A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E OS DESAFIOS DA DÍADE AGRESSOR E VITIMA

June 9, 2017 | Autor: Marlene Tamanini | Categoria: Violence Against Women, Gender And Violence
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A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E OS DESAFIOS DA DÍADE AGRESSOR E VITIMA

Marlene Tamanini

Publicado no Livro Violência contra Deisy Joppert e Zita Rodrigues.

a mulher: Desafios e Avanços. Oorganizado por Sandra Lia Barwinski,

OAB/COMISSÃO DE ESTUDOS

SOBRE

VIOLENCIA DE

GÊNERO

CEVIGE/OABA/PR, 2015, P.254-284.

Escrevo este breve texto com o intuito de somar elementos a uma reflexão muito necessária no que diz respeito ao lugar dos homens no conjunto das diferentes violências e nos importantes desafios presentes na realidade de intervenção da violência contra as mulheres. Assim de maneira indireta, espero contribuir para pensar novas estratégias para o enfrentamento da violência contra a mulher e produzir alguma reflexão sensível aos direitos humanos das mulheres, a medida da promoção da igualdade de gênero. Escrever sobre o que se pensa ou sobre como se pensa em certos campos de atuação e da produção de conhecimentos tem consequências sociais, éticas, políticas, econômicas e jurídicas, dentre outras. Igualmente, é uma forma de tornar presente o mundo da vida das pessoas, e o modo como, a partir dele, se constituem ações cujas consequências, por vezes, são desastrosas frente aos processos da necessária intervenção. Quando fui convidada para participar com esta aula no curso promovido pela OAB, senti-me profundamente incomodada com o tema que me foi proposto. O título era: ”Estudos sobre o agressor e sua vítima”. Encontrava-se inserido no módulo I, chamado de: “A construção sociocultural de homens e de mulheres nas relações de gênero”. Frente ao convite, pensei durante algumas horas, antes de dizer sim, e, em parte, esta minha dúvida se produzia pelo desconforto da proposta. De outro lado, porque não encontrava uma maneira de abordar um título destes, a não ser que o fizesse de forma genérica ou na forma de constatação empírica, e neste recorte de tema, esbarrava-se na pobre produção. Preparei o conteúdo retomando textos fundadores e de perspectiva binária, com o intuito de, ao final, mostrar outras possibilidades. Pessoalmente, sentia-me desafiada a romper com esta dicotomia, presente no enunciado do convite, e creio não tê-lo conseguido fazer durante minha

exposição, no curso. Talvez também não o consiga agora, no ato da escrita deste texto, mas estou ciente da necessidade de fazê-lo. Agradeço, portanto, a possibilidade de repensá-lo no processo desta redação. É muito comum nos estudos de gênero, colocar as questões com as quais o campo se ocupa de forma binária e sem suas interfaces, ou ocupar-se unicamente com um polo da relação, normalmente, com o polo das mulheres. Isto ocorre porque, quando as questões envolvem relações de poder, elas nos aparecem como binárias e de fato sua estruturação é muito desigual, pendendo sempre para um lado negativo e para outro positivo. Falo de construções tais como: dominador e dominado, agressor e vítima, normal e patológico, ordem e desordem, parte e complemento, incluído e excluído, reconhecido e esquecido, engajado e indiferente, entre tantas outras. A mais forte de todas é a exclusão entre heteronormatividade e homosssexualidade, que, para as violências de gênero, gera, não só a violência direta sobre as pessoas, mas fortes sistemas cognitivos de percepção, que são estabelecidos na separação entre o normal e o patológico. É assim que nos aparecem essas realidades empíricas quando as vemos no dia a dia, deste modo, também estão posicionadas na cultura de nossa sociedade e em nossa cabeça. Entretanto, quando se trata de processos de intervenção em violência doméstica, violência contra mulheres, não podemos cair neste reducionismo que se torna impunemente inoperante na tarefa de desencadear mudanças das práticas sociais, jurídicas e culturais, sobretudo, se no modo de nosso agir, damos maior atenção a um polo da ação e esquecemos que as relações entre as pessoas não estão cirurgicamente separadas dos demais conteúdos, que com estas relações interatuam e seguirão atuando. Estereótipos, estigmas, exclusões e percepções sobre os corpos, a sexualidade, o modo de educar, de tomar decisões, seguem se reconfigurando nas relações familiares, de trabalho, do cuidado com os filhos, com a escola, tanto quanto, na experiência de vida de cada um, na presença ou na ausência de instrumentos para administrar conflitos, na capacidade ou não de refazer as escolhas afetivas e sexuais, quanto na possibilidade ou não de obter autonomia. Seguem igualmente no entorno das relações, com a escola, igreja, clubes; portanto, elas seguem tanto se a violência está sendo desencadeada por causa da administração do dinheiro, da vida cotidiana, da comida, da estima de cada um, ou de fatores externos à relação do casal, quanto o são a interferência que vem dos amigos, dos vividos no trabalho, no bar, na rua, na relação com a comunidade, na capacidade de enxergar ou não os horizontes. Todos estes elementos podem atuar e constituir uma percepção consentida que os homens têm de si que, neste caso, é a do compartilhamento de certos modelos de masculinidades violentas. Portanto, sem discutir estas relações e como elas instituem a forma de ser homem e de ser homem em situação de violência contra

mulheres, dificilmente se consegue mudanças mais longas, no sentido de um novo tato e de uma nova sensibilidade cultural. Dizer isto não significa dizer que a violência contra as mulheres deva ser esquecida, muito pelo contrário, significa atar mais alguns sentidos e elos de uma relação múltipla nos processos de sua formação e das ações e das estratégias necessárias à sua superação. Estes elos precisam ser entendidos de maneira clara, objetivada e organizada em dinâmicas de continuidade. Envolvem formação constante, avaliações sistemáticas com planejamento de estratégias de ações contextualizadas. Considerar todo o processo imbricado com a violência, bem como todas as redes de relacionamento com os serviços, em todas as entradas no sistema dos processos e do seu acompanhamento. A Lei Maria da Penha (2006) prevê, em seus artigos 35 e 45, a criação de atendimento para o “agressor”, de modo que ele seja reeducado. No artigo 45 prevê que o juiz possa obrigar o homem que agrediu a comparecer nestes espaços de reeducação. A forma como a reeducação deve ocorrer, contudo, necessita ainda de muita reflexão, e não creio que ela seja possível sem a discussão coletiva dos conteúdos gendrificados nas relações violentas, tampouco que alguma mudança possa ocorrer sem que se crie as condições para a voz e a escuta do masculino e para a desconstrução de sua percepção sobre sua masculinidade, bem como dos operadores do sistema, o que seguramente não se ancora em um só tipo de ordem simbólica nem em uma só forma de intervenção. O modo como os homens em situação de violência contra suas companheiras se veem depende de fatores geracionais, contextuais, de classe, de raça e de vivências várias. Estes são desafios para a escuta e para a ação, seus conteúdos precisam ser visibilizados em cada uma das situações, a partir de cada narrativa; o que deve ocorrer tanto nos sistemas de atendimento, nas delegacias, nos escritos dos inquéritos ou no conjunto dos processos penais. Cada relação é única; e entendê-la demanda um trabalho enorme, mas que necessita ser encarado tanto para a implementação de estruturas, quanto nos cursos de “capacitação” /treinamento ao atendimento, quando nas relações de agressão. Descolonizar a própria escuta e a escrita dos depoimentos, dos boletins, das narrativas, bem como o olhar do direito para poder de fato ouvir e agir. Embora a violência seja considerada um problema social e de saúde pública em todo o mundo, ela tem que ser olhada para dentro do processo que ela engendra em cada situação. Isto não dispensa a construção de estatísticas com perfis coletivos, realizados pelos serviços, aspectos que não são somente úteis para informar e acompanhar as dinâmicas dos temas e das relações, mas também para formar profissionais e para a implementação de políticas públicas. Essas bases podem gerar importantes bancos para quadros epidemiológicos e para comparativos, que são decisivos ao angariamento de recursos econômicos e/ou humanos necessários a este trabalho. Ambos os

aspectos, tanto do que envolve a escuta quanto os perfis mais amplos, demandam uma gestão mais próxima da situação do vivido e implicam considerar a violência doméstica, prioritariamente, como uma forma de violência de gênero, porque ela diz respeito a relações de poder e é uma relação marcada por desigualdades e assimetrias. (GOMES, 2008; WHO, 2005).

MARCADORES COGNITIVOS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES

Tudo o que se disse no ponto anterior está profundamente conectado ao modo como os homens em situação de violência reagem, como agridem, ou como esses homens, se tornam homens, como se expressam, como se pensam e como ensinam seus filhos e acham que ensinam suas esposas ou a outros homens, a respeito do que é ser pai, esposo, honrado, honesto, trabalhador, competente e macho. Estes aspectos da cultura de uma masculinidade violenta não dizem respeito somente a homens em situação de violência. Eles são parte de todo um entorno e do uso das coisas, da relação com o patrimônio, com a doença, com a história de vida e de como as mulheres são vistas em muitos contextos. Estes constituem conteúdos que continuam sendo reiterados nas subjetividades de meninos e meninas por meio de muitas linguagens, de castigos, de regras de conduta, de orientações e institucionalizações construídas no presente, e fazem parte de longos aprendizados históricos, realizados em muitos lugares, dentre eles na família de origem, como é frequente que apareçam quando dizem: “na minha infância era assim, ou minha mãe e meu pai me educaram assim, ou na escola a gente fazia assim”. Isso significa dizer que a desidentificação cultural da agressão exige recuperar a história passada dos envolvidos e revisitá-la. Voltar o olhar sobre o vivido no presente, o que precisa ser realizado de maneira reflexiva para desintegrar conteúdos violentos, homofóbicos, patriarcais, androcentricos e negadores de posições mais solidárias, integradoras e dialógicas. Da mesma maneira, a desidentificação vale para a classificação de agressor e sua vítima. Esta forma cognitiva de ver homens e mulheres está presente nas ideologias culturais e nas colocações informativas sobre seus papeis, condutas, desequilíbrios que lhes são atribuídos e que explicitamente desvalorizam de maneiras diferentes a uns e a outros, com perdas para ambos, embora as mulheres tenham sido as grandes e permanentes perdedoras, porque vivem e experimentam de maneira contundente estes processos de exclusão que as posicionam, com muito mais frequência do que a seus companheiros, em lugares cognitivos e culturais empobrecedores. É evidente que estes lugares se fazem na própria estrutura das

relações e geram baixa estima e baixo compartilhamento das possibilidades de emancipação. Como atitude prática é preciso reconhecer a estruturação e a institucionalização destes poderes de exclusão, com suas dinâmicas diferentes para homens e para mulheres e com seus intensos sistemas de desigualdade social, sobretudo para as mulheres, que por meio deles, estão envoltas em frequentes processos de estigmatizações e de empobrecimentos de mobilidade, ou de empobrecimentos econômicos, políticos, sociais e culturais. Para tal, não se pode perder de vista a necessária tarefa de desidentificar as expressões simbólicas de violência e as que estão ativas nas práticas que são utilizadas como prerrogativas de violência e de avaliações inferiores. As classificações socioculturais, que excluem os conteúdos gendrificados das relações violentas que atingem homens e mulheres, e o modo como se trata o assunto da violência, na qualidade de agressor e vitima, encapsulam a questão dentro de uma maneira fixa e dentro de pressupostos sexistas e androcentricos, que impossibilitam soluções para um problema que nos atinge a todos/as. Homens violentos não são só homens violentos; sua violência é parte de uma relação com a sociedade, eles são parte da montagem das instituições e do modo androcêntrico de sentirem-se participantes de si e dos outros, são parte de um olhar de si, que pensa em si, como o único portador de certos direitos. Frente a eles, mulheres e filhos devem se calar. Esta é uma estrutura gendrificada por representações, linguagens e práticas violentas. Para estas questões, um operador analítico de gênero, que seja mais aberto, tem se mostrado rico como campo de análise, mas também poderia ser uma saída contra determinismos vários para as intervenções. Ele poderia operar contra estruturas e condutas da heterossexualidade e do centramento do sujeito mulher tomado como vítima e do sujeito homem como agressor, contra as oposições binárias (sujeito/objeto; público/privado; cultura/natureza; homem/mulher), tão caras ao pensamento ocidental moderno e que estão igualmente atreladas à institucionalização de significados transcendentais e da verdade última das coisas, o que no limite se instaura pela violência, injúria e opressão. Um novo lugar cognitivo para desmanchar os pressupostos da violência contra mulheres exige a construção de condições para questionar a hegemonia de um único modelo de conduta, a fim de que as subjetividades surjam e isto é a produção de novas políticas e novos espaços de narrativas e de estratégias de atendimento, mais do que tornozeleiras e camburões. A violência de gênero está na estrutura estatal, cultural, econômica e sociohistórica ampla, e está em níveis mais próximos, cotidianos, policialescos do dia a dia, quase que de igual maneira à que é institucionalizada, globalizada e reiterada com reproduções de sistemas de linguagem, artes, discursos, imagens e de estereótipos e ideologias presentes nas

observações cotidianas. Esta é uma dificuldade ao seu entendimento e à sua desidentitificação, porque ela se torna invisível e ou naturalizada. O mais inconsciente e o mais arraigado conteúdo da violência está presente nas relações cotidianas, no tratamento dado pelas instituições às mulheres e nos aspectos que perduram nas relações diárias com companheiros, no trabalho, em casa, frente aos filhos. Uma de suas bases se encontra na maneira como a sociedade trabalha simbolicamente e culturalmente a associação das relações entre natureza e cultura e como, frequentemente, este trabalho simbólico e de práticas associa mulher à natureza, à coisa, objeto; portanto, parte do que é desejado pelo outro, parte das coisas que ele pode ter; algo a ser possuído ou englobado, ou sobre quem se decide. A apropriação, posse, regramento, faz parte de decisões e das percepções masculinas que são subjetivadas pelas mulheres, constituindo-se em processos de anulação do eu, da reflexividade e da agência de si para o feminino. Esta forma de percepção polariza homens e mulheres, determinando seus lugares na cultura, de maneira extremamente desigual. Os homens já partem de um lugar pré estabelecido na cultura e na percepção de poder. São colocados em posição de dominação, e este poder se expressa por meio das decisões sobre o casamento, no casamento, na divisão sexual do trabalho, no cuidado dos filhos, no modo como se vampiriza a maternidade, no controle da fecundidade das mulheres, conforme demonstram vários estudos. Ao mesmo tempo, nesta contraposição são produzidas práticas e representações sobre o modo de ser masculino, que o colocam como se ele fosse parceiro de si mesmo, e esta lógica do indivíduo livre para fazer como quer, do jeito que lhe convém, aparece em muitos âmbitos, tanto para troca e venda de bens, como para beber, jogar, brincar de conquistar, ou no fazer-se defensor e/ou agressor das mulheres, ou nos cargos que exercem, quando pertencem a grupos escolarizados. Isto se estrutura política e culturalmente, nas decisões sobre os bens, sobre o dinheiro ou sobre os filhos, bem como, no mercado de trabalho, na saúde, no compartilhamento das responsabilidades diárias e das muitas esferas. Este último aspecto esta estruturado nas clássicas relações desiguais, no que tange à responsabilidade sobre o trabalho social (trabalho produtivo/reprodutivo), ao consumo e à produção de cuidados dentro e fora do espaço doméstico e da divisão e administração da renda. Muitos desses aspectos são analisados para diferentes contextos e diferentes perspectivas, por várias autoras, como Hirata, (2010); Feuvre, (2010); Scott, (1994); Lobo,(1992); Tronto, (1997). Estes estudos, resguardadas suas diferenças e seus contextos específicos, demonstram a força do masculino como campo do domínio sobre a propriedade e sobre os bens, ou sobre a divisão sexual do trabalho, ou sobre os corpos e a sexualidade,

sobre os nichos de trabalho com divisão sexual para o feminino e masculino, sobre as novas estruturas feminilizadas de trabalho. Demonstram como, nesta estruturação cultural, os homens assumem o poder do mando, da decisão, da propriedade e às vezes, só por vezes, são eles os provedores. Na maior parte das sociedades estudadas, em contextos etnográficos, mulheres e crianças trabalham para os homens e para o coletivo (SACKS, 1979; TABET, 2005; MATHIEU, 2005) e, na sociedade moderna, grande parte da renda é produzida por mulheres, tanto em trabalhos formais como informais. Muitos estudos empíricos têm mostrado como homens, em vários contextos, ao trabalharem para o coletivo, nunca se consideram trabalhando para as mulheres tomadas como indivíduos. Mas elas trabalham para eles. Atualmente, em muitas famílias, eles também são dependentes do trabalho feminino, sobretudo porque a estrutura de trabalho e renda que se estabelece no mercado de hoje, nem sempre facilita sua inserção no trabalho, e é frequente que homens não consigam trabalho e renda, ou que se encontrem em posições de maior fragilidade econômica, a depender do ramo de atividade em questão. Nos processos de globalização do trabalho hoje, existe importante inversão da posição de mulheres e homens, recaindo em boa medida a inserção das mulheres em trabalhos do setor de serviços mais precários, com mais demandas físicas e afetivas/emocionais, sobretudo. (HIRATA, 2010; SASSEN, 2010). As estruturações políticas e econômicas se modificam, a posição dos homens e das mulheres nos arranjos familiares também se modifica, mas as relações seguem diariamente polarizadas, com pobres processos de democratização, ou se reinscrevem reproduzindo as estruturas de violência e de culpa. Na violência doméstica e de gênero encontram-se as estruturações mais recrudescidas. Se a mulher não pode ter poder, os homens em situação de violência, por sua vez, estão posicionados para uma construção de si que se distancia do mundo das mulheres e que os coloca em processos de decisão sobre o que elas são e/ou devem ser. Mesmo que as mulheres, sobretudo nas últimas décadas tenham tomado seu destino e sua vida nas mãos, para muitos espaços e para muitas relações, esta dinâmica, ao contrário de trazer mudanças para a ordem da violência, faz refundá-la. Assim, o mesmo sistema que ama também trucida, não ouve, nega o outro, revitimiza e desacredita, manda calar. Faz parecer que o erro é sempre feminino. Estes aspectos podem ser identificados, quando em uma simples fala sobre um problema familiar que precisa de alguma solução, faz-se parecer que o problema é da companheira, conforme eu mesma presenciei recentemente. Neste caso, esta estratégia era utilizada para que o verdadeiro motivo da dificuldade não fosse tocado. Era uma estratégia de

proteção do homem, frente a uma posição autoritária e de mando na qual ele se encontra e faz esforço para manter. Sabemos como isto funciona em violência doméstica, quando a mulher é chamada de puta, sem vergonha, quando é socada, esbofeteada, ou ignorada e quando é considerada desequilibrada ou feita ela um problema. Normalmente, nestas formas de expressão da violência, o masculino não consegue, por si só, perceber sua parte de responsabilidade e sua própria deficiência na relação, tem uma visão equivocada de si. Em violência doméstica, esta atitude é sempre utilizada para fazer a mulher pensar que ela não vale nada e para que não se toque na posição masculina, bem posta na estrutura de gênero. Agridem, porque ela fala, se ela não quer transar, se não fez comida, se está atrasada e por tantas outras bobas razões. Fazem parecer que ela é péssima mãe - no fim se acham no direito de matá-la. Isto de fazer parecer que a culpa é da mulher é um tipo de violência doméstica, sabemos. Este é um modelo de masculinidade de homens que não conseguem ser tocados por outras realidades, que só aceitam as que eles consideram de honra, de estatutos, de reconhecimento. É nesta ilusão de achar que são indispensáveis que se funda tudo isto. Se ele não perceber, só vai piorar, até que a vida lhe passe uma rasteira. É nestes conteúdos que precisam entrar as reflexões e os serviços de apoio aos relacionados com a situação de violência doméstica (homens e mulheres). Esta disposição, que institui a mulher como coisa, também determina práticas sociais, políticas, biomédicas, jurídicas, familiares, com profundas dimensões de desigualdade genereficada. Estes conteúdos necessitam ser discutidos, problematizados, tornados conscientes nos serviços. Estes conteúdos, mesmo se sendo antigos, ainda seguem sem serem tocados e são parte das representações e das percepções que estruturam poderes desiguais, formando um dos principais pilares da violência de gênero.

O DESAFIO DE NOVOS LUGARES COGNITIVOS

Seguramente, pensar a violência de gênero é considerar um campo carregado de muitas tensões e de complexos desafios que são tanto - de ordem conceitual - quanto de ordem política, familiar, dos atendimentos nos serviços de proteção e das condições para agir com a intervenção, quanto o são de ordem pessoal. Portanto, um primeiro aspecto a se considerar é que o masculino desta violência é com frequência de um tipo que foi constituído pensando-se como a apropriação do outro. Assim, não é incomum que esses homens se vejam, se sintam e se pensem em posição de legitimidade para possuir, e no contrato de matrimônio naturalmente se apropriem

do tempo, do corpo e queiram a mente das mulheres. Lavar, cuidar, preparar a comida, tudo ocorre nestes contextos violentos como se a esposa pertencesse ao mesmo lastro das propriedades do chefe ou do marido e de seus mandos. Estudos também têm mostrado como a apropriação, por vezes, é até mesmo das substâncias corporais, como a venda de cabelos, de leite, de úteros, de óvulos, dos filhos, ainda que para tal haja a participação delas. Hoje, esta questão da venda dos produtos corporais está globalizada, não é tribal, portanto, e, de uma maneira particular, se encontra também nos desejos de dar filhos ao marido, nos modos de maternar que estudo, e que são frequentemente portadores de muitas violências (como a morte materna, a fístula obstétrica, as violências no parto). No campo da reprodução assistida, por exemplo, óvulos, cordão umbilical, embriões e úteros são fontes importantes de reapropriação dos corpos. (TAMANINI, 2010; SPAR, 2007). Neste campo fala-se de práticas biopolíticas e bioeconômicas dos corpos que maternam. Waldby (2008) mostra como as mulheres são hoje doadoras de tecidos primários para a produção de células tronco destinadas às indústrias, sobretudo as que necessitam de grande volume de embriões humanos, de óvulos, de tecido fetal (materiais desprezados nos processos de fertilizaçao in vitro, por exemplo) e de sangue do cordão umbilical. Esses materiais que integram hoje uma importante rede de trabalho feminino são fornecidos gratuitamente nas democracias industriais “avançadas” e constituem excedentes cujas competências são geradoras de outros produtos e que são extraídos de corpos de mulheres pobres em operações francamente transnacionais para apoiar pesquisas bioeconômicas, embora o valor econômico envolvido nessas relações seja desconhecido, conforme analisa Waldby (2008). Deste modo, mulheres pobres estariam implementando uma importante rede de atuação de rentáveis negociações a partir do seu trabalho corporal caracterizado por atividades bioeconômicas que derivam dos mesmos processos de maternidade, ou do chamado ciclo reprodutivo das mulheres. Essas atividades, certamente, são hoje formas complexas e ainda desconhecidas de identificação e valorização de atividades econômicas femininas. Seus conteúdos, portanto, se constituem em desafios para tarefas fundamentais necessárias a ampliação do conceito de trabalho reprodutivo, ainda não reconhecido, e que teóricas feministas como Barrett, (1980), Delphy, (1984), Tronto, (1997) já analisaram desde os anos 60, embora para outros contextos. Além disso, essas mulheres permitem que a medicina reprodutiva encontre os óvulos e embriões de que necessita, inclusive o sêmen que, porém, não está inserido na mesma lógica de expropriação. Segundo, os estudos existentes a respeito de masculinidades violentas e de serviços de atendimento aos homens tem mostrado que é necessário responsabilizar os homens em

relações violentas pelos seus atos e ao mesmo tempo trabalhar sua percepção e sua narrativa sobre o seu lugar na violência; faz-se necessário que isto seja realizado a partir de sua experiência, embora, os modos de fazê-lo possam ser variados. Terceiro, os modos como se configuram as ações práticas e as percepções de mundo, em relação à violência doméstica, estão dentro de um campo de violência de gênero ainda muito mal compreendido. E este fato de ser uma violência de gênero é uma dessas realidades empíricas difíceis e duras de se enfrentar porque não permite muitos modelos e porque tudo se nos apresenta de modo binário e, sobretudo, porque proteger a vítima, com frequência, já tem desafios suficientes para que alguém se ocupe com desidentificar este sistema de estar concebido no binário como agressor e como vítima e de ser sempre reduzido a priori a esta condição. Qual é o local nestes nossos estados brasileiros em que se esteja de fato trabalhando com a relação entre homens e mulheres e com os sistemas de valores heteronormativos nas situações de violência? Não seria já tempo de se rediscutir as questões binárias que colocam as mulheres de um lado e os homens de outro lado, heterossexuais de um lado e homossexuais de outro, e tomar esta desconstrução como meta, reconhecendo a diversidade da experiência humana para assim, estabelecer novos parâmetros compatíveis com uma vida em sociedade baseada em critérios de solidariedade e justiça? Parâmetros que não passassem pela afirmação do machismo, do sexismo, do patriarcado, da ordem dos corpos construída dentro da divisão entre normais e patológicos, entre quem grita e quem cala. Estas estruturas que parecem distantes das famílias normais e que parecem dizer respeito aos outros, aos que não são normais, são as mesmas estruturas fundadoras da violência que se expressam contra as mulheres dentro das famílias consideradas normais, porque heteronormativas. Neste modelo homem x mulher parece caber um jeito só de se viver, embora dentro desta representação e desta prática possa haver lugares e modos diversos já estabelecidos. A violência de gênero se pauta na heteronormatividade como percepção do que é normal, como esforço para normalizar. Tal ocorre pela submissão de mulheres aos homens, pela normatização das condutas dos filhos ao desejo heterossexual, e até com a expressão constante de medo sobre o tema da homossexualidade, medo que este apareça como assunto em casa. Esta construção toma como ponto de partida uma base fixa e pouco rentável para explicar as relações sociais e a construção da própria dicotomia em questão. Para desconstruí-la não é suficiente dizer, “mas em tal sociedade, ou em tais costumes, ou em certas circunstâncias não foi assim”. Ou dizer: “Nem todos os homens são dominadores, ou nem todas as mulheres são agredidas, ou tem mulher que bate”. Estes argumentos são comuns e são utilizados em muitos espaços, inclusive nos acadêmicos,

quando de forma imatura fazemos defesas de nossas posições sem a capacidade crítica ampliada, ou frente às condições em que nos encontramos dentro de certas posturas que são mais ideológicas do que reflexivas. Elas podem assim se configurar, por causa do nosso envolvimento com grupos, instituições, pessoas, limites teóricos, ou situações emocionais densas, como são, frequentemente, as que vivemos e vivem os profissionais que diariamente convivem com relatos e ações violentas sobre mulheres, crianças, idosos, homossexuais, transgêneros, ou sobre qualquer pessoa que seja considerada desviante das práticas de normatização e das construções de normalidade realizadas em sociedade. Quarto, o foco deste texto sobre a díade “homens agressores e mulheres vitimas” é de um posicionamento que se produz a partir do convencimento de que tratar a complexa questão da violência de gênero tomando como ponto de partida também as narrativas de homens autores de violência é entrar em uma relação com a realidade empírica da violência e com as formas de aplicação da lei que é extremamente tensa. Esta tensão está presente, tanto do ponto de vista conceitual e epistemológico, como nas políticas e nas estratégias de intervenção do estado ou das famílias. Estamos, portanto, falando também de caminhos que são sempre conflitivos e que se desafiam uns aos outros, tanto em termos da ordem prática, nas representações vigentes, como nas relações com as estratégias para a eliminação da violência, quando envolvem sociedade e poder público. As instituições que devem tomar providências são marcadas por representações que são frequentemente contraditórias e, por vezes, se confundem a respeito dos conteúdos e das práticas que elas devem acionar para dar um basta às situações de violência doméstica em suas múltiplas faces, mas também se confundem na forma como o fazem e, sobretudo, no modo como agem para acessar a experiência de homens e mulheres envolvidos na violência. Estes caminhos também são conflitivos para a pesquisa e para a posição dos/as pesquisadores/as. Estar, portanto, em lugar interventivo ou epistemológico que reconhece a posição de enunciação dos homens nos processos de violência, a partir de suas narrativas e experiências, ou fazer este tipo de abordagem em pesquisa, também, nem sempre é considerado uma posição legítima, frente às demandas que exigem punição da violência. Entenda-se que estamos falando dos homens, porque esta posição se produz dentro de uma relação já estabelecida, a de que os homens devem ser tratados como agressores e as mulheres como suas vítimas. Não falamos isto para fundamentar processos de desresponsabilização; ao contrário, o fazemos porque existe a forte necessidade da implementação de um número expressivo de políticas e estratégias necessárias à construção das condições de manutenção dos aspectos previstos na legislação, na forma da lei Maria da Penha. Os aspectos previstos na legislação, sua interpretação adequada e sua

implementação, já representam muitos desafios e, mais, tem-se observado que muitos pontos da lei estão sendo lidos dentro de uma construção que contrapõe agressor e vítima, ou seja, em termos dicotômicos, que se produzem pelo apagamento da visiblização das vozes que fazem o conjunto dos elementos na relação violenta. Sendo assim, se fazem sem a interseção mais complexa para a eficácia da ação interventiva e sem considerá-la como uma relação que poderia desvendar os conteúdos geradores destes atos, desta consciência, ou destes padrões violentos. Existe, igualmente, uma tensão social com as representações sobre o masculino e o ser homem; essas representações reposicionam seguidamente modelos sexistas. As instituições acreditam nestes modelos e eles se perpetuam também na atuação prática dos profissionais, bem como nas sociabilidades exigidas, quando homens são pensados dentro de modelos de honra, honestidade e força e considerados competentes para prover a casa ou para bater nas mulheres e nas crianças. O fato de que as relações sociais reforcem um entendimento sobre como ser mulher e que ele seja compatível com uma esfera do privado e da intimidade, que é pensada em termos de como “a mulher deve ser honrada, fiel, abnegada, esposa e mãe, ou responsável por todo cuidado”, desconsidera muitos outros modos de ser mulher. Este entendimento desconsidera que estas representações são contrapostas às restritas representações sobre ser um homem honesto e trabalhador, com um discurso a respeito do prover e da competência, e faz com que, por vezes, atos violentos sejam tornados mecanismos pedagógicos considerados adequados, sobretudo se postos frente à tênue linha que pode separar uma representação a respeito do ser honesta ou ser falada. Isto ocorre, particularmente, se existir um entendimento de que atos violentos podem legitimar essas ditas representações a respeito do masculino e/ou sobre a relação entre homens e mulheres, se as representações podem continuar sendo normatizadas por meio de violências impetradas para que as mulheres se mantenham dependentes física e emocionalmente, mesmo quando não o são economicamente, ou quando parecem estar em condições de tomar posições como agência de si mesmas. A violência neste contexto é acionada como um meio de controle, cujo exercício dentro deste rol de representações cabe ao homem, como seu ator central, ou também cabe ao estado, que no intuito de aplicar a lei, acaba por vezes impetrando a violência. Não é incomum que os agentes do estado o façam, com homens e com mulheres, com população LGBT. Ao se assumir que o homem é agressor, sem escuta e sem acompanhamentos, reproduz-se institucionalmente uma situação de violência fundada na díade agressor e vítima. Este aspecto pode trazer novas violências tanto para o homem, como e particularmente, no tratamento dado à mulher. Frequentemente, esta reprodução se referenda nos modelos fundados pelas mesmas práticas que deveriam eliminá-

la. Atribuir responsabilidades sem considerar o conteúdo da relação, pode e frequentemente gera novos modos de alimentar a violência. Conforme Bortoli e Tamanini (2014), em texto que se encontra no prelo, jogar homens em camburões, ou colocar “cordas” em suas pernas não é e, não pode ser engraçado. Do mesmo modo que não o é matar, espancar, queimar, cortar, deformar mulheres ou acusálas e baixar sua autoestima. Ambos os sujeitos, mulheres e homens, dificilmente serão reconduzidos à sociedade em condições de dignidade humana nestas lógicas. Portanto, pensar o tema da violência a partir da inclusão da narrativa dos homens pode significar um poderoso recurso à produção da desnaturalização da violência estruturada na cultura, nas relações, nas instituições e serve para eliminar posições sexistas. Este é um dos grandes e profundos desafios ao esforço reflexivo. Homens, neste contexto, frequentemente são e aprendem a ser reconhecidos quando são fortes, seletivos e quando não falam de si, ou quando pensam que têm as rédeas da vida em família, ou das instituições, ou quando são considerados bons pais e bons maridos, mesmo se bebem, se mentem, ou inventam proteções de si, ou se revidam e se agridem. Mulheres morrem, ou se anulam, em nome de certas representações sobre como devem ser as mães, como devem ser honradas, caladas, dedicadas ao cuidado dos outros, sobre a pobreza do exercício da sexualidade. Morrem se não seguem convenientemente certas práticas em cuja obediência se insiste absurdamente, porque são valorizadas para submeter as mulheres aos grandes princípios do viver feminino, tanto em casa, na vida profissional ou na rua – é o jugo imposto pelos que pensam ser os grandes sujeitos no trabalho, na casa, nas relações cotidianas, na vida

das ideias. Mulheres morrem porque são consideradas

irresponsáveis, infiéis, descuidadas, porque abortam, porque maternam, porque falam demais e sem pensar, porque lhes cabe auto - sacrifício e esquecimento de si, ou simplesmente porque destoam das representações sobre como devem ser suas palavras, suas ações e suas relações. Construir debates e pesquisas a partir da narrativa dos homens no contexto de relações com a violência de gênero fez, por vezes, com que este foco sobre o masculino parecesse fora de lugar. Esta percepção se constrói porque na legislação e nas práticas sociais o masculino e o agressor são dados a priori. O lugar do qual se parte já está estabelecido; à revelia de toda postura hermenêutica necessária em cada caso de violência, mesmo entre os profissionais que atendem as mulheres, - chamadas de vítimas pela lei - e que de fato o são, porque vivem uma violência que é mais do que a do companheiro, que é a da estrutura, - e que atendem os homens, classificados como agressores; este a priori não é desinstalado. Sempre pareceria ser mais fácil, se o atendimento fosse só polarizado entre vítima e agressor e se os homens não fossem atendidos, se fossem simplesmente excluídos do atendimento e/ou

punidos de outras formas. Grande é o desafio com estas decisões e com estas questões de gênero, com a formação de competências ao atendimento e com as reais condições de se trabalhar com um sistema cultural que já se institui violento, porque não só produz masculinidades violentas, mas também as produz como um lugar pronto, o que, de partida, impede a emancipação plena para homens e mulheres pelo caminho da democratização das relações. Quinto, para responsabilizar os homens por seus atos se faz necessário um profundo, planejado e insistente trabalho cultural, a fim de se produzir outras experiências para que se permita a eclosão de novas subjetividades para estes homens e os demais, estejam eles ou não, em situação de relacionamentos violentos, no que tange às suas práticas de masculinidade. Esta é uma posição complexa, dadas as dificuldades de implementar novos caminhos de discussão, formação e socialização e dado as resistências. Estes caminhos não podem ser imediatistas e devem ter como fim a conquista de desidentificações destes homens e destas situações que os produzem em seu engendramento, que é subjetivo, emocional e social e, por meio do qual, eles têm reações e práticas violentas que são reiteradas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de fechamento do texto, acredito que alguns elementos adicionais podem ser apontados para se visualizar algumas ações de ordem mais imediata. O primeiro aspecto que poderia, de imediato, melhorar a relação “com a explicitação” da situação de violência poderia ser realizado no momento do relato do boletim de ocorrência. Os boletins de ocorrência são um registro realizado por um profissional, a partir da interpretação do que foi narrado pelos homens ou denunciado por suas companheiras. Acaba-se por ter nele um instrumento muito limitado à intervenção, conforme constatado por Bortoli (2013). A descrição é pobre; sobre os relatos se fazem interpretações reducionistas, de modo que, muitas vezes, essas interpretações só permitem sentidos de aproximação a respeito dos fatos denunciados. Este ato de narrar na forma escrita, é uma interpretação que passa pelo modo de entender e de escrever a respeito do conteúdo da narrativa apresentada pelas mulheres sobre o que os homens fizeram. Estes homens, neste tipo de fonte estão sendo produzidos pelo contar dos fatos, da parte da vítima, e pela costura interpretativa escrita, da parte dos técnicos dos serviços do atendimento, principalmente pelo profissional que escuta as mulheres, que as acolhe, que recomenda ações e as acompanha. Olhando a partir deste lugar, existe um silenciamento da voz do masculino. Ele se produz

como agressor, mas com a falta da narrativa escrita sobre o seu relato. Ele é produzido, por meio das tomadas de decisões que são, normalmente, realizadas pelos operadores do direito, psicólogos, assistentes sociais, polícia e por uma quantidade de atores que interagem com a situação de denúncia. Este fato acaba por construir um relato da violência que não faz os elos da relação em questão e, portanto, deixa de gerar conteúdos à compreensão da violência. Ou seja, o homem agressor é constituído como tal, pelos outros, pelo olhar de quem viveu a agressão e pelo profissional. Ele está ausente como voz de si, não é agente de si na narrativa, não vem a constituir-se por ele mesmo no ato de narrar-se. No momento do boletim de ocorrência, são produzidos os argumentos discursivos que o instituem como agressor, sem que ele seja escutado. Isto condiciona toda a forma como se irá proceder na sequência, dando pouca visibilidade às razões, aos argumentos, às experiências e aos caminhos de identificação dos conteúdos, da identificação de uma cultura justificadora da violência ou das práticas estruturais violentas que o narrador poderia ajudar a compreender por meio de sua própria narrativa. Em violência doméstica, a estratégia de escutar e o relato do boletim de ocorrência têm sido considerados necessários, e de fato o são, para que se possa aplicar a lei, no presente estado de coisas. Mas esta aplicação é limitada, na medida em que, a partir dela, se estabelecem ações sempre orientadas por fatos tomados como consumados, na medida em que se considera como ponto de partida o relato da vítima, que também é assim produzida pelo serviço, excluindo-se, portanto, os pontos de conteúdos de caráter relacional. Esta forma de proceder produz quase que simplesmente, a pobre providência de separar a mulher de quem a agrediu. Depois ela fica nas mãos de Deus, e ele, ressentido, doente com a denúncia, pode ficar mais violento, e, frequentemente, passa de agressor à vingança. Esta situação esta sendo produzida na medida da construção do homem como violento. Este processo se faz em diferentes tempos, antes do atendimento a mulher, durante e também na representação do serviço de atendimento à vítima nos encaminhamentos. No momento da denúncia, ao mesmo tempo, em que se procede o registro se está constituindo uma série de representações e de realocações sobre a masculinidade destes homens que os circunstanciam como violentos, sem interagir de fato com eles. Discutir e entender a relação violenta exige mais do que constituir vítima e opressor. Segundo, podemos dizer assim, como o faz Nolasco (1995), que é fundamental reconhecer uma dimensão relacional das construções das relações de gênero e violência e desconstruir o mito da culpabilização dos homens fora do seu conteúdo relacional. Isto implica pensar as circunstâncias que envolvem as relações violentas e buscar uma perspectiva

que considere a interface de vários fatores. Eles se misturam e estão permanentemente em conflito, são relacionados à sexualidade, à convivência e à educação, bem como aos valores relativos à família, à renda, ao trabalho e ao cuidado dos filhos. Neste sentido surgem contextos não fixos, que se diferenciam em efeitos diversos de poder e que podem estar associados a aspectos geracionais, de classe e de ascensão social também. Há efeitos cotidianos e na intimidade das pessoas, o que faz com que tenhamos que olhar as diversas vivências. São aspectos mutuamente imbricados e que, em contextos históricos e geográficos específicos, viabilizam posições a serem ocupadas pelos sujeitos, enquanto se estabelecem agendas teóricas, políticas e pessoais. Terceiro, conforme já apontado, dizer isto não implica desresponsabilização dos homens que agridem, pois cabe discutir ações preventivas e de ressignificação de sua masculinidade e o lugar do Estado na prevenção, na intervenção e na mudança cultural. Como destaca Medrado (1998), em vez de procurar os culpados, é necessário identificar os conteudos das relações violentas e como eles se institucionalizam. É o que nos reporta Pisano (2004), quando analisa que os homens também se encontram inseridos em um sistema de representações do qual parece que não podem sair, porque lhes falta linguagem, articulações de outros sentidos, ou metas a respeito de si que estejam fora da reiteração de ordem simbólica violenta. Se, de fato, eles têm levado vantagens históricas, por isso mesmo, eles também são os prisioneiros de um sistema gendrificado como violento. Na violência de gênero precisamos considerar que homens e mulheres assim instituídos e desigualmente posicionados nestes parâmetros, que lhes são atribuídos e que são vividos como formas subjetivas e socialmente estruturadas, tornam-se úteis a um poder que é generador de violências de gênero cotidiana e sistematicamente praticadas. E estas em certas circunstâncias, se reproduzem na própria violência do Estado. Este aspecto nos traz grandes desafios, que vão além de questionar as relações que o geram porque está presente nas instituições e na estrutura social, orientada por masculinidades violentas. Por meio dos trabalhos que temos orientado na vida acadêmica, dos dados estatísticos, dos relatos dos boletins de ocorrência e dos históricos de atendimento, com os quais travamos contato nos processos de orientação de pós-graduandos, percebemos que estes homens não são vítimas, tampouco podem ser compreendidos somente como “agressores”. São homens que reproduzem uma forma de ser, apreendida nas diversas esferas. São produzidos por um meio, por relações culturais violentas. Pensá-los fora destes territórios seria descolar-se do empírico; no entanto, é preciso olhar as masculinidades violentas ou os homens agressores numa perspectiva de mudança, não somente do que é “ser homem”, mas uma mudança de valores e de significados sobre

trabalho, família, sexualidade e formas de interação, no sentido de constituir relações de não violência e projetar outros imaginários. Quarto, o cotidiano é o maior ponto de tensão em violência doméstica. Ele se implica com filhos, trabalho, comida, casa, dinheiro e compras, com a sexualidade e os cuidados com a honra, porque estas questões estão em uma ordem cultural masculinista. Mas, além disso, nas relações violentas são acionadas experiências do passado que se conflitam com o presente, sobretudo quando um homem quer decidir sobre o que e quando comprar, como educar. Estes elementos precisam ser trabalhados em grupos de homens. A dificuldade do homem em colocar-se fora do modelo do provedor e da representação de que ele é o chefe e o educador da mulher, - ainda que ele o faça pela pancadaria, ameaça, ou gritos, ou pelo desprezo, - joga com a forma como ele se sente frente a abordagem da lei, ou de parentes e amigos. Estes homens são produzidos por um meio, por relações culturais violentas. Pensá-los fora destes territórios seria uma utopia; no entanto, é preciso olhar as masculinidades violentas ou os homens agressores numa perspectiva de mudança, não somente do que é “ser homem”, mas uma mudança de valores e de significados sobre trabalho, família, sexualidade e formas de interação, no sentido de constituir relações de não violência. Quinto, a abordagem policial tem sido apontada pelos homens e mulheres como violenta. Estes conteúdos revelam despreparo e muitos obstáculos, dizem respeito aos a prioris sobre a violência, que já estão na cabeça de quem atende mulheres e homens e podem jogar de diferentes maneiras. Também dizem respeito à linguagem e à interpretação da lei, quanto à estrutura e ao modo de implementá-la. A estrutura de atendimento parece ainda se encontrar sem condições de escuta e sem condições ao desvendamento das relações imbricadas. Está sempre com alta rotatividade de técnicos e de policiais e esta realidade se configura particularmente difícil para o trabalho coletivo, contínuo e relacional. No mais, há falta de monitoramento e de acompanhamento das situações, há ausência de discussão e de protocolos adequados e que sejam definidos para diferentes tipos de ação, tanto para homens como para mulheres, considerando os aspectos relacionados à situação. Os processos culturais de desvitimização do modo como os homens se posicionam e do fato de que as mulheres sejam vítimas de violência de gênero exigem um trabalho intenso de desidentificação cultural. Exigem formação adequada dos profissionais, condições de trabalho e a resolutividade das situações. Por último, os aspectos aqui analisados retratam apenas uma pequena parcela das questões dentro do conjunto (ou das dimensões) de cada situação de violência existente. Nesse sentido, deve-se considerar que diante das inúmeras situações de violência, é

importante perceber que as masculinidades violentas possuem dimensões complexas e diversas, que também são contraditórias, e a forma como elas são produzidas e enquadradas, pelo discurso dos técnicos e dos serviços, das delegacias e da polícia, muitas vezes, reforça a pratica da violência. A ruptura com essa violência de gênero no fundamento da violência contra as mulheres está associada à mudança no âmbito das práticas institucionais também. A natureza pública da lei não pode seguir colidindo com a realidade sociocultural e com os processos de constituição das masculinidades, com a falta de efetiva organização e de preparação das instituições para fazer face aos procedimentos: processuais, de atendimento e de assistência às vítimas de violência doméstica. Tampouco, pode-se permitir tamanha demora na resolução dos casos de violência doméstica; situação que agrava o sofrimento da vítima, obrigando-a muitas vezes, a uma reconciliação não pretendida. Do mesmo modo, faz-se necessário descolonizar a linguagem da lei, da comunicação e dos procedimentos, para que eles possam ser entendidos por todos sem empáfia dos termos difíceis. Outro desafio é o de aproximar os representantes legais daqueles homens e mulheres em situação de violência doméstica, atitude que precisa se perseguida para que se dê lugar ao espírito da proximidade necessária ao entendimento dos problemas e à resolução dos conflitos. Este aspecto também se faz com formação, acompanhamento e suportes interdisciplinares. Eficácia implica também na aplicação das medidas cautelares em tempo útil e no o acolhimento e atendimento aos chamados por socorro, na emissão de relatórios médico-legais, bem como, na construção de espaços físicos adequados para o atendimento personalizado. Referências CONNELL, Robert W. Políticas da Masculinidade. Educação e Realidade, v. 20, n. 2, p. 185206, jul./dez. 1995. Barrett, Michelle. Women’s Oppression Today: Problems in Marxist Feminist Analysis. London: New Left Books, 1980. BORTOLI, Ricardo. O processo de construção de si na narrativa de homens autores de agressões nos contextos da violência de gênero. 2013. 143 f. (Dissertação). Programa de PósGraduação em Sociologia, UFPR, Curitiba, 2013. BORTOLI, Ricardo; TAMANINI, Marlene. A complexa questão da violência doméstica: narrativas de homens autores de violência de gênero. Coletânea. Curitiba: UFTPR/ SECADI/MEC, 2014 (no prelo). COLLARD, Chantal, HASHMERI, Shireen. “De embriones congelados a siempre familias”: Ética del parentesco y ética de la vida en la circulación de embriones entre las parejas

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