A todo vapor rumo à catástrofe? O capital e a dinâmica do aquecimento global

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, Ecologia, Capitalismo, Mudanças Climáticas, Aquecimento global
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[-] Sumário # 9 EDITORIAL

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ENTREVISTA CRISE MUNDIAL E LIMITES DO CAPITAL Com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle

9

ARTIGOS ENTRE RUÍNA E DESESPERO Negação e constituição do sujeito em Robert Kurz e Slavoj Žižek Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga

24

O EXÉRCITO NAS RUAS Da Operação Rio à ocupação do Complexo do Alemão. Notas para uma reconstituição da exceção urbana Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho

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CIDADE OLÍMPICA Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro Marcos Barreira

75

A TODO VAPOR RUMO À CATÁSTROFE? O capital e a dinâmica do aquecimento global Daniel Cunha

109

AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DO NEGACIONISMO CLIMÁTICO Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista Daniel Cunha

134

LUKÁCS – A ONTOLOGIA DA MISÉRIA E A MISÉRIA DA ONTOLOGIA Cláudio R. Duarte

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O DINHEIRO DO ESPÍRITO E O DEUS DAS MERCADORIAS A abstracção real segundo Sohn-Rethel Nuno Miguel Cardoso Machado

187

TESES SOBRE A COMUNA DE PARIS Guy Debord, Attila Kotànyi e Raoul Vaneigem

225

CRÍTICA SOCIAL OU NIILISMO? O “trabalho do negativo”: de Hegel e Leopardi até o presente Anselm Jappe

230

TERÃO OS SITUACIONISTAS SIDO A ÚLTIMA VANGUARDA? Anselm Jappe

247

EXTRATOS DE POLLOCK ou, Pintura e trabalho abstrato Cláudio R. Duarte

261

TÍMIDA SIM, MAS UM TANTINHO DESRECALCADA Ainda um exercício em torno da matéria de Naves e de Guignard Eraldo Santos

288

RODRIGO NAVES E AS DIFICULDADES DA FORMAÇÃO Naves, Guignard, Machado e a crítica das formas modernas Cláudio R. Duarte

298

ADESÃO E DESBUNDE Os êxtases sórdidos de um Brecht às avessas Raphael F. Alvarenga e Natasha B. Palmeira

319

IDEOLOGIA, COMUNICAÇÃO E VISUALIDADE O sistema artístico detectado Marcelo Mari

336

OS DEVOTOS DO SANTO ANÔNIMO Sobre “as visitas que hoje estamos” Cláudio R. Duarte

342

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TRÊS FRAGMENTOS “a hora certa”, “a lição” e “com espírito” Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

351

EXPEDIENTE

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A todo vapor rumo à catástrofe? O capital e a dinâmica do aquecimento global Daniel Cunha Fumaça descendo das chaminés, formando uma neblina negra, com flocos de fuligem grandes como os maiores flocos de neve – de luto, poderíamos imaginar, pela morte do sol.1

Esta é uma descrição da Londres vitoriana por Charles Dickens, numa obra de 1853. O preto fúnebre da neblina provém da queima do carvão, o primeiro combustível da máquina capitalista então incipiente. O efeito criado na cidade pelas emanações também foi registrado por Monet (figura 1). Aqui procuraremos mostrar como a dinâmica do capitalismo implica um eterno retorno às condições do início da Revolução Industrial, em completa contradição com os requisitos ecológico-materiais do século XXI. Se a história se repete como farsa, esta farsa pode ser o fim da história. Também tentaremos pincelar alguns caminhos de saída.

Fig. 1: Claude Monet, Le Parlement, Effet du brouillard, óleo sobre tela (1903).

1

Tradução minha do original: “Smoke lowering down from chimney-pots, making a soft black drizzle, with flakes of soot in it as big as full-grown snow-flakes – gone into mourning, one might imagine, for the death of the sun”. DICKENS, C. (1853/2001) Bleak house, London: Wordsworth Classics, p. 3. 109

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*** Marx caracterizou a forma das relações sociais determinada pela valorização do capital como um sujeito automático. Nesse mundo fetichizado, tudo tende a ser determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário como fim em si mesmo. A produção social não é objeto de discussão consciente entre os envolvidos, mas mediada pela mercadoria, este objeto trivial, mas rico em sutilezas metafísicas. A formamercadoria contém em seu conceito as determinações fundamentais da catástrofe ecológica: a abstração do conteúdo (da matéria) e o impulso à expansão infinita2. Disso decorre um metabolismo social fraturado em relação à natureza3, expresso na lógica férrea do empreendimento capitalista: maximização dos lucros, não importa como. Para a sua expansão, o capital necessita de dois tipos de energia: a energia do trabalho humano (que cria valor) e a energia termodinâmica, física. Na Inglaterra de Dickens, a acumulação se dava à base da mais-valia absoluta – jornadas de trabalho estendidas e baixos salários – e da energia barata e abundante fornecida pelo carvão. No entanto, o determinante não foi o preço do carvão em si, mas o fato de que o carvão, ao substituir a energia hidráulica confinada às vizinhanças de quedas d’água, permitiu ao capital deslocar-se para os centros urbanos, onde havia grande oferta de mão-de-obra barata (exército industrial de reserva)4. Pode-se dizer que o crescimento explosivo do capitalismo nascente não seria possível sem esta fonte energética. O carvão, além de permitir que o capital fosse ao encontro da força de trabalho barata e disciplinada, é um combustível fóssil, que contém milhões de anos de energia solar acumulada em sua estrutura química, e materializou a “cultura universal da combustão”.5 De fato, a evolução do capitalismo pode ser representada pela evolução das emissões de carbono fóssil. No gráfico da figura 1, que apresenta as emissões de carbono oriundas de combustíveis fósseis, é possível visualizar o crescimento exponencial das forças produtivas capitalistas, começando pela Revolução Industrial movida a carvão, passando pela estagnação dos anos 20 e a crise de 29; o boom do pós-guerra e a Cf. CUNHA, D. (2012), “O Antropoceno como alienação”, Sinal de Menos 8: 29-50. Disponível em www.sinaldemenos.org (acessado em dezembro/2012). 3 Sobre a teoria da fissura do metabolismo com a natureza em Marx, ver FOSTER, J. B. (2000/2005) A ecologia de Marx: materialismo e natureza, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 4 Cf. MALM, A. (2012) “China as chimney of the world: the fossil fuel hypothesis”, Organization & Environment 25(2): 146-177. 5 A expressão é de Robert Kurz. Ver KURZ, R. (2004), O combustível da máquina mundial, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz167.htm (acesso em dezembro 2012). 110 2

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ascensão da indústria automobilística, alimentada à base de petróleo; a crise do petróleo dos anos 70; a crise da valorização no século XXI. A chave para esta última é a intensificação das emissões por queima de carvão, como discutiremos mais adiante. Constata-se também o absoluto fracasso do Protocolo de Kyoto: após a sua entrada em vigor em 2005, as emissões se intensificaram.

Fig. 2: evolução histórica das emissões de carbono fóssil6

A “externalidade” gerada pelo uso maciço de combustíveis fósseis é a emissão de carbono para a atmosfera e o consequente aquecimento global. De fato, o texto fundante da termodinâmica moderna de Carnot, de 1824, diz que A força motriz do calor é independente dos agentes que se utiliza para realizá-la; a sua quantidade é fixada unicamente pelas temperaturas dos corpos entre os quais se efetua em última instância o transporte de calor.7

Fonte dos dados: CDIAC, http://cdiac.ornl.gov/ftp/ndp030/global.1751_2009.ems e GCP, http://dx.doi.org/10.3334/CDIAC/GCP_V2012 (acessados em dezembro/2012). 7 CARNOT, S. (1824) Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres a développer cette puissance, Paris: Bachelier. Disponível em http://www.bibnum.education.fr/files/42-carnot-textef.pdf (acesso em dezembro/2012). 111 6

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Tendo a termodinâmica se desenvolvido a partir dos esforços para o aumento da eficiência das máquinas a vapor movidas a carvão do capitalismo, não surpreende que tenha feito abstração de todos os efeitos não relacionados à lucratividade das fábricas. Porém, se aplicada ao sistema terrestre, a mesma termodinâmica é a ciência que nos informa sobre a temperatura global. Foi o que fez Fourier, ironicamente no mesmo ano8. Mas o capital tratou de garantir que a sua aplicação efetiva até hoje se limite ao aumento de eficiência de máquinas a vapor, motores e processos industriais. *** O ciclo do carbono no planeta é dinâmico, com fluxos entre os diferentes compartimentos do sistema terrestre 9. O carbono se movimenta através de processos como fotossíntese, respiração animal e bacteriana, vulcanismo, intemperismo de rochas, absorção e dessorção dos oceanos. Apesar de o clima da Terra já ter passado por grandes variações, de eras glaciais a períodos totalmente livres de gelo, o planeta apresenta uma relativa estabilidade de temperaturas. Especificamente, a temperatura sempre se manteve dentro de um intervalo capaz de manter água líquida, o que é fundamental para a manutenção de condições ambientais propícias à vida. Isto ocorre porque a história natural do sistema climático terrestre conduziu à emergência de uma espécie de “termostato”, um sistema cibernético de retroação negativa que tende a estabilizar a temperatura. Isto decorre do acoplamento dinâmico da concentração de carbono atmosférico, das emissões vulcânicas e do intemperismo de silicatos (rochas).

8

9

Cf. Raymond Pierrehumbert em ARCHER, D. & PIERREHUMBERT, R. (orgs.) (2011) The warming papers: the scientific foundation for the climate change forecast, Oxford: Wiley-Blackwell, p. 7. O texto mais conhecido e difundido de Fourier sobre o tema é de 1827: FOURIER, J. B-. F. (1827) “Mémoire sur les températures du globe terrestre et des espaces planétaires”, Mémoires de l’Académie Royale des Sciences 7: 569-604. Disponível em http://www.academiesciences.fr/activite/archive/dossiers/Fourier/Fourier_pdf/Mem1827_p569_604.pdf (acesso em dezembro/2012). Os primeiros que apontaram claramente as emissões de carbono fóssil como potencialmente perigosas, no entanto, foram Bolin e Eriksson, mais de um século mais tarde, a partir da consideração mais aprofundada do ciclo do carbono: BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Distribution of matter in the sea and atmosphere: changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea due to fossil fuel combustion”, In: ARCHER, D. & PIERREHUMBER, R. The warming papers, op. cit., p. 285-297. Para uma excelente introdução ao ciclo do carbono, ver ARCHER, D. (2010) The global carbon cycle Princeton: Princeton University Press. Para uma boa ilustração esquemática, ver o relatório do IPCC: http://www.ipcc.ch/publications_and_data/ar4/wg1/en/ch7s7-3.html (acessado em dezembro/2012). 112

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As emissões vulcânicas emitem carbono contido na crosta terrestre para a atmosfera (assim como a extração e combustão de combustíveis fósseis). Ao longo das eras geológicas, na ausência de outros processos, isto levaria à acumulação de carbono na atmosfera a níveis muito superiores aos que se observam. Processos como fotossíntese e absorção dos oceanos podem desacelerar este processo, mas não contê-lo. O intemperismo de rochas (reação de Urey) possui uma propriedade diferente. Neste processo, o dióxido de carbono, a água e o silicato reagem, de forma que o carbono atmosférico se fixa na forma de carbonato (sólido), que acabará sendo drenado através dos cursos d’água até o oceano. O que diferencia o intemperismo é que ele apresenta uma propriedade de regulação homeostática: a taxa de intemperismo aumenta com o aumento da temperatura. Tem-se assim, por exemplo, que o aumento de concentração de carbono atmosférico devido a grandes erupções vulcânicas irá causar um aumento na temperatura média terrestre; este aumento de temperatura média, por sua vez, irá aumentar a taxa de reação de intemperismo, aumentando a remoção de carbono atmosférico, impedindo assim um aquecimento excessivo. O processo também ocorre no sentido inverso: quando variações na órbita terrestre ocasionam uma era glacial, a taxa de intemperismo é significativamente reduzida, de forma que o carbono emitido pelos vulcões começa a acumular-se na atmosfera, com subsequente elevação da temperatura. O processo segue até que a taxa de intemperismo aumente novamente, tendendo novamente a manter a temperatura dentro de um intervalo limitado. Ocorre que o sistema cibernético de controle da temperatura terrestre atua na escala de tempo de centenas de milhares de anos 10. Para o tempo geológico da Terra trata-se de um piscar de olhos, mas é muito na escala do tempo humano, se considerarmos, por exemplo, que as primeiras civilizações surgiram há dez mil anos. Para avaliar se este sistema homeostático natural pode amortecer o efeito das emissões antropogênicas, pode-se fazer comparações simples com os fluxos naturais. As emissões vulcânicas de carbono são da ordem de 0,1 gigatoneladas por ano11; como se vê na figura Cf. ARCHER, D (2010) The global carbon cycle, op. cit. James Lovelock e outros sustentam que seres vivos (bactérias) também participam do processo de regulação, intensificando a reatividade do carbono no solo. Isto não mudaria o entendimento da dinâmica do processo, já que ela está ancorada em dados paleoclimáticos. Ver LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or geochemistry”, Planetary Space Science 30 (8): 795-802. Disponível em www.jameslovelock.org (acessado em novembro/2012). 11 Cf. PIERREHUMBERT, R. T. (2010), Principles of planetary science, Cambridge: Cambridge University Press, p. 58 113 10

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2, as emissões antropogênicas atuais são de 9,5 gigatoneladas por ano, ou seja, um fluxo quase cem vezes maior. Ou, isto corresponde a quase 10% do maior fluxo natural do ciclo do carbono, a fixação líquida de carbono global por fotossíntese. Tudo indica que as emissões antropogênicas de carbono excedem em muito a capacidade de regulação natural da temperatura. O resultado desta massiva emissão antropogênica de carbono é o contínuo aumento da concentração de carbono atmosférico, como pode ser visto na curva de Keeling (figura 3).

Fig. 3: evolução histórica do teor de carbono atmosférico (média anual) 12

Outra forma de avaliar-se a possível resposta do sistema climático à perturbação humana é a comparação com dados paleoclimáticos. O caso mais emblemático é o Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno (PETM, na sigla em inglês), o maior evento de aquecimento global natural conhecido, ocorrido há cerca de 55 milhões de anos. Pesquisas recentes indicam que neste período houve um aquecimento de 5o C devido a emissões de carbono ocasionadas pelo deslocamento de placas tectônicas. O resultado foi a extinção em massa de algumas espécies marinhas, e a adaptação dos mamíferos, que ficaram menores para dissipar melhor o calor. A taxa de adição de carbono neste 12

Fonte dos dados: NOAA, ftp://ftp.cmdl.noaa.gov/ccg/co2/trends/co2_annmean_mlo.txt (acesso em dezembro/2012). 114

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período variou entre 0,3 e 1,7 gigatoneladas de carbono por ano.13 No ano de 2011, como já destacado, as emissões de carbono fóssil atingiram 9,5 gigatoneladas, uma taxa mais de cinco vezes maior do que a taxa máxima do PETM. De fato, se compararmos as emissões acumuladas do PETM com as emissões de carbono fóssil desde a Revolução Industrial, vê-se que as emissões antropogênicas apresentam um comportamento mais explosivo (ver figura 4). Além disso, a quantidade total de carbono emitido no PETM equivale às reservas de combustíveis fósseis atuais.14

Fig. 4: emissões acumuladas desde a revolução industrial, comparadas a uma hipotética emissão simultânea equivalente à do PETM15

Mais importante do que a quantidade de gases estufa lançados na atmosfera, é a sua taxa de emissão. Os seres vivos e ecossistemas têm muito mais chance de se adaptarem a mudanças climáticas caso disponham de um tempo maior para isso. A emissão explosiva de carbono não apenas não pode ser acompanhada pelos mecanismos estabilizadores do sistema climático, como pode disparar retroações positivas lentas. Estes processos, após disparados, tendem a catalisar a si mesmos, fugindo de qualquer controle viável da ação humana, pois passam a ser determinados por sua dinâmica

Cf. CUI, Y.; CUMP, L. R.; RIDGWELL, A. J.; CHARLES, A. J.; JUNIUM, C. K.; DIFENDORF, A. F.; FREEMAN, K. H.; URBAN, N. M. e HARDING, I. C. (2011) “Slow release of fossil carbon during the Paleocene-Eocene Thermal Maximum”, Nature Geoscience 4 (July 2011): 481-485. Para uma exposição em linguagem mais popular, ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific American July 2011: 56-61. 14 Cf. CUI ET AL (2011), op. cit. 15 Neste gráfico, considerou-se que as emissões do início do PETM mantiveram uma taxa constante de 0,3 GTon C/ano, cf. figura 4 (a) em CUI et al (2011), op. cit. Dados das emissões antropogênicas: CDIAC, http://cdiac.ornl.gov/ftp/ndp030/global.1751_2009.ems (acessado em dezembro/2012). 115 13

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interna. É o caso típico do derretimento das calotas polares: a diminuição do albedo da superfície provoca uma intensificação do aumento de temperatura, e consequente aceleração do derretimento.16 Além disso, os tempos do sistema climático são desvinculados dos tempos das instituições humanas: devido à dinâmica de troca de calor e massa da atmosfera com o oceano, o aumento da temperatura média global é irreversível na escola de um milênio, mesmo com que as emissões sejam interrompidas.17 No caso limite, tem-se a “síndrome de Vênus”, na qual o aquecimento global irreversível leva à completa evaporação dos oceanos, tornando planeta completamente inóspito18. *** A resposta do capital ao problema do aquecimento global foi o Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor em 2005. O seu absoluto fracasso é facilmente constatado em um gráfico histórico de emissões (figura 2). Não se poderia esperar algo diferente de uma bolsa de valores criada para “flexibilizar” as reduções de emissões de carbono. O Protocolo de Kyoto representou a acumulação primitiva da atmosfera, a mercantilização do carbono, a privatização de um bem comum. Suas metas de redução para os países ricos são ridiculamente baixas (cerca de 5% em relação às emissões em 1990), caso contrário representariam custo excessivo para o capital (razão de qualquer forma alegada pelos EUA para não aderir ao Protocolo), e para o clima, são inócuas. O protocolo oferece um mecanismo liberalizante que permite que os grandes poluidores continuem emitindo carbono caso isto lhes seja conveniente, bastando para isso comprar “créditos” gerados pelos offsets de outros emissores. De outra parte, o chamado

Modelos de tipo Budyko-Sellers, que preveem transições bruscas entre estados glaciais e livres de gelo, baseiam-se neste efeito. Ver BUDYKO, M. I. (1969) “The effect of solar radiation variations on the climate of the Earth”, Tellus 21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on the energy balance of the Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p. 392-400. 17 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (6), p. 1704-1709. 18 A maior parte dos cientistas atualmente não considera esta hipótese. Porém, James Hansen afirma que a “Síndrome de Vênus” seria inevitável caso todas as reservas de combustíveis fósseis não-convencionais sejam queimadas. Cf. HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury, cap. 10. 116 16

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“mecanismo de desenvolvimento limpo” (MDL) fornece outro mecanismo para que os poluidores continuem emitindo carbono, desde que remunerem projetos de “redução” de emissões em países pobres. Estes projetos MDL, muitas vezes acabam por auxiliar o aumento das emissões, seja por financiar projetos de aumento de eficiência – o que, no sistema capitalista, acarretará em reinvestimento, ou seja, aumento de escala de produção – seja porque o projeto é comparado com uma situação imaginária que não existiria sem o tal mecanismo, mas assim acaba viabilizando projetos que emitem carbono.19 Kyoto é inútil com relação àquilo que seria fundamental, ou seja, a gradativa eliminação do uso de combustíveis fósseis. Não se pode negar, no entanto, que ele se presta muito bem a fraudes20, assim como serve de parque de diversões para o capital fictício. Apesar do aumento das emissões, o valor de mercado do carbono atingiu o recorde de 176 bilhões de dólares em 2011, estimulado por “volumes de transações secundárias”. Conforme o Banco Mundial, “uma quantidade expressiva das transições é motivada primariamente por hedging, ajuste de portfolios, realização de lucros e arbitragem”21 – vocabulário típico de especuladores de mercados financeiros, que se aplica bem à situação concreta. Mesmo os países que atingiram as suas (modestas) metas de redução de emissões o fizeram de forma ilusória. Basta que se analise os dados das emissões dos últimos anos. Na figura 5, destaca-se o fato de que a partir do ano de 2002, as emissões provenientes da queima de carvão voltaram a ser maiores do que as emissões oriundas da queima de petróleo, com uma forte inflexão na curva de emissões de carvão. Em tempos de aquecimento global, trata-se de uma tremenda irracionalidade, já que o carvão emite mais carbono por unidade de energia produzida do que o gás e o

Por exemplo, um projeto de uma usina termelétrica cujo baseline seria o de utilizar carvão, mas use gás natural, que emite menos carbono (mas emite!), receberá “créditos de carbono”. 20 É conhecido o caso da Rhodia (inclusive no Brasil), que lucra bilhões com o recebimento de créditos pelo abatimento de óxido nitroso, um potente gás estufa e subproduto da produção de ácido adípico. Ocorre que a empresa lucra 35 vezes mais com os créditos de carbono do que com a produção em si, e a instalação de um filtro simples custaria muito menos do que os valores dos créditos. Cf. GILBERTSON, T. & REYES (2009), O. Carbon trading: how it works and why it fails, Uppsala: Dag Hammarskjold Foundation, p. 56. Disponível em http://www.carbontradewatch.org/publications/carbon-trading-howit-works-and-why-it-fails.html (acesso em dezembro/2012). 21 REUTERS (2012) Global carbon market value hits record $176 billion, http://www.reuters.com/article/2012/05/30/ozatp-world-bank-carbon-idAFJOE84T04R20120530 (acessado em dezembro/2012). 117 19

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petróleo22. A figura 6 ilustra o comércio internacional de carbono (dados até 2008). Este dado é obtido quando se faz o inventário de emissões de carbono baseados no consumo, e não no território, como se faz tradicionalmente. Houve uma grande exportação de emissões de carbono dos países do Anexo B do Protocolo de Kyoto (os países ricos e do antigo bloco socialista, que em sua maioria têm metas de redução de emissões) para os demais países. Entre os importadores de emissões, destaca-se a China23. A figura 7 mostra a evolução da matriz energética chinesa, com uma forte inflexão no consumo de carvão. Por fim, a figura 8 mostra a evolução do preço do petróleo. O início de todos os movimentos aqui destacados coincidem em 2002, o ano em que a China ingressou na Organização Mundial do Comércio.

Fig. 5: emissões globais da combustão de carvão e de petróleo

O carvão emite entre 95-103 kg CO2/MMBtu, enquanto o gás convencional emite entre 54,7-52,9 kg CO2/MMBtu e os derivados de petróleo convencionais emitem no intervalo de 59,6-102,1 kg CO2/MMBtu. Cf. US ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION, http://www.eia.gov/oiaf/1605/coefficients.html (acessado em dezembro/2012). 23 Os maiores fluxos líquidos globais de carbono embutido saem da China em direção aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão. Cf. DAVIS S. J. & CALDEIRA K. (2009) “Consumption-based accounting of CO2 emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences Early Edition. Disponível em http://www.pnas.org/content/early/2010/02/23/0906974107.full.pdf (acessado em dezembro/2012). 118 22

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Fig. 6: fluxos de carbono embutidos no comércio internacional24

Fig. 7: evolução da matriz energética chinesa 25 Entende-se aqui por “países ricos” aqueles inclusos no Anexo B do Protocolo de Kyoto, que incluem a Europa Ocidental, os Estados Unidos, o Japão e países do antigo bloco soviético do Leste Europeu, e “países pobres” aqueles que não constam no Anexo B e não possuem metas de emissão. Fonte: conjunto de dados do artigo PETERS, G. P.; MINX, J. C.; WEBER, C. L. & EDENHOFFER, O. (2011) “Growth in emission transfers via international trade from 1990 to 2008, Proceedings of the National Academy of Sciences, Early Edition, http://www.pnas.org/content/early/2011/04/19/1006388108.full.pdf . Os dados podem ser acessados diretamente em http://www.pnas.org/content/suppl/2011/04/20/1006388108.DCSupplemental/sd01.xls (acessados em dezembro/2012). Por conveniência gráfica, o sinal de uma das curvas aqui foi invertido. 25 Fonte dos dados: BP Statistical Review of World Energy June 2012, http://www.bp.com/statisticalreview (acessado em dezembro/2012). 119 24

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Fig. 8: evolução do preço do petróleo26

O que estes dados implicam é que a “alocação eficiente dos recursos” capitalista induziu o massivo deslocamento da produção para a China, a fim de refestelar-se com a mão-de-obra barata (mais-valia absoluta) e energia barata – e suja, o carvão27. Na crise da valorização disparada pela revolução microeletrônica nos países do centro, este foi um dos resultados do sujeito automático capitalista: justamente na era do alerta climático global, o capital tomou o movimento que resulta em emitir mais carbono28, porque era o que melhor correspondia ao seu movimento cego de expansão infinita. Assim, à extração de mais-valia absoluta na mão-de-obra correspondeu a exploração absoluta da natureza: após muito tempo, a intensidade de carbono29 aumentou, como mostra a figura 9. Este movimento pode ser generalizado: tão logo a China deixe de ser um paraíso de mais-valia absoluta, o capital se moverá para outra localidade, levando a sua tecnologia fóssil consigo – Índia, Indonésia e Vietnam parecem ser os próximos

Fonte dos dados: EIA, http://www.eia.gov/ (acessado em dezembro/2012). Os dados de “exportação de emissões” do gráfico na verdade são subestimados, já que contabilizam apenas os custos diretos para a produção das mercadorias. Emissões decorrentes de obras infraestruturais, de peso significativo, não estão incluídas. Ver MINX, J.C; BAIOCCHI, G.; PETER, G. P.; WEBER, C. L.; GUAN, D. & HUBACECK, K. (2011) “A ‘carbonizing dragon’: China’s fast growing CO2 emissions revisited”, Environmentala Science & Technology 45: 9144-9153. 28 Além da fuga para a mais-valia absoluta e rapinação absoluta da natureza, o capital também encontrou refúgio no mercado financeiro (capital fictício), para o qual Kyoto atua como linha auxiliar. Sobre capital fictício e crise financeira, ver a entrevista com N. Trenkle e E. Lohoff nesta edição da Sinal de Menos. 29 Entendida aqui como emissões de carbono por unidade de energia produzida. 120 26 27

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candidatos.30 De forma que, dada a continuidade do sistema capitalista, a explosão de emissões da China deve ser apenas o primeiro de muitos ciclos – ao menos até a ocorrência de uma catástrofe climática. Dickens e Monet retrataram o futuro.

Fig. 9: evolução das emissões globais absolutas e relativas à energia produzida 31

*** As corporações que extraem combustíveis fósseis estão entre as mais lucrativas do mundo. O lucro anual da Exxon Mobil chegou a mais de 40 bilhões de dólares em 2011. Porém, o ponto crucial não está no lucro propriamente dito destas corporações, mas na bolha do carbono. O fato é que as reservas de combustíveis registradas pelas companhias ultrapassam em cinco vezes o que é considerado seguro para a estabilidade climática, considerando a estabilização do carbono atmosférico em 450 ppm. E grande parte destas companhias tem ações listadas em bolsa, com precificação destas

Esta generalização teórica é demonstrada por Andreas Malm. Trata-se, de fato, de uma curva de Kuznets invertida. O que a teoria de Kuznets postula é que, após um período inicial de prevalência de miséria e aumento da poluição, o desenvolvimento do capital geraria aumento de renda e de eficiência de uso dos recursos (no caso específico, menores emissões carbono por unidade de energia produzida). A sua grande limitação é que ela se limita às fronteiras nacionais. Malm mostra que o capital se movimenta de forma a buscar as regiões de menor renda (mais extração de mais-valia), que são as de menor eficiência (mais emissões de carbono): “O capital que se movimenta globalmente relocalizará fábricas para onde a força de trabalho seja barata e disciplinada – onde se espera a maior taxa de maisvalia – através de novos ciclos de consumo massivo de energia fóssil”. Ver MALM, A. (2012) “China as chimney of the world: the fossil capital hypothesis”, op. cit. 31 Fonte dos dados: BP Statistical Review of World Energy June 2012, op. cit. 121 30

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reservas.32 Ou seja, estamos diante de uma encruzilhada entre uma crise climática e uma grande crise de desvalorização das corporações dos combustíveis fósseis, capaz de apequenar a crise da bolha imobiliária de 2008. Não há saída imanente no capitalismo. Isto explica as ferrenhas (e caras) campanhas negacionistas: as corporações dos combustíveis fósseis estão alavancadas pela extração futura. Como diz Naomi Klein: os deniers não decidiram que a mudança climática é uma conspiração de esquerda ao descobrir algum conluio socialista. Eles chegaram a essa conclusão considerando seriamente o que seria necessário para reduzir as emissões globais tão drástica e rapidamente quanto a ciência exige (...). Eles não estão errados33.

Diante do tamanho do possível prejuízo corporativo, vale tudo: admite-se até flertar com o obscurantismo científico, ou assumi-lo por completo. Mas nenhuma camada de ideologia pode esconder o fato de que o capital é uma forma de relações sociais que se torna cada vez mais incompatível com a manutenção dos ciclos de matéria e energia do planeta condizentes com o desenvolvimento humano e das outras formas de vida da Terra. *** A Agência Internacional para a Energia (IEA) traçou três projeções de cenários para as futuras emissões de carbono34: um com a manutenção das políticas atuais, outro com a implementação de políticas já planejadas e um terceiro projetando como as emissões deveriam ser reduzidas para que se mantenha o teor de carbono atmosférico abaixo do limite de 450 ppm. Na figura 10 (a seguir), mostramos graficamente as três projeções, juntamente com a proposta de James Hansen para a estabilização em 350 ppm. As projeções da IEA, tanto com base nas “políticas atuais” como nas “novas políticas” mostram que tendência do capital é aquela que leva diretamente à catástrofe ecológica: aumento contínuo das emissões de carbono, em franca contradição com o conhecimento científico atual do sistema climático terrestre, no que se refere a um planeta apropriado ao progresso humano. A própria agência reconhece que as “emissões Cf. CARBON TRACKER INITIATIVE (2011) Unburnable carbon – Are the world’s financial markets carrying a carbon bubble? , disponível em www.carbontracker.org (acessado em dezembro/2012). 33 KLEIN, N. (2011) “Capitalism vs. the climate” , The nation, November 28th 2011, disponível em http://www.thenation.com/article/164497/capitalism-vs-climate (acessado em novembro/2012). 34 INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2012) World Energy Outlook 2012, Paris: IEA. 122 32

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no cenário ‘novas políticas’ correspondem a um aquecimento global médio de longo prazo de 3,6 0C”, muito além do que é considerado seguro pelos cientistas do clima.

Fig. 10: histórico e projeções futuras de emissões de carbono fóssil35.

Já o cenário de estabilização em 450 ppm baseia-se em proposta atualmente já discutível36, pois muitos cientistas já consideram este teor de carbono atmosférico como inseguro. De qualquer forma, a proposta baseia-se principalmente em ganhos de eficiência energética (economia de combustível). Ora, como já deveria ser claro no século XXI, no mundo capitalista os ganhos de eficiência resultam em aumento lucros e, em seguida, aumento da escala da produção, seja no mesmo empreendimento, seja com

A proposta de James Hansen consiste na redução das emissões de carbono à taxa de 6% ao ano a partir de 2013, e pressupõe o concomitante sequestro de 100 GTon de carbono através de melhores práticas de tratamento do solo e reflorestamento. O atraso até 2020 acarretaria uma taxa de 15% ao ano. As projeções da IEA foram interpoladas linearmente para a construção do gráfico. Os cenários estão descritos em INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2012) World energy outlook 2012, op. cit. e HANSEN, J. ET AL (2012) Scientific case for avoiding dangerous climate change to protect young people and nature. Disponível em http://pubs.giss.nasa.gov/abs/ha08510t.html (acesso em dezembro/2012). 36 MEINSHAUSEN, M.; MEINSHAUSEN, N.; HARE, W.; RAPER, S. C. B.; FRIELER, K.; KNUTTI, R.; FRAME, D. J. & ALLEN, R. (2009) “Greenhouse-gas emission targets for limiting global warming to 2oC”, Nature 458 (April 2009): 1158-1163. 123 35

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a mediação do mercado financeiro, tendendo assim a anular a economia de combustível (e de emissões) anterior. Isto já foi demonstrado desde o tempo da Inglaterra vitoriana por Stanley Jevons, que mostrou que o consumo de carvão aumentava à medida que as máquinas a vapor se tornavam mais eficientes (ver figura 11).

Fig. 11: evolução do consumo de carvão e da eficiência de máquinas a vapor na Inglaterra37.

A própria IEA reconhece que o cenário 450 não é “uma projeção baseada nas tendências do passado, ele deliberadamente seleciona um caminho energético plausível”. Mais: afirma que, caso não se mude os rumos até 2017, todas as emissões admissíveis estarão já contidas (locked-in) na infraestrutura energética construída até então38. Como bons tecnocratas, eles se recusam a enunciar que isto não se realizará se depender apenas das forças do mercado, mas apenas com ação (anti)política. O que se vê na realidade é que fortes investimentos estão sendo feitos para uma caçada aos

Eficiência aqui é medida como o número de libras de água que pode ser elevado à altura de um pé utilizando um bushel (84 libras) de carvão. Os dados são de JEVONS, S. (1865) The coal question: an inquiry concerning the progress of the nation, and the probable exhaustion of our coal mines, capítulos VII e XII. http://www.econlib.org/library/YPDBooks/Jevons/jvnCQ7.html (acessado em dezembro/2012). 38 IEA (2012) World energy outlook 2012, op. cit., p. 25 e 34. 124 37

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combustíveis fósseis não-convencionais, nos locais mais improváveis e de difícil acesso. O próprio Brasil está buscando petróleo em águas profundas (pré-sal). Nos Estados Unidos, o processo conhecido como fracking está aumentando significativamente as reservas de gás natural (gás de xisto ou folhelho)39, causando uma forte oferta e baixa nos preços, processo que deve se estender ao óleo, sem esquecer o petróleo em águas profundas no Golfo do México. O Canadá busca a sua areia betuminosa, e o Iraque promete ser a bola da vez. O gás de xisto e o óleo de areia betuminosa emitem muito mais carbono do que os combustíveis convencionais. De tudo isso, fica demonstrado que o capital, em seu movimento de autovalorização, é cego para a possibilidade iminente de uma emergência climática. O tempo abstrato capitalista que proletariza os trabalhadores também contradiz os tempos do ciclo do carbono, e fissura o metabolismo social com a natureza. Parece que nos encaminhamos a passos largos para o uso da bala de prata do aquecimento global, a “geoengenharia”, que consiste na manipulação tecnológica intencional do clima, como por exemplo o lançamento de material particulado na estratosfera para refletir a radiação solar, ou o lançamento de ferro nos oceanos para causar o crescimento de algas que absorvem carbono – técnicas que têm consequências em muitos aspectos imprevisíveis e incorporam muitos riscos. Recentemente, um experimento em desacordo com os regulamentos internacionais foi iniciado no Canadá por uma empresa privada, com despejo de 100 toneladas de sulfato de ferro no oceano, supostamente para tentar auferir lucros com créditos de carbono.40 A geoengenharia é uma tentação forte para o capital, pois estudos indicam que algumas técnicas seriam muito baratas 41 – ainda que tenha sido demonstrado que o sistema climático submetido à geoengenharia

O gás natural convencional emite menos carbono do que o carvão e o petróleo, como destacado na nota 22. O fracking, porém, produz emissões fugitivas de metano, de forma que suas emissões são comparáveis às do carvão. Cf. HOWARTH, R W.; SANTORO R. & INGRAFFEA, A. (2011) “Methane and the greenhouse-gas footprint of natural gas from shale formations”, Climatic Change Letters 106 (4): 679-690. 40 Ver LUKACS, M. (2012) “World’s biggest geoengineering experiment ‘violates’ UN rules”, The Guardian, 15 October 2012. Disponível em http://www.guardian.co.uk/environment/2012/oct/15/pacific-iron-fertilisation-geoengineering (acessado em dezembro/2012). 41 BARRETT, S. (2007) “The incredible economics of geoengineering”, Environmental and Resource Economics 39 (1): 45-54. 125 39

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ficaria

vulnerável

a

falhas

tecnológicas,

podendo

sofrer

alterações

bruscas

catastróficas42. *** Contradizendo de maneira absoluta os cenários tradicionais propostos pela IEA e outros semelhantes43, o modelo de “transição solar” proposto por David e Peter Schwartzman44 aponta a perfeita viabilidade de transição da infraestratura fóssil para um solar (fotovoltaica e eólica). Sabe-se que a energia solar disponível excede em muito as necessidades humanas atuais e futuras45. O modelo se baseia em pressupostos simples: dada a potência energética fóssil existente, o retorno energético por energia investida (EROI) das energias renováveis46, uma fração da potência fóssil aplicada no desenvolvimento da potência renovável (fFF), uma fração da potência renovável reaplicada na sua expansão (f), e a vida útil da infraestrutura renovável (L), tem-se o tempo necessário para que R, a razão entre a potência fóssil e a potência renovável seja igual à unidade, ou seja, para que a base renovável possa substituir completamente a base fóssil. A figura 12 (a seguir) mostra que para valores realistas dos parâmetros do modelo, e mesmo utilizando apenas 1% da potência energética fóssil disponível, uma transição solar é perfeitamente viável, podendo ser atingida em menos de 40 anos. Nestas simulações, a energia fóssil é abandonada após vinte anos, após inicialmente

BROVKIN, V.; PETOUKHOV, V.; CLAUSSEN, M.; BAUER, E.; ARCHER, D. & JAEGER, C. (2009) “Geoengineering climate by stratospheric sulfur injections: Earth system vulnerability to technological failure”, Climate Change 92: 243-259. 43 Para uma crítica do modelo de William Nordhaus, que usa a taxa de juros para descontar os danos futuros do aquecimento global, ver meu texto CUNHA, D. (2012) “O Antropoceno como alienação”, op. cit. 44 SCHWARTZMAN, P. D. & SCHWARTZMAN, D. W. (2011) A solar transition is possible, London: IPRD. Disponível em www.solarutopia.org (acessado em dezembro/2012). 45 Descontando a radiação solar e o vento incidente sobre os oceanos e montanhas, áreas de pouco vento e áreas protegidas, a energia disponível seria cerca de 35 vezes maior do que a projeção de demanda energética para 2.030. Mas a capacidade exigida seria menor em relação às fontes fósseis devido à maior eficiência das fontes renováveis. Cf. JACOBSON, M. Z. & DELUCCHI, M. A. “A path to sustainable energy by 2030”, Scientific American, Nov 2009: 58-65. 46 Ou seja, quantas unidades de energia são produzidas por unidade de energia utilizada na construção da infraestrutura renovável. 126 42

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“parasitar” a infraestrutura fóssil. 47

Fig. 12: Transição solar, utilizando modelo de Schwartzman & Schwartzman

O que este modelo de transição solar demonstra é que, afora um temporário gargalo

de

disponibilidade

de

alguns

metais48,

não

existe

nenhum

impedimento técnico ou material para uma transição solar: a tecnologia já existe, já tem eficiência suficiente e é capaz de fornecer toda a energia que o mundo necessita. Ou seja, trata-se de um modelo baseado no valor de uso, nas propriedades concretas, sensíveis – o que se quer é energia, não transformar dinheiro em mais dinheiro (“onde está o estudo de viabilidade financeira?”, perguntará o fetichista). O que impede a transição tecnológica socialmente desejável e ecologicamente necessária é tão somente a camisa

Evidentemente, o crescimento exponencial da infraestrutura solar (curvas preta, laranja e azul na figura 12) pode e deve ser interrompido quando as necessidades sociais estiverem satisfeitas. O modelo se dedica a demonstrar a viabilidade de uma transição solar “abundante”, ou seja, que pode fornecer tanta ou mais energia do que uma base energética fóssil. As curvas vermelha e verde representam transições solares inviáveis, pois após o abandono da energia fóssil apresentam decaimento ou mantém-se com capacidade baixa. 48 Cf. SCHWARTZMAN & SCHARTZMAN (2011), op. cit. e JACOBSON, M. Z. & DELUCCHI, M. A. “A path to sustainable energy by 2030”, op. cit. 127 47

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de força do capital. Portanto, estas curvas de transição solar são referências utópicomateriais, que só podem se realizar com um movimento social que force a mudança do rumo da história. Não seria nada fácil dispor socialmente sobre o uso do petróleo, mesmo que seja de uma pequena fração de 1% – o capital certamente resistirá. *** Em muitos países “em desenvolvimento” de forma geral, e em particular no caso do Brasil, a maior parte das emissões de carbono provém de mudanças de uso do solo (desmatamento), e não da combustão de combustíveis fósseis.49 Além disso, boa parte da matriz energética nacional é composta de energia hidráulica e biocombustíveis, que, em sentido estrito, são formas de energia solares (o sol é a fonte energética que sustenta o ciclo hidrológico e a fotossíntese). Seria um erro, porém, considerar que a transição solar – considerada aqui como transição para uma infraestrutura fotovoltaica e eólica – é supérflua nestes países, por vários motivos. Os dados indicam que as emissões por desmatamento apresentam uma tendência decrescente, enquanto as emissões por queima de combustíveis fósseis aumentam50. As recentes políticas do governo de incentivo à venda de automóveis e subsídio ao preço da gasolina devem intensificar esta tendência.51 Ainda, há a perspectiva de exploração de combustíveis fósseis nãoconvencionais – além do óleo de águas profundas (pré-sal), já se anuncia a exploração de gás de xisto (fracking)52. Ainda que não pareça provável que o Brasil se assemelhe à China em termos de emissões, há pressões para o aumento de emissões fósseis que podem nos levar à mesma direção que já tomaram China e Índia, por exemplo. De outra parte, o potencial de energia hidráulica no Brasil, apesar de segundo os dados oficiais ainda ser cerca de 70% inexplorado 53, já se encontra saturado, a não ser Cf. MINISTERIO DA CIENCIA E TECNOLOGIA (2010) Inventário brasileiro de emissões antrópicas por fontes e remoções por sumidouros de gases de efeito estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal, Parte 2, p. 141. Disponível em http://www.mct.gov.br/upd_blob/0214/214061.pdf (acesso em dezembro/2012). 50 Cf. INPE http://inpe-em.ccst.inpe.br/ e MINISTERIO DA CIENCIA E TECNOLOGIA (2010), op. cit. 51 Projeta-se que a frota de veículos automotores irá dobrar de 2009 a 2020, devido principalmente ao aumento de veículos leves (automóveis). Cf. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA & EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (2011) Plano decenal de expansão de energia 2020, p. 24-25. 52 Ver IPT, “Gás de folhelho: estudo de pré-viabilidade busca analisar potencialidade e impacto do insumo no estado de São Paulo”, http://www.ipt.br/centros_tecnologicos/CETAE/noticias/616gas_de_folhelho.htm (acessado em dezembro/2012); ZERO HORA, “Estado tem potencial de gás de xisto”, http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2013/01/estado-tem-potencial-em-gas-dexisto-4009559.html (acessado em janeiro/2013). 53 Cf. MINISTERIO DE MINAS E ENERGIA (2007) Matriz energética nacional 2030, Brasília: EPE, p. 23-28. 128 49

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que se faça completa abstração das suas “externalidades”. A maior parte do potencial inexplorado se encontra na região amazônica.54 Portanto, apenas tecnocratas fanáticos do “desenvolvimento” a qualquer preço podem pensar seriamente na utilização do potencial remanescente – mas segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia, Belo Monte é apenas o começo de uma série de hidrelétricas planejadas para a região da floresta amazônica.55 Soma-se a isso o fato de que, apesar de serem “menos sujas” do que termelétricas a carvão, as barragens também emitem gases estufa, devido à decomposição dos resíduos de biomassa, inclusive metano (gás estufa mais potente do que o dióxido de carbono), pela decomposição anaeróbia no fundo da barragem.56 Este efeito é intensificado justamente em áreas de floresta tropical, onde há grande densidade de biomassa. A barragem de Tucuruí emitiu mais gases estufa do que as emissões de combustíveis fósseis da cidade de São Paulo57. O caso dos biocombustíveis também é problemático, pois, com o seu cultivo intensivo, utiliza emissões fósseis embutidas em fertilizantes e pesticidas sintéticos, transporte, etc. A utilização de área agrícola em época de crise de produção de alimentos e expansão da fronteira agrícola na floresta tropical é igualmente questionável, podendo intensificar o desmatamento58 – sem esquecer o infame trabalho escravo nos canaviais. De forma que, mantidas as tendências atuais de demanda e produção energética no país, estaremos diante da alternativa de mais barragens na Amazônia ou termelétricas movidas a combustível fóssil ou mais área agrícola destinada a “alimentar” automóveis . Há uma distinção qualitativa das emissões de carbono fóssil: são emissões que extraem carbono confinado na crosta terrestre para a atmosfera, enquanto o uma floresta desmatada pode voltar a armazenar carbono com a sua regeneração em uma Cf. MINISTERIO DE MINAS E ENERGIA (2007), op. cit., p. 23-28. Das 25 novas barragens previstas para 2016-2020, 8 situam-se na região norte; no entanto, são as de maior capacidade de geração, perfazendo 15.498 MW de um total de 18.185 MW (85%). Destaca-se a UHE de São Luís do Tapajós, com 6.133 MW. Cf. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA & EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (2011) Plano decenal de expansão de energia 2020, p. 64. 56 O quanto as hidrelétricas são “menos sujas” do que as termelétricas é tema de longo debate científico entre Philip Fearnside e Luiz Penguelli Rosa, que não analisaremos aqui. 57 Cf. FEARNSIDE, P. M. (2002) “Greenhouse gas emissions from a hydroelectric reservoir (Brazil’s Tucuruí dam) and the energy policy implications”, Water, Air and Soil Pollution 133: 69-96. 58 Estudo sobre a substituição da gasolina por biodiesel nos EUA indicou que caso seja computado o efeito da mudança de uso da terra (conversão de florestas e campos em áreas de cultivo), as emissões de gases estufa do biodiesel seriam maiores. Cf. SEARCHINGER, T.; HEIMLICH, R.; HOUGHTON, R. A.; DONG, F; ELOBEID, A.; FABIOSA, J.; TOKGOZ, S.; HAYES, D. & YU, T-H. (2008) “Use of U. S. croplands for biofuels increases greenhouse gases through emissions from land-use change”, Science 319: 1238-1240. 129 54 55

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escala de tempo muito mais rápida do que a necessária para que os compartimentos ambientais globais (oceanos, crosta terrestre via intemperismo) absorvam o carbono fóssil lançado à atmosfera. A preservação da floresta amazônica, de toda forma, prescinde da ocorrência do aquecimento global, justificando-se independentemente dele pela preservação da biodiversidade, regulação climática, direitos de povos indígenas, questões éticas, estéticas, etc. Não custa lembrar que a atmosfera funciona como um “tanque de mistura rápida”, ou seja, a concentração de carbono atmosférico é para todos os efeitos práticos homogênea globalmente, de forma que o enfrentamento do aquecimento

global

é

inclusive

geofisicamente

uma

questão

globalizada,

independentemente da origem territorial das emissões – a questão deve ser enfrentada transnacionalmente, mesmo quando se enfrenta questões locais, porque os efeitos da mudança climática tampouco reconhecerão fronteiras nacionais. De fato, uma das possíveis consequências do aquecimento global é a conversão da floresta amazônica em savana, já que parece haver estados alternativos entre ecossistemas de tipo floresta tropical e savana em função da variação da pluviosidade.59 *** Neste ponto deve estar claro que é um equívoco afirmar que o capitalismo é “materialista”, como faz a ideologia ecologista vulgar. O capital, em sua expansão cega, desconsidera completamente os ciclos materiais do planeta. Seu desenvolvimento irracional é capaz de levar ao aumento das emissões de carbono em plena emergência climática global – algo semelhante a usar um lança-chamas em um incêndio a fim de “otimizar a alocação dos recursos”. Das mazelas materiais que estão a caminho – inundação de cidades costeiras, extinção em massa de espécies, aumento da frequência de ondas de calor e tempestades, migrações em massa, colapso da agricultura, proliferação de epidemias – o capital faz total abstração. O que se tem, na verdade, é um sistema fetichista, no qual as decisões sociais fogem ao controle dos envolvidos. Como diz Moishe Postone: O sonho implicado pela forma capital é o da total ausência de limites, uma fantasia de liberdade como a completa liberação da matéria, da natureza. Este “sonho do capital” 59

Cf. HIROTA, M.; HOLMGREN, M.; VAN NES, E.; SCHEFFER, M. (2011) “Global resilience of tropical forest and savanna to critical transitions”, Science 334: 232-235. 130

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está se tornando o pesadelo daquilo que ele se esforça por libertar-se: o planeta e seus habitantes.60

Antes, trata-se de niilismo, já que quando do seu desenvolvimento pleno, a valorização do valor passa ser cada vez mais destrutiva, aniquiladora do mundo 61. É preciso apontar para a direção contrária: o materialismo radical, que exige tomar as coisas pela raiz para reconfigurar o modo de produção social e, portanto, o metabolismo social com a natureza. Debord, talvez subestimando a capacidade do capitalismo de mistificar as massas, dizia que a simples verdade das “nocividades” e dos riscos atuais é suficiente para constituir um imenso fator de revolta, uma exigência materialista dos explorados, tão vital quanto foi no século XIX a luta dos proletários pela possibilidade de comer62.

Da mesma forma, não se pode dizer que o capitalismo é antropocêntrico. Pelo contrário, trata-se de realizar o antropocentrismo, já que no capitalismo o sujeito é sujeitado pelas coerções do capital. O antropocentrismo, de fato, só pode ser efetivo com a superação (Aufhebung) do capital. Tratar-se-ia, porém, de um antropocentrismo nãoinstrumental63, que reconhece a natureza como sujeito: “paz é um estado de diferenciação sem subjugação, em que o diferente é compartilhado” 64. Žižek, por sua vez, clama pelo “egoísmo esclarecido” para lembrar que não se trata de mirar capitalistas individuais, mas o sistema do qual os capitalistas são apenas personificações: Não deveríamos dizer que o capitalismo é sustentado pela ganância egoísta dos capitalistas individuais, pois o seu egoísmo é subordinado ao esforço do próprio capital para reproduzir-se; o que precisamos é de mais, não menos, egoísmo esclarecido (...) São as nossas preocupações ecológicas que estão ancoradas em um sentido utilitário de sobrevivência65.

POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social Domination: a reinterpretation of Marx’s critical theory, Cambridge: Cambridge University Press, p. 383. 61 Cf. JAPPE, A. “Crítica social ou niilismo? O ‘trabalho do negativo’: de Hegel e Leopardi até o presente”, nesta edição da Sinal de Menos. 62 DEBORD, G. (1971/2009) “O planeta enfermo”, Sinal de Menos n. 2: 151-159, disponível em www.sinaldemenos.org (acessado em novembro/2012). 63 Tomo emprestada a expressão “antropocentrismo não-instrumental” de BIRO, A. (2011) Ecological crisis and the culture industry thesis, In: BIRO, A. (org.), Critical ecologies: the Frankfurt School and contemporary environmental crises, Toronto: University of Toronto Press 64 ADORNO, T. W. (1969/2003) “Sobre sujeto y objeto”, In: Adorno, T. W. Consignas, Madrid: Amorrortu, p. 145. 65 ZIZEK, S. (2010) Living in the End Times, New York: Verso, 2010, p. 334-335. 131 60

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Materialismo

radical,

antropocentrismo

não-instrumental

e

egoísmo

esclarecido socialmente partilhados, é disso que se trata para agir efetivamente sobre a grave questão que se apresenta no horizonte da humanidade66, e cuja raiz está na metafísica real do sistema sem sujeito que é o capitalismo. Por sua dinâmica peculiar, o problema do aquecimento global se revela intergeracional. Mas uma “ética do futuro” pressupõe um sujeito emancipado: o movimento de superação do capital que rompe o tempo fetichizado67 e permite que a reflexão e a ação coletivas sobre o futuro se libertem do jugo do capital que rende juros.68 *** Se a técnica avançada está configurada pelo capital, esta forma de relações sociais que é historicamente determinada, isto implica que ela não é unidimensional; a técnica é dialética e pode ser reconfigurada e ressignificada. De fato, “a função mais crítica da tecnologia moderna deve ser a de manter as portas da revolução abertas para sempre” 69 – é no poder da técnica desenvolvida a partir da queima de combustíveis fósseis que está contido o potencial de um “comunismo solar”. Quais seriam, então, as tarefas técnico-sociais de combate ao aquecimento global decorrentes do materialismo radical? É fácil enunciá-las: a já mencionada transição solar; manutenção do carvão e da maior parte do petróleo e do gás natural embaixo da terra; agroecologia, o que inclui a

E que já começou a surtir os seus efeitos. Em 2012, o gelo no Ártico reduziu-se à menor área já registrada. Recentemente publicou-se artigo científico mostrando que os eventos de temperaturas extremas (ondas de calor) já se tornaram estatisticamente mais frequentes. Cf. HANSEN, J.; SATO, M.; RUEDY, R. (2012) “Perception of climate change”, Proceedings of the National Academy of Sciences 109 (37): 14726-14727, E2415-E2423. Disponível em http://pubs.giss.nasa.gov/abs/ha00610m.html (acessado em novembro/2012). 67 Lembrando Benjamin: “A consciência de destruir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias (...) Na Revolução de Julho aconteceu ainda um incidente em que esta consciência ganhou expressão. Chegada a noite do primeiro dia de luta, aconteceu que, em vários locais de Paris, várias pessoas, independentemente umas das outras e ao mesmo tempo, começaram a disparar contra os relógios das torres”. BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da história”. In: BENJAMIN, W. (2010) O anjo da história: obras escolhidas de Walter Benjamin, Lisboa: Assírio e Alvim. 68 Para uma crítica da utilização da taxa de juros como fator determinante em cenários climatológicoeconômicos do aquecimento global, ver CUNHA, D. (2012), “O Antropoceno como alienação” op. cit. 69 BOOKCHIN, M. (1965) “Towards a liberatory technology”, In: M. Bookchin, Post-scarcity anarchism, Edinburgh: AK Press, p. 77-78. 132 66

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interrupção do desmatamento e o reflorestamento; reconfiguração das cidades e seus sistemas de transporte, com ênfase no transporte público elétrico solarizado e na bicicleta; abolição da obsolescência programada; abolição dos ritmos frenéticos;abolição da produção de bugigangas; abolição do complexo industrial-militar; abolição da máquina de publicidade da indústria cultural; apropriação e redefinição do uso da tecnologia avançada (automação, etc.). Isto é apenas o óbvio para quem pensa a questão segundo os requisitos da sobrevivência material e da “boa vida”. Mas implementá-lo em larga escala – e não apenas em pequenos nichos ou como “lavagem verde” – é o impensável para o Capital. Como descrito por Dickens e Monet (figura 13), trata-se de uma luta – entre a luz e o luto.

Fig. 13: Claude Monet, Le Parlement, Troué de soleil dans le brouillard, óleo sobre tela (1904)

(Dezembro/2012 - Janeiro/2013)

133

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