A tortura, o exílio, e seus efeitos

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A tortura, o exílio, e seus efeitos



A tortura tem efeitos, tanto físicos quanto psicológicos, que transcendem o
momento da tortura. Alguns se arrastam por muito tempo. Um dos conjuntos
de efeitos se denomina Desordem de Estresse Pós-Trauma, ou DEPT. A sigla em
Inglês, PTSD, já é parte do jargão dos psiquiatras mundo afora. Muitos
acham que a tortura é, apenas, um ato de punição pela discordância
política, ou um ato de dissuasão de terceiros, além dos que são torturados.
Esses conceitos se aplicam em muitas ocasiões, mas talvez o mais freqüente
seja a busca de informações pela tortura, como um instrumento de coleta de
dados.

A tortura não é de hoje. Em alguns países latino-americanos é uma chaga
muito antiga, que se reabre de tempos em tempos. Na América Latina, ela foi
usada contra opositores de ditaduras. Na América Central, particularmente
na Guatemala, em El Salvador e na Nicarágua (talvez um pouco menos em
Honduras) a tortura foi usada despudoradamente contra inimigos políticos
durante décadas, a par dos assassinatos de cunho genocida. Outros regimes
autoritários, de inclinação fascista, como os de Getúlio Vargas e Perón,
usaram a tortura como parte de repressão mais ampla. As ditaduras militares
que assolaram o continente durante parte da década de 60, durante a década
de 70 e parte da de 80 fizeram amplo uso da tortura. A tortura também foi
usada por regimes eleitos contra opositores, usualmente radicais, como foi
o caso de Fujimori. E a tortura ainda é usada, ora mais, ora menos, por
forças policiais em todo o continente. A tortura e as execuções sumárias
não são exclusividade do autoritarismo de direita, sendo Stalin e Pol Pot,
símbolos do desvario genocida de esquerda.

O retorno do autoritarismo à América Latina, particularmente na Venezuela,
já sob o jugo de um psicopata, renovou o interesse pelos efeitos da tortura
e do exílio, sugerindo a necessidade de países democratas se prepararem
para receber vítimas e exilados. É um dos cenários mais prováveis. O que
fazer com eles?

Há muita experiência disponível a respeito dos problemas de vítimas
de repressão. Uma parcela substancial do conhecimento foi obtida estudando
exilados porque a pesquisa é muito mais difícil quando o governo
obstaculiza as investigações. Steel et al estudaram exilados tâmil na
Austrália, trazendo à superfície um problema: o exílio em si é uma fonte
séria de estresse. As condições pré-migratórias contribuíram com 20% da
variância dos sintomas de estresse pós-trauma, mas as pós-migratórias
adicionaram outros 14%. Países democráticos com vocação humanitária devem
se preparar para receber os exilados, facilitando sua adaptação. Uma das
conclusões de outra pesquisa, com iraquianos, indicou que a ausência de
apoio e de capital social no país de destino se correlacionavam mais a
fundo com depressões pesadas do que os traumas pré-migratórios.

Uma ditadura não causa, apenas, um retrocesso político. O dano
psicológico generalizado não deve ser subestimado. Mollica et al estudaram
quase mil exilados cambodianos num acampamento na fronteira tailandesa,
concluindo que a metade dos cambodianos tinham depressão séria e 15%
exibiam claros sintomas de DEPT. Outro estudo, de bósnios refugiados na
Croácia, mostrou que 39% estavam seriamente deprimidos. De Jong et al
estudaram esses problemas em regiões com sérios conflitos internos ou
externos (Algéria, Cambódia, Etiópia e Gaza) e a percentagem com DEPT
variava entre 16% e 37%.

O tempo conta, quanto mais tempo passar, maior a chance de um
ajustamento melhor. Um estudo de 1.413 vietnamitas na Austrália mostrou
que a influência das condições pré-migratórias declinou.

Porém, o tratamento exitoso desses traumas exige preparação, pessoal
qualificado, iniciativas sociais e ocupacionais inteligentes.

O Brasil é a maior democracia na proximidade de países com sérios
conflitos internos (Venezuela, Bolívia e, possivelmente, Equador), sem
esquecer que a violência interna na Colômbia ainda é significativa, a
despeito de ter diminuído muito. É quase inevitável que muitas vítimas dos
conflitos, além dos perseguidos, procurem asilo político aqui. É uma
questão humanitária concedê-lo sem olhar a cor política de quem pede.
Porém, receber exilados requer bem mais do que simplesmente "deixar
entrar". Para começar, não podemos ignorar o fardo que a pesada burocracia
imigratória brasileira adiciona a uma população que já chega muito
debilitada. Além disso, é necessário facilitar a assimilação desses
migrantes, respeitando seus valores e peculiaridades. Teremos resistências
internas porque muitos brasileiros afirmarão que esses recursos deveriam
ser usados dentro do Brasil, amenizando as conseqüências da nossa violência
e assistindo nossos pobres. Porém, exilados tem que sair e precisam ir
para algum lugar. Quando o Brasil foi vitimado por um regime opressivo,
outros países receberam e ajudaram exilados brasileiros. Não podemos nos
furtar a essa obrigação humanitária, mas não estamos preparados para ela.



GLÁUCIO SOARES

UNIVERSITY OF FLORIDA
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