A vida de um trabalho em decadência:Trajectos de vida dos trabalhadores do mercado da ribeira

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A VIDA DE UM TRABALHO EM DECADÊNCIA: TRAJECTOS DE VIDA DOS TRABALHADORES DO MERCADO DA RIBEIRA

Ana Rita Fragoeiro, Ana Rita Silvestre, Luís Quaresma e Sofia Alexandre

2013

A vida de um trabalho em decadência: trajectos de vida dos trabalhadores do mercado da Ribeira

Índice



1. Introdução

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2. Definição do objecto

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3. Modelo de Análise

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4. Operacionalização de conceitos

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5. Definição dos objectivos

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6. Desenho de pesquisa

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7. Apresentação dos Resultados

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8. Conclusão

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9. Bibliografia

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Índice de Figuras Fig.1 Esquema conceptual do modelo de análise

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Fig.2 Operacionalização de conceitos

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Introdução A cidade de Lisboa tem sido desde há muitos anos, séculos até, um ponto estratégico de comércio para o país e para a Europa. Desde a idade média que em Lisboa se amontoavam sedas, especiarias, metais e pedras preciosas, bem com um sem fim de outros produtos que passando por aqui corriam o velho continente. O país cresceu e atingiu o seu ponto áureo, e o comércio na Lisboa da época acompanhou a dinâmica. Contudo, com o decréscimo da importância de Portugal no panorama do comércio europeu e mundial a cidade perdeu força como pólo comercial. Era necessário um abastecimento alimentar em toda a cidade de Lisboa que garantisse as necessidades básicas da população de forma a impulsionar o seu crescimento. Surgiram então os mercados que permitiram que houvesse um sistema organizado de trocas entre a cidade e o campo. Um deles era a Ribeira Velha, estava situado em frente à Casa dos Bicos e das Portas do Mar, estendendo-se até ao Chafariz D’el Rei. A cidade tendia a crescer junto dos espaços designados por Ribeira, que se estendiam ao longo do Tejo no sentido da Barra Ocidental. Com o Terramoto de 1755, foi destruída a cidade de Lisboa e parte da Ribeira Velha, o que levou à necessidade de reconstruir aquela zona e todos os outros mercados, sendo que numa primeira fase, após o este acontecimento, havia apenas os mercados provisórios e vendedores ambulantes. Posteriormente surgiu o projecto do “Mercado 24 de Julho”, executado pela Câmara Municipal de Lisboa e da autoria do Engenheiro Frederico Ressono Garcia. Este foi inaugurado a 1 de Janeiro de 1882 e é um exemplar raro da arquitectura de ferro. Dispõe de cerca de 10 000 m2 de área coberta, assente em 7000 m2 de terreno e um piso superior de 4000 m2. Até ao ano de 2000, o mercado (já denominado mercado da ribeira) funcionava da seguinte forma: de noite era um mercado abastecedor de produtos horto-frutícolas, de manhã era um mercado retalhista e ao fim da tarde era apenas abastecedor de flores, no entanto, com a inauguração do Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL), o Mercado da Ribeira perdeu a faceta de mercado abastecedor e transformou-se num mercado retalhista, com a venda de produtos alimentares frescos. Ao procurarmos traçar um perfil histórico da cidade de Lisboa baseado nas memórias desta, fomos motivados pelo facto do mercado da Ribeira ter uma longa história, a qual se confunde com própria história da cidade. Assim surgiu a curiosidade de saber como é que as

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alterações vividas pela cidade se reflectiram neste que é um dos símbolos e uma referência do comércio tradicional de Lisboa. Assim surgiu o nosso tema: A vida de um trabalho em decadência: trajectos de vida dos trabalhadores do mercado da ribeira

Definição do objecto Nesta investigação procurámos conhecer o mercado da Ribeira na perspectiva de saber se este, que foi um dos marcos da cidade, se afirma ainda como um símbolo histórico de Lisboa. Procurámos ainda perceber como é que determinadas dinâmicas importantes influenciaram os simbolismos, as práticas e as identidades dos trabalhadores do mercado. Outra realidade que quisemos conhecer foi o impacto da reconversão espacial do mercado na imagem que os indivíduos têm deste e nas suas práticas. Neste sentido, e tendo em conta a importância que o trabalho tem na vida dos indivíduos, por ser “estrutural e estruturante das sociedades” e “uma actividade central que estrutura a vida dos indivíduos e a vida social em geral”, e pela “(…) importância nas dimensões mais subjectivas e íntimas da vida dos indivíduos, assim como a sua importância para a estruturação das identidades pessoais” (Silva, 2007), parece-nos pertinente analisarmos estas dimensões no seu contexto profissional. O trabalho não é visto como um meio apenas para a produção de riqueza, mas também como meio para a integração social e para as sociabilidades no próprio emprego. Existe uma valorização de si próprio onde o trabalhador tem o seu estatuto social que lhe dá acesso a um estilo de vida e padrões de consumo que só é possível ter se o indivíduo estiver num trabalho pago. Isto faz com que o indivíduo se sinta satisfeito, pois o trabalho é uma forma de realização pessoal que lhe dá mais poder e ajuda na construção da sua identidade (Kóvacs, 2002). Esta construção de identidade compreende dinâmicas que nos interessam perceber, como por exemplo de que forma a partilha de práticas, funções e simbolismos comuns contribuem para a formação de uma identidade profissional. Neste sentido acreditamos que o simbolismo tem um papel fulcral na formação das identidades, tanto individuais – profissionais, como da própria cidade, pois “As cidades, como as pessoas, caracterizam-se, entre outras coisas pelo seu estilo próprio – o seu ethos...” e “ o ethos de uma cidade passa, em grande medida, pela descrição, objectificação e definição das suas ‘profissões típicas’ desempenhadas por certos grupos sociais que, através da visibilidade

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do seu exercício, conseguem conquistar um lugar cativo no mapa cultural e no imaginário urbano” (Cordeiro, 2001). Assim, as profissões típicas foram ganhando ascendente de visibilidade e destaque simbólico no imaginário lisboeta, muito por razão da importância das funções desempenhadas para o bom funcionamento da cidade. E, apesar do seu lugar proeminente, aqui não se fala só de varinas mas também dos padeiros, dos aguadeiros, dos vendedores de legumes, de lacticínios e de outras profissões. Outro aspecto importante para a ocupação de um lugar central por parte das profissões típicas no imaginário dos lisboetas e como símbolo da cidade, foram a visibilidade do trabalho feito na rua; a origem geográfica evidenciada no vestuário e na linguagem; a inserção no mercado de trabalho; as práticas conviviais que têm imagem nos pregões, nas práticas expansivas e no bulício que provocam; e a interacção descomprometida e as “performances gestuais e vocalizadas” (Cordeiro, 2001) que concorrem para a preponderância simbólica destas profissões. Ora essas mesmas ruas da cidade onde ocorriam essas interacções foram elas também sofrendo alterações. Nomeadamente, no período que se seguiu ao “pós-guerra”, houve a necessidade de reorganizar o território através de um planeamento do mesmo. O comércio (seus responsáveis), sendo uma actividade em crescimento e uma componente básica da vida urbana, ao querer acompanhar todo o processo de urbanização e ordenamento do território, promoveu uma intervenção “pró-activa” que visava a junção dos centros urbanos às zonas periféricas envolventes, integrando diferentes perspectivas (económicas, sociais e culturais) que eram benéficas para todos os trabalhadores, residentes e consumidores. Acontece que nas décadas de 80 e 90, foi feita uma crítica a este mesmo planeamento do território “pósguerra”, o que veio a contribuir, posteriormente, para a proliferação de grandes superfícies e centros comerciais. Desta forma, torna-se importante dar resposta à questão do planeamento retalhista e da habitabilidade dos centros da cidade que foram “sistematicamente esquecidos” após a criação destes novos complexos comercias na periferia das cidades. A verdade é que os grandes centros comerciais periféricos se afirmaram e nada parece fazer perder a sua importância nas práticas de consumo dos indivíduos, quer seja pela revolução das marcas nos grandes espaços urbanos, quer pela distribuição da população e do emprego para a periferia cada vez mais alargada devido ao crescimento da população e à criação de cada vez mais fábricas. Por outro lado, é fácil ir a um centro comercial e comprar “rapidamente o essencial e o acessório de um variado conjunto de bens” (Fernandes, 1994), 4

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ou, ainda, associar este tipo de compra a lazer, o que muita das vezes é proporcionado por este tipo de comércio. Uma das consequências destas transformações foi o enfraquecimento do comércio no centro das cidades, o que veio empobrecer os trabalhadores do comércio tradicional, criando novas desigualdades e precarizando a actividade dos mesmos. Considerando o Mercado da Ribeira, vemos que este sofreu algumas mudanças ao longo do tempo, e que muitas delas provavelmente surgem como consequência da proliferação de grandes superfícies. Em termos comerciais, assistimos agora a uma maior diversificação e a um novo equilíbrio entre as formas comercias, o que gera uma enorme pressão competitiva sobre o retalhista independente, com conhecidas consequências que se traduzem muitas das vezes na extinção deste ao longo do tempo.

Modelo de Análise

Simbolismo

Novos simbolismos

TRABALHO

Práticas

URBANISMO COMERCIAL

Identidade

Novas práticas

Novas Identidades

Fig.1 Esquema conceptual do modelo de análise

Apesar da relativa complexidade do fenómeno a estudar, recorremos a um modelo de análise bastante simples. Quisemos essencialmente entender como é que certas dinâmicas que identificámos, como urbanismo comercial ou como fazendo parte deste, afectam simbolismos, práticas e identidades derivadas do trabalho e os reconvertem em novos simbolismo e representações, práticas e identidades em relação a este.

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Operacionalização de conceitos Conceitos

Dimensões

Componentes

Utilitária Centralidade (importância) do trabalho

Simbólica Identitária Objectiva Afectiva

Identificação Identidade Profissional Identização (diferenciação)

Simbolismo

Integração

Comunicação

Estruturação social

Indicadores Subsistência Independência financeira Realização pessoal Representação do trabalho Identidade pessoal Identidade profissional Estabilidade Gosto pela actividade Práticas Funções (importância) Ideologia Grupos Simbólica Género Práticas Funções Fechamento Apropriação de identidade Símbolos comuns Linguagem comum Imagem comum Ideologia

Fig. 2 Operacionalização de conceitos

Definição dos objectivos A sociologia tem como um dos objectos do seu estudo os processos sociais que transformam e reconfiguram a sociedade. No contexto das memórias da cidade de Lisboa, quisemos entender os processos que de alguma forma resultaram na reconversão de práticas, símbolos e identidades, intimamente ligados a uma certa imagem da sociedade lisboeta. Neste sentido surgiram algumas interrogações preliminares que após confrontação empírica da realidade resultaram nas seguintes interrogações:  De que forma é que o aparecimento das grandes superfícies comerciais e o problema da desertificação mudaram as representações que os trabalhadores têm do Mercado e as práticas destes?  Quais as principais alterações ao nível das práticas e actividades nos últimos 20 anos?  De que forma a reconversão do espaço mudou a imagem que as pessoas têm do mercado? E as suas práticas? 6

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Será que existe uma identidade comum a todos os trabalhadores do Mercado, ou existem várias identidades?

Desenho de pesquisa O campo de observação é o conjunto dos trabalhadores do Mercado da Ribeira cujas profissões se inserem no leque de profissões típicas com relevo simbólico no imaginário da cidade. A amostra consiste num grupo reduzido de trabalhadores que trabalham no mercado há mais de quinze anos e que representem cada uma das principais actividades do mercado. Neste sentido vamos privilegiar a técnica relativa à entrevista semi-directiva. A entrevista, no seu sentido amplo, permite-nos recolher informação diversa e bastante rica que nos permitirá posteriormente reflectir e tirar conclusões acerca da realidade em questão. Desta forma, é possível a existência de uma troca constante de informação entre investigador e entrevistado, na qual o entrevistado mediante as perguntas feitas pelo investigador, responde acerca de uma situação ou experiências vividas. Estas questões devem ser colocadas respeitando os quadros de referência do entrevistado (linguagem e categorias mentais). A entrevista semi-directiva não é totalmente aberta nem requer uma precisão nas perguntas que a acompanham, isto é, não requer que o investigador siga uma ordem específica na colocação das questões. É sim necessária uma preparação anterior à entrevista no sentido de orientar a mesma com algumas pistas pensadas e relativas ao objecto de estudo, que constarão num guião previamente formulado. Neste sentido, os temas de conversação propostos surgiram de uma forma intuitiva, quase que natural, consoante a fluidez e conteúdo das respostas, pois aqui, também o investigador tem o poder de conduzir a entrevista da forma que lhe parecer mais produtiva para o seu estudo, evitando assim os desvios e dispersões dos entrevistados. Com a realização de entrevistas pretendemos assim que “os actores façam uma análise do sentido que dão às suas práticas e aos acontecimentos com os quais se vêem confrontados: os seus valores, (…) as suas interpretações de situações, (…) as leituras que fazem das suas próprias experiências etc.” (Quivy &Campenhoud, 1998). Estas entrevistas serão gravadas digitalmente e serão sujeitas, posteriormente, a um tratamento qualitativo da informação.

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Contudo, este método traz algumas limitações, nomeadamente ao nível da dificuldade que o investigador pode ter em adquirir uma postura informal que conduza a entrevista. Poderá também haver dificuldades ao nível da organização e flexibilidade da mesma. Por outro lado, existe ainda o problema na neutralidade do investigar perante determinado contexto, este precisa de se tornar imparcial de maneira a poder interpretar e validar as respectivas formulações realizadas durante o processo da comunicação com o entrevistado. Após a gravação das entrevistas, foi criado um código simples de cores que nos permitiu categorizar a informação recolhida. Foi posteriormente tratada a informação recolhida de forma a confrontar as interrogações levantadas no início do estudo. Este estudo trata-se de um estudo de caso e, como tal, não arroga qualquer valor inferencial, nem para espaços de maior dimensão social nem mesmo para a totalidade do Mercado da Ribeira. Neste sentido referimo-nos aos indivíduos entrevistados e observados como os «trabalhadores do mercado» apenas por facilidade de discurso.

Apresentação dos Resultados É justo que se refira que quando nos propusemos a estudar o objecto proposto, não tínhamos mais que um conhecimento superficial e uma curiosidade, digamos, ingénua sobre este e, de forma alguma poderíamos, assim, imaginar que o Mercado da Ribeira se mostraria um microcosmos de dinâmicas socias complexas e de grande interesse sociológico. O nosso interesse surgiu pela sua importância histórica e simbólica, mas rapidamente fomos convencidos da sua importância sociológica, por argumentos como as histórias de vida daqueles que de alguma forma fazem parte do mercado, e pela forma como estas nos apresentam um quadro vívido de sociabilidades, práticas, representações, ideologias e simbolismos que formam não só um conjunto de identidades profissionais, mas que através da identificação de várias dinâmicas que se cruzam, algumas de escala societal, ajudam a perceber a transformação de uma Lisboa típica do século XX na cidade moderna que hoje conhecemos. A posição central que o trabalho ocupa na vida dos indivíduos é ponto assente. E não nos parece merecer qualquer contestação. O trabalho é representado pelos trabalhadores do mercado de forma muito objectiva, utilitária até, no que diz respeito à razão da sua escolha por determinada profissão, Vejamos um exemplo disto:

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“Não tinha pão, não tinha nada para comer... Por vezes a pessoa... Não há outra coisa, tem que se sujeitar para sobreviver. Tem que se trabalhar, hoje em dia não se vive sem trabalho!” (entrevistada 3, peixeira). Vimos então que a falta de alternativas profissionais constitui a principal razão não só para a escolha da profissão de cada um e, neste sentido, o mercado apresentou-se como uma oportunidade, como fonte de rendimento e resposta à necessidade de subsistência de indivíduos com baixíssimos níveis de escolaridade. “Pronto, na altura, a fábrica onde eu trabalhava faliu, ou estava na falência, e depois apareceu esta oportunidade e eu vim!” (entrevistada 2, comerciante de produtos hortofrutícolas). Esta falta de oportunidades ou de alternativas profissionais leva a que as pessoas se mantenham no mercado, mesmo sem obterem um rendimento considerado desejável e proporcionalmente muito inferior ao que era obtido há quinze ou vinte anos atrás. “Filha, agora com 52 anos para onde vou? Para a reforma ainda é cedo, para ir para outro lado também nunca fiz mais nada, não é? Quando se precisa tem de se dedicar a qualquer coisa, não é? Isto está muito bera, mas pronto...” (entrevistada 1, florista). Mas a apropriação do mercado (e do trabalho) não é só utilitária, e sentimentos como a desilusão e revolta suscitados pelo rumo que o mercado tomou, também têm lugar na mente dos trabalhadores. Os trabalhadores experimentam ainda o amargo da ingratidão de outros. “Hoje tem dinheiro. Mas Quando não tinha dinheiro, era aqui que vinha. “Epah aguenta aí esta semana, epah. Epah é para a outra”, ‘tás a perceber? (...) é disto que um gajo se revolta!” (entrevistado 4, talhante). Estes sentimentos contrastam as recordações dos «bons tempos», que, mantidos vivos através de uma certa nostalgia, ajudam a manter viva uma certa dependência emocional do trabalho, a qual muitas vezes não tem uma razão consciente. Desta forma o trabalho confunde-se com o indivíduo, numa clara incorporação do trabalho na identidade pessoal. Isto é passível de ser observado nas questões de transformação da personalidade em que se verifica também uma alteração de actividade profissional. Uma das entrevistadas explica assim a mudança da profissão de costureira para comerciante:

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“Para já, fiquei muito mais comunicativa, porque era um bichinho do mato! Era assim, eu entrava numa fábrica as 8h da manhã e saía as 7.30h da noite. Pronto, não é?! Era um bichinho do mato! E agora não, pronto! Agente lida com as pessoas, vai convivendo, vai falando, vai…” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas). Assim a centralidade do trabalho não se verifica só na sua dimensão utilitária ou afectiva, mas ganha uma dimensão identitária (Maciel & Marques, 2008). É a necessidade de actividade como expressão de uma identidade pessoal dominada pela profissão: “Porque eu sou uma pessoa que vive para o trabalho e gosto daquilo que faço... desde que faça bem feito” (entrevistada 3, peixeira).

A criação de identidade, tanto pessoal como profissional, é sempre construída por identificação com referências, símbolos, e práticas e, ao mesmo tempo por afastamento de outros símbolos e práticas. Neste sentido os vários trabalhadores do mercado evidenciaram uma identificação com valores profissionais como a dedicação, o perfeccionismo e o orgulho na profissão, e, por outro lado, um afastamento em relação às outras profissões bem como a maus profissionais dentro da mesma profissão. Neste sentido foi possível perceber que não existe uma identidade colectiva marcada, mas que, antes a identidade é definida sobretudo por pertença a uma profissão. Foi possível ver como alguns trabalhadores encaram o trabalho como um dever, mas através do qual obtêm realização pessoal. É como se o seu objectivo de vida fosse o trabalho, e não o que podem obter através deste, mas a prática em si. Isto refreia uma certa ênfase na perspectiva utilitarista do trabalho. Alguns trabalhadores referiram também a capacidade de adaptação e versatilidade que transcende a profissão em si. Ou seja os indivíduos afirmaramse como pessoas de trabalho, independente da profissão em causa: “Agora é assim, eu sou daquelas pessoas que tem fácil adaptação a qualquer coisa, eu hoje estou a vender isto, amanhã posso vender outra coisa, não tem problema nenhum! Ou posso fazer outra coisa qualquer, desde que seja honesto, para mim é tudo trabalho!” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas). Os trabalhadores afirmaram também a sua identidade profissional de forma convicta: “Outra profissão já não é a mesma coisa” (entrevistada 3, peixeira).

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Ainda assim parece-nos que a identidade como trabalhador se sobrepõe a esta. Esta hierarquia parece encontrar razão de ser numa abordagem utilitária do trabalho: “Procurar atender melhor o cliente, que é o cliente que nos dá o dinheiro, não é? E temos que o servir bem. Preocupar em arranjar coisas boas, carnes boas. O cliente ir satisfeito...” (entrevistado 4, talhante). Ainda na relação entre identidade pessoal e trabalho foi possível identificar algumas questões de género. Primeiro, e como já era esperado, verificámos que existem profissões com tendência para a predominância de género. As peixeiras são habitualmente mulher embora também haja homens a vender peixe, assim como a profissão de talhante é maioritariamente desempenhada por homens. Ainda assim mesmo nas profissões em que existem profissionais dos dois sexos, os trabalhadores não consideram existir uma diferença considerável entre homens e mulheres. Alguns aspectos indicados pelos trabalhadores relativamente a esta questão de género foi a cooperação e relação amigável e até a admiração pelo trabalho praticado pelos indivíduos do sexo oposto. No que se refere à vertente simbólica do mercado, foi deveras interessante perceber os processos de integração através da apropriação de símbolos comuns e da convivência, e, de que forma é que isso se reflectia na aquisição de hábitos comuns. Assim, os trabalhadores descreveram também relações que alternam a criação de laços de amizade com sentimentos de inveja e competitividade. “...não, eles podem ter ciúmes de eu trabalhar bem mas se têm não mostram. são meus amigos.. não se metem comigo” (entrevistada 3, peixeira). Foi possível identificar algumas ideologias ou filosofias de vida partilhadas pelos trabalhadores, que são sobretudo relacionadas com o trabalho. A humildade, o não ter preconceitos, a honestidade, e, ser feliz e lutar pelo que ambicionamos foram algumas das filosofias de vida enunciadas pelos trabalhadores, mas também observadas. “há muita gente que vende peixe e tem a mania da superioridade, a gente nunca deve ter a mania da superioridade.. a gente quer é viver bem. Seja na mesma rua… Não tenho complexos de nada, complexo é mau, eu nunca tive complexos” (entrevistada 3, peixeira). “Toda a vida fui feliz… toda a vida...como é que se diz? Quero, posso e mando mas também sou rígida nas coisas, tudo como deve ser, que é para poder cantar de galo. As pessoas sem brilho, sem gosto… isso não é nada” (entrevistada 3, peixeira).

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A ideia da reconversão do espaço é vista pelos trabalhadores como propositada para a extinção gradual do mercado. Alguns trabalhadores apontam o dedo à entidade gestora do mercado: “...eu estou convencida que mesmo o próprio presidente da câmara, pronto a gerência do mercado, é assim… o Mercado da Ribeira tem tendência…porque eles querem precisamente isso, isto é um edifício emblemático, isto ganham aqui rios de dinheiro, estas festas e não sei quê que ele alugam ao dia, isto é um balúrdio não é? Ora nós damos-lhe uma ninharia, portanto aqui quando se forem embora…vão indo, vão indo, vão indo… eles não mandam ninguém embora mas vão indo! E não fica cá ninguém porque eles não querem cá mais ninguém!” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas). A qualidade do mercado face às grandes superfícies foi uma ideia também repetida, bem como a defesa do modelo de comércio tradicional praticado neste. É na defesa desta imagem tradicional, com os seus símbolos, que uma certa nostalgia faz a separação entre representações dos tempos áureos e estas de um mercado em decadência. As representações evidenciadas pelos trabalhadores do mercado dividem-se sobretudo em três aspectos: A especificidade das profissões assinalada por todos os entrevistados, e que se baseiam na imagem formal, nos símbolos e nas actividades específicas destas. “Olha eu como talhante acho que não dava, muito tempo a cortar e com faca, cortava os dedos” (entrevistada 1, florista). “Agora temos que ter bata antigamente tínhamos aventais e alguns cortadores tinham vaidade nos aventais, não é? E outros não tinham. Eu por exemplo tinha vaidade no meus aventais” (entrevistado 4, talhante). “Sim, ser peixeira eu acho que já é… já é assim um bocadinho mais, para já, mais javardice, mais… já requer mais…é pessoalmente… para mim ser peixeira, acho que não era capaz, peixeira eu acho que não era capaz! Talho também já é diferente não é?” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas) A imagem geral do mercado compreende a valorização deste e a valorização do produto do trabalho, que acaba por resultar numa afirmação de identidade profissional. “Às vezes vejo lá [fala de um supermercado] pepinos amarelos, amarelos que aquilo para já nem devia estar a venda, mas pronto, eles às vezes também se descuidam um bocadinho e 12

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deixam ficar. Em termos de qualidade, eu para mim acho que nós conseguimos manter muito mais a qualidade” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas). “É pena os mercados ‘tarem a acabar, porque... quem vem ao mercado, ainda é, quando vem sabe comer. Sabe...porque chega aqui, você chega aqui, olhe – “Quero um bifinho dali, quero um bocadinho de carne dali, quero uma costeleta dali”, leva o que quer! Você chega ao supermercado tem que ser tudo embalado. Você sabe lá o que é que lá vai... verdade ou mentira?” (entrevistado 4, talhante). A imagem de tipicidade do mercado, é agora apenas uma memória nostálgica. Neste sentido o mercado é visto como tendo sido detentor de um estatuto de excelência: “O mercado da Ribeira aqui há uns anos atrás era um mercado por excelência, era um Mercado VIP da cidade” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas). A imagem de um mercado que “era muito bonito” e que “tem história” contrasta com representações negativas, como por exemplo a insegurança, pois o mercado em decadência é muita das vezes visto pelos entrevistados como espelho de um futuro incerto: “... isto está de meter medo. Estou a ficar com medo deste mercado, as pessoas estão a deixar de vir ao mercado. Agora é Natal, nem parece que é Natal.” (Entrevistada 1, florista). Alguns trabalhadores revelaram também ter consciência das representações negativas que alguns clientes têm destes. Nomeadamente no sentido de os verem como “umas coitadinhas e pronto estamos aqui porque não tínhamos mais nada para fazer!” (entrevistada 2, vendedora de produtos hortofrutícolas). Perceberam-se as dinâmicas de sociabilidade e as alterações que estas sofreram em aspectos como a relação com os clientes, entre pares, e no desenvolvimento pessoal. Foi-nos indicada uma certa necessidade de contacto social, necessidade de convivência. Percebemos a criação de laços entre trabalhadores e entre estes e os clientes, em que muitas vezes estes deixaram de ser meros clientes e passaram a ser amigos, tais não foram os anos de convivência e a confiança decorrente nesta relação. Pudemos ainda perceber que algumas das mudanças nas sociabilidades experimentadas pelos trabalhadores do mercado são reflexo de dinâmicas de maior dimensão, como as alterações de padrões culturais e morais de escala societal. “Então não foi?! Às vezes era atacado com caixas de fruta e tudo. Metia-me aí com as miúdas, quando era da sua idade. Elas atrás de mim – “malandro anda cá!” e eu tinha que me 13

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meter dentro do frigorífico. Se era bom!? Agora é que já não se pode fazer nada disso.” (entrevistado 4, talhante). Ao nível da Mudança que se verificou no mercado, podemos constatar que esta se desenrolou a vários níveis. Nomeadamente ao nível de volume de pessoas, em que se registou um acentuado decréscimo, e por consequência de trabalho, o que resultou numa perda de rendimento obtido pelos trabalhadores. Houve também outras modificações, por exemplo ao nível do tipo de vendedores, antigamente eram os próprios produtores que se deslocavam até ao mercado com a finalidade de vender os seus produtos. Portanto era comum vermos os saloios dos arredores de Lisboa com as suas carroças, cavalos e burros que transportavam até ao mercado tanto os seus pequenos animais para venda, bem como os produtos hortofrutícolas que eles próprios produziam. Hoje em dia já não é assim, pois o perfil do vendedor retalhista mudou. Quase todos os comerciantes compram os seus produtos para voltar a vender e apenas dois deles produzem os próprios produtos. O desaparecimento da vertente grossista do mercado e a alteração do horário contribuíram para a mudança da organização e métodos de trabalho e também das rotinas e práticas pessoais dos trabalhadores. Foram identificadas dinâmicas exteriores a este microcosmos que de alguma forma se reflectiram em aspectos do dia-a-dia do mercado. Estas foram o aumento da insegurança no dia-a-dia, o decréscimo da confiança no outro que teve implicações em práticas como a venda a crédito (fiado), “Pronto! Uma freguesa que vem aqui ao fim do mês, leva, chega aqui paga. Fica a dever uma paga outra. Poucas, agora não se pode fazer nada disso a ninguém .” (entrevistado 4, talhante). A melhoria geral das condições de vida, apesar de, neste sentido, ter sido identificada uma certa continuidade ou resistência à mudança. “A vida era difícil, a crise que há hoje, já é de há muito tempo.” (entrevistada 3, peixeira). As razões que foram apresentadas para esta mudança são várias: A crise, várias vezes referida; A extinção, por falta de competitividade, de pequenas mercearias que eram um dos principais clientes do mercado;

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A criação do MARL e a transferência da vertente grossista do Mercado da Ribeira para este; E o aparecimento das grandes superfícies comerciais. Foi ainda identificada a desertificação, no entanto, entendemos que esta é, tal como o enfraquecimento do mercado, o resultado do aparecimento dos grandes complexos comerciais bem como das dinâmicas acima referidas. Relativamente às práticas foi-nos indicada uma nova organização das rotinas e das práticas como adaptação à nova realidade. Os trabalhadores têm agora mais tempo livre, o que lhes permite assim uma maior facilidade em termos de organização das práticas pessoais, organização esta que continua a ser realizada em função do trabalho. Por exemplo, pudemos observar o nosso entrevistado (talhante) a dormitar a meio de uma manhã de trabalho.

Conclusão De acordo com as nossas interrogações iniciais, procurámos responder a cada uma delas em função dos resultados obtidos no decorrer da nossa pesquisa. Foi notório o impacto que as grandes superfícies comerciais tiveram no mercado. Como consequência, este aspecto traduziu-se assim na modificação de algumas representações que os trabalhadores têm do mercado, como também, em algumas das práticas destes. Ao nível das representações, a imagem de tipicidade do mercado alterou-se radicalmente, conjuntamente com a perda de estatuto que era reconhecido ao mercado. Hoje o mercado representa sobretudo um futuro incerto para muitos trabalhadores e apenas restam memórias nostálgicas. Ao nível das práticas, podemos ver que os trabalhadores têm muito mais tempo livre, o que lhes permite uma maior facilidade de organização da vida pessoal que continua a ser realizada em função do trabalho. Relativamente ao fenómeno identificado como desertificação entendemos que esta é, em parte, uma consequência de dinâmicas que nos parecem não estar directamente ligadas às alterações sofridas pelo mercado. Uma das primeiras transformações ao nível da reconversão espacial foi a transferência da vertente grossita para o MARL, isto levou a um enfraquecimento geral do mercado e consequente alteração na imagem que as pessoas têm do mercado. Posteriormente seguiu-se 15

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a cedência do espaço do mercado, por parte da gerência deste, para outros fins mais lucrativos, o que é visto pelos trabalhadores com maus olhos. Podemos ver que os trabalhadores do mercado não partilham de uma identidade comum, mas que a identidade é formada sobretudo dentro de cada profissão. Mesmo esta identidade não parece ser tão forte como a identidade de trabalhador num sentido mais lato. Isto mostra que existe uma centralidade do trabalho na formação da identidade que transcende a identidade profissional. Este aspecto parece-nos não ser específico do Mercado da Ribeira, contudo não temos dados que nos permitam generalizar. Ainda assim parece-nos que este assunto pode ter algum interesse no âmbito da sociologia do trabalho. Podemos então concluir que a vida no mercado se alterou bastante desde há vinte anos para cá, já nada é igual… “Quando eu vim para cá antes de ser carrinhas e camionetas, havia já camionetas, havia também muitas carroças e haviam ali uns ferros à porta que prendiam os cavalos, os burros, vá.. Era muito engraçado, não tinha nada a ver.. Matavam aqui a criação coelhos, galinhas, galos, era tudo morto aqui. Havia ali o matadouro das galinhas, agora vende-se já tudo morto, não é.. Antigamente era aqui que se fazia isso, a gente ouvia aqui o barulho das galinhas, era engraçado, não tinha nada a ver. O som que o mercado tinha não tem nada a ver, nada, nada.” (entrevistada 1, florista).

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Bibliografia 

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Foto de capa retirada de: http://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt/mercado-daribeira-historia-312785

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