuficiente de reflexão posto pelo Idealismo Alemão que fará com que Habermas faça uma crítica a tal conceito, buscando expandi-lo de forma a “(...) abarcar também a estrutura interna sobre a qual se assentam os auto-enganos da pessoa e da espécie humana, Habermas voltará sua investigação para a concepção de reflexão em

DURÃO, op. cit., p. 144. HABERMAS, op. cit., p. 219. 195 DURÃO, op. cit., p. 146. 193 194

94

Freud.”196, ou seja, Habermas procurará na psicanálise subsídios para ampliar a capacidade do conceito de reflexão, para que este possa sustentar a Teoria Crítica da Sociedade. Nossa próxima seção tem por objetivo reconstruir tal argumentação habermasiana.

3.2. FREUD

E A

PSICANÁLISE: PILARES

DE SUSTENTAÇÃO DA

TEORIA CRÍTICA

DA

SOCIEDADE

Habermas tem a compreensão de que a relevância da psicanálise consiste no fato dessa reivindicar, de forma metódica, a autoreflexão, apesar de tal reivindicação não se concretizar devido ao auto-equívoco cientificista da psicanálise, fato ocorrido já em seu nascedouro devido à combinação entre “(...) hermenêutica com realizações que, a rigor, estavam reservadas ao domínio das ciências da natureza.”197 Muito importante aqui é a compreensão da hermenêutica psicanalítica, que Habermas denominará de Hermenêutica das Profundezas198. A psicanálise compreende que o material que lhe é apresentado para interpretação está corrompido, como nos diz Habermas (...) As omissões e as alterações que ela suprime possuem um peso valorativo, pois os conjuntos simbólicos que a psicanálise procura compreender estão adulterados por influências internas. As mutilações possuem, como tais, um sentido. Um texto adulterado dessa espécie só poderá ser satisfatoriamente apreendido em seu sentido depois que for possível esclarecer o sentido da corrupção enquanto tal: é isto que caracteriza a tarefa particular de uma hermenêutica que não se pode HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 363. HABERMAS, op. cit., p. 234. 198 Ibidem, p. 237. 196 197

95

limitar aos modos de proceder da filologia, mas unifica a análise da linguagem com a pesquisa psicológica de complexos causais. (...)199

Tais adulterações pertencem a um campo da biografia do indivíduo que o mesmo já não tem mais acesso, de forma consciente. Hansen afirma que tais adulterações são “(...) complexos simbólicos, ‘carentes de linguagem’ por terem sido subtraídos à comunicação pública (...) [estes] vêm à tona através dos atos falhos e principalmente através dos sonhos (...)”200. Os atos falhos, entre outras situações apontadas por Habermas, indicam as adulterações e defeitos no texto apresentado pelo indivíduo que simultaneamente escondem e revelam suas auto-ilusões201. Desse modo, essas adulterações podem manifestar-se de forma patológica, gerando sintomas que podem ser observados em três dimensões: nas expressões verbais, nas ações e nas expressões vivencias corpóreas, sendo denominado pela psicanálise de neurose202. Os sonhos apresentam o modelo não patológico do texto adulterado, pois as causas da corrupção do texto buscam manifestar-se no indivíduo pela linguagem onírica. Isso ocorre porque o indivíduo é o produtor do texto onírico, contudo ao despertar não o compreende mais mesmo se autoidentificando como autor do mesmo. Nesse caso, o interprete tem como tarefa

Ibidem, p. 236. HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 364. 201 HABERMAS, op. cit., p. 238. 202 Ibidem, loc. cit. 199 200

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não apenas compreender um texto deformado que lhe é apresentado, mas vai além, deve buscar “(...) o próprio sentido da deformação textual (...)”203. Assim, Habermas compreende que a função do interprete está muito além de intermediar a conversação entre dois indivíduos de línguas e culturas distintas. O interprete, identificado na pessoa do analista, tem a função de auxiliar o indivíduo neurótico a compreender-se a si mesmo, ou seja, a compreender o texto adulterado e corrompido por ele mesmo, levando o indivíduo a traduzir este texto de uma linguagem particular para o discurso da comunicação pública, “(...) nesse sentido a hermenêutica psicanalítica não objetiva, como a hermenêutica das ciências do espírito, a compreensão de complexos simbólicos enquanto tais; o ato do compreender, ao qual ela conduz, é auto-reflexão.”204 O analista trabalha na “(...) reconstrução dos primórdios históricos do paciente. (...)”205, contudo deve ter plena consciência de seu papel coadjuvante nessa reconstrução histórica. O analista não pode interferir no processo, pois o mesmo é de auto-reflexão. Mas, claro, não devemos desconsiderar a transferência que há na relação analista-paciente. Essa relação é salutar, contudo o analista deve se preocupar com (...) respostas precipitadas, projeção de seus próprios motivos inconscientes ou pressa na obtenção de resultados, soluções paliativas e superficiais para seu paciente, de sorte que o mesmo alivie

Ibidem, p. 239. Ibidem, p. 246 (grifo nosso). 205 Ibidem, p. 248. 203 204

97

parcialmente sua dor e, com esse alívio momentâneo, abandone a terapia.206

Nesse sentido é primordial que o analista esteja ele próprio em psicanálise, a fim de compreender-se, também, num processo de auto-reflexão para poder auxiliar àqueles que lhe procuram. Compreendendo sua atuação no jogo de transferência realizado durante a psicanálise de seu paciente. Desse modo, Freud vê no processo psicanalítico “(...) o esforço emancipatório característico da crítica, o qual transforma o estado patológico da compulsão e da auto-ilusão em um estado onde o conflito está supresso e a linguagem excomungada reconciliada (...)”207. Habermas compreende ainda que existe uma correlação muito clara entre a “(...) societarização com o processo de socialização do indivíduo. (...)”208, esta correlação pode ser demonstrada ao compreender-se que As mesmas constelações, as quais levam o indivíduo à neurose, motivam a sociedade a erigir suas instituições. Aquilo que caracteriza as instituições constitui, ao mesmo tempo, sua similaridade com formas patológicas.209

Sendo assim, o que impediu que Freud chegasse a uma compreensão de sua teoria psicanalítica como uma teoria da sociedade?

HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 365. HABERMAS, op. cit., p. 262. 208 Ibidem, p. 289. 209 Ibidem, p. 290. 206 207

98

Hansen210 aponta que, no entendimento de Habermas dois pontos são fundamentais para isto: 1. Freud está convicto de ter fundado uma ciência da natureza e não uma ciência do homem, chegando a afirmar que sua técnica psicanalítica poderia ser, gradativamente, substituída pela psicofarmacologia; 2. A não compreensão por parte de Freud de que “(...) a metapsicologia como aquilo que ela tão-somente no sistema referencial de auto-reflexão pode ser: como uma interpretação genérico-universal de processos que afetam a formação da espécie.”211 Contudo, mesmo não tendo chegado à compreensão de uma teoria

da

sociedade,

Freud

oferece

elementos

suficientes

para

tal

empreendimento e Habermas utilizará desses elementos para a construção de uma Teoria Crítica da Sociedade contrastando Freud a Marx, pois Habermas vê pontos convergentes em ambos. A reconstrução dessa argumentação, apresentando a teoria crítica da sociedade de Habermas será a tarefa de nossa próxima seção.

3.3. A TEORIA

DO

CONHECIMENTO

COMO

TEORIA CRÍTICA

DA

SOCIEDADE

EM

HABERMAS

Habermas vê em Freud uma compreensão da sociologia como uma psicologia aplicada, afirma Ao conceber determinados distúrbios da comunicação, do comportamento e dos órgãos como sintomas, o analista recorre a um 210 211

HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 366. HABERMAS, op. cit., p. 269.

99

conceito preliminar de normalidade e desvio. Mas este pré-conceito está, possivelmente, determinado em termos culturais, e não pode ser definido pela mera referência a um estado-de-coisas já fixado (conceitualmente)212

A formação cultural da espécie determina os conceitos de normalidade e anormalidade que estabelecerão os critérios de avaliação diagnóstica do indivíduo quanto a mutilação de seu texto, levando-o à necessidade de terapia. Mediante o conflito entre a autoconservação, “(...) que, sob os imperativos da natureza exterior, precisa ser garantida através do esforço coletivo de indivíduos socializados (...)”213 e a natureza interior com seu potencial exuberante de “(...) necessidades libidinosas e agressivas (...)”214. (...) Sendo assim, não há porque não comparar o processo historiouniversal da societarização com o processo de socialização do indivíduo. Enquanto a coação da realidade é toda-poderosa e a organização do Eu frágil, de modo que a renúncia pulsional não pode ser imposta senão através de forças efetivas de repressão, a espécie encontra, para o problema da defesa, soluções coletivas que se assemelham às soluções neuróticas em nível individual. (...)215

Assim, temos nas instituições sociais as forças necessárias para coibir, de forma coletiva, as pulsões dos indivíduos. Bem como, no patrimônio cultural da tradição a sedimentação dos “(...) conteúdos da projeção das fantasias de desejo, as quais exprimem intenções reprimidas. (...)”216

HABERMAS, op. cit., p. 288. Ibidem, p. 289. 214 Ibidem, loc. cit. 215 Ibidem, loc. cit. 216 Ibidem, p. 290. 212 213

100

Temos, aqui, a compreensão de uma teoria da sociedade em Freud, que possui pontos de convergências, e divergências inovadoras, com a teoria marxiana da história da espécie. O primeiro ponto de convergência é a semelhança dos conceitos de cultura em Freud com o de sociedade em Marx, “(...) os quais se caracterizam, por um lado, como o elemento pelo qual a espécie humana se diferencia do animal; por outro lado, como instância de autoconservação que permite a afirmação do homem contra a natureza e a organização das relações dos homens entre si (...)”217. Ou seja, tanto para Marx como para Freud, apesar de darem nomes distintos — sociedade e cultura — a organização humana tem duas finalidades autoconservação diante de uma natureza totalmente inóspita e a intermediação das relações intersubjetivas necessárias à boa convivência em sociedade. O segundo ponto de convergência se encontra no fato de ambos distinguirem entre forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas determinam a capacidade técnica de domínio da natureza e extração das riquezas necessárias para a satisfação de suas necessidades. Já as relações de produção são as institucionalizações necessárias para mediar as relações humanas e a distribuição das riquezas produzidas. Um último aspecto convergente entre Freud e Marx é a aceitação do caráter utópico em suas formulações. Tanto para Freud quanto

217

HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 367.

101

para Marx, existe um conflito entre o indivíduo e a cultura/sociedade. Em Freud tal conflito se postula na regulamentação da coerção ao trabalho social, enquanto para Marx tal conflito está presente no próprio trabalho social. Essa regulamentação da coerção das pulsões, convergindo-as ao trabalho social pode ser mensurável (...) pelo alcance variável do domínio técnico que uma sociedade determinada dispõe sobre os processos da natureza. Assim, o quadro institucional que regula a distribuição de encargos e compensações, estabilizando uma ordem social assentada sobre a dominação e a renúncia imposta pela civilização, pode, à medida que o progresso técnico avança, distender-se, transformando em realidade porções sempre maiores de tradição cultural, antes de tudo essas que possuem um conteúdo-de-projeção, isto é, traduzindo satisfações virtuais em satisfações sancionadas pelas instituições.218

Freud, portanto, vê na ilusão o caráter utópico da psicanálise. Entendendo ilusão não como delírios e nem falsidades, mas como o patrimônio psíquico da civilização, em outras palavras como o mundo da formação-emprojeção.219 Para Habermas Desde que o progresso técnico abra a possibilidade objetiva de reduzir as repressões inevitáveis a um nível inferior àquele postulado pelas instituições, o conteúdo utópico pode ser liberado de sua junção com os elementos alucinatórios, ideológicos, próprios à legitimação do poder, e passar à crítica dos complexos de dominação historicamente obsoletos.220

Entretanto, Habermas vai apontar a maior divergência entre esses dois pensadores: o fundamento da hominização.

HABERMAS, op. cit., p. 293. Ibidem, loc. cit. 220 Ibidem, p. 294. 218 219

102

Em Marx tal fundamento está na capacidade da espécie humana em produzir, ou seja, em transformar a natureza em produtos que lhe satisfaçam as necessidades, como nos diz Hansen Marx veicula tal fundamento ao trabalho social, caracterizando o homem como um animal que fabrica instrumentos; mantém-se, portanto, na esfera do agir instrumental. Isso conduz Marx a uma crítica da sociedade como crítica revolucionária de ideologias em conflito, numa luta de classes que perpassa a história humana e que está vinculada ao avanço das forças produtivas de domínio dos meios de produção. Por isso é que Marx, conforme Habermas, não se deu conta de que dominação e ideologia são conteúdos de uma comunicação sistematicamente distorcida e que devem ser eliminados.221

Em Freud tal fundamento está na capacidade da espécie humana em se organizar e criar instituições que possam viabilizar sua vida em sociedade, reduzindo os conflitos, assim Hansen nos diz que (...) é pela criação de instituições no intuito de resolver o conflito entre o excedente pulsional e a coerção da realidade que o homem se diferenciou dos animais; prioriza, desta maneira, a esfera da interação (...)”222. Freud valoriza a produção pelo trabalho, contudo, sua expectativa se firma no fato da espécie humana se emancipar mediante a institucionalização, mesmo que o trabalho social possa atenuar “(...) a violência do quadro institucional (...) [abrindo], com isso, espaço para a substituição de uma base efetiva por uma base racional do processo civilizatório.”223

HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 367. Ibidem, loc. cit. 223 Ibidem, loc. cit. 221 222

103

Contudo, o ápice da divergência em ralação ao fundamento da hominização consiste em que Freud ao compreender “(...) as instituições como um poder que substitui uma aguda violência exterior pela constante compulsão interna de uma comunicação deformada e autolimitadora. (...)”224 e a cultura como um inconsciente coletivo aponta para estas forças como possibilitadoras da libertação de uma consciência cativa de ideologias. Enquanto que Marx “(...) não pode flagrar dominação e ideologia como uma comunicação distorcida porque pressupôs que os homens se distinguiram dos animais no dia em que começaram a produzir seus meios de subsistência. (...)”225. Desse modo, Marx fica atrelado a uma compreensão da autoconstituição da espécie mediante o mecanismo do trabalho social, não dissociando “(...) a dinâmica do desenvolvimento histórico da atividade da espécie, enquanto um sujeito, e a conceber assim tal autoconstituição nas categorias da revolução natural (...)”226. Enquanto Freud percebe (...) o processo cultural da espécie como uma realidade presa à dinâmica das pulsões: as forças libidinais e agressivas, potestades préhistóricas da evolução, perpassam por assim dizer o sujeito da espécie e determinam sua história.227

Após essas considerações comparativas sobre as teorias societárias de Freud e Marx, demonstrando uma predileção pela teoria psicanalítica, Habermas critica ambos os autores por recaírem “(...) numa

HABERMAS, op. cit., p. 295. Ibidem, loc. cit. 226 Ibidem, p. 298. 227 Ibidem, loc. cit. 224 225

104

postura

reducionista

ao

vincular

o

sentido

da

espécie

humana

à

autoconservação biológica.”228 Sua intenção com tal crítica é “(...) fundamentar o interesse pela autoconservação em bases racionais, subordinando tal interesse ao interesse emancipatório da razão”229. Habermas compreende que no ato de auto-reflexão do indivíduo “(...) o conhecimento de uma objetivação (...) coincide direta e imediatamente com o interesse pelo conhecimento (...)”230 ou seja, com o interesse que o indivíduo manifesta em libertar-se da coerção, manifestando que há uma unidade entre a razão e o uso interesseiro dessa. Entretanto, a autoreflexão não é mais um ato isolado do indivíduo, mas manifesta-se na relação intersubjetiva do indivíduo e seu analista. Assim, sob “(...) os pressupostos materialistas, o interesse da razão não pode mais, por conseguinte, ser concebido como uma auto-explicação autárquica da razão. (...)”231, mas ambos, interesse e razão, estão em uma relação de inerência mutua. Desse modo, Habermas compreende que a psicanálise utiliza-se de uma maiêutica coerciva, ou seja, o processo de auto-reflexão é forçado pelo interesse do indivíduo em curar-se de sua dor. As ponderações sobre a relatividade histórica dos critérios, que prescrevem o que é ou não patológico levaram Freud a trilhar o

HANSEN, Os Riscos da Crítica da Sociedade, p. 368. Ibidem, loc. cit. 230 HABERMAS, op. cit., p. 300. 231 Ibidem, loc. cit. 228 229

105

caminho que vai da compulsão doentia na esfera individual até a patologia da sociedade em seu conjunto.232

Essas ponderações se dão pelo fato de Freud compreender que as instituições e cultura são medidas paliativas ao conflito “(...) entre os potenciais dos impulsos pulsionais excedentes e as condições indispensáveis da autoconservação coletiva. (...)”233. O que demonstra que a compreensão freudiana relaciona a situação clínica individual com a sociedade, implicando que na sociedade a coerção patológica e o interesse por sua remoção, também são inseparáveis234. A patologia institucional, a exemplo da individual, encontra-se tanto na linguagem distorcida e adulterada como na atividade comunicativa, “(...) assumindo assim a forma de uma deformação estrutural do entendimento entre os homens, o interesse resultante da compreensão dolorida é, direta e imediatamente, no sistema social, também um interesse pela clarificação dessa situação (...)”235. Habermas continua sua argumentação identificando que o interesse da razão é seguido de perto pelo interesse da autoconservação. Esse, não possui fundamento na história natural, ou seja, não é uma necessidade empírica e independe das tradições culturais. Com isso o interesse de

Ibidem, p. 301. Ibidem, loc. cit. 234 Ibidem, loc. cit. 235 Ibidem, loc. cit. 232 233

106

autoconservação não tem por objeto a reprodução da vida da espécie, mas o que merece ser vivido. Esse

é

um

equivoco

que

perpassa

o

interesse

da

autoconservação que precisa ser dirimido. Habermas compreende que somente quando a (...) unidade entre conhecimento e interesse for percebido em sua pertença recíproca, junto àquele tipo de saber que caracteriza a ciência crítica, a predicação de pontos de vista invstigatório-transcendentais aos interesses orientadores do conhecimento pode ser entendida como uma relação necessária. Como a reprodução da vida social está vinculada às condições culturais do trabalho e da interação, o interesse pela autoconservação não tem por objetivo imediato a satisfação de necessidades empíricas mas, sim, as condições de funcionamento de trabalho e interação? Este interesse abarca de modo igual as categorias imprescindíveis a esse saber, os processos acumulativos de aprendizagem e as interpretações permanentes, mediatizadas através da tradição. (...)236

São estes os fundamentos lançados por Habermas para a construção de uma Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade, que segundo ele mesmo considera no Posfácio ao texto Conhecimento e Interesse237, desencadeará, anos mais tarde, na Teoria da Ação Comunicativa.

236 237

Ibidem, p. 302. Ibidem, p. 324-325.

4. CONCLUSÃO

Vimos que tanto Bacon como Descartes, ou seja, tanto Empirismo como Racionalismo valorizam a Razão elevando-a a um patamar de infalibilidade. Hume com sua crítica cética questiona justamente tal infalibilidade colocando dúvidas sobre as possibilidades da Razão. Mas, é justamente Kant, com sua Crítica da Razão Pura, que posiciona a Razão dentro de seus limites, apontando as condições a priori necessárias ao conhecimento. Em Hegel e Marx, temos uma crítica ao pensamento kantiano. Hegel recorre ao Saber Absoluto apontando equívocos na Dedução Transcendental de Kant a ponto de descartá-la. Marx com sua concepção de Trabalho Social reconstrói a critica hegeliana, apontando falhas dessa, mas ainda assim, descartando a Dedução Transcendental kantiana. Habermas vê coerência nas criticas feitas por Hegel e Marx a Kant, contudo salienta que os mesmos não levaram tais críticas às últimas conseqüências de modo a transformar a Dedução Transcendental de Kant. Isso, segundo Habermas, deslocou a Teoria do Conhecimento possibilitando que o Positivismo se colocasse como auto-fundamento das ciências. Assim temos uma redução da Teoria do Conhecimento em Teoria da Ciência. Diante disso, Habermas recorre à psicanálise freudiana reconstruindo a Teoria do Conhecimento, mediante os conceitos de Interesse da Razão e de Auto-Reflexão, para demonstrar que as críticas feitas a Kant levam a

108

uma transformação da Dedução Transcendental. Tal reconstrução aponta os fundamentos para uma Teoria Crítica da Sociedade a qual, Habermas, trabalhará em sua Teoria da Ação Comunicativa, anos mais tarde.

5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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