A transmissão de Iracema em material didático

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A TRANSMISSÃO DO TEXTO DE IRACEMA EM MATERIAIS DIDÁTICOS Gabriela de Souza Morandini Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas [email protected]

Resumo O projeto de pesquisa “Edição e estudo de textos literários em língua portuguesa: Iracema em sala de aula” enquadra-se na área da Filologia ou Crítica Textual, em seu ramo mais restrito, e foi desenvolvido segundo a metodologia usada por teóricos como Blecua (1983) e Santiago-Almeida (2011). Para dar suporte à análise feita e ao entendimento dos resultados encontrados, contou-se com o conhecimento transmitido por autores como Cambraia (2005), Souza (2011) e Moreira, Forster et al. (2010). O principal objetivo da pesquisa é verificar a qualidade do texto literário transmitido por materiais didáticos de ensino de Literatura Brasileira, e a obra escolhida para análise foi Iracema, de José de Alencar, clássico da literatura nacional. Para verificar a qualidade desse texto, ou seja, a fidedignidade em relação à última versão da obra deixada pelo autor, foi necessário comparar os trechos trazidos por materiais didáticos distintos com o texto original de Iracema, estabelecido por M. Cavalcanti Proença em edição crítica de 1965. Feita a comparação, as alterações encontradas foram classificadas, seguindo critérios dos teóricos mencionados e buscou-se entender a sua origem. Palavras-chave: Filologia Portuguesa, Crítica Textual, Literatura Brasileira, Iracema Resúmen El proyecto de investigación “Edición y estudo de textos literarios en lengua portuguesa: lecciones sobre Iracema” entra en el ámbito de la Filología o Crítica Textual, en su rama más estrecho, y se ha desarrollado de acuerdo con la metodología utilizada por teóricos como Blecua (1983) y SantiagoAlmeida (2011). Para apoyar el análisis y la comprensión de los resultados, conocimientos impartidos por autores como Batiste (2005), Souza (2011) y Moreira, Forster et al. (2010) fueron esenciales. El objetivo principal de la investigación es verificar la calidad de los textos literarios transmitidos por materiales brasileños de enseñanza didáctica, y fue elegida para el análisis la obra Iracema, de José de Alencar, un clásico de la literatura brasileña. Para comprobar la calidad del texto, es decir, la fiabilidad con la versión final escrita por el autor, fue necesario comparar los pasajes presentados por diferentes materiales de enseñanza de Literatura con el texto original de Iracema, establecido por M. Cavalcanti Proença en una Edición Crítica en el año de 1965. Hecha la comparación, se clasificaron los cambios siguiendo los criterios expuestos por los teóricos mencionados y se trató de comprender su origen. Palabras clave: Filología Portuguesa, Crítica Textual, Literatura Brasileña

SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP

Introdução A proposta do projeto de pesquisa “Edição e estudo de textos literários em língua portuguesa: Iracema em sala de aula” é de analisar a transmissão, em materiais didáticos, de trechos do romance Iracema, de José de Alencar, obra clássica que faz parte da formação básica em Literatura Brasileira. Essa análise contribui para a discussão acadêmica e editorial sobre a qualidade do texto que vem sendo transmitido aos estudantes brasileiros, visto que muitas vezes o único contato que o aluno tem com o texto literário é por meio do material didático - fenômeno chamado de metaleitura nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) - portanto, quanto mais fiel esse texto estiver ao original, melhor será a capacidade analítica do aluno a respeito desse conteúdo. A pesquisa situa-se na área de Letras, mais especificamente no ramo de estudo chamado de Filologia ou Crítica Textual, que fornece a metodologia usada para seu desenvolvimento. Objetivos O projeto de pesquisa visa verificar a fidedignidade do texto transmitido pelos materiais usados em salas de aula de escolas públicas e particulares para o ensino de Literatura Brasileira. A preocupação de verificar esses textos baseia-se no fato de que algumas alterações - que podem acontecer propositalmente ou não, em processos como transcrição, revisão ou edição de livros - podem comprometer a análise a respeito do estilo da obra e do autor quanto à sua orientação crítico-literária. Algo que tem a ver a “função adjetiva” da análise filológica do texto escrito (SPINA:1977, p. 77), em que se pode deduzir do texto aquilo que, necessariamente, não está explicitado nele. Como, por exemplo, a escola literária a que o autor e sua obra são/estão inseridos, podendo assim influenciar no estudo em relação à avaliação estética, ou valorização, e posição na produção literária do autor e de sua época. Materiais e Métodos O trabalho foi realizado em duas etapas principais, seguindo a metodologia usada por teóricos como Blecua (1983) e Santiago-Almeida (2011): primeiro foi feito o estabelecimento de testemunho-base do texto (a Edição Crítica de Iracema, feita por M. Cavalcanti Proença em 1965) e a recensão (recensio) de trechos do romance que aparecem nos materiais didáticos coletados (a tabela 1 mostra quais foram esses materiais e também as edições de Iracema informadas como fonte em cada um deles). Tabela 1 - Materiais didáticos e edições usadas para a pesquisa

Material didático Língua Portuguesa – Literatura II, Sistema COC de Ensino Língua Portuguesa e Literatura Brasileira – 2ª série do Ensino Médio, Rede Pitágoras-Editora Universidade Literatura Brasileira, Atual Editora Os livros da Fuvest e Unicamp II, Objetivo-CERED Literatura Brasileira, Universidade Tecnológica Federal do Paraná Para ler o mundo – Português – Ensino Médio, Editora Scipione Painel da Literatura em Língua Portuguesa, Editora Scipione Literatura Brasileira – Tempos, leitores e leituras, Editora Moderna

Edição usada como fonte Iracema, Ática, 1973 Iracema, Francisco Alves, s/d Iracema, Edusp, 1979 Não informa Não informa Iracema, Ciranda Cultural, s/d Iracema, Scipione, 2004 Iracema, L&PM, 2002

A seguir, foi feita a comparação entre os textos desses materiais e o texto do testemunho-base, fase chamada de colação (colatio). Comparou-se também o texto da edição-fonte (quando havia a indicação) com os textos do material e do testemunho-base, buscando identificar em que etapa ocorreram as alterações encontradas: se na edição que serviu como fonte ao material didático, ou se na edição do próprio material didático. Na segunda etapa todas as “variantes” (alterações) foram classificadas e contabilizadas seguindo critérios adotados pelos autores Blecua (1983), Moreira; Forster et al. (2010) e Souza (2011). Ressalta-se que foram consideradas “variantes” as modificações no texto que interferem no estilo e no sentido da obra. Interessaram, portanto, as variantes sintáticas (incluindo a pontuação), lexicais e morfológicas que alteram a fidedignidade do texto original. SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP

Resultados A tabela 2 é uma consolidação das variantes encontradas em todos os materiais didáticos, bem como sua classificação. Verifica-se que o total de omissões encontradas foi doze; as adições foram oito e as substituições, treze, o que soma 33 alterações. Tabela 2 - Total de variantes e sua classificação

de fonema ou letra de palavra de pontuação de uma palavra por outra com uso igualmente frequente e que tenha grafemas quase idênticos* SUBTOTAL

OMISSÕES 2 1 9

ADIÇÕES 0 0 8

SUBSTITUIÇÕES 0 0 12

-

-

1

12

8

TOTAL * subcategoria válida apenas para a categoria Substituições

13 33

Os dados da tabela 2 revelam que a maioria das variações refere-se à pontuação. Pela análise dos textos dos materiais verifica-se, principalmente, alterações como omissão ou adição de vírgula, além de substituição de ponto e vírgula (:) por vírgula (,). Essa alteração na pontuação provavelmente originou-se da etapa de revisão do texto – seja a revisão da edição fonte do material didático, seja a revisão do próprio material didático – pois a maneira como a pontuação foi alterada indica adequação ao uso normativo da língua, diferentemente do texto original escrito pelo autor. Como problematiza Cambraia (2005, p. 33) “com frequência procura-se fazer com que o texto editado se encaixe nas normas das gramáticas tradicionais”. Se selecionarmos alguns trechos dos materiais didáticos, veremos claros exemplos de adequação da vírgula a algumas das normas trazidas por Ernani Terra em seu Curso Prático de Gramática (1996). O primeiro exemplo é extraído do material Língua Portuguesa e Literatura Brasileira – 2ª série do Ensino Médio: “Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro”. Neste trecho, a vírgula em destaque foi retirada da frase porque “não se usa vírgula entre o sujeito e o predicado, entre verbo e seu complemento e entre o nome e seu complemento ou adjunto” (TERRA, 1996, p. 334). O segundo exemplo, retirado do material Painel da Literatura em Língua Portuguesa é o seguinte: “Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras , remexe o uru de palha matizada”. Neste trecho, a vírgula em destaque foi inserida para “marcar uma palavra (em geral o verbo) que foi omitida na frase” (Terra, 1996, p. 336). No caso, a palavra “vezes”. Essas “correções” no texto, de forte caráter normativista, podem gerar um “erro” como ele é conceituado pela tradição filológica, que, dependendo do grau de alteração, compromete a interpretação a respeito do estilo da obra e do autor. Como afirma Blecua (1983, p. 228) a figura do corretor de estilo pode perturbar certos traços estilísticos de um autor. Um exemplo de alteração no estilo da obra pode ser visto no material da UTFPR. O trecho reproduzido no material é o do primeiro capítulo de Iracema, que apresenta-se no testemunho-base com uso de ponto e vírgula encerrando os dois primeiros parágrafos. Porém no material didático os parágrafos se encerram em ponto final. A disposição dos parágrafos na figura 1 se parece com a de estrofes de um poema e corroboram o caráter de prosa poética do texto. Além disso, é um resquício de sua forma primitiva se consideramos que, na Carta à 1ª edição de Iracema, Alencar afirma que escreveu o texto do livro primeiro em versos, mas que teve dificuldade em dar continuidade à história usando esse gênero, e assim optou pela prosa; porém no texto do romance “estão ainda e estarão cerca de dois mil versos heróicos” (ALENCAR In: PROENÇA, 1965, p. 142). A substituição da pontuação na figura 2 desfaz completamente essa configuração poética do texto, causando prejuízo a uma possível análise, na sala de aula, dessa característica da obra. Além disso, se fosse mantida a pontuação “errada” – que não passa de uma escolha estilística do autor – o professor poderia levantar discussões sobre o uso da pontuação e a licença poética que os escritores possuem para extrapolar a normatividade linguística. Como afirma o próprio Alencar, não é justa essa soberania gramatical que tacha de “erro” o que é apenas uma opinião (ALENCAR In: PROENÇA, 1965, p. 222).

SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP

Figura 1 - Fac-símile do inicio do Capítulo I da edição crítica de 1965.

Figura 2 - Fac-símile do início do Capítulo I no material Literatura Brasileira – UFTPR.

Conclusões Espera-se que a pesquisa apresentada aqui, e seus resultados, contribuam para as discussões teóricas na área de Filologia e Crítica Textual e alcancem também utilidade prática, influenciando o trabalho de edição não apenas de Iracema, mas também de outras obras que são transmitidas em suportes como os aqui apresentados – materiais didáticos – ou em outros suportes. As prováveis origens das variantes são o processo de cópia do texto da edição-fonte para o material didático e a revisão das edições-fonte ou dos próprios materiais didáticos (dos oito materiais didáticos analisados, dois apresentam variantes que não estavam na edição usada como fonte e três apresentam variantes que foram transmitidas pela edição usada como fonte). O fato de as variantes poderem alterar o estilo da obra ou do autor serve de alerta para que haja maior cuidado ao trabalhar um texto literário que, ao ser reproduzido para qualquer fim, e principalmente para fins didáticos, idealmente deve ser extraído da última edição revista pelo autor ou, no mínimo, de uma boa edição crítica da obra, garantindo-se assim a fidedignidade da reprodução. É válido, ainda, ressaltar que dos materiais didáticos selecionados dois não apresentam a referência bibliográfica de onde foi retirado o trecho reproduzido. Isso já denota a ausência de critérios por parte dos editores desses materiais didáticos na escolha do texto que serviu de base aos referidos materiais.

Referências Bibliográficas BLECUA, Alberto. Manual de crítica textual. Madrid: Ed. Castalia, 1983 [reimpr: 1990]. CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. MOREIRA, Camila de Paula; FORSTER, Larissa Gonlçalves. et al. O texto que se lê de autores nacionais In: Filologia Linguística Portuguesa, no. 12(1), p. 105-123, 2010. PROENÇA, M. Calvacanti. Iracema, 1865-1965. Rio de Janeiro: Editora José Olympo, 1965. SANTIAGO-ALMEIDA, Manoel Mourivaldo. Para que filologia/crítica textual? In: Revista Acta, Assis, v.1, 2011. SECRETARIA DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: MEC, 2006. SOUZA, Luana Batista de. Frequência das variantes no romance O Seminarista, de Bernardo Guimarães In: Cadernos do CNLF, Vol. XV, nº 5, t. 1. Rio de Janeiro: CiFEFiL, pp. 588-601, 2011. SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977. TERRA, Ernani. Curso Prático de Gramática. 3ª. Edição. São Paulo: Editora Scipione, 1996. SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP

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