A Vitimologia aplicada ao estupro nas relações íntimas

June 5, 2017 | Autor: T. Marini de Souza | Categoria: Criminology, Law and Literature, Feminism, Sexual Offences and Rape
Share Embed


Descrição do Produto

“Era a segunda vez que se irritava com Bjurman. Consciente de que ele poderia interpretar seu olhar de modo equivocado, ela o fixou no teto para tentar controlar a raiva. Quando voltou a olhálo, ele estava rindo do outro lado da mesa. Lisbeth Salander entendeu de repente que sua vida tomaria um rumo dramático. Deixou o advogado Bjurman com um sentimento de nojo. Não estava preparada para isso. Jamais ocorreria a Palmgren fazer esse tipo de pergunta; ao contrário, ele estava sempre disposto a escutá-la, oferecimento que ela raramente aproveitou. Bjurman era um problema sério, em vias de se tornar um problema muito sério.” (LARSSON, Stieg. Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, p.188)

INTRODUÇÃO Historicamente, a ação criminosa no âmbito sexual depende da diferenciação das condutas sexuais tidas como adequadas daquelas tidas como desviantes. Este padrão de adequação ou de normalidade depende daquilo que a sociedade entende como projeto familiar e do grau de liberdade social experimentado por seus indivíduos, de ambos os gêneros. Porém, a questão fundamental a ser tratada do ponto de vista jurídico é a ideia de consentimento. Em grande parte das sociedades, e especialmente na América Latina, a divisão da esfera público/privada é excessivamente marcada. Enquanto que a esfera pública é um espaço predominantemente masculino, as mulheres são relegadas ao espaço privado, ou seja, ao ambiente doméstico. MacKinnon, ao enfatizar tal distinção, afirma que o fato de as mulheres serem relegadas ao ambiente doméstico faz com que as próprias normas que regem a sociedade exprimam o ponto de vista masculino e as questões de gênero sejam tratadas como "questões de menor gravidade"1. O modo como o estupro foi definido e tratado em vários ordenamentos apresenta inconsistências. Quando é mencionado explicitamente no contexto do direito humanitário internacional, o estupro tende a ser associado à honra de uma mulher e não concebido como um crime de violência. Em consequência, enfatiza-se a proteção das mulheres e não a proibição do estupro. Essa ênfase na honra e na proteção obscurece a violência e a criminalidade do estupro. Na Convenção de Genebra sobre Direito Internacional Humanitário (1949), o estupro é mencionado como um “ataque contra a honra”, em vez de “crime de violência”, o que marginaliza tal conduta. O estupro deve ser visto como uma forma de tortura, a fim de se retirar a ambiguidade que o cobre, legado do sexismo2. As teorias feministas radicais definem o estupro como expressão de uma relação hierárquica há muito presente na sociedade. Aquele que assume socialmente um papel masculino (“homem social”) subjuga através da simulação de um ato sexual heteronormativo 1

"In male supremacist societies, the male standpoint dominates civil society in the form of the objective standard – that standpoint which, because it dominates in the world, does not appear to function as a standpoint at all." (Toward a Feminist Theory Of The State, 1989) 2 COPELON, Rhonda. Surfacing Gender Reengraving the Crimes against Women in Humanitarian Law. In: DOMBROWSKI, N. (ed.). Women and War in the Twentieth Century. Nova York e Londres: Garland Publishing, 1999.

aquele que assume socialmente um papel feminino (“mulher social”). Sob essa ótica, o estupro pode ser definido como um ato motivado pela necessidade de dominar o outro que tem pouco ou nada a ver com o desejo sexual. Em outras palavras, todo estupro é um exercício de poder. Brownmiller3 sustenta que o estupro é um mecanismo de controle historicamente difundido, mas amplamente ignorado, mantido por instituições patriarcais e relações sociais que reforçam a dominação masculina e a subjugação feminina. Assim, este tipo de violência está profundamente ligado aos standards morais de dominação e controle, e não na lascívia dos homens e sua incapacidade de controlá-la. Esses standards consistem na visão objetificada e fetichizada dos elementos femininos4. Além disso, voltando a MacKinnon, a violência sexual é empurrada para a esfera privada, minimizando sua gravidade. Através de intimidação direta e indireta e de sanções morais de culpabilização, a sociedade mantém as mulheres em constante estado de vigilância e medo e faz com que elas se sintam culpadas pela violência que sofreram. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos5 apontam que, nos estupros individuais em contextos (teoricamente) democráticos, 90% das vítimas de estupro são mulheres e, destas, 80% têm menos do que 30 (trinta) anos. Em seguida, a pesquisa mostra que 73% dos autores são conhecidos pela vítima – sejam amigos, parentes ou parceiros afetivos. O estudo segue, constatando que de cada cem casos de violência sexual, apenas trinta são levados ao conhecimento das autoridades, sendo que somente dois resultam em condenação e pena de prisão para o agressor. Tais números chocam, demonstrando o extremo processo de culpabilização a que estão submetidas estas vítimas e a falta de confiança destas nas instituições estatais, aliada ao descaso das autoridades em tratar da questão.

3

Against our will: men, women and rape, 1975, p. 256 Tal característica é mais evidente quando se fala de violência sexual como instrumento de subjugação em contextos de guerra, ou seja, do “estupro como genocídio”. Nestes contextos, o estupro é utilizado para (a) afirmar as mulheres como propriedade dos homens; (b) subjugar os inimigos masculinos conquistados; (c) estabelecer laços misóginos entre os membros do exército, o que fortalece a solidariedade nos campos de batalha; (d) compõe as relações sociais entre os militares, o que precondiciona os soldados a desumanizarem o inimigo. (sobre esse tema, ver COPELON, Rhonda. Women and War Crimes. St. John’s Law Review, v. 69, p. 61-68, 1995). 5 Fontes: RAINN, NCVS e FBI, 1997 4

A APLICAÇÃO DA TEORIA NA OBRA ESCOLHIDA Em Millenium, somos apresentados a Lisbeth Salander, uma mulher de vinte e quatro anos, portadora da Síndrome de Asperger, um tipo de autismo. Esta personagem sofre uma opressão qualificada durante toda a vida: por ser mulher, bissexual e portadora de descapacidade mental. A mãe de Lisbeth, Agneta Sjöander, era constantemente espancada pelo marido Alexander Zalachenko, tendo ficado com sequelas graves que a levaram a passar seus últimos dias em uma casa de repouso, com suas faculdades mentais reduzidas. Em defesa da mãe, Lisbeth, que na época contava com onze anos, tenta matar o próprio pai jogando uma lata de gasolina sobre ele e acendendo um fósforo. Após este episódio, Lisbeth é internada no hospital psiquiátrico infantil Sankt Estefan. Durante dois anos, o médico-chefe do hospital a mantém amarrada a uma cama, num quarto completamente branco e sem janelas6. Na medida em que se recusa terminantemente a dialogar com qualquer profissional de saúde e a se submeter a qualquer tipo de teste psicológico, não existe nenhum diagnóstico preciso sobre seu quadro. Diante de tal situação, a menina foi declarada incapaz pela justiça e a ela foi designado um tutor. Ao contar com a idade de 24 anos, é designado um novo tutor para a personagem, o Dr. Nils Bjurman. Ao contrário do antigo tutor, que a permitia viver, organizar-se e dispor livremente de seu próprio dinheiro, Bjurman se apropria de todas as finanças da personagem, além de fazer-lhe perguntas sobre sua intimidade. Em um dado momento, ao pedir-lhe dinheiro para comprar um novo computador, Lisbeth é surpreendida com a exigência de favores sexuais. Sem confiança nas instituições, ela se mantém calada a respeito7.

6

Tal prática é considerada tortura pelas Convenções de Genebra de Direito Internacional Humanitário 7 “Se Lisbeth Salander fosse uma cidadã comum, ela provavelmente iria à polícia denunciar o estupro no instante em que deixava o escritório do dr. Bjurman. Os hematomas na nuca e no pescoço, bem como as manchas de esperma com o DNA de Bjurman em seu corpo e em suas roupas, teriam sido provas materiais pesadas. [...] A idéia de ir ao QG dos capacetes-comviseira ou de denunciar Nils Bjurman por abuso sexual não lhe passava pela cabeça. Aliás, denunciar o quê? Bjurman tocara-lhe os seios. Qualquer policial a examinaria com os olhos para constatar que, com seus peitinhos de menina, aquilo parecia improvável e, mesmo que houvesse acontecido, ela devia mais era se orgulhar de alguém tê-la tocado. Quanto à história de chupar — era a palavra dela contra a de Bjurman e, geralmente, a palavra dos outros contava mais que a dela. A polícia não era uma boa alternativa.” (pp. 208-210)

A situação, porém, torna-se mais grave e a cena do estupro da personagem é uma das mais chocantes da literatura contemporânea: “Ela não respondeu. O dr. Bjurman resistiu ao impulso de dar-lhe uma bofetada para despertá-la. — Gostou da brincadeira de gente adulta que fizemos da outra vez? — Não. Ele ergueu as sobrancelhas. — Lisbeth, não seja idiota. — Preciso de dinheiro para comprar comida. — É exatamente do que falamos na última vez. Basta ser gentil comigo que serei gentil com você. Mas se insistir em me contrariar... — Apertou-lhe com mais força o queixo e ela se soltou. — Quero meu dinheiro. O que está querendo que eu faça? [...] — Vai aprender a confiar em mim, Lisbeth — disse. — Vou ensinar a você as regras desse jogo de adultos. Se não cooperar comigo, será punida. Se for gentil, seremos amigos. E sentou-se novamente de joelhos abertos em cima dela. — Então não gosta de sexo anal... — falou. Lisbeth Salander abriu a boca para gritar. Ele a pegou pelos cabelos e enfiou-lhe a calcinha na boca. Ela sentiu que ele punha alguma coisa em volta de seus tornozelos, que abria suas pernas e as atava de modo a deixá-la totalmente vulnerável. Ela o ouvia andar pelo cômodo, mas não podia vê-lo. Os minutos passaram. Ela mal conseguia respirar. Por fim sentiu uma dor horrível quando ele brutalmente lhe enfiou alguma coisa no ânus. [...] — Lembre-se do nosso acordo. Volte no sábado que vem. Ela balançou de novo a cabeça, submissa. Ele a soltou”. (pp. 230)

CONCLUSÃO A relação entre os personagens Lisbeth e Bjurman pode ser explicada, dentro dos conceitos expostos acima, por meio da teoria criminológica do interacionismo simbólico. Esta teoria leva em consideração que todo ato criminoso é precedido de uma ofensa por parte da vítima. Assim, a escalada delitiva se inicia com a ação da vítima, seguida da fase de absorção, ou seja, da percepção por parte do autor daquela ação como uma ofensa. A partir desta percepção, o autor busca uma resposta àquela ofensa, como uma forma de nivelar os sujeitos de acordo com o status quo ante. Segue-se então a chamada fase de verbalização, na qual busca-se uma solução amigável para o conflito. Caso esta não seja alcançada, ocorre a agressão.

Dentro de um contexto machista e patriarcal, a insubordinação de uma mulher em relação a um homem é, para ele, uma ofensa, que precisa ser respondida à altura para haver reequilíbrio das relações de poder preestabelecidas. A fase de verbalização é pequena ou praticamente inexistente: a ofensa à honra que é percebida pelo o autor o atinge de forma tão contundente que não há espaço para uma solução amigável. Assim, pela análise do caso, pode-se concluir que o processo de vitimização ao qual a mulher está submetida é embasado por construções morais, sociais e inclusive jurídicas que retiram conceitos como liberdade sexual, consentimento e igualdade de gêneros dos direitos tidos como inerentes às mulheres. Além disso, percebe-se que a relação autor-vítima no estupro não é construída pelo desejo sexual, pela lascívia, e sim pelas relações de poder e necessidade de afirmação como superior e/ou de subordinação do outro.

BIBLIOGRAFIA

FELSON, Richard B. Back to basics: Gender and the Social Psychology of Aggression. LARSSON, Stieg. Os Homens Que Não Amavam as Mulheres. Série Millenium. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. LARSSON, Stieg. A Menina Que Brincava Com Fogo. Série Millenium. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. LARSSON, Stieg. A Rainha do Castelo de Ar. Série Millenium. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. HEBERLE, Renée. Sexual Violence in The Oxford Handbook of Gender, Sex and Crime. Oxford University Press. MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. 1ª Ed. Cambridge, Harvard University Press, 1989. WILLIANS, Stacey L, MCKELVEY, Daniel Kevin and FRIEZE, Irene Hanson. Intimate – Partner Violence in The Oxford Handbook of Gender, Sex and Crime. Oxford University Press. "Access to justice for Women victims of sexual violence". Fourth follow-up report to auto 092 of the Colombian Constitutional Court.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.