XIV Colóquio Ibérico de Geografia/ XIV Coloquio Ibérico de Geografía 11-‐14 novembro de 2014/ 11-‐14 Noviembre de 2014 Departamento de Geografia, Universidade do Minho
A unidade de conservação e sua relação com patrimônio e memória no Brasil I. Kloske(a), A. de M. Correa(b) (a)
Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
[email protected] Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
[email protected] (b)
Resumo As complexas relações entre homem, natureza e cultura bem como entre tempo e espaço em um cenário global de proteção e conservação ambiental e de respeito à cultura dos povos e suas minorias, visando preservar o meio ambiente e valorizar o patrimônio e as culturas frente ao fenômeno da globalização. Conflito social em Unidade de Conservação baseado em aparente dissonância legal. Palavras chave: Natureza; Memória; Patrimônio; Cultura; Unidade de Conservação
1. Introdução O objetivo do presente texto é abordar as relações entre homem, cultura e natureza, a partir da dimensão espacial da cultura em suas manifestações material e imaterial, carregadas de memória e simbologia, no contexto do mecanismo brasileiro de proteção ambiental denominado unidade de conservação. Serão pontuados os conceitos de natureza, cultura, unidade de conservação e patrimônio na perspectiva brasileira, com seu complexo ordenamento jurídico e seus conflitos sociais decorrentes da proteção ambiental e da cultura dos povos tradicionais. Considerando a natureza o modelo de equilíbrio para o homem, a sua diversidade é o ponto de partida para a construção do respeito à diversidade cultural e à proteção ambiental, pois ambas atendem às necessidades materiais e imateriais do homem, com destaque para religião. No Brasil é comum algumas religiões1 realizarem seus rituais e práticas em ambientes naturais como rios, lagos, matas, cachoeiras, praias – geossímbolos2 –, podendo, ainda, depositar oferendas nesses espaços. Tais oferendas podem alterar o espaço natural já sobrecarregado por outros fatores como a urbanização e alta densidade demográfica, tornando-se foco de conflito.
1 Exemplos:
indígenas, umbanda, candomblé, budismo, hinduísmo, wicca, celtas, cigana, cultos xamânicos e neopentecostais. 2 Consoante Corrêa, A.M. (2004), o geossímbolo pode ser um acidente geográfico, vegetação, trajetos, significados pelo grupo religioso emponderando-o em sua identidade religiosa. Para o grupo religioso de matriz africana, a Natureza é o seu maior bem simbólico para efeito de seus rituais.
O espaço escolhido para tal problematização é o Parque Nacional da Tijuca indicado na figura 1 abaixo, por ser familiar - carregado de memória -, por ser patrimônio nacional, por ser território santuário, e, por ser palco da tensão social (proteção do parque x manifestações religiosas) que reflete em escala local, uma questão nacional. 676000
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Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade Figura: 1 Vegetação - MAPA GERAL ZONEAMENTO Legenda
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Zona Histórico Cultural PROJEÇÃO UTM - DATUM SAD 1969 FUSO 23
Escala 1:40.000 0
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BASE CARTOGRÁFICA ORIGINAL - INSTITUTO PEREIRA PASSOS MAPAS VETORIAIS 1:2000 DE 1997 E 2000 E 1:10000 DE 1999 ORTOFOTOS ESCALA ORIGINAL 1:10000 DE 1999 E 2004 RESPONSÁVEL TÉCNICO: BERNARDO ISSA DE SOUZA ANALISTA AMBIENTAL - PARNA TIJUCA - CREA-RJ157484/D
684000
Figura 1 – Zoneamento Geral – Plano de Manejo do Parque Nacional da Tijuca
2. Unidades de Conservação Toda atividade produz impacto na natureza, afetando o ambiente e seu funcionamento integrado e sistêmico, em escalas local e global. Em resposta aos incessantes estímulos, tais como a crescente exploração de recursos naturais, aceleração tecnológica, pressão demográfica, urbanização e industrialização, são criadas cada vez mais normas legais com o objetivo de proteger e conservar o meio ambiente das atividades do homem para as gerações atual e futuras. No Brasil, principalmente após a Constituição Federal de 1988, surgiram vários diplomas legais no âmbito federal para cumprir o propósito acima citado, cujos mais relevantes aplicáveis ao Parque Nacional da Tijuca encontram-se destacados na figura 2 abaixo. Dentre estes, a Lei 9.605/1998, que tipifica o crime de poluição e a Lei 9.985/2000 que cria o SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação e classifica as unidades de conservação, como o Parque Nacional da Tijuca – PARNA Tijuca.
Marcos da Legislação Federal
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2012! Política de Resíduos Sólidos –!Lei 12.305 + Dec 7.404!
Lei 12.651– Código Florestal! 2010!
Regulamenta Lei Crimes "!Decreto 6.514! Regulamenta Lei Mata Atlântica"!Decreto 6.660! 2008! 2006! Lei 11.428 – Lei da Mata Atlântica! Regulamenta Lei SNUC – Decreto 4.340 ! Decreto 5.758 – PNAP! 2002! 2000! 1998! 1988! 1979! 1961!
Lei 9.985 – SNUC !
Lei 9.605 – Lei de Crimes Ambientais! Decreto 2.519 – CDB!
CONSTITUIÇÃO FEDERAL!
Decreto 84.017 – Plano de Manejo!
Decreto Federal 50.923 – criação do PARNA Tijuca - PNT! PARNA TIJUCA
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Figura 2 – Marcos da Legislação Federal
O Brasil adotou modelo de proteção de suas áreas naturais mais expressivas, intocadas ou de grande 3
relevância ecológica e beleza cênica similar ao norte-americano (wilderness) com a criação de parques (unidades de conservação de proteção integral), onde o homem é desconsiderado, sendo remanejado para outro espaço, a despeito da sua identidade com o lugar, da memória coletiva e do sentido de pertencimento desenvolvido ao longo do tempo. Os parques nacionais, estaduais e municipais integram o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC. Sistema, instituído pelo inciso III do artigo 225 da Constituição Federal, com o objetivo de “definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos”, denominados Unidades de Conservação – UC. Entende-se por unidade de conservação, de acordo com a Lei 9.985 de 18 de julho de 2000, o “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”. No caso dos parques nacionais, a proteção se dá em caráter integral (restrição mais severa), tendo por objetivo manter o ecossistema livre de alterações causadas por interferência humana. No entanto, é permitido o uso indireto do atributos naturais dos parques para fins de (i) realização de pesquisas científicas, (ii) desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, (iii) de recreação em contato com a natureza e (iv) de turismo ecológico, desde que respeitadas as normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo do respectivo parque. 3 Criação
de parques como Yellowstone no fim do século XIX.
O Parque Nacional da Tijuca foi criado em 1961 e atualmente possui gestão compartilhada entre o ICMBio, o estado do Rio de Janeiro e a prefeitura municipal do Rio de Janeiro, integrando um dos maiores patrimônios nacionais: a vegetação nativa do bioma da Mata Atlântica, nos termos da Lei 11.428, de 22 de dezembro de 2006. Sua localização deflagra conflitos no uso de seus atributos naturais ao mesmo tempo que oferece melhor qualidade de vida aos cariocas, além de embelezar o espaço urbano com sua floresta exuberante – um dos símbolos da cidade. Neste cenário de ambiente natural protegido legalmente e de natureza como local sagrado para a realização de rituais religiosos se estabelece a tensão entre administradores públicos e religiosos, o confronto4 entre a conservação ambiental e o respeito à diversidade cultural e sua livre manifestação.
3. A Natureza, o Homem e a Cultura Da observação da natureza e seu funcionamento vem a tentativa do homem compreender o comportamento humano e social. A diversidade presente no planeta reflete-se na diversidade cultural. Assim, depreende-se que a diversidade (natural e cultural) é a maior riqueza do homem, merecendo ser protegida por constituir patrimônio essencial à sua sobrevivência. A natureza decorre da nossa percepção, portanto, varia ao longo do tempo. Trata-se de uma idéia construída pela cultura, aqui entendida como uma totalidade dos produtos humanos carregados de memória, nos moldes da conceituação de Paul Claval como “a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é herança transmitida de uma geração a outra.” O homem integra a natureza e utiliza-se de seus recursos para sua existência. Instala-se o paradoxo do homem com relação à natureza, vez que precisa de um ambiente equilibrado para viver com dignidade, mas, por outro lado, toda e qualquer atividade humana produz impacto no meio ambiente. O homem tornou-se o seu maior degradador e também o seu defensor, ao criar mecanismos para evitar a sua destruição (da natureza e da própria espécie). Desse modo, a natureza enquanto fenômeno cultural não possui um direito em si mesma, ou seja, não cabe falar em direitos que se afirmam em relação ao homem. O homem tem direito ao meio ambiente protegido e conservado5 da mesma forma que possui o direito à liberdade de religião e crença6 e à manifestação de sua cultura7 com o exercício de suas práticas religiosas – direitos igualmente assegurados pela Constituição. 4
Os demais conflitos entre a sociedade e os religiosos e entre os fiéis praticantes de diferentes religiões não integram a presente reflexão.
A Constituição brasileira encontra-se em consonância com os anseios da comunidade internacional que em suas declarações e convenções tratam com igual importância o respeito ao meio ambiente e à cultura. Entretanto, ainda há uma disparidade na realidade brasileira: a proteção legal ambiental caminhou a passos mais largos que a proteção à cultura, que conta com diplomas legais mais recentes. Como agravante, há a falta de respeito ao meio ambiente por boa parte da população e o preconceito com algumas religiões, em especial, as afro-brasileiras, fazendo com que seus seguidores sintam-se perseguidos e intimidados.
4. De espaço a lugar, de lugar a território santuário Da visão da unidade de conservação enquanto espaço, passamos a Mata Atlântica, lugar que cria laços e memórias afetivas não só junto aos povos e comunidades tradicionais como os candomblecistas mas também junto aos habitantes da cidade transformando o Parque Nacional da Tijuca em lugar simbólico e mítico. Para a comunidade religiosa de matriz africana, a natureza é sagrada (“sem folha não há candomblé”), por conseguinte, a vegetação do Parque, lugar tradicionalmente frequentado para suas práticas religiosas é sagrada. O Parque Nacional da Tijuda integra a sua identidade, adquire forma espacial simbólica e carregado de geossímbolos torna-se território santuário. Na concepção de Aureanice de Mello Corrêa, pautada em Bonnemaison, o território santuário “agrega um conjunto de signos e valores, assumindo, assim, a condição de realizar a conservação cultural, no em que a sua semiografia é engendrada por geossímbolos que são também territorialidades, posto que estes geossímbolos funcionam como estratégias que permitem a constituição, controle e permanência desse território.” Nesse contexto, seguindo a inspiração de Mike Crang, relacionamos o tempo (cronológico e kairológico) com o espaço (chora e topos), e, entendemos o território santuário no Parque Nacional da Tijuca, mais precisamente, na Curva do S (área estratégica externa), como uma relação topos-kairos por sua dimensão afetiva de espaço experienciado e pela intersubjetividade e sacralidade do tempo. 5
CF, Art. 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserválo para as presentes e futuras gerações.” (…) 6 CF, Art. 5o. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;” 7 CF, Art. 215. “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1o - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.” (…)
Tempo
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Parque Nacional da Tijuca - Curva do S (escala local) - Criado em 1961 –
RS - Ipanema no Escala local
(escala local)
como
Unidade de Conservação espaços de confrontos e
- Criada em
2000 – negociações Escala nacional
Topos
Floresta da Tijuca
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S - Curva do
Figura 3 – Tipos de Tempo x Tipos de Espaço
5. Conclusão Neste cenário, destaca-se a necessidade imperiosa de respeito à cultura brasileira, em especial, às manifestações e práticas religiosas, que como qualquer atividade humana produz impacto no meio ambiente8, sem contudo abrir mão da proteção ambiental. Em suma, apesar de grande desafio, a conciliação da proteção à diversidade da natureza e cultural é a solução possível e imediata, vez que não são valores conflitantes, ao contrário, são complementares e devem coexistir de maneira equilibrada e harmoniosa. Cabe ao homem, como integrante da natureza, assumir, de maneira integral, seu papel de partícipe, inclusive, no exercício da cidadania como instrumento para conquista e apoderamento dos espaços.
6. Bibliografia Claval, P.; Tradução de L.F.Pimenta e M.C.A.Pimenta. (2007). A geografia cultural. Florianópolis: Ed. da UFSC. Corrêa, A.M. (2004). Irmandade da Boa Morte como manifestação cultural afro-brasileira: de cultura alternativa à inserção global. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. ______. (2013). Território santuário: uma via de operacionalização para a prática das religiões vinculadas à natureza. In A. M. Corrêa e L.M. da Costa (Orgs.), A Floresta: educação, cultura e justiça ambiental (pp. 111-118). Rio de Janeiro: Garamond. Crang, M. (2005). Time: space. In P. Cloke & R. Johnston (Eds.), Sapces of geographical thought (pp. 199-220). London: Sage publications. 8
Os meios de conscientização para proteção e conservação do meio ambiente não serão aqui discutidos.