A tragédia no cinema de Pasolini: Medea

June 30, 2017 | Autor: Luna Maldonado | Categoria: Italian Cinema, Cinema, Teatro, Tragedia griega clásica, Tragédia
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A TRAGÉDIA NO CINEMA DE PASOLINI: MEDEA


Luna Fontes Maldonado




RESUMO
Com este artigo tentaremos analisar o filme "Medéia" de Pasolini, inspirado na obra homônima de Eurípedes, a partir do estudo de sua forma e de sua temática.
Palavras-chave: Cinema. Tragédia. Pasolini. Medeia.

1 INTRODUÇÃO
Ao assistir "Medeia" de Pasolini é inevitável notar o quanto a forma trágica persiste, apesar de ser o cinema um meio completamente diferente do teatro, no qual as tragédias eram representadas originalmente. Assim como sua temática consegue ser extremamente sincrética, ao revelar no conflito Natureza e Razão, proposto por Eurípides, novos horizontes contemporâneos. É justamente pela notória presença dessas características que passaremos a analisa-las mais atentamente nas próximas páginas deste artigo. Para tal, levaremos em consideração a divisão do filme em duas partes: a primeira que inicia e finaliza na presença do Centauro, e a segunda que tratasse do mito da Medéia em si, tal qual é apresentado por Eurípedes.

2 A FORMA TRÁGICA
Ao terminar de ver o filme de Pasolini há duas características que ficam muito evidentes. Uma delas é o como, apesar de manter a temática relativamente fiel à de Eurípedes, Pasolini ressignifica sua problemática. Outra é como o filme do italiano conseguiu manter em sua forma características evidentes do gênero da tragédia. É sobre essa forma que iremos pensar a seguir.
O primeiro ponto a se atentar ao estudarmos sobre a forma trágica que há no filme Medéia é que ela não é uma adaptação da forma trágica literária para o cinema, ao menos não em um sentido restrito, mas sim uma nova concepção do trágico na contemporaneidade. É certo que os diálogos do filme buscam reproduzir sem grandes alterações, ao menos no que se refere à segunda parte, aqueles do Eurípedes. No entanto, existem neles uma nova carga de simbolismos.
Quando tentamos chegar à raiz da tragédia o mito é o primeiro a aparecer como base da estrutura, na medida em que tratamos a tragédia como meio de análise social e antropológica do mundo a partir de temáticas essencialmente públicas. Mitos estes que não se restringem à história de deuses e seres míticos, mas, como define Campbell (2008, pg. 24), "são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida animam a vida do mundo". Na época da idealização do filme Medéia, Pasolini passava por uma reformulação de suas ideias. A Itália dos anos 60 transitava para uma nova era da "cultura de massa" e o ideal gramsciano da obra "nacional-popular" do qual Pasolini acreditava, passou a desmantelar-se ante seus olhos. Ele dizia que a população estava em processo de dessacralização, que o capitalismo já estava tomando até mesmo o mundo camponês e que, segundo suas palavras, "para o novo capitalismo, é indiferente que se creia em Deus, na Pátria ou na Família" (PASOLINI, 1969,pg. 103), e que agora a aparição do sagrado deixava de ser hierofania e passava a ser cratofania.

Ao que eu saiba, diante do desaparecimento total das hierofanias (que se conservam esclerosadas nas superstições populares, que ainda são certamente muito numerosas, mas que estão tão para trás, tão divididas por um abismo, que se apresentam na verdade com irreais), a única que substitui é a do motor: cratofania, não tanto hierofania. (PASOLINI, 1969, pg. 138)
Foi na busca por uma forma de oposição e ao mesmo tempo análise, através de sua arte, sobre oque que sucedia no país, que Pasolini passa à criação de uma série de filmes ("Édipo Rei", "Medéia" e "Notas para uma Oréstia Africana", documentário sobre um filme não realizado) que recriam as mitologias da história primitiva em uma espécie de ensaio que, nas palavras de Canevacci:
É de tipo fantástico e sincrético, e tem mesmo a força, por assim dizer, realística de colher uma sequencia diversificada dos mitos e de representa-los consecutivamente, de modo sincrônico e apaixonado: e híbrido. (CANEVACCI, 1990, pg. 105)
Ou seja, a definição de um certo esboço da tragédia.
Já foi apontado como, em sua raiz, o filme Medeia se apoiará nos mesmos princípios para a criação de uma tragédia, conformando-se a moldura. No entanto, falta-lhe ainda uma linguagem que a identifique como tal, e que será a grande distinção entre a tragédia de Eurípides e a de Pasolini.
Normalmente, quando se pretende transmitir um mito, recorre-se à narração. Ou seja, à transmissão de fatos e não de pensamentos (como bem o indica o centauro mítico no início do filme), posto que o mito é uma força que não premedita mas age. Como decorrência disto a tragédia em si também acaba por tornar-se uma forma muito mais narrativa do que pensante, ou melhor, mais ativa do que psicológica. Quando a tragédia é posta na forma literata ou teatral, diversos fatores de ambientação exigem que muitos dos aspectos da ação sejam narrados a partir do próprio diálogo, como ocorre na peça de Eurípedes e nas demais tragédias. No entanto, algo diferente ocorre no cinema.
Devido ao recurso audiovisual, muitas das narrativas que na literatura e teatro exigem diálogos elaborados, podem ser expressas a partir de montagens áudio-imagéticas, sem recorrer necessariamente à voz do diálogo entre personagens. Pasolini não só era consciente disso como também fez uso dessa característica para adicionar uma camada extra e metalinguística à narração do mito. Para isso fez uso de duas formas distintas de cinema, denominadas por ele mesmo de "cinema de poesia" e "cinema de prosa", relacionadas às duas forças postas em contrastes, na temática, durante o filme: a natureza e a razão (ou o sagrado e o profano), respectivamente.
O "cinema de poesia" consiste, tecnicamente, em recursos como os longos MDP (Média de Duração de Plano, que se calcula pela divisão da duração do filme sobre o seu número de planos, para se obter o dado da duração média dos planos); as músicas de características tribais, que são usadas durante todo o filme para sinalizar os momentos da manifestação do sagrado; e os diálogos praticamente ausente, que aparecem apenas quando extremamente necessário. Um excelente exemplo disso é a cena de apresentação do mundo de Medéia (cena do rito em Cólquida), em que através do uso constante da música tribal, longos planos gerais e diálogo quase nulo, Pasolini consegue transmitir toda a essência do mítico que jaz em Medéia.
Já o "cinema de prosa" consiste em MDPs curtos, músicas não tão intrinsicamente vinculadas ao sentido da cena, e diálogos maiores, mesmo que não extremamente necessários. Exemplo desse tipo de cinema está nas cenas em que o Centauro aparece. Nelas o diálogo é o que prevalece e as sequencias são mais curtas.

Em poucas palavras, no cinema de prosa não se percebe a câmera e não se sente a montagem, isto é, não se sente a língua, a língua transparece no seu conteúdo, e o que importa é oque está sendo narrado. No cinema de poesia, ao contrário, sente-se a câmera, sente-se a montagem, e muito. (PASOLINI, 1966, pg. 104)
Durante todo o filme é evidente como o diretor brinca com isso, chegando mesmo a fazer referências metalinguísticas como, por exemplo, quando o Centauro diz sobre o homem antigo que "para ele, a realidade é uma unidade tão perfeita que a emoção que sente, digamos, frente ao silêncio de um céu de verão equivale totalmente à mais interior experiência pessoal de um homem moderno" podendo-se entender ai uma contraposição entre a forma que se comunica através dos sentidos, poética, (o silencia do um céu de verão), e outra verbal, prosa, (experiência pessoal de um homem moderno) paralela à contraposição temática entre a experiência sagrada e racional, respectivamente. Ou até mesmo na segunda aparição dos centauros para Jasão, quando o Centauro racional explica que o mítico não fala "porque a lógica dele é tão diferente da nossa que não se poderia entender", podendo-se enxergar ai uma referência à forma de transmissão do mito no cinema que, por sua essência, não se dá ao todo pela forma verbal, mas sim pela experiência áudio-imagética.
Mas mesmo sendo o recurso da contraposição entre "cinema de poesia" e "cinema de prosa" um fator que contribuiu na constituição da tragédia dentro do filme, há ainda outro bem mais evidente sobre o qual ainda não comentamos: a estrutura do próprio texto.
Como já foi dito, Pasolini procurou manter os diálogos entre os personagens o mais fiel possível ao texto, alterando-os apenas quando o áudio-imagético já cobria o significado ou por motivos de montagem e, como veremos adiante, de sua própria concepção simbólica do mito de Medéia que difere, mesmo que pouco, da de Eurípedes. Mas em suma, mantendo a forma trágica que retira boa parte da psicologia do personagem, mantendo seu aspecto universal.
No entanto, ele ainda vai além e, ao adicionar o Centauro, incorpora também, uma nova dimensão do trágico: o oráculo. A figura do centauro em si é bastante interessante na medida em que acaba tornando-se chave mestra para o entendimento de todo o filme. Ele é colocado estrategicamente no início e no fim da primeira parte, que antecede o mito da Medéia, e vem, em suma, como discurso livre indireto do autor ou, como diz Pasolini, "simplesmente a imersão do autor no espírito da sua personagem e, portanto, a adoção da parte do autor não só da psicologia da sua personagem, mas também da sua língua". Pasolini,(1972 apud CANEVACCI, 1990, pg. 102). Mas é na sua perspectiva oracular que vamos nos concentrar por enquanto.
Nos dois momentos em que ele aparece, vem com propósitos distintos. No primeiro momento, a infância, adolescência e maturidade de Jasão, ele vem como uma espécie de prólogo ou párodos em que anuncia o passado de Jasão, passagem de quando ele tem cinco anos;

Hoje você faz cinco anos e vou lhe dizer a verdade. Não é meu filho. Não o encontrei no mar. Foi mentira oque contei. Você não é mentiroso, mas eu sou. Eu me divirto dizendo mentiras. Lamenta saber que não é meu filho? Que não sou seu pai nem sua mãe?
Tudo começou por causa de um velocino de carneiro. Sim, havia um carneiro que falava, era divino. Deus o tinha dado a Néfele, aquela que rege as nuvens, porque Néfele tinha de salvar os filhos. Tinha que salvá-los porque Ino queria mata-los. Ino era esposa de Cadmo e segunda esposa do rei dos Oceanos que se chamava Atamante. Atamante era filho de Éolo, que rege os ventos do qual antes Ino havia sido esposa. Bem, foram apenas ciúmes... O carneiro de que te falei, que tinha a pele de ouro, conseguiu levar para além-mar um dos dois filhos de Néfele, que se chamava Frixo. Chegou na cidade do rei Éster, que era filho do Sol. Este rei acolheu Frixo e sacrificou ao deus Zeus o carneiro com pele de ouro em agradecimento.
Os descendentes de Éolo fizeram de tudo para reconquistar aquele velocino porque dava sorte aos reis. Garantia que o reino deles nunca acabaria e que tudo ficaria como antes. Bem, fizeram de tudo mas não conseguiram. Não conseguiram! E você, filhote, é descendente de Éolo porque é filho de um filho de Atamante, de que falei antes, e que era rei de Iolco, uma cidade vizinha daqui muito rica em ovelhas e trigo e que é propriedade do rei.
Seu tio Pélias mandou prender seu pai e se apoderou do reino que é seu por direito. E eu fiquei com você, aqui, em segurança. Entendeu? É verdade, é uma história um pouco complicada porque é feita de coisas e não de pensamentos".
A seguir o monólogo do Centauro continua, embora agora Jasão já tenha treze anos. Durante toda esta cena não se pode ver a parte de baixo do centauro (se é ainda um cavalo ou se já se tornou humana). Tudo ocorre na mesma espécie de península.

Como o mundo em que vive e suas circunstâncias sagradas e profanas, Jasão aos treze;

É tudo santo, tudo é santo, tudo é santo! Não há nada de natural na natureza, meu pequeno. Guarda isso na memória. Quando a natureza parecer natural, terá acabado tudo e começará qualquer outra coisa. Adeus céu, adeus mar.
Neste dia em que faz treze anos e está pescando com os pés na água morna, olhe atrás de você. Oque vê? Tal vez alguma coisa natural? Não! É uma miragem a qual vê atrás de você, com as nuvens que se espelham na água parada, pesada, das três horas da tarde. Olhe lá longe aquela tira preta sobre mar brilhante como azeite. Aquelas sombras de árvores e aqueles canaviais. Em cada ponto onde seus olhos pousam está escondido um deus. E se por acaso não está, aí deixou sinais de sua presença sagrada: ou silêncio, ou cheiro de terra, ou frescor de água doce. Sim, tudo é santo. Mas a santidade traz consigo uma maldição. Os deuses que amam, odeiam ao mesmo tempo"

E as implicações que o mundo, como força, terá sobre o destino de Jasão, quando este já é adulto.
Tal vez tenha achado que além de mentiroso fui também muito poético. Mas que quer? Para o homem antigo os mitos e os rituais são experiências concretas que compreendem até em seu existir corporal e cotidiano. Para ele, a realidade é uma unidade tão perfeita que a emoção que sente, digamos, frente ao silêncio de um céu de verão equivale totalmente à mais interior experiência pessoal de um homem moderno.
Você irá até seu tio, usurpador do seu reino, para reclamar seus direitos. Para o eliminar ele terá de ter um pretexto, poderá lhe atribuir uma missão: a reconquista do velocino de ouro, por exemplo. E assim, [você] irá para um país distante, além-mar. Aqui vivenciará um mundo que está longe do uso da nossa razão. A vida dele é muito realista, como poderá ver, porque é só o mítico que é realista e é só o realista que é mítico. Isso, pelo menos, é oque prevê nossa divina razão. Oque ela não pode prever, infelizmente, são os erros aos quais conduzirá você. E quem sabe quantos serão!
Oque o homem, descobrindo a agricultura, viu nos cereais. Oque aprendeu desta relação. Oque compreendeu do exemplo das sementes que perdem a forma debaixo da terra para renascer... Tudo isso representou a lição definitiva, a ressurreição, meu caro. Mas agora esta lição definitiva já não serve. Oque você vê nos cereais, oque entende do renascer das sementes, para você agora não tem significado como uma remota recordação que já não lhe diz respeito. Com efeito, não existe nenhum Deus.

No segundo momento, ele já aparece como oráculo, anunciando a Jasão seu amor por Medéia. O caráter oracular fica claro quando Jasão pergunta o motivo de tal anuncio e o Centauro responde: "para nada. É a realidade" e ainda complementa que "nada poderia impedir ao velho centauro de inspirar sentimentos e a mim, novo centauro, de os exprimir". Podendo-se assumir que, então, há no centauro mítico o símbolo da força divina, sagrada, da natureza; e no novo centauro o símbolo do próprio Jasão, racional, que ainda assim sucumbe à força do mítico exprimindo os sentimentos que esta lhe inspira.
Essas duas passagens, assumindo o caráter de prólogo, párodos e oráculo, reforçam ainda mais o caráter trágico do filme ao trazer a ele as forças incontroláveis e universais (no caso da tragédia grega, divinas) e a determinação que elas têm nos atos dos protagonistas. Traçando-se, assim, a característica pública e não privada ou psicológica do filme, algo típico da tragédia.
Em suma, Pasolini consegue manter a estrutura da tragédia no filme por meio do tripé mito, linguagem áudio-imagética, e estrutura de prólogo, párodo e oráculo. Isso o faz com uma imensidão de sincretismos, metalinguagens que acabam por colaborar não apenas com a manutenção da forma em si da tragédia, mas também com a própria temática que aborda. É justamente sobre essa temática que discutiremos a partir de agora.
2 A TEMÁTICA
Dada uma visão geral das temáticas adotadas por Eurípedes e Pasolini, poderíamos concordar que ambas acabam por tratar do conflito entre Natureza versus Razão. No entanto, a abordagem que se dá a esse conflito é irremediavelmente diferente.
Pelo termo Natureza, em ambos os casos, podemos entender como a força mítica, sagrada, divina e incontrolável. Pelo termo Razão, entendemos aquilo que é cético, profano, prático e controlável. Tanto em Eurípedes quanto em Pasolini, Medéia é representante da Natureza em conflito com a polis para a qual se muda, e Jasão é o representante dessa mesma polis, símbolo da Razão. A diferença que há entre ambos os autores jaz justamente na forma como enfocam a questão.
Em Eurípedes esse conflito é colocado quase inteiramente no âmbito da polis e sua política, acentuando o aspecto da barbárie versus civilização. Isso fica bastante clara no diálogo entre ambos em que Jasão, ao referir-se aos benefícios que lhe trouxe a Medéia afirma: "Habitas na terra dos Helenos, em vez da dos bárbaros, conheces a justiça, e sabes usar das leis, sem recorrer à força", dando a entender a superioridade da lógica prática grega (a justiça e as leis), à irracionalidade bárbara de Medéia (a força).
Já em Pasolini, o conflito entre as forças centraliza-se na própria percepção cosmológica dos personagens. A primeira cena com o Centauro, que acompanha o crescimento de Jasão, é fundamental para esse entendimento na medida em que ela mesma passa, como o fará Medéia mais tarde no filme, do mundo mítico e sagrado ao cético e profano de forma explícita e ainda indica como essa passagem será revivida por Jasão, de forma inversa, no seguinte trecho: "E assim, [você] irá para um país distante, além-mar. Aqui vivenciará um mundo que está longe do uso da nossa razão. A vida dele é muito realista, como poderá ver, porque é só o mítico que é realista e é só o realista que é mítico".
Nesse mesmo monólogo há ainda pistas das forças que se confrontaram no futuro quando o Centauro diz:
Oque o homem, descobrindo a agricultura, viu nos cereais. Oque aprendeu desta relação. Oque compreendeu do exemplo das sementes que perdem a forma debaixo da terra para renascer... Tudo isso representou a lição definitiva, a ressurreição, meu caro. Mas agora esta lição definitiva já não serve. Oque você vê nos cereais, oque entende do renascer das sementes, para você agora não tem significado, como uma remota recordação que já não lhe diz respeito. Com efeito, não existe nenhum Deus.

Indicando que Jasão, por não entender das sementes como antes, é o ser que já está desapegado do mítico, para o qual não há nenhum Deus, para o qual a "natureza é natural". Em seguida essa frase é confrontada com a única fala da cena seguinte, que mostra o rito de fertilização na cidade de Cólquida, onde Medéia vive. A fala é de Medéia, que diz, como parte do rito, "dá vida à semente e renasce com a semente". Fica evidente, então, o conflito que haverá no encontro entre ambos os personagens. O Jasão que não recorda o significado do renascer das sementes, e a Medéia que vive esse significado no dia a dia, através do rito.
A partir do encontro de ambos os personagens oque ocorrerá será uma sublimação das capacidades míticas de Medéia assim que vai para longe de sua cidade. Essa sublimação se dá em diversas fases. A primeira dela é o momento em que decapita o irmão para fugir de Cólquida. Nesse ato há a profanação da morte, que há pouco se dava em forma de rito. Isso porque é uma morte impulsionada por uma medida utilitária, lógica: atrasar a perseguição do povo de Cólquida. A segunda é quando, já no acampamento, Medéia se surpreende com o fato de que já não consegue comunicar-se com o sagrado.

Ah! A Terra! Deixe-me ouvir sua voz! Não recordo mais sua voz! Fale para mim, Sol! Como poderei voltar se não ouço mais oque dizem? Onde está? Falem comigo! Por caridade, fale! Onde estás, irmã? Onde posso encontra-la? Onde está o elo que ligava ao Sol? Toco a terra com os pés e não a reconheço. Avisto o sol com os olhos e não o reconheço.

E a última se dá anos mais tarde quando, perguntada sobre seus poderes míticos responde que já não os recorda, que "oque era realidade, agora já não o é mais" e que não passa de "uma ânfora cheia de um saber alheio". É justamente a partir do momento dessa afirmação que começará a cena de inflexão sobre a qual comentei no início deste artigo.
Após crer ter perdido tudo, Medéia tem uma visão do Sol que lhe devolve a comunicação com o mítico e lhe mostra como ocorrerá a morte de Gláucia e seu pai. É bastante interessante notar como esse retorno da força mítica em Medéia ocorre de forma diferente entre Eurípedes e Pasolini. Enquanto que no primeiro há a real morte devida a forças mágicas (a poção que faz com que Gláucia arda em chamas o vestir-se com o vertido de Medéia), no outro, essa morte mágica ocorre apenas em sonho, sendo sua real consumação dada em termos não mágicos (Gláucia e o pai se atiram ao precipício). Tal vez uma explicação para essa escolha por Pasolini, seja o fato de querer deixar claro que, na tragédia vivida por Medéia, não há uma Natureza que supere a Razão ou vice-versa. Mas sim uma Natureza que se adapta à Razão. Ou seja, o processo de justaposição de ambas. Assim como o deixa claro a segunda aparição do Centauro à Jasão, no seguinte diálogo:

JASÃO: Mas é uma visão!
CENARO RACIONAL: Se for, é produzida por você. Na realidade nós dois estamos dentro de você.
JASÃO: Mas eu conheci um só centauro!
CENTAURO RACIONAL: Não, conheceu dois. Um sagrado, quando era criança, e um profano, quando se tornou adulto. Mas oque é sagrado permanece junto a sua nova forma profana. E aqui estamos nós, um ao lado do outro.
JASÃO: Mas qual é a função do velho centauro, aquele que conheci quando era criança? Já que você centauro novo, se o percebi bem, o substituiu não fazendo-o desaparecer mas tomando o lugar dele.
CENTAURO RACIONAL: Ele não fala, naturalmente, porque a lógica dele é tão diferente da nossa que não se poderia entender. Mas eu posso falar por ele. É sob seu signo que você, para além de seus cálculos e de suas interpretações, na verdade ama Medéia.
Muitas outras suposições podem ser feitas a parir desta cena de inflexão. Alguns textos do próprio Pasolini podem dar indícios de que, na realidade, oque se faz ao representar a morte mítica com sonho não é mais do que fazer metalinguagem de oque acontece com a própria realidade, como o indica em seu ensaio "Os sintagmas vivos e os poetas mortos", em que, ao discorrer sobre a linguagem acaba por dizer que a síntese da realidade pode ser feita apenas após a morte: "se fossemos imortais seriamos imorais, porque o nosso exemplo nunca teria fim, e seria portanto indecifrável, eternamente suspenso e ambíguo" (PASOLINI, 1967, pg. 108). Ou seja, tal vez o mítico apenas como sonho representa a morte desse mesmo mítico, oque significaria sua síntese como tal dentro da realidade.
Seja como for, á temática do filme, por enquanto, permanecerá como uma incógnita em sua totalidade, embora posasse traçar algumas linhas de pensamento. É sua conclusão que nos deixará entre a esperança de uma volta do mítico ou sua mudez ao lado da razão.




4 REFERÈNCIAS
PASOLINI, Pier Paolo, Medea. 1969
PASOLINI, Pier Paolo. Caos. São Paulo: Brasiliense, 1982
PASOLINI, Pier Paolo. Diálogos com Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Nova Stella, 1986
NÁZARIO, Luiz. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Brasiliense, 1982
CANEVACCI, Massimo. Antropologia da Comunicação Visual. São Paulo: Brasiliense, 1990
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 2008















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