A VISIBILIDADE EM DISPUTA: NOTAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO PELO MOVIMENTO LGBT EM CAMPINAS

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A VISIBILIDADE EM DISPUTA: NOTAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO VINÍCIUS PEDRO CORREIA URBANO PELO MOVIMENTO LGBT EM CAMPINAS Vinícius Pedro Correia Zanoli1

Resumo: A parada LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) de Campinas foi organizada pela primeira vez em 2001, por ativistas do grupo Identidade e do Movimento Lésbico de Campinas. Nos últimos anos, o Identidade abandonou a organização do evento em decorrência do que entendem como um “processo de despolitização e de mercantilização da passeata”. Como reação, o grupo passou a realizar manifestações na Parada, as “montações engajadas”. A partir da noção de espaço público, a análise aqui proposta toma tais manifestações como disputas em torno da ocupação do espaço urbano, do lugar social da homossexualidade e de convenções relacionadas à ação política. A “montação” é analisada como uma disputa pelo espaço simbólico da Parada e pelos sentidos de homossexualidade e política mobilizados no evento. Esta proposta baseia-se em investigação etnográfica sobre o movimento LGBT de Campinas e suas relações com outros atores sociais e com o espaço urbano, a metodologia inclui observação participante, análise documental e realização de entrevistas. Palavras-chave: Movimento LGBT. Sexualidades. Espaço Público. Espacialidades. Sexualidade e Política. A homossexualidade não é certa disposição orgânica ou psicológica, nem apenas um certo conjunto de práticas sexuais, nem somente um estilo de vida, nem talvez uma identidade social, mas sim um “lugar” simbólico, aberto a múltiplas incorporações, imagens e personificações (CARRARA, 2005, p. 23).

Este trabalho tem como objetivo analisar manifestações organizadas em torno das disputas por direitos de LGBT, na cidade de Campinas, no interior do Estado de São Paulo, essas manifestações são os eventos do Mês da Diversidade Sexual, que inclui a Parada do Orgulho LGBT da cidade, e algumas manifestações realizadas, na Parada, pelo grupo Identidade – grupo ativista LGBT da cidade. Esta apresentação baseia-se em investigação etnográfica sobre o movimento LGBT de Campinas e suas relações com outros atores sociais e com o espaço urbano, a metodologia inclui observação participante, análise documental e realização de entrevistas. Movimento LGBT no Brasil e em Campinas

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Aluno do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, sob orientação da Profª. Drª. Regina Facchini. Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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Convencionou-se que o ano de 1978, o da criação do grupo Somos de São Paulo, é o marco do surgimento do movimento LGBT no Brasil (Facchini, 2005, 2009; MacRae, 1990; Simões, Facchini, 2009). Facchini (2005) aponta a existência de três “ondas” do movimento. É a partir dos anos 1990, que tem origem a “terceira onda” do movimento LGBT brasileiro. Período caracterizado por forte processo de institucionalização do movimento em decorrência da redemocratização. Nesse contexto, surge o Expressão, primeiro grupo ativista LGBT de que se tem notícia em Campinas. O coletivo foi fundado em 1995 por frequentadores de um grupo de vivência2 no âmbito do Programa Municipal de DST/Aids3, o Conviver. A partir de uma cisão do Expressão, em 1998, surge o Identidade, o mais antigo ainda em atividade na atualidade. Em 2000 uma nova divisão no movimento da origem ao Mo.Le.Ca., Movimento Lésbico de Campinas. Além desses grupos, os anos 2000 viram outras duas organizações ativistas nascerem em Campinas, o E-Jovem, uma rede jovem LGBT que, segundo seu site, foi criada em 2001 e tem caráter nacional, e o Aos Brados, grupo ligado à periferia que já existia na época enquanto grupo de pessoas que editava um jornal homônimo. Contudo a pesquisa ainda carece das datas de fundação desses grupos (Zanoli, Facchini, 2012; Zanoli, 2013). A parada LGBT de Campinas e o Mês da Diversidade Sexual O mês da diversidade é um conjunto de atividades organizado pela mesma comissão que realiza a Parada LGBT de Campinas. Atualmente a Comissão da Parada é formada por ex-ativistas do Mo.Le.Ca – antigo grupo ativista de lésbicas que hoje é mesclado ao Identidade; ativistas do Aos Brados!!! – grupo LGBT ligado à periferia; além de drag queens, outros atores ligados ao mercado GLS e ativistas que não pertencem a nenhum grupo. O Identidade participou da organização da Parada desde sua criação em 2000, no entanto, por volta de 2008, abandonou a organização da evento, alegando falta de politização da mesma. Antes da organização da Parada na cidade, ativistas de Campinas frequentavam a Parada de São Paulo, que surgiu no ano de 1997. Porém, em 2001, apenas um ano depois da fundação do Mo.Le.Ca., os grupos ativistas da cidade, além de outros atores, realizaram a primeira Parada do Orgulho LGBT de Campinas. Com o passar dos anos, o evento ganhou proporção e a atenção de pessoas não diretamente envolvidas com o ativismo e de empresários do setor GLS. Desde sua 2

Todas as expressões em itálico nesse trabalho se referem a expressões utilizadas pelos interlocutores da pesquisa, pequenas falas de interlocutores e a estrangeirismos. 3 Doenças sexualmente transmissíveis.

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origem, não só os atores envolvidos na organização se diversificaram, como o próprio trajeto da Parada se modificou, aumentando a distância percorrida pelos manifestantes. O Mês da Diversidade4 teve início com o evento Divas, realizado pelo grupo E-Jovem de Campinas e apoiado pela comissão da Parada. O evento aconteceu na Praça Carlos Gomes, na região central da cidade, consistindo em uma série de apresentações de jovens drag queens em comemoração ao dia dos namorados. O show aconteceu no coreto da praça, com a apresentação de um espetáculo intitulado “Brasileiríssimas”. No domingo da semana seguinte, dia 16 de junho, foi a vez da Gincana da Diversidade, que acontece no Parque Portugal, também conhecido como Lagoa do Taquaral. A gincana, consistia em uma série de atividades lúdicas envolvendo músicas. No dia 22 de junho aconteceu Concurso de Talentos da Comunidade Padre Anchieta, que ocorreu no Espaço Cultural Maria Monteiro, no conhecido Teatro da Vila Padre Anchieta. A vila faz parte do Distrito de Nova Aparecida, que teria começado a ser povoado entre 1945 e 1947. Em 2003 o distrito contava com 24 bairros, dentre eles 13 ocupações, distando aproxidamente 15km do centro da cidade, sua população era estimada em 55 mil habitantes pela subprfeitura do distrito em 2003 (Bruno, Carnicel, 2004). O local é formado, basicamente, por habitações populares, e o evento consiste em um concurso de drag queens. O Pedala Bich@ foi realizado em 23 de junho, um domingo. O Pedala é uma atividade de dia inteiro, que tem início com um passeio ciclístico pelo centro da cidade e termina com uma série de eventos musicais e shows de drags no Largo do Rosário, no Centro de Campinas. Na Praça Bento Quirino, nos dias 28 e 29 de junho foram realizados dois eventos o Big Juice, que, em 2013, foi organizado pelo E-Jovem; e a Manifestação Sáfica, um evento constituído por e voltado para mulheres lésbicas e bissexuais. No caso do Big Juice, o nome do evento é também um dos apelidos que recebe a praça, a palavra é a tradução para o inglês do termo utilizado pelos frequentadores para se referir ao local: Sucão. Essa alcunha tem origem no nome de uma antiga lanchonete situada no local. Segundo uma espécie de mito da ocupação homossexual na praça, um casal teria sofrido homofobia por parte do dono da lanchonete Sucão, em retaliação homossexuais foram, cada vez mais, frequentando essa lanchonete, a frequência passou a ser muito alta. Com o tempo, o dono do bar desistiu do ponto e o vendeu a outra pessoa, que, segundo meus interlocutores, sabe atender o público homossexual, a nova lanchonete se tornou assim uma espécie 4

Além dos eventos que utilizo aqui para análise, aconteceu também, no mês da diversidade sexual, um seminário apoiado pela APEOESP. No entanto dada a confluência dos eventos, acabei não tendo a possibilidade de acompanhar o seminário.

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de restaurante GLS5. O Big Juice, congregou shows de drags e da banda Gay Direction – composta por membros do E-Jovem, a banda é cover da americana One Direction. A manifestação sáfica foi um grande karaokê, a apresentadora, vestida de Chacrinha, convidava as pessoas a testarem seus talentos cantando músicas ao vivo. A Parada do Orgulho LGBT ocorreu no dia 30 de junho. Segundo o Portal de Notícias R7 6, ela teria, reunido 13 mil pessoas7. O evento contou com dois trios elétricos, um cedido pela prefeitura e outro colocado na Parada pela festa gay campineira Garden. A concentração foi em frente da Praça do Fórum, na Av. Dr. Campos Sales, seguindo pela Av. Francisco Glicério, onde se encontra, dentre outros espaços, a Catedral Metropolitana de Campinas; desceu, em seguida, a Av. Dr. Moraes Sales no sentido da Rua Irmã Serafina, que se torna mais adiante, Av. Anchieta. Em seguida, retorna pela Av. Benjamin Costant, passando pelo Colégio Carlos Gomes (colégio público tradicional da cidade) e pela Prefeitura e pela Praça Bento Quirino e pela Av. Francisco Glicério (uma das principais avenidas da cidade), até finalizar no Largo do Rosário, em frente à Praca do Fórum, local que foi palco de uma série de shows de drags, da banda Gay Direction e de uma banda formada por meninas. Mapa 1 - Trajeto da Parada. Fonte: Google Maps

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Dentro desse bar é possível ver anúncios de casas noturnas e de atividades realizadas por ativistas da cidade. Além disso, em atividades de campo, observei mais de uma vez os garçons interagindo de maneira amigável com os clientes e com os jovens que frequentam a praça. 6 http://noticias.r7.com/sao-paulo/parada-gay-de-campinas-reune-13-mil-pessoas-30062013. Acesso em 02.07.2013. 7 Tenho observado a Parada desde 2010, em 2013, sem dúvida, o número foi muito reduzido por consequência da forte chuva que assolou a cidade, bem como, em decorrência de problemas na divulgação. No entanto, o número de manifestantes, tendo em vista os anos anteriores, me pareceu ser bem maior do que o número que, segundo o Portal R7, teria sido informado pela polícia militar.

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Cabe ressaltar que dentre os eventos, a maior parte deles ocorre no centro da cidade, sendo que apenas dois acontecem fora da região central: a Gincana e o Concurso de Talentos. A Gincana ocorre em um bairro de classe média alta, não muito longe do centro, o Concurso, por sua vez, se situa em uma comunidade marcada por ocupações e conjuntos habitacionais, distante do centro. Dentre locais pelos quais passa a Parada e onde ocorrem alguns dos eventos do Mês da Diversidade, destaco a Praça Bento Quirino (O Sucão), ela é palco de experimentações de gênero e da sociabilidade entre jovens que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. É interessante notar ainda que, no caso da comunidade Padre Anchieta, algumas das drags que apresentaram o evento eram oriundas da região do distrito. Boa parte das pessoas envolvidas indiretamente com a Parada com quem tive contato em 2013 era oriunda da periferia, assim como um número considerável de frequentadores do Sucão vem, também, das periferias de Campinas ou das cidades próximas, que fazem parte da Região Metropolitana. Além disso, o trajeto da Parada não passa longe de espaços estabelecidos de sociabilidade homossexual como bares GLS e casas noturnas. Quanto à Lagoa do Taquaral, ela é um conhecido espaço de pegação na cidade. Em campo, ouvi algumas vezes referências à Concha Acústica, espaço no parque onde, no começo da noite, homens que se relacionam sexualmente com outros homens se encontram para trocas sexuais. O interessante da Concha Acústica, é que ela sempre aparece, na fala de meus interlocutores, como espaço de pegação ocupado por outras pessoas. O que meus interlocutores sabem da Concha vem, segundo eles, do que ouviram falar, nunca de sua experiência no local. A negação de ocupação desse espaço lembra a negação, por parte dos michês, estudados por Perlongher (1987), que afirmariam não frequentar a Praça da República em São Paulo. Ao ocupar os diversos espaços da cidade, os integrantes da comissão da Parada, as drag queens, os músicos e os manifestantes da Parada, dirigiram críticas diretas ao Pastor Marco Feliciano. Nos anos anteriores, as críticas mais comuns se dirigiam à crise política que vivia a cidade e à homofobia mais difusa na sociedade. Neste ano, no entanto, durante todos os eventos foram proferidas palavras de ordem contra o pastor Marco Feliciano, que negavam o caráter de doença atribuído à homossexulidade. Grande parte dos manifestantes carregava cartazes afirmando que não estavam doentes. Outros, diziam que se tinham uma doença deveriam se aposentar por invalidez. Mais de uma vez, durante os eventos, os manifestantes foram convidados a pedir aposentaria por invalidez. Outros, ainda, dirigiam críticas diretas ao deputado Marco Feliciano,

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alegando, inclusive, que ele seria um homossexual enrustido e que, ao aceitar sua homossexualidade, deixaria de persegeuir os homossexuais. Houve, ainda, pedidos para que o pastor e deputado deixasse a presidência da Comissão de Direitos Humanos. Essas manifestações diretas contra o pastor e deputado Marco Feliciano dizem respeito ao projeto de “Cura Gay”. No entanto, antes de discorrer sobre tal projeto, façamos uma incursão sobre as manifestações que o Identidade oganiza na Parada LGBT de Campinas. As montações engajadas e o Bonde dxs Coloridxs do grupo Identidade Apesar de não estar mais na organização da Parada, o Identidade costuma realizar intervenções no evento. Em anos anteriores os membros do Identidade organizaram o que intitulavam de montação engajada, uma intervenção crítica ao evento com o intuito de politizar a Parada. Em 2013, no entanto, a nova intervenção do grupo se chamava Bonde dxs Coloridxs. O termo montação faz alusão ao o ato de uma pessoa assignada com determinado sexo ao nascer, especialmente no caso do sexo masculino, vestir roupas tidas como próprias para o outro sexo. As críticas incorporadas nessa prática são diversas, as principais dizem respeito a convenções de gênero, especialmente as que ligam certas profissões a homens e outras a mulheres. Nenhum dos ativistas soube, ao certo, informar quando surgiu a ideia de fazer uma intervenção na Parada. Sabem informar, apenas, que ocorreu por volta de 2008 ou 2009, período marcado como ápice do processo que tenho chamado de “radicalização” na trajetória do grupo Identidade (Zanoli, Facchini, 2012). Sobre as montações anteriores a 2011, os poucos dados que tenho são imagens disponibilizadas pelos militantes de seus arquivos pessoais, fotografias sobre a intervenção. Essas fotografias trazem os ativistas do grupo Identidade montados: jogador de futebol, Jesus Cristo, entre outros. Além de cartazes críticos aos moldes sociais vigentes. No caso de 2011, a atividade programada pelos ativistas não deu certo. Apesar da impossibilidade de realizar a montação nos moldes que o grupo havia feito no ano anterior, uma manifestação foi realizada. Diferentemente da anterior, os membros do grupo utilizavam camisetas trazendo as seguintes frases: “Você também é o alvo da violência”; “Homofobia Mata!”; “Somos muitos e estamos em todos os lugares”; “Hahaha.... A piada mata tanto quanto a bala!”; “Cuier, Cüer, Qüier, Queer, Kuyer, Kueer”. Além de carregar cartazes. Os cartazes, naquele ano, em conjunto com as mensagens transmitidas pelas camisetas, seriam o principal foco da intervenção uma vez que não estavam fantasiados. Foram confeccionados cartazes que diziam frases como:

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“Desaquenda Hélio”, fazendo referência às denúncias de corrupção do prefeito de Campinas; “Viva a Poligamia” e “Sou negra e sou passiva!”. O que fica explicito no caso das montações é a crítica não só à homofobia, mas a outras formas de preconceito. Além disso, os cartazes expressavam ainda uma relação muito íntima com a política na cidade. Tal relação pode ser expressa pela frase “Desaquenda Hélio”. A palavra desaquenda, é muito utilizada como gíria, um de seus significados é sair ou cair fora. Ou seja, tratava-se de uma crítica explícita à situação política em que se encontrava Campinas no período. O então prefeito da cidade, segundo o caderno on-line de política do Estadão8, fora acusado de omissão em relação a infrações político-administrativas e atos de corrupção praticados. Em vinte de agosto de 2011, o prefeito foi cassado. Além de fazer referência à situação política da cidade, os cartazes chamavam atenção para dois pontos interessantes. No caso de Cláudia, transexual, seu arco-íris da indignação apontava o preconceito sofrido por transexuais e travestis no Brasil. Rogério, por sua vez, problematizava em seu cartaz a dificuldade de ser gay no movimento negro, ativismo do qual também fazia parte. Isso porque, aos homens negros seria imputada uma virilidade que presumiria que eles seriam heterossexuais ou, sendo vistos como gays, ao menos a imagem de penetrador ou ativo seria conferida a eles. Assim sendo, seu objetivo era fazer uma crítica aos padrões de masculinidade conferidos aos negros, dentro e fora do movimento organizado em torno do direito dos negros. A necessidade, segundo os ativistas do Identidade, de realizar a montação engajada se dava pelo que entendem como a despolitização da Parada de Campinas. Essa despolitização se expressa, de acordo com os integrantes do Identidade, pela mercantilização da Parada, acarretando o esvaziamento das características políticas do evento. Em 2012 a montação engajada não foi realizada. O motivo foi a aplicação de uma pesquisa com perguntas dirigidas aos manifestantes da Parada. Tal pesquisa estava ligada ao interesse pela aplicação de uma Lei Municipal contra o preconceito, 9.809, de 21 de julho de 1998. O decreto de regulamentação dessa lei previa a criação de uma Comissão Processante que seria responsável pela apuração dos atos discriminatórios e pela aplicação das penalidades previstas na Lei. Apesar de prevista, naquele ano, a comissão ainda não existia. O objetivo do Identidade com a pesquisa era, justamente, apontar para a necessidade da criação dessa comissão. A pesquisa visava o relato, por parte dos manifestantes da Parada, de atos de homofobia que tivessem sofrido no município. Os dados levantados seriam utilizados para pressionar o executivo municipal a criar a comissão 8

Disponível em: Acesso em 28.0ut.2010.

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processante, para que a lei passasse a ser aplicada. Sobre a comissão, em campo, descobri que entre o fim de 2011 e o ano de 2012, ela passou a existir, mas ainda não tive acesso a documentos que me permitam precisar a data. Em 2013, o Identidade organizou uma nova manifestação, que chamou de Bonde dxs Coloridxs. Carregando um grande boneco de Marco Feliciano, os manifestantes convidavam os tanseuntes a darem dedadas no boneco do pastor, ou seja, realizar uma penetração anal simbólica com os dedos. A ideia original seria queimar o boneco, mas tiveram receio de causar algum tipo de acidente. O motivo das críticas dirigidas ao pastor e deputado Marco Feliciano – tanto no que diz respeito àquelas realizadas pelos organizadores da Parada, quanto àquelas presentes nas manifestações do Bonde dxs Coloridxs – diz respeito ao projeto de “Cura Gay”. Na próxima seção, falo brevemente do projeto. Porém, antes, é preciso chamar atenção para a sintonia das manifestações em 2013. Apesar de as manifestações do Identidade terem como objetivo, segundo eles, politizar a Parada, nesse ano, com o projeto de “Cura Gay”, tanto o Identidade quanto organização da Parada, como demonstrei, centraram suas críticas no projeto. A “Cura Gay” Em 2013, foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmada dos Deputados um Decreto Legislativo proposto pelo Deputado Federal João Campos, do PSDB de Goiás. Esse projeto visava suspender a validade de uma resolução de 1999 do Conselho Federal de Pscologia (CFP) que impede os psicólogos a tratarem a homossexualidade enquanto desordem psicológica. Essa aprovação colocaria o projeto em trâmite no Congresso para possível aprovação. Segundo o autor do projeto e o presidente da Comissão dos Direitos Humanos, o pastor evangélico e Deputado Federal Marco Feliciano (PSC-SP), essa resolução do CFP não deveria ser válida por que estaria funcionando como lei, e dessa maneira se sobrepondo ao Legislativo. Caso o projeto em questão fosse aprovado, ele poderia reafirmar, no âmbito legal, um antigo estigma social que coloca o homossexual no lugar de doente. Apesar de a resolução do CFP que veda o tratamento dos homossexuais enquanto pacientes a serem curados ser de 1999, desde 1985 a homossexualidade deixou de ser considerada doença no país. Contudo, a aprovação na Comissão de Direitos Humanos do projeto que foi chamado de projeto da “Cura Gay” criara uma nova possibilidade de patologização da homossexualidade, agora por via legislativa. É importante ressaltar que, no dia 2 de julho de 2013, o autor do projeto em questão retirou sua proposta. No entanto, isso não garante que a lei não volte a tramitar no futuro.

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Apresentado brevemente o projeto de “Cura Gay”, discuto, agora – a partir do que foi exposto até agora acerca do Mês da Diversidade Sexual, das montações engajadas e do Bonde dxs Coloridxs – a utilização do espaço urbano pelos diversos atores envolvidos nesses eventos. Disputando o espaço, legitimando sexualidades: as manifestações e a construção de um espaço público pelo movimento LGBT em Campinas Segundo Rogério Proença Leite (2002, 2007), para que um lugar torne-se público é preciso que haja uma disputa política em torno de seu uso. Disputa que acaba, em uma relação dialética, por criar o espaço público e as pessoas que o frequentam. Tal produção, para este autor, se dá por meio de usos e contra-usos do espaço. Partindo desse conceito de espaço público, pretendo analisar, nesta seção, as relações dos diversos atores do movimento LGBT de Campinas com o espaço urbano, com base nas manifestações apresentadas anteriormente. O principal objetivo da Parada é a visibilidade de populações marginais. Marginalizadas por que, tendo em vista os apontamentos de Rubin (1998 [1984]), em relação ao sistema de estratificação sexual, os manifestantes da Parada praticariam atos sexuais que ocupariam lugares inferiores na escala de valores desse sistema. Essa escala vai do sexo tido como bom e mentalmente sadio (heterossexual, monogâmico, sem resquícios de práticas sadomasoquistas e, ainda, sem grandes diferenças geracionais), para o sexo considerado mau e/ou apropriado pelos saberes médicos como mentalmente doente (não heterossexual, não monogâmico ou promíscuo, com algum tipo de prática sadomasoquista e com relações intergeracionais). Os casos de discriminação homofóbica demonstram que, ainda hoje, casais homossexuais não podem, por exemplo, andar de mãos dadas em ruas, praças e avenidas. Um beijo ainda que recatado, pode ser motivo de chacota, recriminação, zombaria, ou, até mesmo, agressão física ou morte. A dificuldade não só de evitar esses casos, mas de criminaliza-los é um bom exemplo de como esse sistema de estratificação sexual opera. É nesse sentido que tem efeito a Parada. Ainda que seja um evento do âmbito do extraordinário, ela expressa duas disputas. A primeira, simbólica, se refere à legitimidade de sexualidades ou condutas sexuais tidas como dissidentes. A segunda remete ao âmbito da espacialidade e de que espaços são legitimamente ocupados por quem. Ambas as disputas dizem respeito aos lugares sociais e simbólicos (Carrara, 2005) que ocupam as orientações sexuais e as identidades de gênero dos manifestantes em questão no sistema de estratificação sexual. Como

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vimos, mesmo que a homossexualidade não seja mais considerada doença, ainda é preciso disputar sua legitimidade. Além disso, a própria possibilidade de patologização ainda está em disputa, isso se evidencia pela existência de um projeto de “Cura Gay”, mas também pelas críticas conjuntas feitas pelos manifestantes do Bonde dxs Coloridxs e pelos organizadores da Parada. O que chamo de disputa espacial é uma disputa tanto pela publicização do afeto, ou da sexualidade, quanto pelo próprio direito de estar nas ruas. Essa disputa ocorre porque, da mesma maneira que existe uma territorialização da hierarquia entre os michês demonstrada por Perlongher (1987), o sistema de estratificação sexual acaba por se territorializar, produzindo espaços possíveis de socialização, mas muitas vezes restringindo essa mesma socialização em outros espaços e horários. Portanto, é possível afirmar que as disputas em torno da sexualidade, no que diz respeito às manifestações aqui tratadas, tomam dimensões espaciais, passando a ser também, portanto, disputas pelo próprio espaço. Isto é, ao tornar pública a sexualidade para disputar a utilização dos espaços da cidade, nos termos de Leite, os ativistas acabam por fazer do espaço urbano, um espaço público. O fazer ao buscar não só a possibilidade de ocupar certos espaços, mas de modificar a maneira como são classificados no sistema de valores que chamamos aqui de estratificação sexual. No que diz respeito especificamente às montações engajadas e ao Bonde dxs Coloridxs são disputas que dizem respeito à própria concepção de política do grupo. Organizar manifestações dentro da Parada foi a maneira encontrada por eles para continuar participando da mesma. E, ainda assim, prosseguir chamando atenção para o que afirmam ser um esvaziamento do significado político do evento. Assim sendo, se abstraíssemos os termos de Leite e tomássemos a Parada enquanto espaço simbólico em disputa, poderíamos apontar ainda que as atividades organizadas pelo grupo Identidade colaboram com a politização da Parada, tendo em vista o que aponta Leite, na medida em que contestam os usos que têm sido feitos da Parada. A Parada e demais eventos públicos do Mês da Diversidade Sexual são modos de deslocamento simbólico da homossexualidade e da diversidade de gênero, tidas aqui como lugares sociais no termos de Carrara (2005). Em 2013, contudo, tal deslocamento contava com um foco bastante específico: os efeitos deletérios do conservadorismo político expresso por meio do “fundamentalismo religioso” que estava em vias de repatologizar a homossexualidade pela via do lesgislativo brasileiro. Sendo assim, ao ocupar os espaços centrais e periféricos da cidade, os manifestantes procuravam expressar e publicizar sua indignação por estarem em vias de serem novamente relegados ao lugar social de doentes. Nesse momento, a disputa dos manifestantes do

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Mês da Diversidade Sexual de Campinas não girava apenas em torno de legitimar seus desejos, condutas ou expressões corporais ou de disputar estereótipos em torno de expressões generificadas, racializadas e/ou marcadas por classe. O espaço foi ocupado, também, com o objetivo de evitar que a figura simbólica d“o homossexual” volte a ocupar um lugar social que vinha sendo superado, ao menos no campo da saúde, o de doente. Referências ANDERSON, B. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Londres: Verso, 1991. BRUNO, F.; CARNICEL, A. Distrito Nova Aparecida: perfil histórico julho/2003. SARÁO: Memória e Vida Cultural de Campinas. Publicação do Centro de Memória da Unicamp, Campinas, v. 2, n. 4, Janeiro 2004. Quatro páginas. CARRARA, S. O Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos e o “lugar” da homossexualidade. In: GROSSI, M. P. E. A. Movimentos Sociais Educação e Sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p.17-24. CORRÊA, M. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983. DOIMO, A. M. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; ANPOCS, 1995. FACCHINI, R. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas, Natal, n. 4, 2009. p. 131-158 FACCHINI, R. Comunidades imaginadas: um olhar sobre comunidades políticas a partir de mulheres que se relacionam com mulheres no meio BDSM. Pensata Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNIFESP, Guarulhos, v. 1, 2012. p. 6-25 FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012 [1976]. FRY, P. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 87115. LEITE, R. P. Contra-usos e espaço público: notas sobre a construção social dos lugares na Manguetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, Junho 2002. p. 115134. LEITE, R. P. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Aracaju: Editora da Unicamp: Editora UFS, 2007.

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