A vida no Bairro: o Bairro Chinês na primeira pessoa

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Rua principal do Bairro Chinês, na década de 1950, vista do campo de futebol do Clube Oriental de Lisboa. [Arquivo Municipal de Lisboa – Judah Benoliel, s. d., PT/AMLSB/JBN/004886]

A vida no Bairro O Bairro Chinês na primeira pessoa

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João Santana da Silva historiador

Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança: Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem ( se algum houve ) as saudades. Luís de Camões, Sonetos

A confiar apenas na descrição da rua principal, a impressão que nos fica do Bairro Chinês está longe de ser a melhor. Quando chovia, as águas que desciam a encosta desde o campo do Clube Oriental de Lisboa – mais conhecido, simplesmente, por Oriental – até à passagem de nível arrastavam consigo a terra dos arruamentos improvisados, abrindo um canal de lama que dividia o bairro ao meio. Aleixo Martinho, de 75 anos, vive no bairro da Prodac. Mas esta imagem, dos tempos em que morava no Bairro Chinês, nunca desapareceu da sua memória. “Passava um regato no meio, onde deitavam as necessidades”, descreve. “E tinha umas tábuas para se passar de um lado para o outro”. Um verdadeiro riacho no meio de Marvila. É sabido que, embora não seja oficial, o epíteto de Bairro Chinês se tornara habitual. No entanto, o nome não é consensual. Nem todos os moradores daquele bairro concordam com esta designação. “Eu não morava no Bairro Chinês”, diz José Maria da Silva, “o Bairro Chinês era só a rua principal”. José Maria, que fora nascer a Cinfães do Douro em 1954 e voltara, já pelo seu pé, para o bairro poucos anos depois, é veemente neste ponto. “Ninguém morava no Bairro Chinês. Oficialmente, ninguém morava. Isso não vinha em lado nenhum, nem em correspondência nem nada. Era Azinhaga dos Alfinetes – Quinta do Marquês de Abrantes, tinha de se colocar as duas coisas. E depois o lote de casa. Ou da barraca, neste caso.” Também José Augusto Silva, presidente de uma associação de moradores no Vale Fundão ( outro nome para a segunda fase do bairro da Prodac, construída na zona homónima ), é sensível 96

a esta questão do nome do antigo bairro. A origem já foi apontada a um suposto proprietário de ascendência oriental. Mas José Augusto é categórico. “O nome Bairro Chinês não tinha nada que ver com os nomes das quintas”, diz, construindo o puzzle. “O que aconteceu foi que alguém se lembrou que, por causa da densidade das pessoas, aquilo parecia a China.” De alguma forma, a analogia não pareceu errada à maioria das pessoas, já que “o bairro tinha mais ou menos duas mil famílias”. Assim ficou. Independentemente do nome, este bairro foi porto seguro para muita gente que fugia à miséria e à desesperança que grassavam nas terras do interior do país, ofuscando qualquer falta de condições das barracas de chapa e madeira. José da Silva Pereira, hoje com 76 anos, chegou a Lisboa, com a mulher, há tanto tempo que tem dificuldade em precisar o ano. Mas nunca se esquece do que sofreu com a escassez em Pimeirô, a sua terra natal, perto de Cinfães do Douro. “Naquele tempo, a gente, dos lucros que tivesse – dos gados ou das terras –, tinha de dar metade ao patrão”, recorda. “E muitos, às vezes, não tinham para eles, quanto mais para dar aos patrões.” Daí que, conta José, tivesse começado cedo a fuga das zonas rurais, com “tudo a vir para um lado e a vir para o outro”. Ele próprio foi testemunha disto, tendo chegado a Lisboa de comboio, desembarcando logo ao fundo do Bairro Chinês, onde conhecia um primo da sua terra – o pai de José Maria da Silva. Paralelas à história de José da Silva Pereira, houve outras tantas centenas ou milhares só naquele bairro. Histórias que enriquecem um bairro que é mais do que aparenta à primeira vista. 97

R UA S E S T R E I TA S , M A S P O R TA S A B E R TA S : A S C A S A S D O B A I R R O

Muitos dos trabalhadores dessa atividade eram atraídos pelos salários mais altos das fábricas. Simultaneamente, essas fábricas continuavam a atrair outras pessoas – por vezes, famílias inteiras – para Lisboa. A alternativa que os caseiros encontraram para rendibilizar o espaço pelo qual estavam responsáveis foi arrendá-lo a quem estivesse interessado, para fins de habitação. Conta José Augusto Silva que havia 15 caseiros na Quinta do Marquês de Abrantes que, perante a ausência constante dos patrões e proprietários dos terrenos, faziam uma gestão do espaço em seu benefício, começando a arrendá-lo para fazer barracas. “Em cada quinta havia 15 ou 20 barracas mas havia sempre alguém de família que também queria vir e acabava por se fazer outra barraca”, diz. “Este esquema rendia muito dinheiro”, não havendo sequer faturas para documentar essas receitas, o que motivou outros caseiros a seguir o exemplo. Tornou-se um enorme negócio na zona, “com 12 mil pessoas a pagar 150 e 200 escudos” todos os meses. A experiência de Aleixo Martinho ilustra as de vários outros antigos moradores do bairro. “Quando nós estávamos lá nas barracas, havia vários senhorios”, diz Aleixo, acrescentando que o seu “chamava-se Sr. Macieira”. Pagava uma renda de 120 escudos, mas o senhorio, tal como muitos dos que arrendavam terreno e barraca, nunca fazia reparações. No entanto, a renda era bem menor do que o valor que viria a pagar à Prodac: 500 escudos por mês. A preferência pela barraca era, por isso, muitas vezes explicada por essa diferença. Mesmo quando já havia a possibilidade de passar para uma casa mais moderna. Duarte Cardoso, de 71 anos, é um dos alentejanos que povoam atualmente o bairro da Prodac. Nascido em Santo António do Baldio, no concelho de Reguengos de Monsaraz, saiu da sua terra aos 21 anos para cumprir o serviço militar na guerra do ultramar. Desde então, nunca parou. Em 1966 voltou de África para o seu Alentejo e começou a trabalhar na agricultura. No final desse ano veio para Lisboa, para morar numa pequena casa na Azinhaga do Vale Fundão. Pelo menos até ao ano seguinte, quando alugou um exíguo terreno com respetiva barraca na Quinta das Claras, junto ao Bairro Chinês e ao campo do Oriental. Também ele se lembra do seu rendeiro. “Quem tinha a Quinta das Claras à renda era um indivíduo chamado António da Laje”, diz. “Tinha aqui uma vacaria e foi fazendo umas barracas para o pessoal.”

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Andar pelas pequenas ruelas do Bairro Chinês e da Quinta do Marquês de Abrantes era uma verdadeira aventura. Não porque fossem perigosas, já que esse preconceito é negado por qualquer antigo morador do bairro. O desafio devia-se aos caminhos estreitos e à densíssima lotação de casas de madeira e chapa construídas no bairro. Com tanta gente a chegar tão intensivamente, deixou de haver qualquer preocupação em manter a circulação livre. O que importava era arranjar casa a quem não a tinha, assim que descia do comboio em Lisboa, no Braço de Prata. E muitas famílias chegavam assim mesmo, sem casa garantida. Muitas vezes apenas com a referência de um familiar ou amigo. António Silveira, de 66 anos, já deixou para trás a barraca e vive hoje nos prédios da Quinta do Chalé, a poucas dezenas de metros do seu antigo bairro. Mas ainda assistiu ao grande fluxo migratório em direção à zona oriental de Lisboa. “As décadas de 1960-70 foram terríveis, vinha tudo das províncias para aqui”, afirma. “A gente mandava vir os nossos familiares e já tínhamos trabalho para eles e tudo. Depois era só fazer mais uma barraca.” Não admira que o bairro tenha começado a crescer para além do que era imaginável, passando as casas a cobrir espaço que antes era destinado à passagem dos moradores. José da Silva Pereira caminha descansadamente nas espaçosas vielas do bairro da Prodac, onde mora hoje. Mas recorda-se das estreitas ruas do Bairro Chinês como se tivesse acabado de lá passar. “Tinha barracas de um lado e do outro e no meio um carreiro que, para a gente passar com duas latas, era muito estreitinho”, descreve, simulando com os braços como tinham de passar de lado, e só uma pessoa de cada vez. A solução estava em deixar abertas as portas de casa, permitindo que uma pessoa entrasse dentro da casa alheia, possibilitando a passagem de quem viesse em contramão. “Alguns deixavam as portas abertas durante o dia, para passarem uns e passarem outros. Senão… não passavam.” O próprio conceito de ruas, no Bairro Chinês, estava aberto a discussão. Reconhecidas oficialmente, encontravam-se a Rua José do Patrocínio, a Azinhaga dos Alfinetes e poucas mais. Até mesmo a rua principal do bairro, onde se encontravam algumas tascas famosas e grupos recreativos como o Alhões, era demasiado acidentada para ser considerada oficial. Maria Fernanda Correia, hoje presidente da Associação de Moradores do Bairro da Quinta do Chalé, nasceu literalmente no Bairro Chinês há 65 anos, sendo testemunha privilegiada do que é crescer, brincar e correr nestes arruamentos. “Não havia rua alcatroada”, diz acerca da rua principal. “Era um rego de água da chuva que vinha do Oriental e ia até lá abaixo, à linha. Lembro-me de que a rua era já larga. Do lado direito, a descer para a linha, tinha as barracas. Deste lado esquerdo, eram casas mais pequenas, de tijolo ou de cimento.” Esta rua dividia, pois, duas formas distintas de construção de casas. A construção das barracas começou quase instintivamente. O decréscimo de atividade agrícola nos limites de Lisboa deixou partes das quintas por explorar.

Habitações precárias na Quinta das Claras, junto ao Bairro Chinês, no final da década de 1960. Atrás, vê-se o poste de iluminação do campo do Oriental. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

Criança numa rua do Bairro Chinês, em finais da década de 1960. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

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Os rendeiros, como eram habitualmente chamados os indivíduos que cobravam rendas pelo terreno e pela barraca, ajudavam muitas vezes quem chegava a instalar-se e a estabelecer os primeiros contactos. Uma ajuda preciosa, sobretudo para quem não conhecia ninguém. O pai de José Maria da Silva era um desses rendeiros. Veio de Cinfães do Douro para a Quinta do Marquês de Abrantes por volta de 1950 e teve um papel importante no nascimento da concentração de habitações do Bairro Chinês. “Ele veio para cá para a tropa, para Cavalaria 7, e depois, como tinha cá uns tios, ficou por cá. Arranjaram-lhe uma barraquita e, a partir daí, começou a desenvolver a vinda de alguns conterrâneos.” O que primeiro era uma ajuda pontual tornou-se uma atividade quase a tempo inteiro. “Escreviam-lhe para ele arranjar emprego também para eles cá e uma barraquita. Foi então que o meu falecido pai começou a fazer algumas barracas. E assim construiu um império de quase cinquenta barracas só por conta dele.” Tarefa essa que não era fácil nem ociosa, já que era ele próprio que fazia muitas das barracas. Ia buscar madeiras ao pé do aeroporto, ao Pote d’Água. “Atravessava as quintas todas, passava pelo Bairro do Relógio”, diz José Maria. “Trazia-as aqui para a quinta. Depois fazia as barraquitas de noite.” A construção fazia-se de noite porque quem as construía trabalhava, normalmente, durante todo

A construção das barracas fazia-se de noite porque quem as construía trabalhava, normalmente, durante todo o dia. Mas também se esperava pela noite para esconder o trabalho de construção dos olhos dos polícias. 100

o dia. Mas também se esperava pela noite para esconder o trabalho de construção dos olhos dos polícias. José da Silva Pereira salienta que, mesmo quando se queria tapar um pequeno buraco na madeira para a chuva não entrar, era preciso ter cuidado. O som do martelo a bater na madeira podia sugerir outra coisa às autoridades. “Se fizesse barulho assim”, conta, batendo com o punho na mesa, “andava sempre lá um polícia ou dois que vinha logo a correr ver o que se passava, com medo que se fizessem mais barracas. A polícia não tinha mão naquilo”. No entanto, aponta Maria Fernanda Correia, a própria autoridade acabava por ceder perante o drama das famílias que não tinham onde passar a noite. O seu pai também era rendeiro e teve situações assim. “O meu pai era uma pessoa muito conhecida na Câmara Municipal de Lisboa e os polícias comiam na minha casa”, explica. “Às vezes percorriam aí a zona para não fazerem mais barracas durante a noite, e o meu pai dizia: ‘Ó pá, fechem os olhos. Aquele desgraçado precisa de uma coisa para viver, para trazer a família, para comer e trabalhar’.” E a polícia olhava para o lado. Um sinal de outra época, de outra generosidade, que Maria Fernanda lembra com nostalgia. “Tenho muitas saudades desses tempos. Éramos todos uma família.” E assim se construía o Bairro Chinês e os vários bairros de barracas em redor. Casa atrás de casa, feitas de madeira que se aproveitava das mais variadas utilizações. José Cardoso da Silva, de 67 anos, assistira, do Pátio do Marialva, ao transporte de madeira da Rua de Marvila para cima. Essa madeira vinha das caixas de lulas destinadas à pesca dos bacalhoeiros que entravam no porto. Esgotado o seu uso, eram deitadas ali perto. Já Aleixo Martinho arranjara madeira para a sua casa num contentor que estava no Largo do Carrossel, provavelmente aí deixado para ser utilizado por uma carpintaria instalada no Palácio dos Alfinetes. As condições eram poucas, mas todos pareciam ter a capacidade de improvisar. Abel Rodrigues, de 78 anos, não tinha eletricidade na barraca que lhe entregaram na Rua José do Patrocínio, junto ao campo do Oriental, quando foi para lá ajudar com os equipamentos dos jogadores. Um problema que não durou muito tempo. Sendo vizinho do famoso “prédio cor-de-rosa”, onde se alojaram os serviços da

O célebre “prédio cor-de-rosa”, na Rua José do Patrocínio, onde se instalaram os serviços da Prodac. [João Pécurto – URI, 2013]

Prodac, aproveitou a familiaridade com o secretário-geral da associação, Mário Pinto Coelho. Com a sua permissão, ligou um cabo elétrico ao prédio, fornecendo eletricidade à sua barraca e à de outra família. Mas nem sempre o quadro aguentava a carga. “Estava a corrente a funcionar para essa família toda. Só que de vez em quando… ‘Pá!’, lá se ia a luz”, conta Abel. Também a canalização desafiava a higiene pessoal, sendo necessário improvisar casas de banho onde fosse possível. António Silveira descreve a sua “barraca, com quatro quartos, cozinha, arrecadação, casa de banho”, onde criava galinhas e coelhos. Surpreende-se quando lhe perguntam sobre as instalações sanitárias. “Canalização?! Não havia, atirava-se tudo para a fossa, para o cano da água.” Apesar de tudo, afirma José Maria da Silva, as casas “estavam mais ou menos arranjadas”. Eram cimentadas, tinham quartos, salas e cozinha, e “também se usavam as carpetes, para que nós não andássemos em contacto com o chão, com o cimento”. A família de Maria Fernanda Correia também encontrava soluções onde o espaço permitia. Quer para si quer para os arrendatários das suas barracas. “Lavávamo-nos numa carroça no meio da rua. Se tivéssemos um bocadinho de espaço, um cantinho, nas casas, fazíamos uma barraquinha. Chamávamos àquilo uma tijela de barro”, descreve. “Às sete horas da manhã vinha um senhor da Câmara numa carroça, com um burro, as necessidades iam para dentro da carroça e depois ele ia despejar ao Cais do Sodré.” Mas só “quem tinha posses” é que conseguia ter água canalizada dentro de casa. “Enchiam uns bidões por cima dos telhados e com mangueiras faziam as casas de

banho.” Para encher esses bidões, havia outra provação, já que nem sempre os chafarizes estavam no meio do Bairro Chinês. E várias vezes era Maria Fernanda, ainda criança, que ia buscar água aos chafarizes fora do bairro, ao pé da Sociedade Nacional de Sabões, ao largo do Poço do Bispo e ao pé da igreja de Marvila. “O meu padrinho fez-me – nunca mais me esqueci – o que se chamava um ‘chinguiço’: um pau de uma vassoura com um balde de cada lado e que se levava às costas”, diz Maria Fernanda. No fundo, sem quaisquer plantas ou planificação do bairro, a habitação ia-se fazendo conforme as necessidades. A casa adaptava-se ao tamanho da família e aos planos de cada um. Tanto que um dos rendeiros, António da Laje, terá feito um conjunto de barracas grandes com divisórias só para os vários rapazes solteiros da Quinta das Claras. “Com apartamentozinhos e divisórias, tipo uma camarata. Tinham cozinha e tudo”, conta Duarte Cardoso. No entanto, todos eles trabalhavam, porque “as pessoas vinham para cá para trabalhar, não era para andarem aí na malandrice”, salienta.

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Abertura das fundações de um dos três centros construídos pela Prodac no Bairro Chinês, em 1969. [Arquivo fotográfico do cps da Prodac]

Uma das casas de banho improvisadas que se encontravam ao longo do Bairro Chinês, em finais da década de 1960. [Arquivo fotográfico do cps da Prodac]

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Exemplos de duas oficinas de entre as várias existentes na Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata, em meados do século XX. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

Tal como muitos outros antigos vizinhos, o alentejano Duarte Cardoso não gosta da má fama que o Bairro Chinês e os bairros de barracas à volta chegaram a ter. Uma fama indevida, porque “era tudo gente com carisma de trabalho”, diz. “Havia uma má ideia, ou mau conhecimento, das pessoas que viviam nas barracas, que era tudo gente de trabalho. Era tudo gente séria. Era e é.” O que não impedia, num caso ou noutro, os mais jovens de se entusiasmarem um pouco mais quando iam à tasca no fim de semana. “Mas aquilo nem dava quase tempo para dar uma estalada”, desmente, “era logo apertado”. A capacidade de trabalho da população destes bairros era, sem dúvida, impressionante. Mais do que trabalhar muitas horas seguidas, conseguiam adaptar-se a todas as profissões que encontravam disponíveis ali perto. Sobretudo nas fábricas de Marvila. “Quando comecei a trabalhar na Quinta do Marquês de Abrantes foi como ajudante de calceteiro”, conta Aleixo Martinho. “Depois saí dali e fui trabalhar para um armazém de mercearias em Marvila. Como o meu irmão trabalhava na Sociedade Nacional de Sabões, fui-me lá inscrever, mas eu não tinha a 4.ª classe. Tive de ir fazer a 4.ª classe porque sem isso não entrava. Fui à Rua da Madalena, na Baixa, e andei lá numa escola em 1965 ou 1966. Andei a relembrar aquilo que já tinha esquecido.” Entregando o certificado na fábrica de sabões, entrou e trabalhou lá até 1972. Perdeu esse trabalho por um problema de saúde. Após dois anos com uma baixa médica, rapidamente voltou a encontrar trabalho, na Automática Eléctrica Portuguesa. “Trabalhei lá 12 anos como despenseiro, mas ganhava muito pouco, 17 contos”, acrescenta. Também Abel Rodrigues, que cresceu na Mitra, começou cedo a trabalhar nas empresas da zona, incluindo em malhas e nos fósforos. Depois passou para os cereais. “Para a Silopor, na altura Federação Nacional de Produtores de Trigo. Depois passou a EPAC. Depois passou a outro nome. E agora é Silopor outra vez. Quer dizer, estive no mesmo lugar com quatro nomes. E nunca mudei de lugar.” Havia uma tal vitalidade nas empresas que quem trabalhasse no mesmo sítio, com as mesmas tarefas, acabava por, sem dar por isso, ter vários empregadores diferentes ao longo dos tempos. José da Silva Pereira também se lembra de como se ia arranjar trabalho. A melhor forma era mesmo ir para a frente dos locais. “A gente lá veio, a pedir trabalho por aqui, trabalho por ali. Às vezes era um dia ou dois”, descreve. “Onde a gente às vezes tinha era ali, ao pé da esquadra. Lá dentro tinha uma fábrica de cortiça. Estive

lá uma temporada. De lá, fui para um armazém de vinhos no Poço do Bispo, o do José Domingos Barreiro.” Daí, foi ainda para uma fábrica no Beato, onde se produzia desde rações para animais até bolachas para consumidores comuns. Esteve lá, pelo menos, até à automatização das tarefas. “Arranjaram aquilo tudo e, onde estavam quatro ou cinco homens, agora está um com máquinas”, explica José. “Depois começaram a mandar o pessoal embora e a gente… olhe, teve de vir.” Segundo José Maria da Silva, “era fácil arranjar emprego na altura”. A razão estava na multiplicidade de fábricas, antigas e novas, em Marvila, Beato, Xabregas e Olivais. Todas à distância de alguns minutos a pé, para quem morava no Bairro Chinês. Arranjava-se emprego “na Fábrica de Borracha, nos Fósforos, na Nacional, ou aqui nos armazéns em baixo, tanto o Domingos Barreiro como o Abel Pereira da Fonseca”, conta José Maria. “Era uma zona para onde se podia mandar vir à vontade porque se arranjava facilmente emprego.” Constantino Rodrigues, de 63 anos, antigo morador do Bairro Chinês e hoje presidente de uma associação de moradores no Bairro Marquês de Abrantes, é perentório ao afirmar que, “naquela altura, não havia dificuldade em conseguir empregos. A gente saía hoje de um emprego e amanhã já estava noutro”. Era uma zona altamente industrializada e com uma profunda ligação ao próprio crescimento dos bairros de barracas. Uma ligação recíproca. Trabalhavam na cintura industrial de Lisboa dezenas de milhares de operários, muitos deles do Bairro Chinês, um bairro onde, diz Duarte Cardoso, “toda a gente trabalhava, não havia cá meliantes. Só no Material de Guerra, fazendo uma estimativa, trabalhavam aí umas seis mil pessoas”, contabiliza. Duarte Cardoso traça o mapa industrial da zona. “Começando de Braço de Prata, havia a fábrica da cortiça, depois havia os parafusos, havia os contadores, havia uma Fábrica Barros, que era de tecidos e tinha para ali umas quatro ou cinco mil pessoas. Depois havia ali uma fábrica que também tinha milhares de trabalhadores. Era a Automática Portuguesa, de componentes de eletrónica. Depois havia a UTIC1, que era de montagem de autocarros da Carris – de dois pisos – e de camiões também.” A enumeração dos locais é muito extensa, mas o denominador comum era o de que “a maior parte dos operários era gente aqui desta zona de Marvila e Beato”, explica Duarte. “Tudo gente que veio para tentar viver melhor do que se vivia na terra.”

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GENTE COM “CARISMA DE TRABALHO”

1  União de Transportadores para Importação e Comércio, fundada em 1944, com uma fábrica em Cabo Ruivo.

Linha de empacotamento na Sociedade Nacional de Sabões, em meados do século XX. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

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Várias gerações de moradoras à porta das suas casas no Bairro Chinês, no final da década de 1960. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

Crianças numa das estreitas ruas do Bairro Chinês. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

T E M P O S Q U E J Á N Ã O V O LTA M : O D I A - A - D I A N O B A I R R O C H I N Ê S

de praça.” Os jogos do Oriental ao domingo, no que se refere ao ar festivo e alegre da zona, faziam ultrapassar todas as expectativas. “Assim que acabava o jogo, as tascas estavam cheias, não paravam. Só gente a encher copos de vinho.” António Silveira lembra-se bem desses dias de festa, que aconteciam em praticamente todos os fins de semana, para descomprimir da longa e pesada semana de trabalho. “Era jogar aos jogos tradicionais, à bola na CP [campo do Clube Ferroviário de Portugal], à malha, às cartas, e depois havia aqui umas barraquinhas, que vendiam um vinho morangueiro e assavam umas sardinhas, e nós íamos para lá para nos entreter”, conta. O espírito de grupo e de convívio estava presente até quando era preciso trabalhar. “Ajudávamo-nos uns aos outros, a construir barracas e isso”, afirma António. “Uma noite fizemos aqui 180 barracas.” De acordo com Maria Fernanda Correia, existia uma sensação de segurança que se perdeu na atualidade. “Entrávamos ali nas barracas às duas ou três horas da manhã e não tínhamos medo de assalto

A gente do Bairro Chinês “era uma família autêntica”, onde parecia haver tempo para tudo, sobre­tudo para o convívio.

Grupo de moradores em convívio no Bairro Chinês, em finais dos anos sessenta do século passado. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

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nenhum. Hoje já não é assim”, refere, acrescentando que “nós para sairmos à rua temos medo”. Na sua opinião, isto deve-se em grande parte às raízes muito fortes que os habitantes do bairro traziam de outros contextos sociais. “As pessoas vinham do Norte para aqui viver, para organizar a vida delas. Eram pessoas educadas, humildes.” Uma diferença relativamente ao que sucede hoje, que Constantino Rodrigues também salienta, já que, antes, “deixavam-se as portas abertas, não havia nada de roubos”. Em duas palavras, “havia respeito”. Isto sem nunca deixarem de existir “festas de rua, santos populares, fogueiras”, lembra Constantino. “Tudo saltava à fogueira.” Para Maria Fernanda, a sua gente, a gente do Bairro Chinês, “era uma família autêntica”, onde parecia haver tempo para tudo, sobretudo para o convívio. “Havia as festas do Santo António, do São João”, recorda. “A gente fazia fogueiras na rua, juntava-se pessoal, era muita malta jovem. Fazíamos bailaricos, marchas.” Ela própria chegou a entrar na famosa marcha de Marvila, que ganhou um primeiro prémio na década de 1960. “Os jovens eram mais chegados uns aos outros”, acrescenta, lamentando já não ver essa proximidade nos dias que correm. Esta relação quase fraternal entre os moradores do bairro foi também sentida por José Maria da Silva. “Toda a gente se conhecia e era bastante pacífica”, permitindo que os pais pudessem ir trabalhar descansados “e deixar os filhos por ali, vir à hora de almoço e dar-lhes o almoço e não viver preocupados com o que pudesse acontecer”. Algo quase impraticável na atualidade, mas que então era possível por haver sempre na rua um olhar familiar para o que as crianças estavam a fazer. José Maria arrisca uma explicação. “Não sei se isto será tolice, mas o que eu penso é que na altura havia menos condições para se estar em casa. Estava-se, às vezes, melhor fora do que em casa”, conta. “Ninguém recebia ninguém em casa. Juntavam-se na rua. Quando se juntam, começam a conversar e, às tantas, está ali um grupo.” Isilda Sousa tem 74 anos e já chegou a Marvila, à Quinta do Marquês de Abrantes, depois do 25 de Abril, em 1977. Atualmente, vive no Bairro dos Alfinetes e Salgadas – fazendo parte da sua associação de moradores – mas ainda recorda a honestidade e o companheirismo que se viviam no Bairro Chinês. “Antigamente, havia um senhor já com alguma idade que ia de porta em porta cobrar a

luz. Como eu gostava muito de conversar, às vezes metia conversa com ele e perguntava-lhe: ‘O senhor não tem medo de ir ao Bairro Chinês a estas horas, já de noite?’ E ele dizia ‘Não me preocupa nada. Ali toda a gente paga, mais do que noutros bairros. Se bater a uma porta e não estiver o dono, o vizinho paga sempre por ele. Ali é só gente boa e de confiança’.” Outra particularidade do bairro era a de que esta “gente boa” não precisava de sair muito da sua zona para encontrar diversão e algo para fazer. Apesar de o cinema mais próximo ser já perto do Poço do Bispo – era o Cinema Popular, uma das salas vulgarmente chamadas de “cinema piolho” –, outras distrações estavam localizadas bem dentro do bairro, em algumas das quais Abel Rodrigues era frequentador intermitente. Apaixonado por teatro, eram as atividades do Oriental Recreativo Clube que o atraíam, quando havia representações. “Era geralmente aí que nos reuníamos. Eu, a minha mulher e, às vezes, as minhas filhas. Onde fazíamos os espetáculos, os ensaios.” O Recreativo conseguia oferecer atividades para todos os gostos.

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“Com os meus vizinhos nunca tive problemas”, diz Aleixo Martinho, revelando uma relação descontraída que devia muito às origens comuns de quase todos. “Aqui somos todos do Norte, de Lamego, Viseu, Castro Daire…”, afirma. “Até dizíamos, na brincadeira, que tínhamos sido abandonados ali na estação de Braço de Prata e que ficámos logo todos a morar no Bairro Chinês.” Mas também José Cardoso da Silva e Eduardo Almeida, este último com 88 anos, concordam com a sensação de estabilidade e segurança que se vivia no bairro. Um bairro familiar. “Estávamos mais seguros com o bairro das barracas do que agora com os prédios”, dizem, acrescentando Eduardo que “antes ia a pé na linha de comboio à noite e ninguém nos fazia mal, mas agora não.” Esse bom ambiente era geral. Abel Rodrigues tem uma memória muito vívida daquele quotidiano. “As mulheres andavam cá fora a fazer renda e a falar umas com as outras”, diz. “E na rua, mesmo ao pé dos comboios, na passagem de nível, estavam os vendedores de peixe. Aí é que se juntava mesmo a rapaziada. Havia aí um género

Um dos antigos “cinemas piolho” de Lisboa, o Cinema Popular, na Rua Direita de Marvila. [Arquivo Municipal de Lisboa –Vasco Gouveia de Figueiredo, 1972, PT/ /AMLSB/VGF/S02045]

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O carrossel, localizado no largo com o mesmo nome, no Bairro Chinês. No jornal O Século, de 10 de março de 1970. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

Um técnico de serviço social da Prodac conversa com moradores no Bairro Chinês, no final dos anos sessenta do século XX. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

O carrossel foi tão icónico que deu nome a um espaço descampado no topo da Quinta do Marquês de Abrantes.

As festas religiosas marcaram a vida de muitos moradores do bairro, sobretudo porque muitas delas eram transplantadas das suas terras de origem no Norte e interior do país. Mesmo as crianças sentiam-se parte desta comunidade, que via nas celebrações mais uma forma de manter fortes as suas raízes. Maria Fernanda Correia era uma dessas crianças. “Havia antigamente uns velhotes que faziam uma procissão para a Senhora da Atalaia, onde o Avante faz a festa, do lado de lá”, diz. “Havia um senhor que tocava um harmónio, juntava aquelas senhoras de mais idade, e aqui os miúdos iam todos acompanhar a marcha até à doca do Poço do Bispo. Lá ia o senhor, coitado, já coxo e velhote, as velhotas todas atrás dele, com o farnelzito, e nós íamos todos também atrás, a bater palmas e a cantar. Mas chegávamos ao Poço do Bispo, e ficávamos. Não íamos, porque não tínhamos dinheiro para o barco nem os nossos pais nos deixavam. A partir daí eles iam para o lado de lá.”

A coqueluche do bairro, no entanto, deverá ter sido o carrossel. Pelo menos, para as crianças. Este divertimento foi tão icónico que deu nome a um espaço descampado no topo da Quinta do Marquês de Abrantes. Segundo José Maria da Silva, o Largo do Carrossel “foi exatamente um largo onde instalavam os carrosséis no verão e, de início, também circos. Tinha lá um espaço grande onde jogávamos à bola, e deixávamos de jogar quando instalavam lá os circos e os carrosséis. Às vezes até se juntavam lá os dois”. Não durava todo o ano, mas quando chegava cativava todos os miúdos. “Aquilo era a seguir ao verão, e era até próximo do Natal. E depois lá se deslocavam para os locais onde tinham mais visibilidade”, diz José Maria. “A gente ia vendo à borla, fazíamos uns furos por baixo da terra, para passar, e entrávamos. Quase todos os dias íamos ver. Chegou aos anos 1980. À vontade.”

Uma das atrações do bairro, o Circo Tony Morgon, entretém as crianças no final da década de 1960. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

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O Bairro Chinês era um bairro feliz, segundo os antigos moradores. Em geral, todos tinham boas relações. E encontravam na familiaridade vivida nas casas, nas coletividades e nos largos do bairro a fonte do seu bem-estar. Mas, não obstante as alegrias, havia um pormenor incontornável na vida deste bairro. Continuava a ser um bairro de barracas, com todas as limitações e problemas que a natureza dessas construções traz. Por esta razão, o dia em que chegou uma associação – a Prodac – com o intuito de realojar a população em casas com fundações fortes, instalações sanitárias, canalização e luz elétrica, a reação foi natural. Um misto de desconfiança e esperança expectante. José Augusto Silva teve de sair de Lisboa para combater nas ex-colónias portuguesas. Mas quando a associação chegou, ainda estava no bairro. “Nos anos 1970 apareceram por ali uns senhores que disseram que havia possibilidade de as pessoas saírem das barracas para uma cooperativa, mas tinham de se associar para ter acesso à casa”, diz, acrescentando que se teria de passar a pagar também a quota da associação. Este primeiro contacto não foi feito sem uma grande suspeita. “As dúvidas sobre a cooperativa eram muitas, até porque vivíamos numa época política em que havia pouca informação sobre esta possibilidade, e a dúvida que havia era se eles queriam ficar com o dinheiro”, afirma José Augusto. O alentejano Duarte Cardoso lembra-se bem de quando os técnicos da Prodac começaram a bater às portas no Bairro Chinês e na Quinta das Claras, onde estava a sua casa. “Apareceram umas meninas aí a fazer um levantamento, a fazer umas entrevistas às pessoas, a dizer que ia aparecer uma organização”, recorda. Apesar de estar a pagar cinquenta escudos a António Laje, o seu rendeiro, resolveu ouvir o que as pessoas desta associação tinham para dizer. Acabou por concordar que uma casa com divisões completas ofereceria sempre melhores condições do que uma barraca. Para além disso, segundo Duarte, a autoconstrução ajudou a criar uma maior ligação às futuras casas, tendo sido “uma coisa tão boa que passámos com à-vontade das barracas para o bairro novo, da Prodac”. Duarte não consegue conter a alegria da transição. “Foi uma maravilha! Deixarmos a barraca para irmos para uma casinha. Na província toda a gente tem uma casa para viver. Eu vivia na casa dos meus avós, uma casa grande, uma casa boa. Estávamos habituados a um certo espaço, a um certo ambiente. Uma casa. Não é uma barraca. Embora a gente lá dentro tivesse umas coisas mais ou menos, nunca passava de uma barraca. Cá fora eram tábuas velhas.”

Ao longo de 1970, desenvolveram-se várias sessões de esclarecimento promovidas pela Prodac, “ao ritmo de três por noite”2, de forma a sensibilizar a população para este projeto. Laurindo Lopes, de 77 anos, também veio do Norte para o Bairro Chinês, tendo tido um papel ativo na passagem para o novo bairro, lembrando-se de quem organizava as primeiras reuniões de esclarecimento: o senhor Afonso, funcionário da associação. “Era ele que organizava as reuniões e assembleias gerais. Eu falava muitas vezes com ele, quando ia ali ao prédio cor-de-rosa. Como se costuma dizer: já fazia parte da família”, assegura. Para Laurindo, as reuniões começaram com uma convocatória para um dos centros construídos pela Prodac. “Convocaram as pessoas para ir a uma assembleia no Centro n.º 2. Eu fui, e foi lá que foi comunicado que era necessário formarem um grupo de 25 pessoas,

2  SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – “Actas das reuniões do Conselho Geral e Assembleia Geral ( Prodac )”. SCML.PRODAC/ /AO/02/LV001. Ata n.º 16. 7 de outubro de 1970. Arquivo Histórico SCML.

Cartão de um morador e associado da Prodac. [Arquivo pessoal de Laurindo Lopes]

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ONTEM · COMUNIDADE

“ E S TAVA DA N A D O PA R A M E M E T E R N I S T O ” : A C H E G A DA DA P R O DA C

Assinaturas de associados da Prodac, comprometendo-se a formar um dos vários grupos de autoconstrução. [Arquivo pessoal de Laurindo Lopes]

Foram os próprios moradores a construir as suas casas. “A Prodac deu-nos as paredes e os telhados. O resto, tudo o que foi feito dentro, fomos nós.” 108

inicial e acordados os termos e valores das quotas com a Prodac, dedicaram-se apaixonadamente à nova casa. Sobretudo após os vários episódios de ratos e até uma cobra a rondar a sua barraca. “Depois de viver ali naquele jardim zoológico, estava danado para me meter nisto”, confessa Abel. “Passei aqui noites inteiras a fazer o chão. Dormia cá. A minha mulher vinha para cá fazer o comer. Comia, tinha aí um candeeiro. Trazia o cobertor e enrolava-me aí. Trazia os tacos, a cola”. Entretanto, ia adiantando os acabamentos o mais depressa possível, muitas vezes pela madrugada dentro. Já Inês Rodrigues admite que nem conseguiram esperar. “A gente, assim que teve o chão pronto, veio logo para cá habitar”, diz Inês. “Todos os vizinhos já tinham vindo para cá, éramos só nós que lá estávamos. Disse logo ao meu marido: ‘Não, não fico aqui sozinha.’ E então viemos para cá, com isto ainda por acabar, em 9 de outubro de 1972. Depois é que fomos acabando.” A mesma expectativa foi sentida por Aleixo Martinho, que saía do emprego diretamente para trabalhar na nova casa atribuída, na esperança de para lá se mudar mais cedo. “Quando nos deram as casas só tinham o telhado, as portas de madeira da entrada, as janelas de madeira, as placas. Eu trabalhava na Automática Portuguesa e, todos os dias, à noite, quando saía, ia para lá para acabar a casa”, salienta. “Foi pouco tempo, nem chegou a um mês, porque todos os dias íamos para lá trabalhar”, afirma Aleixo, acrescentando que “a malta que passou para aqui fez o melhor que pôde nas casas”. Henrique Neves, de 67 anos, deixou a sua terra natal de Tabuaço, em Viseu, para vir para o Bairro Chinês. Rapidamente se afeiçoou ao local. Por isso, também ele hesitou quando surgiu a oportunidade de passar para o novo bairro, sobretudo pela questão financeira. “Pagava-se trezentos escudos mensais à Prodac e ainda tínhamos de pagar ao senhorio. Na altura era muito, eu ganhava cinquenta escudos por mês na tropa”. Foi com esforço que conseguiu reunir dinheiro para se inscrever, mas sem sucesso, já que a Prodac acabou por suspender a construção por falta de verbas. O destino de Henrique ficou então sujeito à incerteza da fortuna, num sorteio das casas que restavam. “A gente foi ao sorteio e meteram os papéis dentro de um saco”, conta. “A minha cunhada mete a mão e tira logo a casa modelo. Quando ela tirou a casa modelo, os outros senhores que também estavam no sorteio disseram: ‘Essa era a casa que nós queríamos, e assim já não estamos interessados naquela lá em baixo.’ Eu disse: ‘Então se não querem, a outra fica para mim.’ Entregaram-na logo.” No final, apesar dos percalços, a sorte esteve do seu lado. Durante este processo de transição, muitas das barracas foram demolidas. Isto apesar do passo que se deu atrás com a suspensão da Prodac, motivando o aparecimento de novas barracas para outras pessoas que chegavam, sem resposta para os seus problemas de alojamento. Segundo José Nabais, hoje presidente do Clube Oriental de Lisboa, o Bairro Chinês “ficou novamente cheio”. Só com a construção da Expo’98 e as novas políticas camarárias para a habitação se demoliu em definitivo este bairro de barracas, bem como os da área envolvente. O que é inegável é a saudade que ficara aos seus antigos moradores. É um deles, Henrique Neves, que hoje mantém uma pequena horta nos arredores do bairro da Prodac para se manter ocupado, que o diz. “O Bairro Chinês tem muito que se lhe diga. Há muita gente que, se cá viesse hoje, morria só de ver que o Bairro Chinês já não existe.” Se tudo correr bem, as boas memórias daquele quotidiano falarão mais alto.

Vista geral do bairro da Prodac, em inícios da década de 1970, com o equipamento hoje designado de Centro de Promoção Social da Prodac em destaque. [Arquivo pessoal de Mário Pinto Coelho]

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para que escolhessem com quem queriam coabitar, os conhecidos e os amigos. Para que as pessoas não fossem separadas umas das outras”, explica Laurindo. “Claro que, da rua onde eu morava, do meu bairro, as pessoas que eu entendi meti-as todas no meu grupo.” Independentemente da escolha, seriam os próprios moradores a autoconstruir as suas casas. “A Prodac deu-nos as paredes e os telhados. O resto, tudo o que foi feito dentro, fomos nós.” Abel e Inês Rodrigues recordam, emocionados, o tempo da transição da sua pequena barraca para a casa atribuída na primeira fase de construção do bairro da Prodac. Depois de tratada a burocracia

Baú de afetos

Em diferentes tempos e com distintas funções, vários funcionários, vizinhos e colaboradores do Centro de Animação Comunitária da Prodac, mais tarde rebatizado Centro de Promoção Social da Prodac, guardaram histórias, experiências e recordações daquele território e, principalmente, daquela comunidade. Memórias de um passado que relatam invariavelmente com ternura e emoção. Um baú de afetos, entreaberto nas páginas que se seguem. 109

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