«A um deus lisérgico. Herberto Helder e a farmácia poética», Colóquio/Letras, nº191, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, pp. 161-176.

June 5, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Contemporary Poetry, Literatura Portuguesa, Poesia, Herberto Helder
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A UM DEUS LISÉRGICO Herberto Helder e a farmácia poética PEDRO SERRA Ao Germán Labrador Méndez

Fazendo do diapasão poético um martelo com que enfrentar o mundo, suas fábulas ou gramáticas, o poeta é tanto um animal – «eu, o bruto»1 – como um deus terráqueo que, por esta condição rasa, é sempre «o Deus que há-de vir». 2 Na sua condição dicéfala e furibunda imanência – muito embora extática, como veremos – reside o poder destrutivo do seu artesanato enigmático, a poesia devastadora de todo o objecto teológico e político que a pudesse transcender; e a replicação deste desígnio temo-la logo na abertura do primeiro de um terno de livros que integram o que vem sendo conhecido como o regresso de Herberto Helder: A Faca não Corta o Fogo (2008), Servidões (2013) e, naquele que é o seu último penúltimo livro, A Morte Sem Mestre (2014). Refiro-me, concretamente, à linha «até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» 3 , que abre o primeiro dos volumes

                                                                                                                1

A Morte Sem Mestre, Porto, Porto Editora, 2014, p. 18. Utilizarei a sigla MSM para abreviar a referência a este livro. 2 Recorto este sintagma de diferentes versos de A Faca Não Corta o Fogo. Editado nos finais de 2008 (Lisboa, Assírio & Alvim, 20008), as citações, ao longo deste ensaio, dizem respeito à nova simulação impressa que foi integrada no volume Ofício Cantante. Poesia Completa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 533-618. Os versos a que me refiro são, concretamente: «o Deus que há-de vir não veio ainda» (p. 565); «e então o Deus que há-de vir não há-de vir nunca» (ibidem); «quer dizer: vem o Deus que há-de vir, sente-se» (p. 566) e «¿e o Deus que há-de vir há-de vir andando sobre as águas?» (ibidem). As siglas FNCF e OC abreviam estes volumes nas menções feitas nas notas-derodapé. 3 Um sumário cotejo evidencia a incorporação, em 2009, de textos não incluídos em 2008. A este respeito, foi já levada a cabo uma comparação sistemática por Manuel Gusmão em «Herberto Helder: o poema contínuo na primeira década do 2º milenio», Diacrítica, n.º 23|3, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, 2009), pp. 129-144. No

mencionados, e onde temos, no fundo, a poesia a cumprir aquela teologia primeira e antecessora que Boccaccio lia em Dante.4 Linha, dir-se-ia, máxima, completa, pelo programa que carrega no bojo; mas também mínima, truncada, por não chegar a ser, talvez, um verso, devido precisamente à sua condição de linha única, inversa de um verso, sempre antecessor ou sucessor de outro verso. Quem sabe não se miniaturize, neste quase verso, a condição do opus nigrum de Herberto Helder: um paradoxal todo que conjunta todos. Como se tem insistido: todos os livros, um só livro; todos os poemas, um só poema. Isto implica, por outras palavras, a própria instabilidade ontológica do livro, dos livros herbertianos, num sentido que foi descrito assim no texto que antecede Servidões: «Todo o livro vai sendo o seu prefácio, e o posfácio, a inacessível e prontamente acessível evidência». 5 Enfim, uma nova formulação da enigmática que independe de aclarações, e mesmo lhes resiste de forma contumaz. Que significa que um livro seja o seu prefácio e o seu posfácio? Creio que alude à sua condição dessincronizada e deslocada em relação ao acontecimento da poesia, a sua condição de acção, e que neste mesmo texto se descreve também como um «tema das visões e das vozes»6, isto é, um tema estésico. Alterada e desregrada, é uma estesia que tem uma figuração analógica possível na experiência lisérgica. Leia-se a oração diária do deus animal que é o poeta: «dá-me o êxtase infernal de Santa Teresa de Ávila | arrebatada ar acima num orgasmo anarquista».7 Eis, pois, um primeiro analogon, ou, talvez melhor, o demónio da analogia: o arrebatamento, o êxtase místico – sublevação sensível e cognitiva que traz a reversibilidade de tudo no seu contrário. Na imagística paradoxal

                                                                                                                                                                                                                                                      presente ensaio, suspendo totalmente as menções a anteriores simulações impressas de livros e obra completa. 4 Cf. Giovani Boccaccio, Life of Dante, trad. G. R. Carpenter, New York, The Grolier Club of The City of New York, 1900, p. 104. 5 Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 15. A sigla que abrevia as menções que faço a este livro é: S. 6 Op. cit., ed. cit., p. 9. 7 Op. cit., ed. cit., p. 98.

da poesia de Herberto Helder, assim, a «ideia de paraíso» é a ideia do «inferno complexo onde passeia a Beatriz das drogas duras | um inferno à medida de cada qual dificílimo».8 Perversão da axiologia do binómio paraíso/inferno que, diga-se, extrai ostensivamente a sua carga poética, neste Servidões, da negação do mundo, propondo-se, no fundo, essa carga poética, como modelo possível do paradoxo aninhado no mundo.9 Ora, o meu breve ensaio visa ir ao encontro desta escrita lisérgica, deste ente totémico que se manifesta e oculta numa «farmácia poética».10 Comecei por aquele «Dá-me um êxtase infernal de Santa Teresa de Ávila», de Servidões, mas vou conjurar outros lugares. Por exemplo, de A Colher na Boca, recorto versos que já aí instabilizavam o interior e o exterior do livro, concretamente do poema «O Amor em Visita». A oração poética, nesta composição, começando pelo pedido de «uma jovem mulher com sua harpa de sombra | e seu arbusto de sangue» – ostensiva referência à mitologia que não deixa de poder incluir a própria Santa Teresa de Ávila: o deus lisérgico dispõe a endemoninhada

                                                                                                                8

Idem, ibidem. Refiro-me aos versos que acompanham o recorte que acabo de fazer: «a ideia de paraíso é apenas um apoio | para o salto soberano, | não um inferninho brasileiro com menininhas de programa, | púberes putinhas das favelas» (idem, ibidem). 10 Uma possível entrada na chamada «literatura drogada» é a que temos no livro de Alberto Castoldi, El texto drogado. Dos siglos de droga y literatura, Madrid, Anaya, 1997. Edição original italiana: Alberto Castoldi, Il testo drogato. Letteratura e droga fra Ottocento e Novecento, Torino, Einaudi, 1994. Opto pela designação «farmácia poética» a partir de Enrique Ocaña, El Dioniso moderno y la farmacia utópica, Barcelona, Anagrama, 1993. A «farmácia utópica» de Enrique Ocaña define-se por termos não totalmente coincidentes com aqueles que articulo numa «farmácia poética». Seja como for, um dos parâmetros de um mais amplo projecto de «meta-química» da consciência ébria, é-me particularmente útil. Para esse projecto, segundo Ocaña, «A pergunta fundamental versará sobre as condições de possibilidade de uma ‘Meta-química’, e necessariamente pressuporá uma ‘Estética’, que exponha as modalidades da sensação ébria, as alterações e inter-relações no complexo espácio-temporal» (op. cit., p. 162). Levei a cabo um primeira tentativa de estudo da presença da «farmácia poética» na literatura portuguesa contemporânea em «Farmacopeia infatigável. Carlos de Oliveira e a Escrita Lisérgica», in Osvaldo M. Silvestre, ed., Depois do Fim. Nos Trinta e Três Anos de ‘Finisterra’, Coimbra, CLP · Universidade de Coimbra, 2011, pp. 45-73. Devo a instigação inicial desta matéria ao excelente livro de Germán Labrador Méndez, Letras arrebatadas: poesía y química en la transición española, Madrid, Devenir, 2009. 9

reversibilidade de «musas» e «putas» –, pede figuração lisérgica: «Daime uma folha viva de erva, uma mulher. | Seus ombros beijarei, a pedra pequena | do sorriso de um momento».11 Soberba súplica, enfim, pela comparência da poesia, que pode ser «mulher», «pedra pequena» ou «folha viva de erva». Substâncias lisérgicas que, como figuras plásticas – ou «imagens orgânicas»,12 como se lhes pode chamar –, não deixam de atrair quer o arquivo poético histórico, quer a própria materialidade da superfície de inscrição, também condição de possibilidade da poesia como acontecimento. Tudo isto é chamado a si pela imagem da «folha viva de erva», mas também o seu contrário – esta mesma imagem não na sua função, digamos, simbólica ou representativa, mas na sua dimensão de presença. Uma presença, claro está – como no livro que é prefácio ou posfácio de si próprio –, deslocada e dessincronizada. Uma presença extática, em suma. A poesia como «folha viva de erva», a poesia, no fundo, como acontecimento lisérgico, activa amplamente, ainda, a tópica daquilo a que podemos chamar a página como superfície iluminada.13 O livro A Faca Não Corta o Fogo recorta uma sua tematização, mas é apenas um de múltiplos exempla disseminados pela obra poética herbertiana. Fiquem pois os seguintes versos – recorte provisório, e ressalvando que esta figuração requer a análise de uma casuística mais ampla – por toda essa disseminação: «quando alguém se senta nelas, as cadeiras iluminam-se | pelo sangue posto nelas, e as mesas em que se escreve |

                                                                                                                11

OC, p. 19. Eis um exercício arqueológico da dimensão inebriante da «imagem orgânica», que destaco do já aludido texto proemial de Servidões: «Havia qualquer coisa pérfida e perversa neste mundo de frutas muito fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, esse mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgánicas» (S, p. 10). 13 Nesta breve nota não me é possível explicitar as implicações que, do meu ponto de vista, se podem objectivar em torno desta figura da superficie iluminada. Tomo a liberdade de remeter, neste sentido, para «Superficies iluminadas: imaginación cartográfica de la poesía transicional española», in António Apolinário Lourenço E Osvaldo M. Silvestre, eds., Literatura, Espaço, Cartografias, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa, 2011, pp. 75-104. 12

talvez um dia se exaltem | do escrito ou do riscado».14 A prece por uma «uma folha viva de erva, uma mulher» – como prece supondo diferimento temporal e, também, sublevação espacial – é afinal figura de uma potencialidade que pode ou não ser actualizada: «talvez um dia se exaltem». Não interpelo, nesta oportunidade, todos os lugares textuais da obra herbertiana em que a «farmácia poética» elabora o seu trabalho de demoníaca analogia. O amplexo figurativo abarcado é considerável, embora seja redutível a um marco especulativo que tem no corpo em transe, e na sublevação espácio-temporal, os seus objecto principais. A «farmácia poética», neste sentido, mostraria a intensidade da hipóstase e detonação de binómios como presença/ausência, continuidade/interrupção, sujeito/objecto, dentro/fora, ascenção/deposição, entre outros. Por outro lado, é possível perscrutar uma substancial fenomenologia de estados alterados (ou desregrados), quer de consciência, quer sensoriais e perceptivos, que os poemas figuram e apontam como análogos do processo da escrita.15 Proponho, seja como for, o poema «Um deus lisérgico» – de onde, obviamente, recorto o título deste artigo –, que integra o conjunto Cinco Canções Lacunares, como uma das possíveis composições em torno da qual podemos pivotar a matéria: Ele viu, a muitas noites de distância o Rosto saturado de furos ígneos absorvido em sua própria velocidade ressaca silenciosa um rosto precipitado para dentro noutro lado do que é visto nas formas: lacunas, parêntesis desapossados, duas tensões de parte a parte da figura – ferroadas brancas Ele viu

                                                                                                                14

FNCF, p. 532. Uma ulterior tarefa, claro está, seria a do contraste diferenciador da «farmácia poética» de Herberto Helder com outras escritas lisérgicas, capitalizando valências de leitura de noções como seja, entre outras, a noção de ‘iluminação profana’. 15

a fria floresta erguer-se sob o movimento nocturno das massas e o volume cru do Rosto com tudo ordenado em si a energia dos pontos fixos curva de aço a matéria geral húmida: água leite desordenado os meandros percurso feminino Ele viu sobre o espaço maternal uma coruscação estampa presa dentro do fluido desenvolvimento a cabeça de um prego engolfada na madeira e a ponta fulminante um relâmpago noutra parte o Rosto martelado nas suas vísceras um nó veloz, parado como feito no tecido doloroso da atenção Ele viu o Rosto e toda a leveza ameaçadora era tragada pelo núcleo essa primeira sutura no remoinho da carne sobre os níveis primários temperaturas vagarosas o granito bombardeado por refluxos celestes enxuto, raspado enquanto a chuva iluminava toda a frente das terras e o alto aberto e os corredores vaginais da substância a força da lua no Capricórnio e tenacidade Acima das jubas molhadas pelo sangue Ele viu o Rosto com os seus buracos vertiginosos concentração de um feixe de linhas brutais centripetamente o Rosto a respirar dentro dele como as malhas dos pulmões onde saltava o oxigénio selvático16

«Linhas brutais», letras de um vidente – «Ele viu» –, linhas e letras de um poema em que a plenitude da poesia – a «língua plena»17

                                                                                                                16

OC, pp. 252-253.

que temos aludida em A Morte Sem Mestre – é também a sua condição lacunar. Um visionarismo que activa a consabida aberração de escalas da poesia herbertiana: o ‘pequeno’ é o ‘máximo’. Poderíamos, por exemplo, alinhar esta figuração do rosto com aquela que temos no texto proemial de Servidões. Aí, faz-se uma espécie de prospecção arqueológica que chega à comparência da figura do killcrop. Provém do tempo das «imagens orgânicas»: «A nossa própria imagem assustava-nos vinda bruscamente não sabíamos de onde, de que fundo, de que mundo. Era uma imagem que se agarrava à nossa, que se introduzia malignamente em nós carregada de poderes inexplicáveis. Durante uma dessas tempestades um raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho, que eu mesmo cobria com o lençol, o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era? um animal demoníaco, uma criança de cabeça zoológica, um killcrop?»18. Figuração obsidiante que, entretanto, veio a ter uma terrível replicação em A Morte Sem Mestre, uma espécie de estação terminal que muda o conteúdo extático do sujeito vidente: «porque é que nunca olho quando passo defronte de mim mesmo?».19 Olhar e não olhar sendo o mesmo, como assevera o sujeito do poema, decorre do envelhecimento do espelho, uma consciência amarga que o faz não querer «ver quão pouca luz tenho dentro».20 Perda de iluminação que contrasta com o rosto do deus lisérgico, saturação ígnea, núcleo coruscante. Rosto que é um furo, uma lacuna, um buraco da memória que funciona como conduto por onde circula uma energia impetuosa – líquida e gasosa – que permite a sua presença física.

                                                                                                                                                                                                                                                     

17 Eis o dístico a que me refiro: «e encerrar-me todo num poema, | não em língua plana mas em língua plena» (idem, ibidem, p. 53). Carlos de Oliveira, num conhecido poema do último livro, Pastoral, conformou também a poderosa imagem do encoframento no poema. Concretamente, na composição que tem por título «Chave», lemos: «Rodar a chave do poema | e fecharmo-nos no seu fulgor | por sobre o vale glaciar. Reler | o frio recordado» (Carlos de Oliveira, Obras de Carlos de Oliveira, Lisboa, Editorial Caminho, 1992, p. 392). Tonalidades decerto muito diversas a destas figurações do poema como cofre de uma subjectidade alienada ao dictum poético. 18 S, p. 11. 19 MSM, p. 16. 20 Idem, ibidem.

A espacialização das lacunas nos brancos intersticiais do poema – a lembrarem a violência sobre a superficie da tela dos buchi de um Lucio Fontana –, faz da página o lugar desse rosto distante, emaranhando temporalidades. A página, enfim, é superficie que estampa o que é fluído e acontece como instante que põe entre parêntese o tempo. E porque tudo isto, na minha leitura, tem uma dimensão auto-reflexiva, a imagem das ‘massas soerguidas de florestas’ – a lembrar um conhecido lugar de Carlos de Oliveira – será versão extática de um teatro performativo da escrita que tem, também, outras versões gémeas. Eis uma delas, de A Faca Não Corta o Fogo, na qual uma espécie botânica da «farmácia poética» encontra acomodação, comutando o rosto por uma «mão» em que muito se insiste na poesia de Herberto Helder: «aloés por onde o chão respira, | e a mão que brilha quando os toca, | tão pouca mão em tão nascida obra»21. E, já agora, uma outra modelização, em que o rosto se metamorfoseia em sopro sónico, uma voz arcaica também muito presente na obra herbertiana: «alguém algures sobre quente nos ouvidos, | e te apressa, enquanto corres | algumas braças acima | do chão fluido, leva-te a luz e subleva, | tão aturdidos dedos e sopros, | até ao recôndito»22. Em quaisquer destes exempla, enfim, sublinho, temos o trabalho farmacológico figurado como sublevação espácio-temporal. Iluminação, arrebatamento, epifania, ebriedade ou êxtase continuam a ser, efectivamente, motivemas com um especial débito em A Faca Não Corta o Fogo. A saturação de furos ígneos comparece como «ferida»: «álcool, tabaco, anfetaminas, que alumiação, mijo cor de ouro e esperma grosso, || tudo quente, e eu risco || e desenvolvo, | mantenho aberta a ferida, infundo | a miúda, aos poucos, minha, humílima, | respiração»23. Mais ainda, aquelas «massas florestais» terão uma nova forma, que em rigor as revela – são, no fundo, as «obras» (do próprio autor?) num emaranhado em transe: «bêbado das massas em que embaraço as obras ou | as desembaraço, as obras às dedadas, | e o espaço

                                                                                                                21

FNCF, p. 554. Idem, ibidem, p. 563. 23 Idem, ibidem, p. 570. 22

rodeia-me e depois já não rodeia»24. Enfim, isto significa «que eu habite uma espécie de eternidade | o clarão–»25: o sujeito é corpo extático, sublevado do tempo e do espaço. No segundo volume que sobrevém ao famigerado regresso de Herberto Helder, Servidões, a «farmácia poética» reincide: «oh maldita cocaína, musa minha, droga pura, | minha aranha idiomática, | estrela de cinco pontas, o fundo do ar ardendo»26. O núcleo ébrio em combustão tem, novamente, na superfície furada o conduto de uma energia que arrebata: «substantivos ar e fogo, agarrei-os | num arrebatamento, | unhas sangrando entre os buracos do papel salgado»27. Estes lugares, enfim, agudizam a tonalidade dramática de A Morte Sem Mestre, onde o transe do corpo contrasta com a sua figuração nos seguintes termos: «(mas no seu corpo nada se levanta | quando estremece o ar da revoada)» 28 . Continua, isso sim, a replicar a espáciotemporalidade lacunar – verso entre parênteses – mas trata-se de lacuna sem o fluxo daquele «oxigénio selvático» que líamos mais acima no poema «Um deus lisérgico». Ao sujeito do poema de A Morte Sem Mestre falta, enfim, tudo; isto é, falta a poesia ou «a rapariga esquiva que ele pense que é um enigma»29. O que é impressionante no contraste da poesia de Herberto Helder anterior ou posterior ao regresso – a ser possível ou, se se quiser, a ser interessante, fazer este corte – é o desgarramento agónico entre uma potencialidade intacta e uma cada vez mais dubitativa actualização. Respigo, sem ânimo para ser exaustivo: se em A Faca não Corta o Fogo lemos já «tu que perdeste o fôlego, | e sim respiras agora do sôfrego que foste nela» 30 ; ou, em Servidões, deparamos com versos que dizem «releio e não reamo nada, | a minha vida abrupta é absurda, | a arte da

                                                                                                                24

Idem, ibidem, p. 571. Idem, ibidem, p. 593. 26 S, p. 100. 27 Idem, ibidem, p. 103. 28 MSM, p. 15. 29 Idem, ibidem, p. 36. 30 FNCF, p. 543. 25

iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora»31; no último penúltimo que é A Morte Sem Mestre, o paroxismo atinge contornos como os que nos devolvem os versos que nos falam do «curto fôlego» que os desliga, mas também liga, ao «poema sumério» da origem: «o poema agora por exemplo não tem simbolismo nenhum, | morro dentro dele sem força para respirar».32 A escrita lisérgica, a poesia exaltada numa superfície iluminada, foi tendo na obra de Herberto Helder uma metaforologia maior no «sopro», na «respiração» – a «tocada coluna de ar | a sorvo e sopro»33 –, numa espécie de energia pneumática que a habita e, por isso, a desabita do que a rodeia, do mundo, embora sempre no mundo. Ora, este «fôlego» é simultaneamente inesgotável e exaurível.34 O que se vai impondo nestes três livros é o horizonte de paragem da reversibilidade morte/ressurreição que define a ontologia negativa da poesia como acontecimento. O pathos destes livros é, diria, de uma soberba humanidade, de uma poesia soberba. Faz total, e muitíssimo justo, descaso de toda a tralha academizante da desauratização da poesia, que percorre quer a prática poética, quer a prática crítica: «eles dizem que a beleza perdeu a aura, e eu não percebo, creio que é um tema geral da crítica académica: dessacralização, etc., mas tenho tão pouco tempo».35 Uma coisa, então, será o «[ter] tão pouco tempo» – impaciência com este academicismo acrítico tanto de poetas como de estudantes de poesia –,

                                                                                                                31

S, p. 80. MSM, p. 31. 33 FNCF, p. 538. 34 O que sobrevive, e como sobrevive, quando este poema de A Morte Sem Mestre diz sobreviverem os poemas sumérios? A resposta, diria, não é tão fácil como se tem vindo a formular. Pois nela palpita o seguinte. Como conciliar uma noção do poema como objecto fulgurante que se aniquila na combustão do instante e a sua sobrevivência? A repetição do diferente poderia proporcionar uma resposta. Mas ela passaria, neste sentido, por uma noção, digamos, orgânica e formalista do objecto poético. O metamorfismo teria, assim, na ‘sobrevivência’, uma sua figuração. Ora, talvez esta resposta não seja totalmente satisfatória, ou, enfim, talvez seja possível um outro paradigma interpretativo. Isto porque creio que a ‘sobrevivência’ não é tanto figura da meta-forma, mas sim de uma potência que, actualizada, não se esgota porque se mantém potência. 35 FNCF, p. 549. 32

outra coisa que a poesia aurática não aconteça. O Novo é possível, é uma potência inalienável «entre o poema sumério e este poema de curto fôlego», pois «tudo isso perdura entre nós dois pelos milénios fora, | e delas eu estremeço ainda».36 Contudo, para esta poesia, que tem como condição de possibilidade uma modalidade temporal crónica, o que significa que agoniza a sua função de acção destrutiva no tempo – das formas, da tradição, do mundo – o Novo como acontecimento rarefaz-se na erosão da dimensão material que a determina. Isto é, do corpo que a determina. O corpo perde energia, por exemplo, o que recorta, digamos, as possibilidades da escrita lisérgica, da epifania, o que significa também que se ressemantiza este acontecimento. A impiedosa composição «A Elegia de um Burro» que temos em A Morte Sem Mestre começa por imaginar isso mesmo: «a burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha velha | e uma pouca de água turva, | e como fica jovem de repente durante cinco minutos!».37 A tonalidade deste poema, em rigor, não é exactamente elegíaca. Diria antes que a move uma ironia acre, o exercício do pensamento que, claro, é sempre um acto de memória. Do mesmo modo que no poema «há não sei quantos mil anos um canavial estremeceu na Assíria», a assimilação do poema vibrátil sumério à vibração do «curto poema lírico» numa Cascais suburbana nos é dado como um acto do pensamento, no poema seguinte, e penúltimo do livro, o que temos é a retrospectiva do tempo da epifania. 38 A comoção epifânica como reverso de plenitude – de unidade, digamos – da actividade escrevente como disseminação caótica. E, contudo, há algo que não deixa de sobrevir como súbita revelação contra a epifania irremediavelmente preterida: «de repente as coisas colocadas regressaram | e entre elas, dentro, sentado, eu apenas escrevia isto, | caótico como antes era: | livros, folhas soltas, cadernos, etc., | este

                                                                                                                36

MSM, p. 21. Idem, ibidem, p. 43. 38 Cf. ídem, ibidem, p. 54. 37

pequeno poema que deixava tudo revôlto como dantes era».39 Revelação negativa – contra a revelação epifânica, sendo que a preposição tanto pode significar oposição e distância, como contiguidade e encosto – cujo conteúdo positivo consiste em intelectualizar a vidência, subsumida agora à enumeração de proposições com a repetição anafórica do vocábulo «quase». Enfim, se a quase vidência é como «dantes era» pensada a partir do mediação da escrita – do «isto» que «apenas» se escreve –, então o que teremos é uma fria e inenfática coincidência entre a «língua plena» e a «língua plana». E isto, suponho, pode ser um achado deste último penúltimo A Morte Sem Mestre. O trabalho da morte, como ostensivamente se consigna no título, mudou. Antes integrava o já aludido binómio morte/ressurreição ou morte/nascimento que palpita no âmago de uma poesia entendida como acontecimento – e, como tal, ruptura, destruição, descontinuidade para que o Novo aconteça. Por outras palavras, a mortalidade, reiteradamente sensibilizada e intelectualizada, permitia dar um contorno imperfeito à perfeição do sublime como negatividade – aquilo a que o poeta foi chamando, e continuará a chamar, «respiração na escrita». Creio mesmo que o sintagma «Herberto Helder» – entre outras ponderosas coisas que, como assinatura, consabidamente é – foi sendo uma espécie de hiperónimo de toda a objectualidade figural produzida pelo acto de denominação. Neste sentido, se a denominação tem a sua condição de possibilidade na morte – na finitude, digamos – «Herberto Helder» é também o seu nome, o hiperónimo de todos os nomes. «Herberto Helder», enfim, como killcrop, como criança voraz que fagocita o morto e o torna redivivo num momento fulgurante. Neste sentido, alguma da diferença de A Morte Sem Mestre passa por relativamente singulares turbulências nesta hiperonímia. A par do já aludido «curto fôlego», que decerto podermos fazer convergir com ‘a morte sem mestre’ do título, deparamos com um poema como o que tem por incipit «se um dia destes parar não sei se não

                                                                                                                39

Idem, ibidem, p. 56.

morro logo».40 Ora, esta linha foi dita por Emília David, padeira de Almeirim. Podemos, aliás, ouvi-la dizer a frase ipsis verbis numa peça audiovisual. 41 Poema que é construído sobre a analogia entre o artesanato do pão e esse outro artesanato que é a ‘última ciência’ herbertiana, o artesanato poético, trata-se de um texto que tem como detonação não o dictum do arquivo poético ou de uma anonímia ignota – como aquela conhecida frase «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro»42, injunção do Outro a sustentar a assinatura do Mesmo –, mas um enunciado propalado como voz registada em suporte digital.43 Dir-se-ia que o poema de Herberto Helder faz a remediação, na simulação impressa do livro, daquela voz sintetizada. Seja como for, há alguns traços de união entre as duas frases – a do anónimo que pertence a Os Passos em Volta e a que, agora, vem assinada por Emília David – que gostaria de destacar: ambas tratam da paragem e/ou da continuação do obrar, assimilando a padaria à poesia. Depois, ambas modelizam a «obscuridade» intrínseca à actividade criativa. Ainda, o penúltimo verso «a mão dentro do pão para comê-lo» assimila pão e poema, pela figura da devoração – ecolália do canibalismo baobab ou do killcrop – como do invólucro que encofra. Por outro lado, sublinharia que o poema é político – veja-se o contraste entre pães, distinguindo «França» dos «reinos salgados» – e supõe algo como o readymade. Por último, é talvez bem o exemplo de uma poesia que é «quotidiano que se torna extraordinário». 44 Concluirei, mais adiante,

                                                                                                                40

Idem, ibidem, p. 29. A peça intitula-se «De visita às Caralhotas da Caldeira – Almeirim», foi arquivada no Youtube, depois de ter passado na RedWeb.tv. Tem a duração de 06:18m. 42 Sobre a importância desta frase, pertencente ao conto «Poeta Obscuro» de Os Passos em Volta, para uma visão de conjunto da poesia de Herberto Helder, cf. Osvaldo M. Silvestre, «Da Nova Música à Musica Perennis: Aporias Tardo-Modernistas em Adorno e Herberto Helder», in ZentralPark. Revista de Teoria & Crítica, 1, Braga, Janeiro de 1999, pp. 109-116. 43 Um contraponto possível desta composição é o poema sobre o escultor Luis Jiménez, que «morreu esmagado pela sua obra». Cf. FNCF, pp. 608-609. 44 Num poema de A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder faz um envio a Che Guevara. A «língua máxima» herbertiana é, obviamente, política: «¡que língua, | que húmida, muda, miúda, relativa, absoluta, | e que pouca, incrível, muita, | e la poésie, c’est 41

retomando esta questão: o problema do Novo neste A Morte Sem Mestre passa, como argumentarei, por esta distinção/indistinção entre pães e poemas, versão herbertiana, dir-se-ia, da possibilidade de diferenciar entre Cristo e um homem qualquer, ou de distinguir o urinol de Duchamp, como readymade, de um qualquer objecto banal, como propôs Boris Groys.45 Como veremos, o vivo, o morto e o Novo têm uma refracção da analogia herbertiana entre pães e poemas. Antes, porém, teço algumas observações sobre um livro de poemas cujo título é da ordem daquela «pequenez» com valências «máximas» que, in actu e de modo tematizado, insista-se, percorre a poesia de Herberto Helder. Comecei por fazer uma alusão à poesia como diapasão contra o mundo, entremeando alguma instigação nietzschiana – o martelo, diapasão poético, suponho eu, é o que também estará presente in absentia no título A Morte Sem Mestre. Refiro-me, claro está, a Le marteau sans maître, poema de René Char e peça musical de Pierre Boulez, que recortou do poeta francês, precisamente, versos que inspiraram e dialogam com a pauta musical. No livro, entretanto, encontraremos envios musicais, entre eles à dodecafonia. 46 Não descartaria, tão-pouco, que o «mestre» que o título diz ausente pudesse ser cotejado pelo «Maître» que, consabidamente, temos em Um Coup de Dés. Em ambos os casos, a vacilação entre ‘mestre’ e ‘metro’ da língua original francesa poderá refluir sobre o título do último penúltimo livro de Herberto Helder. O título, assim, convidaria a uma combinatória errante que, potencialmente, pode actualizar-se em acertos: uma morte

                                                                                                                                                                                                                                                      quand le quotidien devient extraordinaire, e que música», | que despropósito, que língua língua» (OC, p. 573). Mediado pela língua francesa, de Aragons e Bretons, a tópica de um quotidiano iluminado percute todo um programa revolucionário estético-político. O pão do quotidiano dá-se ao poema, e o inverso também é verdade. 45 Cf. Boris Groys, «On the New», Artnodes. Intersection between arts, sciences and technologies, Barcelona, Universitat Oberta de Catalunya, Dezembro 2002. Disponível em: www.uoc.edu|artnodes|espai|eng|art|groys1002|groys1002.html. 46 Cf. MSM, o poema das pp. 34-38. Aí, as «fêmeas ininterruptas» que são trazidas às «câmaras» do «rei» integram um musarum onde, para além das primitivas «teoria dodecafónica» e «frauta cabreira», se juntam ao elenco as vozes de Marlene Dietrich, Marilyn Monroe e Mahalia Jackson.

sem mestre, um martelo sem mestre, uma morte sem metro. Morte, metro, mestre, martelo não perdem a intensidade que lhes empresta, no fundo, o demónio da analogia. Assim, a ‘pequenez máxima’ do título – cheia de «putas» que são «musas»,47 como acabo de sugerir brevemente – devolve-nos ao ente totémico e à ferramenta musical – rítmica – e imagística que é a sua: seja a poesia como um martelo que percuta nas cordas de um piano ou que o afine, por exemplo; seja a poesia, também, como ferramenta de demolição, outro nome da sua Beatriz, outro nome da pulsão exterminadora que a/o anima. A força da batida terá, ainda, no martelo aural uma sua figuração possível, osso que rebate no crânio provocando que ressoe o som oco do mundo.48 O demónio da analogia – a «obscuridade» do texto submetido à «farmácia poética», a escrita lisérgica –, em A Morte Sem Mestre, decerto nos permite aventar a hipótese de que o vocábulo «intencional» da epígrafe anterior à folha de rosto não tenha tanto o sentido de ‘propósito’ mas sim de ‘projecto’. Ou, melhor, talvez viva da impossibilidade de decidir entre as duas acepções. Não seria sem consequências este movimento pendular, este balanço entre um e outro sentidos, em última instância carente de sentido. Determina-nos que, entre outras coisas, voltemos atrás – ou, quem sabe, talvez esse movimento nos empurre a um fantasmal ‘à frente’ prefigurado por um sintagma ‘fora dos gonzos’ encravado entre uma condição antecessora e sucessora – e nos enredemos no abismo do ‘parecer’. Pois, qual o conteúdo referencial do sintagma «tudo o que possa parecer acidental»?

                                                                                                               

47 Chamo a atenção para o poema cujo primeiro verso diz: «mal com as – soberbas! – pequenas putas que me ensinaram tudo» (MSM, p. 23). A «pequenez» destas «putas» aponta-nos para poetas e poesias, a baudelairiana arte como prostituição. Diría que este poema modulas diferentes modos de «acabar mal», o que poderia ser mesmo uma descrição de A Morte Sem Mestre. Este «mal», claro, será a própria literatura como «mal». Que as «putas», ou «musas», sejam «soberbas» requeriria algum comentário mais. Desde logo, a partir do excelente ensaio de Marcos Siscar, Da Soberba da Poesia. Distinção, Elitismo, Democracia, São Paulo, Lumme Ed., 2012. 48 Cf. Friedrich Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos, in The Anti-Christ, Ecce Homo, The Twilight of the Idols, ed. Aaron Ridley e Judith Norman, trad. Judith Norman, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, p. 155.

Similar a algo ‘acidental’? Levar a crer que se trata de algo ‘acidental’? O símil de um acidente é um acidente? O ludíbrio de um acidente é um acidente? Já agora, o que deveremos entender por ‘acidental’, neste contexto e cotexto? Algo imprevisto? Algo não essencial? Creio que não foi ainda alvitrada a possibilidade de com este paratexto estarmos perante – em rigor, e como de resto sugere a disposição na página – não de um conteúdo proposicional aferível por um princípio de verdade, mas sim diante de um dístico: versos. A ser assim, adensa-se a trama, pois a dobragem autorreflexiva daquele «parecer» determinaria, por exemplo, o refluxo da latência etimológica da forma – «tudo o que parecer acidental» apontaria, pois, para o latim parere, isto é, ‘aparecer’. O que concederia ao sintagma o aspecto de antecipação de uma peculiar fenomenologia da leitura – a leitura como aparição do acidental, como quem pudesse dizer que no meio do caminho haja uma pedra, um acidente de percurso, um percurso do acidente. Ou talvez mesmo, e será esta a opção mais estimulante, do meu ponto de vista, diria que ‘acidente’ ou ‘acidental’ podem atrair um outro sentido: o de ‘linha que se junta ao pentagrama para as notas que o ultrapassam’. Isto é, «acidental» teria uma acepção musical, estabelecendo, assim, uma conexão com a alusão aninhada no título ao Marteau Sans Maître – poema de René Char e peça de Pierre Boulez – e, depois, à primeira ‘linha’ do primeiro poema do conjunto: «nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura».49 A aceitarmos que a epígrafe «Tudo quanto neste livro possa parecer acidental | é de facto intencional» não é sem consequências para a leitura de A Morte Sem Mestre, temos então que se trata de um demoníaco paratexto, desde logo situado alhures – não propriamente no frontispício, mas antes numa das folhas de guarda não paginadas, concretamente no recto da folha de guarda de cor creme que separa a folha de guarda negra e marsupial que contém o CD da folha de rosto propriamente dita –, um paratexto em rigor amparado pela assinatura de

                                                                                                                49

MSM, p. 7

Herberto Helder – duplicada na sobrecapa em versão manuscrita per simulacrum caligráfico e na capa em forma tipográfica, a que acrescentaria a tréplica da voz digitalizada do CD –, mas que pela sua natureza é também texto. Neste sentido, não descarto uma homologia entre a epígrafe e o primeiro verso, fazendo vibrar a razão topológica que distinguisse ‘dentro’ e ‘fora’ do livro. O que aliás é apenas uma réplica de uma outra vibração que igualmente provoca instabilidade na continuidade/descontinuidade da superfície de inscrição: antes da simulação tipográfica do livro temos a voz de Herberto Helder simulada digitalmente a representar 5 poemas seleccionados do todo tipografado. O CD, dir-se-ia, poderá ser mesmo aquela superfície para a qual o sujeito negativamente aponta quando diz: «nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura». Mas nada o garante, claro está, porque esta «altura» pode igualmente ter, não um sentido espacial, mas sim um valor temporal: a «vertiginosa altura» será, assim, o ‘momento’ in extremis da vertigem que vai sendo amplamente tematizada no livro: o «alvoroço mortal deste fim | de idade»50, a «bela morte num dia seguro em qualquer parte»51, a «morte do corpo»52, o «trabalho artesanal da morte»53, a «morte módica»54, ou a morte «tão cara»55. Morte, vida e sobrevivência imiscuem-se numa paroxística e decerto impossível síntese de uma problemática que poderíamos redescrever ou enunciar assim: o poema e o corpo não são mortais da mesma forma. Concluo, então, avançando por uma releitura que visa extrair algumas consequências da «farmácia poética», no fundo uma das complexas figurações que sustentam o também complexo binómio vida/morte. Que o poeta diga «respiro enquanto escrevo»56, como lemos em A Morte Sem Mestre, para além de atrair coisas como a confluência

                                                                                                                50

Idem, ibidem, p. 8. Idem, ibidem, p. 9. 52 Idem, ibidem, pp. 11 e 20. 53 Idem, ibidem, p. 13. 54 Idem, ibidem, p. 51. 55 Idem, ibidem, p. 57. 56 Idem, ibidem, p. 25. 51

de arte/vida, significa que é na poesia que encontra quer a vida, quer a morte. Da tensão agónica que as entrelaça procede, enfim, a alta intensidade da paixão que move esta poesia, este poeta. Isto foi sendo dito de muitas maneiras, fazendo, da sua, uma poesia que é que, consabidamente, meditatio mortis. Enfim, lembro uma dessas maneiras, aquela que num lugar notável de A Faca Não Corta o Fogo, estação fulcral da arquitectura poética deste conjunto de poemas, Herberto Helder consigna versos de Camões, poeta que o acompanha desde sempre. São versos cravados num dos poemas do livro: «e tu, Canção, se alguém te perguntasse como não morro, | responde-lhe que porque morro».57 Trata-se de um conhecido passo da Canção IX, cujo incipit é «[Junto de um seco, fero e estéril monte]»58, objecto de um ensaio de referência de Aguiar e Silva,59 que interpreta estes versos no contexto dos séculos áureos da península ibérica, séculos em que se glosou em regime quer profano quer sacro a tópica stilnuovista e petrarquista da «morte de amor». Assim, há que distinguir a fórmula de Camões ‘não morro porque morro’, da versão cunhada pela grande poesia mística espanhola representada por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz: «muero porque no muero».60 A apropriação que Herberto Helder faz da fórmula camoniana naqueles «inéditos» de A Faca Não Corta o Fogo, do meu ponto de vista, supôs uma intensificação física da consciência da

                                                                                                                57

OC, p. 582. Luís de Camões, «Canção IX», in Rimas, J. da Costa Pimpão (ed.), Coimbra, Almedina, 2005, pp. 220. 59 Vítor M. Aguiar e Silva, «As Canções da Melancolia», in Camões: Labirintos e Fascínios, 2ª ed., Lisboa, Cotovia, 1999, pp. 209-228. 60 Citado por Aguiar e Silva que, entretanto, esclarece: «A morte de amor, para além de ser um tópico que exprime o sofrimento mortal do amante, pode representar, quer no plano do amor humano, quer no plano do amor divino, a consumação do amor, o clímax da união amorosa e por isso tanto o trovador-amante como o místico-amante anseiam por esse momento supremo e morrem porque não morrem. Ora Camões diz literalmente o contrário da letrilla do século XV e das glosas dos dois santos e místicos do século XVI: não morre, porque morre e assim vive. Este paradoxo explica-se à luz da concepção neoplatónica do amor. Como ensina Marsilio Ficino, “está morto em si aquele que ama”, mas o amante vive no ser amado, transforma-se no ser amado e, portanto, porque morre de amor em si mesmo, não morre, porque vive na mulher amada» (idem, ibidem, p. 220). 58

mortalidade – «morro» – o que simetricamente inflaciona o «não morr[er]». A poesia, como a língua, são o corpo físico que entra na liça da dialéctica do amado e da amada. Amante da amada língua, o poeta morre e vive nela. A poesia é a sua continuação em modo deste «não morr[er]»: a poesia será esta sobrevida. Ora, talvez possamos deslocar ligeiramente o marco especulativo que acomoda a problemática, e começar por dizer que o desiderato de uma arte viva, como sabemos, provém do tempo das vanguardas. Neste sentido, Boris Groys argumentou já, de forma convincente, que ao contrário da ideologia do novum de muita da retórica e poética das vanguardas, o Novo extrai a sua condição de possibilidade do arquivo, do museu ou da biblioteca. 61 E não ao invés, como vanguardas e neovanguardas foram asseverando. Isto significa, entre outras coisas, que é no arquivo, museu ou biblioteca que o vivo se joga: «O museu dá-nos uma definição muito clara do que para a arte significa parecer real, vivo, presente: significa que não pode parecer-se à arte que já se encontra museificada ou coleccionada. Aqui a presença não é definida unicamente em oposição à ausência. Para ser presente, a arte tem também que parecer presente, o que significa que não pode parecer-se à arte antiga e morta do passado, tal como é apresentada nos museus».62 Por outro lado, o Novo não é apenas uma figura de uma retórica da temporalidade como processo, isto é, como destruição. O Novo supõe uma «diferença sem diferença», que é o tipo de diferença que permite distinguir Cristo de um qualquer homem ou, no âmbito da arte, um readymade de um objecto quotidiano. Impõe-se, então, uma «diferença sem diferença», pois qualquer diferença que se reconhecesse já não o seria. Assim: «De acordo com isto, podemos dizer que o Urinário de Duchamp é um tipo de Cristo entre as coisas, e a arte dos readymades um tipo de Cristandade

                                                                                                               

61 Op. cit., ed. cit.. Afirma Groys: «quanto mais queres livrar-te do museu, mais sujeito estás, no modo mais radical, à lógica das colecções dos museus e vice-versa» (p. 3; eu traduzo da língua inglesa). 62 Idem, ibidem, p. 4.

na arte».63 Para o problema suscitado pelo A Morte Sem Mestre, enfim, concretamente a composição que assimila pães e poemas – movida pela apropriação poética de um dictum de Emília David, padeira de Almeirim –, este marco especulativo é importante. Pois, dir-se-ia que nos confronta com a noção de que um poema só parece vivo, precisamente, por se parecer com algo tão banal como um pão. Neste sentido, A Morte Sem Mestre, um livro – talvez como qualquer códice –, é determinado pela lógica do arquivo. O códice arquiva o dictum de Emília David, vivificando o poema; no mesmo lance, mortifica o dictum, produzindo a diferença que nos permite separar arte e vida. Com um suplemento paradoxal acrescido: no códice, como arquivo, o dictum produz e representa a ilusão de pães e poemas infinitos, e que o fossem também fora do arquivo.64 Que esta ilusão aconteça significa que é no arquivo que se produz o efeito de presença. E a ser assim, isto tem consequências para o modo como ponderamos o binómio vida/morte na «farmácia poética» de Herberto Helder. A condição de possibilidade de iluminações, arrebatamentos ou epifanias, da ebriedade ou do êxtase, é a superfície iluminada dos códices que simulam tipograficamente versos, poemas e livros de poemas. Ou, enfim, o próprio CD-ROM apenso, na folha-de-guarda marsupial, ao último penúltimo volume de Herberto Helder, A Morte Sem Mestre. Não nos foi dizendo, aliás, o poeta, outra coisa. À luz do marco especulativo esboçado, o trabalho editorial que foi levando a cabo, ganha novos contornos. E adquirem novas ressonâncias, enfim, versos como «– nome é baptismo | imo é o sítio».65

                                                                                                                63

Idem, ibidem, p. 5. Cf. idem, ibidem, p. 6. 65 MSM, p. 52. 64

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