A UM PASSO DA CIDADANIA

June 5, 2017 | Autor: Thiago Carrapatoso | Categoria: Commons, Contemporary Art, Urbanism, Open Source, Artes, Arquitetura e Urbanismo
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in memoriam Liane Lira

A UM PASSO DA CIDADANIA

CIDADANIA PASSO DA

THIAGO CARRAPATOSO é jornalista e colaborador do BaixoCentro

As ruas e espaços públicos, historicamente, sempre estiveram em disputa. É por meio deles que as discussões públicas, dos commons, que dizem a todos, são levantadas, apresentadas e defendidas em suas diferentes perspectivas. O público — ou audiência, por assim dizer —, então, em sua atuação nessas áreas e nesses momentos exercem sua função cidadã, ou seja, se tornam parte real da sociedade de que fazem parte, construindo e decidindo seu futuro. Os diferentes pontos de vista, as diversas argumentações, a variedade de demandas usam essas áreas como palco para se expor ao Outro, ao diferente, àquele que, provavelmente, irá contestá-las e demonstrar outros argumentos para a mesma situação. E é nesse confronto que emerge tanto o (re)conhecimento de outra perspectiva, quanto a reanálise de sua própria visão. Há um parágrafo escrito pela teórica política Chantal Mouffe que sempre uso para explicar a relação do BaixoCentro com as ruas. Mouffe explana sobre o que é a “democracia radical”, na qual o espaço público

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“O ESPAÇO PÚBLICO É O LUGAR DE ANTAGONISMOS QUE GERAM UMA DEMOCRACIA NA RAIZ, RADICAL. É O CONFLITO ENTRE OS DIFERENTES QUE TORNA POSSÍVEL A PLURALIDADE DA SOCIEDADE E QUE IDEIAS OPOSTAS COEXISTEM ATÉ SE CHOCAREM EM UMA DISCUSSÃO NECESSARIAMENTE POLÍTICA” é o lugar de antagonismos que geram uma democracia na raiz, radical. É o conflito entre os diferentes que torna possível a pluralidade da sociedade e que ideias opostas coexistem até se chocarem em uma discussão necessariamente política. Ela diz: “quando aceitamos que toda identidade é relacional e que a condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, ou seja, a determinação de um ‘outro’ que irá atuar com o papel de um ‘excluído constituído’, é possível entender como o antagonismo emerge. No âmbito das identificações coletivas, nas quais o que está em questão é a criação de um ‘nós’ pela delimitação de um ‘eles’, a possibilidade sempre existe de que a relação nós/eles se torne uma relação

do tipo amigo/inimigo. (…) Isto pode acontecer quando o outro, que era considerado até aquele momento apenas como um modo de diferença, começa a ser perseguido como negador de nossa identidade, como se questionasse a nossa própria existência. A partir desse momento, qualquer tipo de relação nós/eles, seja religiosa, étnica, de nacionalidade, econômica ou outras quaisquer, se torna palco para um antagonismo político.”1 Antes de adentrar mais nessa relação, é sempre importante frisar o meu ponto de fala. Fiz/faço parte do movimento BaixoCentro desde a sua concepção, quando na Casa da Cultura Digital a gente discutia as intersecções entre tecnologias, cidade, arte e urbanismo. Naquele momento (e, como se vê com o projeto para a reforma do Anhangabaú, atualmente também), havia processos feitos pela administração pública que afetavam a cidade, mas que não envolviam a participação cidadã, a discussão, o debate: o projeto NovaLuz (em que se previa “revitalizar” uma área da região central, demolindo 33% de sua área construída) e as ações militaristas da PM no que eles denominam como

1 Mouffe, C. “Introduction”, The Return of the Political. Verso. 1993. p. 2-3

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Cracolândia (em vez de se tratar como um assunto de saúde, agiu-se como se fosse criminal). Para trazer mais pessoas a entender e se questionar sobre o espaço público é que surgiu o BaixoCentro em 2011, tendo o primeiro festival organizado em 2012. E, para tanto, usamos o modus operandi das comunidades de software livre para criar o que seria esse movimento horizontal e colaborativo. Yochai Benkler junto com Helen Nissenbaum fizeram uma análise, publicada no The Journal of Political Philosophy em 2006, sobre essas comunidades e como elas trabalham a virtuosidade do cidadão. Quando se se dedica a um bem comum (que pode ser tanto um software de computador quanto a ocupação dos espaços públicos de uma cidade), de acordo com eles, é que se desenvolve uma moral e ética colaborativa que, depois, é revertida para toda a sociedade. Ou seja, os dias que você passa em frente ao seu computador isolado e conversando e trocando códigos com uma comunidade online serão muito bem revertidos para a sociedade em geral, já que você será uma pessoa melhor moral e eticamente falando.

Um virtuoso, por fim. E por virtude, eles definem como “as situações que envolvem as faculdades de escolha, julgamento, desejo, emocionais e de ação”2. Para que uma comunidade possa ser enquadrada como compartilhada entre pares (ou seja, um coletivo sem hierarquia definida), para os autores, ela precisa ter três estruturas: 1) as tarefas precisam ser modulares de forma a serem divididas entre os voluntários; 2) possuir variações de engajamento, sendo umas atividades mais complexas e outras mais simples, como meio para atrair o maior número de perfis para as tarefas – e consequentemente agilizar o processo de produção, uma vez que as tarefas são pulverizadas; e 3) ter um baixo custo na execução de cada módulo para a construção de um produto final. Mas quais seriam as virtudes trabalhadas dentro de um coletivo? Benkler e Nissenbaum as dividiram em quatro diferentes clusters, que são: 1) autonomia, independência, liberdade; 2) criatividade, produtividade e processos industriais (aqui, no sentido genérico do termo); 3) benevolência, caridade, generosidade e altruísmo; e 4) sociabilidade, camaradismo, amizade,

2 Benkler, Yochai & Nissenbaum, Helen. “Commons-based Peer Production and Virtue”. The Journal

of Political Philosophy: Volume 14, Number 4. 2006. p. 405.

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3 Ibidem. p. 394.

4 Bishop, Claire. Artificial Hells –

participatory art and the politics of spectatorship. Verso. 2012. p. 11

cooperação e virtude cívica. Para eles, não é necessário possuir essas qualidades antes de se engajar em um determinado coletivo. Pelo contrário. Será dentro deles que a virtude será trabalhada e desenvolvida. Como eles falam, “nós sugerimos que a emergência da produção por meio de pares ofereça a oportunidade para que mais pessoas se engajem em práticas que permitem que se mostre e experimente comportamentos virtuosos.”3 Indo um pouco mais além, a pesquisadora Claire Bishop, em suas análises sobre arte participativa, acredita que não é somente dentro do núcleo de organização que se trabalha a virtuosidade cívica, mas também quando se está interagindo com a intervenção criada. De acordo com ela, “para muitos artistas e curadores da esquerda, a afirmação de Guy Debord [sobre a alienação e os efeitos divisórios do capitalismo em seu A Sociedade do Espetáculo] atinge no coração do porquê participação é importante para o projeto [de arte participativa]: ele re-humaniza a sociedade atávica e fragmentada pela instrumentalização repressiva da produção capitalista.”4 E ela vai mais fundo

“ATUALMENTE, HÁ DIVERSOS COLETIVOS/MOVIMENTOS/INICIATIVAS QUE QUESTIONAM, PENSAM E PARTICIPAM DO ESPAÇO PÚBLICO, CRIANDO UM CENÁRIO ÚNICO E PLURAL PARA SE ENTENDER COMO CONSTRUIR UMA SOCIEDADE MAIS DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA.”

ainda: “arte participativa, em seu sentido mais restrito, acaba com a ideia de espectador e sugere um novo entendimento de arte sem audiência, uma arte em que todo mundo é produtor. Ao mesmo tempo, a existência de uma audiência é impossível de se eliminar, uma vez que é impossível para que todo mundo participe em todos os projetos.”5 Coloco aqui as ideias de Bishop porque o BaixoCentro utiliza(va?) dessa própria perspectiva para realizar as mais de 700 atividades nestes quatro anos. O que vimos nas ruas foi uma construção não só pessoal, mas dos discursos presentes na cidade quando o assunto é urbanismo e a cidade que queremos. Atualmente, há diversos coletivos/ movimentos/iniciativas que questionam,

5 Bishop, Claire. “Participation

and Spectacle: Where Are We Now?” Living as Form. The MIT Press. p. 36

6 O evento “Inquietudes Urbanas: Ativismos na Cidade – Fricções

Entre Público e Privado” foi orga-

nizado em dois dias: 17 de agosto, com uma roda de conversa com

alguns coletivos e movimentos

convidados; e 24 de agosto, na semana seguinte, em uma mesa mais formal, com a minha participação, de Wisnik, e do secretário-adjunto de Direitos Humanos,

Rogerio Sottili, e a integrante do A Batata Precisa de Você, Laura

Sobral. Os links para as gravações

encontram-se nos seguintes QR codes:

pensam e participam do espaço público, criando um cenário único e plural para se entender como construir uma sociedade mais democrática e participativa. E, para tanto, era — e talvez ainda seja — necessário entender quais as demandas que cada um, com sua própria perspectiva sobre o espaço público, possui e exige para fazer parte desta sociedade plural, como diria Mouffe. A virtuosidade, então, não seria apenas trabalhada dentro de apenas um coletivo, um grupo, mas na união dos diversos, amplificando o debate de forma a não só questionar a perspectiva pelo viés hegemônico (como disse, é importante entender o nosso ponto de fala), mas também de outras discussões que ficam invisíveis dentro da administração pública ou da grande mídia. Em uma conversa com esses movimentos que organizei junto a Guilherme Wisnik, no Centro Universitário Maria Antônia6, embora a proposta fosse entender as fricções do espaço público, o que se viu foi uma sequência de mea-culpas e críticas generalistas sobre a atuação de grupos diferentes. Enquanto ativistas argumentavam

pela invisibilidade de setores da sociedade (pessoas em situação de rua, comunidade LGBT+, negros, mulheres, movimentos de moradia, e tantos outros que são continuamente excluídos do debate público), os coletivos artísticos defendiam sua atuação pela influência de impacto que poderiam ter no cidadão comum, transeunte randômico. O intuito do encontro, no entanto, era tentar criar pontes, laços, e agregar uma luta com a outra. Talvez, para o primeiro encontro, seja um tanto utópico almejar isso. Mas, de qualquer forma, a roda foi um passo importante para entendermos em que posição estamos quando o assunto são os espaços públicos e urbanismo da cidade. No fim, o que se vê é que ainda é preciso não só criar laços entre os coletivos, mas sim se abrir para construir uma linha que una um lado ao outro. Somente depois da linha, é que o nó, o laço, pode ser discutido e construído. A construção cidadã, tão importante para a esfera pública e para o entendimento do que é realmente público, precisa de ajuda em um momento em que a polarização é mais presente do que

“NO FIM, O QUE SE VÊ É QUE AINDA É PRECISO NÃO SÓ CRIAR LAÇOS ENTRE OS COLETIVOS, MAS SIM SE ABRIR PARA CONSTRUIR UMA LINHA QUE UNA UM LADO AO OUTRO. SOMENTE DEPOIS DA LINHA, É QUE O NÓ, O LAÇO, PODE SER DISCUTIDO E CONSTRUÍDO.”

o esperado. Por causa disso, para finalizar, uso um trecho escrito por Hal Foster que, ao questionar o papel da crítica no mundo da arte (especialmente o norte-americano) no começo da década de 1990, aponta uma situação daquela época que, talvez não à toa, se assemelha muito com o que vivemos hoje: “Qual é o lugar da crítica numa cultura visual eternamente administrada – desde um mundo artístico dominado por agentes de promoção com escassa necessidade de crítica até o mundo midiático das empresas de comunicação e entretenimento sem nenhum interesse por nada? E qual é o lugar da crítica numa cultura política eternamente afirmativa – em especial no meio de guerras da cultura que levam a direita à

ameaça do ame-o ou deixe-o e a esquerda a imaginar onde estou nesse cenário? Obviamente, essa mesma situação também torna as velhas funções da crítica mais urgentes do que nunca – questionar um status quo econômico-político comprometido acima de tudo com sua própria reprodução e proveito e fazer a mediação entre grupos culturais que, desprovidos de uma esfera pública para o debate aberto, acabam parecendo sectários. Mas apontar as necessidades não é fornecer as condições.”7 ◑ ILUSTRAÇÃO: VANESSA MATTARA

7 Foster, Hal. O Retorno do Real. Cosac Naify. 2014. p. 13-14

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