A tutela jurídica da memória individual na sociedade da informação: compreendendo o direito ao esquecimento

July 24, 2017 | Autor: B. de Azevedo e S... | Categoria: Memory Studies, Memoria, Esquecimento, Direito Ao Esquecimento
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A TUTELA JURÍDICA DA MEMÓRIA INDIVIDUAL NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: COMPREENDENDO O DIREITO AO ESQUECIMENTO Bernardo de Azevedo e Souza1

1. Introdução “Cada um de nós é quem é porque tem suas próprias memórias.” Ivan Izquierdo

No conto Funes, o Memorioso, publicado originalmente no ano de 1944 na obra Ficciones, Jorge Luis Borges narra-nos a história de Irineu Funes, um jovem rapaz que, após cair de um cavalo numa estância no sul do Uruguai, teve uma mudança definitiva em sua vida: perdeu a capacidade de se esquecer. Durante dezenove anos, Funes teve uma vida sem sentido, como num sonho: “olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo.”2 Após o acidente, contudo, recebeu uma dádiva: a aptidão de se lembrar de tudo, nitidamente, desde as memórias mais antigas às mais triviais. A imobilidade permanente decorrente da queda era o preço mínimo a pagar pelo presente que recebera. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis. Nada, sequer um minucioso detalhe, escapava da implacável memória de Funes: “Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um 1

Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Advogado criminalista.

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BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. de Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1999. p. 55.

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remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho.”3 Era capaz de catalogar todas as imagens da memória, recordando cada minúcia de qualquer acontecimento captado por seus sentidos. Não apenas conseguia recordar cada folha de cada árvore de cada montanha, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. A intensa evocação de memórias passa a tornar Funes absolutamente incapaz de pensar. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”.4 Mas no universo do jovem não há nada senão pormenores, quase imediatos. A ótica do mundo por ele percebida é tamanha que acaba por tornar obsoleta a linguagem. Funes não consegue mais descrever, precisa e suficientemente, aquilo que sente, percebe e enxerga.5 Dormir passa a ser tarefa do impossível. A quantidade de informações reproduzidas nas lembranças começa a sufocá-lo: “Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano.”6 O desejo de evocar memórias a todo instante e a impossibilidade de esquecer os mínimos detalhes conduz ao seu sufocamento. Funes morre em 1889, em virtude de uma congestão pulmonar. Sem embargo do final tráfico do jovem Funes, constata-se que, com mais de cinco décadas de antecedência, Jorge Luis Borges diagnosticou – certamente sem ter a intenção – o distúrbio recentemente classificado por neurocientistas como síndrome hipertimésica. A anomalia, também chamada síndrome da hipermemória, foi desvelada cientificamente pelo Dr. James McGaugh, da Universidade da Califórnia, Irvine, no ano de 2000, a partir de um contato eletrônico realizado pela norte-americana Jill Price, que alegava possuir uma memória autobiográfica e contínua de cada dia de sua vida desde os doze anos de idade. 7 3 BORGES. Ficções..., p. 55. 4 BORGES. Ficções..., p. 57. 5

PEREIRA, Eliane. Apreensão e significação em “Funes, o memorioso”, de Jorge Luís Borges. Estudos Semióticos. Disponível em: . Editores responsáveis: Franciso E. S. Merçon e Mariana Luz P. de Barros. Volume 8, Número 1, São Paulo, junho de 2012, pp. 91-98. Acesso em: 30 dez 2014.

6 BORGES. Ficções..., p. 55. 7

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Jill relata ter percebido o quão detalhada era sua memória aos doze anos, no ano de 1978. Na ocasião, estava numa praia em Paradise Cove com sua amiga Kathy, comendo um flan de baunilha, quando

Surpreso com o teor da informação – pois, como especialista na memória humana, até aquele momento não possuía conhecimento de qualquer pessoa detentora de tais particularidades –, o Dr. McGaugh convidou Jill para comparecer em seu laboratório pessoalmente, no intuito de realizar alguns testes. McGaugh elaborou duas listas previamente ao encontro, uma contendo datas de acontecimentos históricos importantes ocorridos durante os últimos 30 anos e outra contendo uma lista aleatórias de datas. Na medida em quem Jill mencionava o que havia ocorrido em cada uma das datas elencadas na lista, McGaugh consultava a obra “O Século XX dia a dia”. Jill acertou todas as perguntas sem qualquer esforço para recordar, como se as informações estivessem em sua memória para acesso imediato. Um outro teste, realizado posteriormente, em 2003, foi pedir, sem aviso prévio, que Jill anotasse as datas de todas as Páscoas que conseguisse lembrar. Em apenas dez minutos, surpreendentemente Jill escreveu as datas das Páscoas ocorridas desde abril de 1980 até abril de 2003, com um único erro, por questão de dois dias. O teste foi repetido dois anos depois e, na oportunidade, acertou todas as datas. Os cientistas que realizaram os exames ficaram impressionados não apenas por Jill se recordar de todos aqueles dias, que variavam muito de um ano para outro, mas também pelo fato de ser judia e não comemorar a festividade. Jamais havia sido encontrado alguém apto a produzir tal lista de datas sem recorrer a um calendário. Imagine o leitor ser capaz de lembrar de cada discussão que já teve com um amigo ou um familiar; cada vez que se sentiu decepcionado com alguém; todos os erros que já cometeu; todas as situações desagradáveis que vivenciou; todas as palavras ásperas que disse a alguém. Imagine então não conseguir eliminar tais lembranças da mente, por mais que tente. Parece algo impossível ou, no mínimo, improvável para muitos de nós. No entanto, trata-se de uma realidade para Jill Price, a mulher que não consegue esquecer.

se deu conta de que havia feito o mesmo na mesma praia no mesmo dia do ano anterior. “Olhei para ela [Kathy] e observei: ‘Você notou que fizemos exatamente a mesma coisa em 1º de julho do ano passado?’, esperando aquele choque de reconhecimento quando ela também lembrasse o dia. Mas ela simplesmente olhou para mim e disse: ‘Foi mesmo’? e percebi que havia esquecido. Foi aí que passei a entender que minha memória era incomum, e dali em diante lampejos de lembranças daquele tipo continuaram ocorrendo cada vez mais.” (PRICE, Jill; DAVIS, Bart. A mulher que não consegue esquecer. Trad. de Ivo Korytowski. São Paulo: Arx, 2010. p. 29).

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As memórias de Jill são como cenas de filmes caseiros diários de sua vida, projetados em sua mente independentemente de sua vontade, avançando e retrocedendo pelos anos e transportando-a para qualquer momento possível. “Embora seja difícil de descrever, nas lembranças vejo e sinto como se estivesse assistindo a uma cena num filme, o que pode ser emocionalmente opressivo. Para mim, a emoção trazida pelas lembranças tem a mesma força do dia em que a senti pela primeira vez”. 8 Ao contrário das pessoas normais, a norte-americana Jill Price não necessita sentir um grau alto de emoção para lembrar de um fato particular de sua vida ou algo que ouviu no noticiário. “Imagine que alguém tivesse feito vídeos seus desde a época de criança, seguindo você o dia inteiro, dia após dia, e depois reunisse tudo em um DVD, e que você se sentasse numa sala e assistesse à compilação num aparelho programado para embaralhar aleatoriamente as cenas.”9 Ainda que Jill felizmente não tenha sofrido o mesmo desfecho trágico do jovem Irineu Funes, a norte-americana nos relata a extrema dificuldade de conviver com sua memória. Aquilo que a princípio poderia ser visto como uma dádiva, lhe tem sido um verdadeiro fardo. Lembranças de acontecimentos desagradáveis aparecem em sua mente aleatoriamente o tempo todo. Por mais completa que seja sua memória, levar uma vida no presente com o passado repetindo-se constantemente trata-se de um terrível desafio. Jill Price, assim como todos nós, também precisa esquecer.

2. Memória e esquecimento “Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram o melhor de seus equívocos.” Friedrich Nietzsche

As digressões expostas à guisa de introdução, como um convite ao complexo tema que enfrentaremos a seguir, têm o condão de demonstrar a intrínseca conexão entre memória e esquecimento, como condições inerentes ao ser humano. Daí decorre a necessidade de delinearmos no presente momento, 8

PRICE; DAVIS. A mulher que não consegue..., p. 38.

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PRICE; DAVIS. A mulher que não consegue..., pp. 9-10 e 46.

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ainda que brevemente, algumas considerações sobre a memória e seu funcionamento, de modo a possibilitar ao leitor uma melhor compreensão do recorte de análise deste ensaio. Quando se fala em memória, a primeira imagem que advém no imaginário popular não é a memória das molas, dos discos ou dos computadores, mas aquela das experiências individuais dos homens e dos animais, que, de algum modo, se armazena no cérebro. Segundo Ivan IZQUIERDO, a memória é o nosso senso histórico e nosso senso de identidade pessoal. “Sou quem sou porque me lembro quem sou”.10 A memória não apenas é essencial para a continuidade da identidade, como para a transmissão de cultura, da evolução e da continuidade das sociedades no decorrer dos séculos.11 Se o futuro ainda não existe (já que não chegou), o passado não mais existe salvo a forma de memórias. “Não há tempo sem um conceito de memória; não há presente sem um conceito do tempo; não há realidade sem memória e sem uma noção de presente, passado e futuro.”12 A conservação do passado por meio de imagens ou representações que podem ser evocadas é o que há de comum entre todas as memórias. Sob um aspecto prático, a memória consiste no armazenamento e evocação de informações adquiridas através de experiências, aqueles pontos tangíveis que chamamos de presente. A aquisição das memórias é denominada aprendizado. Não há memória sem aprendizado, tampouco aprendizado sem experiências. Por meio de nossos sentidos recebemos constantemente as informações, embora não tenhamos a capacidade de memorizar todas elas. Quando assistimos a um filme, conseguimos lembrar algumas cenas, talvez até a maioria, mas não todas. O mesmo ocorre após assistir uma aula: lembramos alguns conceitos, até frases inteiras, mas não recordamos todos os conceitos tampouco todas as frases. Logo, há um processo de seleção prévio à formação de memórias, que determina quais informações serão armazenadas e quais não.13 Durante o processo, memórias desaparecem, esvaecendo-se para sempre. Todos perdemos memórias valiosíssimas ao longo dos anos. Como assinala IZ10 IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Revista Estudos avançados. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, v. 3, nº 6, mai/ago, 1989, p. 103. 11 KANDEL, Eric R. Em busca de la memoria: nacimiento de una nueva ciencia de la mente. 1. ed. Buenos Aires: Katz, 2007. 29. 12 IZQUIERDO. Memórias..., p. 89. 13 IZQUIERDO. Memórias..., p. 94.

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QUIERDO14, se alguém lhe pedisse hoje para relatar todas as recordações de sua infância, o tempo que utilizaria para rememorar as lembranças seria algo em torno de uma hora. Talvez com interrupções, questionamentos e dicas para evocar lembranças mais ocultas, e com muito esforço, poderia ocupar um total de duas horas. Não mais que isso. Da imensa maioria de nossas memórias nos restam apenas fragmentos, dos quais só podemos extrair algum sentido à custa de muito esforço ou com auxílio de especialistas. A memória é, em suma, um fenômeno biológico, fundamental e extremamente complexo, que pode ser analisado sob diferentes vieses (biológico, neurológico, social, psicológico). A despeito de todos os avanços das neurociências nos últimos anos, após o término da Segunda Guerra Mundial sobretudo, continua a ser um dos grandes enigmas da humanidade. Dada a complexidade da memória, destaca-se que suas quatro etapas (aquisição, formação, conservação e evocação das informações) jamais se sustentariam se as informações acumulassem ao longo do tempo. É necessário que o esquecimento exista para termos uma vida útil e para que haja memória funcional. Daí por que não somos somente aquilo que lembramos: somos também aquilo que esquecemos. Muitas pessoas acreditam que o esquecimento seja algo ruim, indesejado, razão pela qual afirmam que gostariam de ter uma memória melhor. Trata-se de uma vontade perfeitamente compreensível, se pensarmos nas diversas vezes em que nos sentimos frustrados por esquecermos o número de telefone de uma pessoa que conhecemos ou o conteúdo de uma prova importante. Contudo, há um outro aspecto do esquecimento frequentemente negligenciado: aquele que diz respeito às vantagens de esquecer. Imagine (novamente) o leitor possuir uma memória perfeita e se lembrar de absolutamente tudo que já vivenciou. Organicamente seria inviável termos percepção e memória de cada acontecimento fisiológico que se processa no corpo. Nossa vida social não existiria se nos lembrássemos de todos detalhes de nossa interação com todas as pessoas e de todas as impressões que tivemos em cada uma destas oportunidades. Seria inviável dialogar com nossos amigos e familiares se, cada vez que os víssemos, viesse à nossa lembrança alguma in-

14 IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer: cérebro e memória. 2. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010. pp. 14-16.

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disposição ou discussão, por menor que fossem.15 Não seria possível ter ideias do genérico, trabalhar com o abstrato, na medida em que seríamos verdadeiros escravos do particular.16 Tendo em consideração que nossa inteligência é fruto, em grande parte, da nossa capacidade de abstrair e de trabalhar com conhecimentos genéricos, para PERGHER e STEIN17 fica evidenciada uma das principais vantagens do esquecimento: aquela de favorecer a elaboração e, consequentemente, possibilitar o desenvolvimento da própria inteligência. Portanto, é preciso esquecer para poder pensar, para fazer generalizações, sem as quais se revela impossível desenvolver qualquer atividade cognitiva. Conceber a criação sem esquecimento é um ato de extrema dificuldade. O esquecimento é algo absolutamente normal, ao passo que o excesso de esquecimento – a perda real de memórias que não desejamos perder –, este sim, denominado amnésia, é patológico.18 Ainda que o esquecimento constitua talvez o aspecto mais predominante da memória, conservamos e usamos suficientes memórias ou fragmentos de memórias para ter um desempenho ativo, funcional e relativamente satisfatório como pessoas.19 Assim, esquecer é tão importante quanto lembrar, sendo imprescindível para a saúde e eficiência do cérebro. Não há qualquer contradição entre lembrar e esquecer, visto que são fenômenos complementares e fazem parte do mesmo processo: é na formação de novas memórias que se observa o constante e necessário esquecimento de outras. O esquecimento constitui, em suma, uma etapa para aceder à lembrança.20

15 ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 85. 16 PERGHER, Giovanni Kuckartz; STEIN, Lilian Miltitsky. Compreendendo o esquecimento: teorias clássicas e seus fundamentos experimentais. Revista Psicologia USP. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, v. 14, n. 1, 2003, p. 130. 17 PERGHER; STEIN. Compreendendo o esquecimento..., p. 130. 18 IZQUIERDO. Memórias..., p. 103. 19 IZQUIERDO. A arte de esquecer..., p. 17. 20 FERREIRA, Maria Leticia Mazzucchi. Políticas da memória e políticas do esquecimento. Revista Aurora. São Paulo: PUC-SP, n. 10, 2011, p. 110. Disponível em: . Acesso em 31 jan 2014.

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3. A proteção da memória individual e o direito ao esquecimento “A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.” Eduardo Galeano

3.1. Aspectos preliminares O ser humano sempre desejou ser lembrado. Durante toda sua história, o homem sempre lutou contra o ato de esquecer. Por meio da linguagem, dos pergaminhos, da imprensa e das pinturas, dentre inúmeros exemplos, buscou eternizar a incontrolável ação do tempo.21 Na maior parte da história, o esquecimento tem sido o parâmetro básico e a lembrança, o desafio. Em contraposição, nos tempos atuais o que se observa é uma verdadeira inversão desta lógica. O processo biológico do esquecimento foi tolhido pelas mídias eletrônicas. A rede mundial de computadores possibilita a rememoração imediata de qualquer fato ocorrido, independentemente de sua relevância à sociedade. O armazenamento e a recuperação de informações digitais transformaram a lembrança no estado-padrão do conhecimento, ao passo que o esquecimento tornou-se a exceção.22 Se a Internet trouxe, por um lado, incontáveis vantagens e conquistas na seara da informação, por outro inegavelmente vem também acarretando a excessiva exposição de seus usuários, possibilitando que até mesmo situações pretéritas já consolidadas no “mundo real” possam ser rememoradas, atingindo consequentemente os personagens envolvidos nos episódios. Em que pese os avanços quanto à velocidade, armazenamento e acesso da informação, a segurança e proteção individual desta não receberam a devida atenção até o presente momento. Por meio da Internet é possível que se encontrem dados 21 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age. Princeton: Princeton University, 2009, p. 50. 22 VAIDHYANATHAN, Siva. A googlelização de tudo (e por que devemos nos preocupar): a ameaça do controle total da informação por meio da maior e mais bem-sucedida empresa do mundo virtual. São Paulo: Cultrix, 2011, pp. 193-195.

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de caráter pessoal de qualquer usuário, inexistindo qualquer espécie de controle satisfatório.23 Se antigamente quem desejasse manter o anonimato precisava somente impedir que seu nome e número de telefone constassem nas “páginas amarelas” do catálogo telefônico, o advento da Internet transformou esse cenário drasticamente.24 Atualmente há a possibilidade de nada ser esquecido, visto que todas as informações na rede não se apagam. Os usuários não mais prezam pelo anonimato como antes, alimentando cada vez mais a rede com informações, especialmente de cunho pessoal, consequentemente fomentando a vontade de acessar dados a todo momento sobre qualquer pessoa, na busca incessante de saber, vasculhar e lembrar. Para além da possibilidade de alcançar os dados pessoais, os motores de busca da rede (web search engines) viabilizam o estabelecimento de uma representação digital que, em muitos casos, tem maior preponderância do que a identidade real. Como indaga RODOTÀ: “Quem eu sou? Até ontem, mesmo que entre muitas cautelas, podia-se dizer ‘eu sou aquele que digo ser’. Mas já entramos em um tempo em que sempre mais se deverá admitir: ‘eu sou aquilo que o Google diz que eu sou’”.25 As informações contidas na Internet sempre vincularão os indivíduos às suas ações pregressas, a ponto de ser inviável (quando não impossível) se desvencilhar delas. Para além de tal aspecto, a representação digital é avaliada e “julgada” não apenas por aqueles que estiveram presentes no momento que as informações foram produzidas, mas também por todos que tiverem acesso aos dados, possibilitando, nesta hipótese, a falsa compreensão sobre os fatos efetivamente ocorridos, que serão interpretados de forma descontextualizada e, não raras vezes, mal-intencionada.26

23 MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao esquecimento: a proteção da memória individual na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 5. 24 NEVES, Kelli Angelini; DOMINGUES, Diego Sígoli. Tempos de internet: não há regra geral para pesar direito ao esquecimento e liberdade de expressão. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 13 dez 2014. 25 RODOTÁ, Stefano. A identidade em tempos de Google. La Repubblica. Roma, 14 dez. 2009. Disponível em: . Acesso em 6 jan 2015. 26 COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento na internet: a Scarlet letter digital: In: SCHREIBER, Anderson (coord.). Direito e mídia. São Paulo: Atlas, 2013. p. 191.

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Uma informação que há tempos atrás poderia levar meses ou até mesmo anos para ser adquirida, nos dias de hoje, com a Internet, pode ser acessada facilmente, estando à disposição de qualquer usuário. Ocorre que durante as pesquisas realizadas se permite que sejam coletados dados privados de pessoas que não desejam disponibilizá-los ao alcance de todos. A excessiva possibilidade de difusão de informações pretéritas, somada à capacidade ilimitada de armazenamento de dados na rede, deu origem a um novo campo de proteção jurídica, qual seja, a memória individual. Aspecto integrante da dignidade humana, que não pode ser fragmentada do indivíduo, a proteção da memória individual se consubstancia no denominado direito ao esquecimento.27 De acordo com Pablo Dominguez MARTINEZ28, o direito ao esquecimento corresponde a uma nova espécie dos direitos da personalidade, repercutindo em outros direitos consagrados na Carta Magna, tais como a privacidade, a honra, a imagem e o nome. Apesar de proteger e alcançar em casos específicos, isolada ou simultaneamente, os mencionados direitos, tem caráter autônomo: decorre dos direitos da personalidade, mas se trata de nova figura de proteção.29 É um direito independente, essencial ao livre desenvolvimento da personalidade humana, em que seu titular busca se resguardar daquilo que não deseja rememorar, protegendo sua vida pretérita e proibindo a revelação de seu nome, imagem e outros dados relacionados à sua personalidade.30 Seu objeto está ligado à memória individual, que, à semelhança da memória coletiva, é também digna de tutela pelo ordenamento jurídico. Em última análise, é o direito de não ter a memória pessoal revirada a todo instante, por força da vontade de terceiros. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no âmbito das condenações criminais, mas assume atualmente um viés interdisciplinar, tendo conexão com áreas como a neurociência (memória) e filosofia (tempo) e se vinculando com o direito civil (responsabilidade civil) e direito constitucional (colisão entre princípios). Não se trata, em suma, de uma descoberta recente, 27 MARTINEZ. Direito ao esquecimento.., p. 57, 67 e 189. 28 MARTINEZ. Direito ao esquecimento..., pp. 59, 189 e 190. 29 Diante dos limites espaciais do presente ensaio, não nos deteremos à exaustiva análise da evolução da ideia de dignidade humana e aos pormenores dos direitos da personalidade, remetendo o leitor, para tanto, à leitura da obra “Direito ao esquecimento: a proteção da memória individual na sociedade da informação” (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014), de Pablo Dominguez MARTINEZ, a partir da p. 11. 30 DOTTI, René Ariel. O direito ao esquecimento e a proteção do habeas data. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Habeas data. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 300.

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mas que, em virtude dos avanços tecnológicos, vem adquirindo novos rumos e contornos inéditos. Casos célebres ocorridos em outras partes do mundo dão conta de que a temática é discutida há décadas, como trataremos brevemente a seguir, em três exemplos apresentados cronologicamente.

3.2. O direito ao esquecimento no mundo O primeiro caso que merece ser referido diz respeito ao Melvin vs. Reid. Em 1918, a prostituta Gabrielle Darley foi acusada de ter praticado um homicídio, sendo posteriormente inocentada. A despeito do desfecho do processo, no ano de 1925, sem sua permissão, conhecimento ou consentimento, foi lançado o filme intitulado Red Kimona (Sublime Redenção), que devassava sua vida por completo, relatando sua biografia, seu passado de prostituição e a prática do homicídio. O filme, lançado em 16 de novembro do referido ano, foi exibido em diversas salas de cinemas, não apenas na Califórnia como também em outros estados. Gabrielle, então casada com Bernard Melvin e levando uma vida honrada longe da prostituição, processou a produtora do filme (Dorothy Davenport Reid), sustentando que tinha o direito de ser esquecida. O caso foi submetido para análise do Tribunal de Apelação de Califórnia em 1931, que, após reconhecer o ineditismo do pleito, entendeu pela sua procedência. De acordo com a fundamentação adotada na decisão, qualquer pessoa que vive uma vida de retidão tem direito à felicidade, não podendo ser vítima de ataques desnecessários ao seu caráter, posição social ou reputação.31 Outro caso de extrema relevância é o intitulado Lebach. No ano de 1969, quatro soldados alemães foram assassinados em Lebach, cidade localizada no sudoeste da Alemanha, enquanto protegiam um depósito de munições. Os três responsáveis pelos homicídios foram processados e condenados, sendo dois deles à prisão perpétua e o terceiro, com menor participação, a seis anos de reclusão. Após cumprir integralmente sua pena e às vésperas de sair da prisão, o terceiro homem tomou conhecimento de que o Segundo Canal Alemão (Zweites Deutsches Fernsehen) iria exibir um documentário sobre o episódio ocorrido, inclusive com fotos dos condenados e a insinuação de que eram homossexuais.

31 Disponível em: . Acesso em: 03 jan 2015.

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Para impedir a veiculação do programa, o homem ingressou com pedido liminar tanto ao Tribunal Estadual de Mainz quanto ao Tribunal Superior de Koblenz, alegando que o documentário, se exibido, violaria seus direitos da personalidade e dificultaria sua ressocialização. O pleito não foi acolhido em nenhum dos tribunais, sob o fundamento de que o envolvimento do impetrante no crime o tornou uma personalidade da história recente do país. Nesse sentido, o documentário seria destinado à apresentação do caso sem qualquer alteração. Interposto recurso constitucional, o Tribunal Constitucional Alemão, ao analisar o documentário, ouvir a emissora e examinar os pareceres de especialistas em execução penal, psicologia social e comunicação, deferiu a liminar. 32 O Tribunal Alemão entendeu que o princípio da proteção da personalidade deveria prevalecer em relação à liberdade de informação no caso, pois não haveria mais interesse atual na informação. Estando o episódio em Lebach solucionado e julgado há anos, a veiculação do documentário causaria enormes prejuízos ao condenado, que já havia cumprido a pena e precisava ter condições para se ressocializar. O Segundo Canal Alemão foi assim proibido de exibir o programa. Por último, impende destacar o caso Thompson-Venables. Em 1993, a câmera de segurança de um shopping em Liverpool, Inglaterra, capturou a imagem de dois meninos de 10 anos de idade (Robert Thompson e Jon Venables) levando uma criança de apenas 2 anos para dar um passeio longe do estabelecimento. Na oportunidade, o jovem (James Bulger) estava acompanhado de sua mãe, que fazia compras no local e só percebeu a ausência do filho alguns minutos após o “rapto”. A excursão terminou em uma ferrovia, onde, de modo inexplicável, Thompson e Venables torturaram a criança até a morte, deixando após seu corpo no trilho para ser desmembrado pelo primeiro trem que por ali passasse. Os meninos foram então assistir desenhos animados, como se nada tivesse acontecido.33 Após passar oito anos em instituições juvenis, os meninos, então com 18 anos de idade, foram considerados aptos para liberação em 2001. Preocupada com a integridade física de Thompson e Venables, dada as particularidades do caso (gravidade e crueldade do crime somado à intensa veiculação midiática),

32 MENDES, Gilmar. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e direito à honra e à imagem. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Secretaria Especial de Editoração e Publicações do Senado Federal, ano 31, n. 122, maio/jul. 1994, p. 300. 33 RIPLEY, Amanda. When killer boys grow up. Disponível em: . Acesso em: 01 jan 2015.

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a magistrada Elizabeth Bitler Sloss assegurou aos dois infratores uma proteção vitalícia ao anonimato. A decisão, sem precedentes, teve como fundamento as inúmeras ameaças sofridas, inclusive do pai do jovem Bulger, que prometeu “caçá-los” tão logo fossem soltos. A determinação impede que a mídia informe a localização de Thompson e Venables, suas novas identidades, bem como divulguem quaisquer dados ou imagens a respeito dos jovens.

3.3. O direito ao esquecimento no Brasil O direito ao esquecimento passou a ser objeto de preocupação nacional a partir de março de 2013, quando da realização da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Na oportunidade, foi redigido o Enunciado de nº 531, com o seguinte teor: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.” Consoante a justificativa, o direito ao esquecimento é um instrumento apto à ressocialização do egresso, sobretudo diante dos danos provocados pelas novas tecnologias da informação. Ademais, o instituto não “atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.34 A despeito de não possuir força cogente, o conteúdo do enunciado demonstra que o Brasil, à semelhança de outros países, vem demonstrando preocupação com o chamado direito ao esquecimento. Desse modo, traz relevante contribuição para que se possa estudar, analisar e compreender melhor o instituto, com vistas à preservação da memória individual, em observância aos direitos fundamentais. Tal preocupação, aliás, veio a ser confirmada em dois recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que foi reconhecida a existência do direito ao esquecimento, fortalecendo o debate sobre a temática. Os dois julgamentos paradigmáticos ocorreram em 28 de maio de 2013, sob a relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão. O primeiro caso envolveu a ação indenizatória promovida por J.G.F. em face da TV Globo, tendo a discussão encerrado-se no âmbito do RESP nº 1.334.097-RJ. Narrou J.G.F. em seu pleito que foi indiciado como coautor/ partícipe nos homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, na cidade do Rio

34 Disponível em: . Acesso em: 03 jan 2015.

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de Janeiro, no episódio que ficou conhecido como “Chacina da Candelária”, mas que, após ter sido submetido a júri, foi absolvido por negativa de autoria com unanimidade dos membros do Conselho de Sentença. Relatou também que a TV Globo o procurou, com a finalidade de entrevistá-lo para o programa “Linha Direta Justiça”, tendo, no entanto, recusado o convite e demonstrado desinteresse em ter sua imagem apresentada em rede nacional. A despeito da negativa, o referido programa foi veiculado em junho de 2006, tendo J.G.F, na oportunidade, sido apontado como um dos envolvidos na chacina. A propositura da ação justificou-se porque, para J.G.F., foi levado a público um fato que já havia superado por completo, reacendendo em sua comunidade o ódio social, violando seus direitos fundamentais e prejudicando igualmente seus familiares. J.G.F. alegou ainda que a veiculação do programa prejudicou sua vida profissional, pois, desde então, não conseguiu mais emprego, além de ter sido obrigado a se desfazer de todos os seus bens e abandonar a comunidade que residia para evitar ser morto por “justiceiros”. Pleiteou, ao final, pela indevida exposição de sua imagem e nome de forma ilícita, o valor de 300 (trezentos) salários mínimos a título de abalo moral. O pedido foi julgado improcedente em primeira instância, mas a sentença foi reformada em segundo grau, condenando a TV Globo ao pagamento de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a título de indenização. A discussão chegou até o STJ, no âmbito do RESP nº 1.334.097-RJ, interposto pela TV Globo. Ao analisar o caso, o Ministro Relator Luís Felipe Salomão, após tecer um longo arrazoado acerca de temas complexos como a liquidez da sociedade contemporânea (Bauman), a censura à liberdade de imprensa e o interesse da coletividade em relação a matérias de natureza criminal, entendeu pelo reconhecimento da existência do direito ao esquecimento em solo pátrio, à semelhança da experiência vivenciada em outros países, mantendo o acórdão lavrado no âmbito do Tribunal de Justiça e o mesmo valor da indenização. Prosseguindo o voto, salientou que “a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato –, pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado.” Nesse âmbito, o direito ao esquecimento poderia significar um corretivo, ainda que tardio, das vicissitudes do passado, sobretudo naqueles processos injustos e nos casos de explorações midiáticas populistas.

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O Ministro destacou ainda que, se mesmo condenados que já cumpriram a pena possuem direito ao sigilo da folha de antecedentes, aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com o estigma, lhe sendo conferidos o mesmo direito de ser esquecidos. E acrescentou: “o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas.” O reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, daqueles que foram absolvidos em processo criminal, para o Ministro Salomão, “além de sinalizar uma evolução humanitária e cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda.” Especificamente em relação à Chacina da Candelária, em que pese se trate de fato histórico, o programa exibido pela TV Globo poderia ter contado a fatídica história de forma fidedigna sem que, para tanto, tivesse de utilizar a imagem e o nome do autor em rede nacional. “Nem tampouco a liberdade de imprensa seria tolhida, nem a honra do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.” A desnecessária veiculação do nome e imagem de J.G.F para relatar o episódio da chacina possibilitou que se reacendesse a desconfiança geral sobre sua índole. O programa não reforçou sua imagem de inocentado, mas sim a de que fora indiciado. O telespectador, pois, “antes de enxergar um inocente injustamente acusado, visualiza um culpado acidentalmente absolvido”. Daí a necessidade de se esquecer do ocorrido. O segundo caso envolveu outros requerentes, N. C., R. C., W. C. e M. C, que ajuizaram ação de reparação de danos morais, materiais e à imagem também em face da TV Globo. Afirmam os demandantes que são únicos irmãos vivos de Aída Curi, vítima de homicídio em 1958, crime que, à época, ficou conhecido nacionalmente por força do noticiário. Sustentaram que o delito fora esquecido com o passar dos anos, mas que a TV Globo reabriu as feridas dos autores ao veicular a vida, morte e pós-morte de Aída Curi, explorando sua imagem com a transmissão do programa “Linha Direta Justiça”. Os requerentes alegaram ainda que a exploração do caso pela emissora após tantos anos se trata de ato ilícito, notadamente porque foi previamente 57

notificada pelos autores a não fazê-lo, para além de configurar enriquecimento sem causa, uma vez que a TV Globo teria auferido lucros com audiência e publicidade às custas da tragédia familiar. Pleitearam, assim, indenização por danos morais, pela rememoração da dor do passado ocasionada pela reportagem, bem como danos materiais e à imagem, em face da exploração comercial da falecida com objetivo econômico. O pleito foi julgado improcedente, tanto em primeiro quanto em segundo grau, tendo a discussão chegado ao STJ pelo RESP nº 1.335.153-RJ, interposto pelos autores. Como o pedido inicial não se limitava apenas aos danos morais decorrentes da exibição do programa, tal como no caso anterior, o Ministro Relator Luís Felipe Salomão teve de analisar também a questão do uso indevido da imagem da falecida (Aída Curi). Apesar de reconhecer o direito dos familiares de esquecer o episódio, o Ministro salientou que o reconhecimento, em tese, de um direito ao esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar. Como o cerne da matéria veiculada foi o crime em si, e não a vítima e sua imagem, não se poderia falar em dano moral. A isso se somaria o fato de que a reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aída Curi, razão pela qual não haveria, nos tempos presentes, o mesmo abalo vivenciado à época do acontecimento. É dizer: muito embora tenha gerado algum desconforto aos irmãos, seria inexistente o dano moral. Quanto aos pedidos indenizatórios por dano à imagem e dano material, o Ministro também os rechaçou. Isso porque durante todo o programa exibido a vítima foi retratada mediante dramatizações realizadas por atores contratados, tendo havido uma única exposição de sua imagem real. Assim, não seria possível que esta única fotografia veiculada ocasionasse um decréscimo ou acréscimo na receptividade da reconstituição pelo público expectador.

3.4. Critérios para ponderação do direito ao esquecimento Apresentados os julgados nacionais acerca de nosso objeto de análise, cumpre destacar que o cerne da polêmica envolvendo o tema reside, em verdade, no conflito entre a liberdade de informação e expressão e a proteção da memória individual, consubstanciado no direito ao esquecimento. De imediato, cabe referir que a solução para o conflito mencionado é de extrema complexidade, pois, dada 58

a inexistência de princípios absolutos, não se pode falar em prevalência de um sobre outro, devendo o juiz ponderá-los no momento da análise do caso. A ausência de uma regra geral para sopesar o instituto justifica a necessidade de elaborar critérios que possam nortear o magistrado quando da aferição do caso concreto. Lembra MARTINEZ35 que a jurisprudência tem adotado quatro critérios para a resolução do aludido conflito. O parâmetro mais aplicado atualmente é o da pessoa pública, que corresponde à mitigação dos direitos da personalidade dos agentes públicos e artistas em geral. Desde questões relacionadas às atividades profissionais até aspectos íntimos, a divulgação de qualquer dado que possa influenciar a opinião pública justifica-se em nome de um suposto interesse público na informação. A veiculação de notícias e reportagens destes personagens acaba assim sendo admitida pelo simples fato de ostentar o caráter de “pessoa pública”.36 Outro parâmetro é o do local público, segundo o qual qualquer informação, dado, imagem ou vídeo de determinada pessoa encontrados em espaço público pode ser veiculado na mídia sem que isso configure ilicitude ou ilegalidade.37 O terceiro critério é o da ocorrência de crime, para o qual a existência de crime, por si só, seria motivo suficiente para demonstrar o interesse público na divulgação da informação. Logo, a gravidade do fato, consubstanciada na violação da ordem jurídica, legitimaria eventual mitigação do direito ao esquecimento. Por derradeiro, adota-se ainda o parâmetro do evento histórico, segundo o qual eventos relevantes, de comoção nacional, com ampla cobertura midiática (não raras vezes diretamente relacionados com crimes ocorridos num passado remoto), justificaria a veiculação da informação com presunção pela liberdade da informação em detrimento do direito ao esquecimento, dada a preponderância do interesse público no caso. Observa-se, no entanto, que os atuais critérios utilizados pela jurisprudência são absolutamente insuficientes para enfrentar a problemática do conflito existente entre a liberdade de informação e expressão e o direito ao esquecimento. Diante do cenário, faz-se necessária a busca de novos critérios para ponderação, até mesmo porque os novos direitos oriundos da era da informação exigem do magistrado que se liberte de esquemas pré-moldados para, conforme a hipótese fática, encontrar e adaptar as técnicas processuais adequadas aos 35 MARTINEZ. Direito ao esquecimento..., pp. 160-171. 36 Nesse sentido: RESP nº 1.025.047-SP (Rel. Min. Nancy Andrighi), julgado em 26/06/2008. 37 Nesse sentido: RESP nº 595.600-SC (Rel. Min. Cesar Asfor Rocha), julgado em 18/03/2004.

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diferentes perfis dos direitos materiais.38 A partir de um estudo aprofundado sobre o tema, MARTINEZ39 sugere cinco parâmetros. Inicialmente, para que uma informação ou dado possa ser rememorado e sua divulgação possa ser considerada lícita é necessário que, em algum momento, tenha sido atingido o domínio público. Não há como atribuir viabilidade à divulgação de fatos pretéritos, em violação a direitos individuais fundamentais, se o fato rememorado não alcançou anteriormente o conhecimento público. Nesse sentido, a prévia divulgação do episódio seria requisito essencial para justificar a nova veiculação de fatos pretéritos. É necessário também atentar para a preservação do contexto original da informação pretérita, sob pena de o direito de informar ser convertido em abuso. Somente seria possível a divulgação da informação se, já pertencente ao domínio público, fosse então devidamente contextualizada, consoante o teor integral da notícia original. Outro critério de extrema relevância sugerido pelo autor seria a preservação dos direitos da personalidade na rememoração. Deve-se desse modo, sempre que possível, salvaguardar a imagem, a honra, a privacidade e o nome do envolvido na informação, evitando violações aos seus direitos fundamentais. A utilidade da informação deve ser igualmente observada. A prevalência do direito de informar em relação à proteção da memória individual somente será legítima e lícita se atender a um efetivo interesse público, que não corresponda a mera curiosidade pública. Merecem ser rememorados somente fatos de grande impacto na sociedade, devendo necessariamente estar atrelados à utilidade real da informação para a coletividade, e não a motivações de caráter mercadológico, vexatórias ou que nunca foram objetos de domínio público. O último parâmetro a ser observado diz respeito à atualidade da informação. Por meio dele não se busca apagar o passado ou impedir a divulgação dos fatos pretéritos, mas tão somente restringir o acesso e utilização destes acontecimentos em virtude da ação do tempo, que retirou a importância da informação. Deve o magistrado ponderar no caso concreto a atualidade da informação, não sendo possível permitir que dados passados estejam disponíveis permanentemente, a qualquer tempo e de forma ilimitada. 38 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Direito fundamental à jurisdição efetiva na sociedade da informação. In: Moura, Lenice S. Moreira de (org.). O novo constitucionalismo na era pós-positivista: homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 390. 39 MARTINEZ. Direito ao esquecimento..., pp. 174-191.

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Com os critérios ora mencionados não se pretende atribuir peso ou quantificação à ponderação, mas somente edificar um caminho que possa ser trilhado pelo julgador quando da análise do caso concreto, sopesando os direitos em jogo. Sendo assim, se a divulgação da informação não superar os cinco critérios propostos, deve ser priorizada a proteção aos direitos da personalidade, com a aplicação do direito ao esquecimento.40

4. Considerações finais “É preciso esquecer para viver; a vida é esquecimento; cumpre abrir espaço para o que está por vir.” Miguel de Unamuno

O instituto do direito ao esquecimento, como visto, não é efetivamente novo, mas sua aplicação vem adquirindo novos contornos em face da evolução tecnológica, permitindo a eterna rememorização de informações passadas. A Internet possibilita que qualquer fato, independentemente de sua relevância, possa ser trazido à tona nos dias de hoje, lesando os envolvidos, direta ou indiretamente, nestes episódios. O campo das condenações criminais é onde tal aspecto adquire maior preocupação, pois os veículos de comunicação, ainda que imbuídos das melhores intenções41, acabam por relembrar acontecimentos que não mais assumem qualquer utilidade para a sociedade (v.g., crimes cometidos há décadas). Seja na forma de filmes, documentários ou notícias, fatos então esquecidos passam a ser revividos pelos envolvidos, que, mesmo absolvidos, sofrem os efeitos decorrentes da rememoração oferecida pela mídia. Dada a ausência de previsão legal, somada à falta de sistematização para lhe conferir autonomia e transparência, o direito ao esquecimento sofre atualmente muitas resistências. Dentre os argumentos contrários estão, dentre outros, o de que o instituto seria um atentado à liberdade de expressão e de 40 MARTINEZ. Direito ao esquecimento..., p. 208. 41 Nesse âmbito, nunca é demais lembrar o questionamento proposto por MARQUES NETO: e quem nos protege da bondade dos bons? In: MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática: o juiz cidadão. Revista ANAMATRA, São Paulo, n. 21, pp. 30-50, 1994.

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imprensa, além de significar uma ofensa à memória da coletividade. Afirma-se, ainda, que o direito ao esquecimento busca fazer desaparecer registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história social, policial e judiciária, e que constituem informações de inegável interesse público. Também se sustenta que programas policiais sobre crimes cruéis ou assassinos célebres são e sempre foram absolutamente normais no Brasil e no exterior, razão pela qual a aplicação do instituto mitigaria a própria atividade jornalística. A despeito das críticas, vimos que recentemente o STJ reconheceu a existência do direito ao esquecimento em nosso país, em dois julgados paradigmáticos (RESP nº 1.334.097-RJ e RESP nº 1.335.153-RJ), de lavra do Ministro Relator Luís Felipe Salomão. Para além da preocupação com o tema, as decisões demonstram que não existem critérios únicos e definitivos para a ponderação do instituto. Como salientado, o cerne da problemática do direito ao esquecimento reside no conflito entre liberdade de informação e expressão e proteção da memória individual e, em relação ao ponto, observamos que os parâmetros utilizados atualmente para solucionar tal impasse são insatisfatórios e não alcançam a complexidade da temática. Daí a necessidade de se estabelecer balizas que possam nortear o juiz a sopesar o direito ao esquecimento, sem prejuízo da análise pormenorizada do caso concreto. Nesse sentido, as sugestões propostas no artigo, a partir do estudo aprofundado do pesquisador MARTINEZ42 (quais sejam, domínio público, preservação do contexto original da informação pretérita, preservação dos direitos da personalidade na rememoração, utilidade da informação e atualidade da informação), apresentam-se como um caminho a ser observado. Todavia, dada a atualidade e originalidade do direito ao esquecimento, somada à escassez de bibliografia especializada, nada impede que sejam construídos novos critérios de aplicação nos próximos anos, bem como se proceda à implementação legal do instituto. Em suma, o direito ao esquecimento é complexo, e sua análise não se limita a uma específica área do conhecimento, assumindo uma ótica interdisciplinar. Daí se justifica seu estudo pelos atores judiciários, para que se possa compreendê-lo e, com o tempo, aprimorá-lo cada vez mais. Longe de ter a pretensão de esgotamento de nosso recorte de análise (até mesmo porque, ensina LACAN, a falta é constitutiva e sempre lá estará), procurou-se aqui, nestas breves laudas, introduzir o leitor ao tema, de modo a conhecer as propriedades 42 MARTINEZ. Direito ao esquecimento..., pp. 174-191.

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do direito ao esquecimento, seu caráter autônomo, seu objeto de tutela, compreendendo sua complexidade nestes novos tempos, sob a influência dos avanços tecnológicos e no seio da sociedade da informação.

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