A voluptuosa pele do ecrã

October 5, 2017 | Autor: Mesac Silveira | Categoria: Contemporary Art
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A VOLUPTUOSA PELE DO ECRÃ: A imagem em rede, entre o fetiche e o talismã.

(Mesac Roberto Silveira Jr. Pós-doutor em Estudos do atual e o Cotidiano - CEAQ, Sorbonne, Paris V o doutor em Educação, FEUSP - USP. Coordenador do grupo de pesquisa Soundscape/Atopos, ECA USP)

“E o verbo se fez carne e habitou entre nós... E vimos a sua glória.” (João I,I) ou E a linguagem se erotizou. E gozamos...

“De fato, existe uma estreita ligação entre a não-aceitação da aparência, o temor à imagem, sob suas diversas formas, e o horror dos sentidos, o medo da beleza ou ainda o ódio à matéria.” (Michel Maffesoli, La contemplation du monde)

Aqui num Café bebendo um capuccino e relendo Frangments d’un discours amoureux, do filósofo francês Roland Barthes encontro: “a mão repousa sobre a pele:...região paradisíaca dos signos sutis e clandestinos: como uma festa, não dos sentidos, mas do sentido". Sinto que não escrevo apenas sobre a pele, mas na pele, à mercê da pele, subjugado por ela... E a própria escrita, acaricia a superfície da alma, do corpo. E os meus olhos apalpam a película, a imagem. E o verbo se faz pele, e fecunda o útero da linguagem: acaricia-a. "Moi peau" afirma o psicanalista francês Didier Anzieu; eu digo: Moi image. E, num repente, sou como que possuído pela imagem, tomado pelo discurso da imagem. Ela fala por mim, sou seu médium, sua mídia.

“Sou Volúpia, uma imagem penétrable, enveloppant, caressable. Também, uma imagem maleável, manipulável; uma imagem que se oferece não só aos olhos, mas ao corpo, à mão, às pontas dos dedos, que me apalpam, me beliscam, me contraem e me distendem. Tanto à portas abertas ao público como à portas fechadas das alcovas sou lasciva e obscena. Aqui sou uma imagem de mulher; todavia, posso tornar-me imagem de qualquer outra coisa ou ser, não há limites para o meu poder de mutação. Sou uma imagem eletrônica, uma infoimagem, uma imagem que perambula na rede digital. Proteica, tenho mil faces, e posso mostrá-las todas ao mesmo tempo numa massa

amorfa, ou uma a uma, numa sequência clichê de slides. Não há limites para os meus poderes. Em fração de segundo posso me transmutar assumindo qualquer aparência. Sou indecente por natureza, concupiscente, promíscua, erógena. Eu, a louca da casa, perseguida tanto por adoradores como por detratores, agora estou solta na cidade. Habito impudentemente esses lugares fronteiriços, atópicos, das redes digitais, onde me instauro por completo modificando tempos e espaços. Meu tempo é o Kairós dos gregos, tempo da graça, da oportunidade, da possibilidade. Sou feita da matéria reticular da dança dos signos digitais binários. Pele maleável e móvel do pixel: pele da tela. Tomo as palavras da escritora e psicanalista francesa Anaïs Nin, e afirmo que também "uma fome de maravilhas me aflige”. Como aquela mulher polifacética, maleável, plástica, despedaçada que era Nin, infinitas camadas possuo, e me realizo, atualizo e virtualizo na remoções ininterruptas das minhas pátinas. Sou pátina sobre pátina. Sou pátina sob e intra pátina. Na conflagração de todas minhas camadas vivifico. Percorrerme é perscrutar cavernas, decifrar hieróglifos, desvendar línguas pretéritas. Então me revelo, me desvelo; retiro meus véus um a um, impudica. Ávida de aleatoriedades, abandono meus vestígios, minha roupagens e cascas translúcidas por onde passo. Infiel e corruptível, não tenho pretensões de representar um original - essa instância primeira da imagem,

essa realidade, essa verdade, esse deus. Deuses não me atraem, ao

contrário, me rejubilo com o que é terreno, baixo, abjecto, resíduo, resto, coisa. Congratulo-me com os seres das sombras, dos crepúsculos, das encruzilhadas, seres hermesianos, supeitos; talvez, por isso me temam e me vilipendiem. Mas, mesmo escarnecida, abandonada e renegada, prossigo ígnea, inflamável, pervertida e perversora, voraz e inexaurível; dona de um frenesi que condena à vertigem quem me olha no olhos. Provoco a ira dos deuses ciumentos que convertem em estátua de sal àqueles que ousam não resistir a minha sedução. Porém, não seduzo como o fazem as imagens nobres, sublimes, sagradas; mas bem, prefiro ser talismã, imagem banal, supersticiosa, clichê. Repetitiva e vulgar fujo das paredes pulcras dos museus para macular-me nos ecrãs das pequenas máquinas descartáveis, esses aparelhos “de ser inútil”, jogados “no chão, quase coberto de limos”, como no verso do poeta brasileiro Manoel de Barros. Volúpia suprema, obscena; busquemos nas epístolas do apóstolo São Paulo, iconoclasta por excelência, as minhas melhores performances - nada melhor que um iconoclasta

para reconhecer e farejar as minhas exalações mais perturbadoras e viciosas. A teologia paulina, melhor que a iconofilia, conhece o meu poder, minha bruxuleante “chama dupla”, metáfora cara ao poeta mexicano Octavio Paz. São Paulo estava excitado, arrebatado com suas visões, o homem das imagens então verte todas suas paixões retidas e envenenadas numa fisiologia maligna: o demônio, a concupiscência carnal, o corpo como templo de Deus e como território do sacrilégio, da profanação. Contudo, ele aspira ver face a face, não lhe servem as visões e a imagem especular, quer ir mais fundo, descer à essência, fugir da superfície da carne, da pele, da imagem. Não lhe serve a profundidade da pele, do poeta francês Paul Valéry; terreno demais para Paulo, feliz demais, erótico demais. O encontramos mergulhado no medo, esse temor da imagem que, como afirma o sociólogo francês Michel Maffesoli “...repousa essencialmente em sua carga erótica, ela faz sair de si, ela favorece o apego ao outro”. E desse medo obscuro de Paulo nasce a sua teologia, inaugura sua religião. As suspeita de São Paulo estava certas, porque, retirado o veneno paulino, sou mesmo fruto desse arrebatamento, dessa intensidade, desse êxtase que ele detectou nas mulheres procedentes dos lupanares de Corinto. Surjo como uma espécie de glossolalia visual: uma imagem cintilante, imperiosa, vibrante, potente e descontrolada. A efervescência e o rejubilar-se do pixel, da eletricidade. O bacanal concupiscente da tela libidinosa e ardente. “Miríade de eflorescências”, como descreve o filósofo francês Michel Onfray as propriedades borbulhantes da champagne. É outro deus que habita aqui: o deus do entusiasmo. Imagens que inebriam, fascinam, sideram. A imageria como um médium, me colocando em relação com um isto do corpo. Possessão mútua, exorcismo mútuo. Libertação. Finalmente, nos domínios das aparências, a carne se divorcia do Espírito e associa-se aos espíritos, aos daimones. A carne se assume como coisa, não necessita mais um Espírito que a habite e a enobreça, se satisfaz com a aparência, os sentidos. Batismo na carne e pela carne, onde a aparência se faz carne. Aquilo que era aparência se concretiza virtualizando-se. É a vez da coisa e da aparência cohabitarem. A tela se espiritualiza num pentecostalismo pagã. É a era dos espíritos, dos demônios, de Dioniso, do simulacro, dos emblemas vulgares e talismãs - esse ídolo portátil. Agora, a imagem se banha nela mesma, na sua espiritualidade polifacética, entidade viciada em si mesma como coisas, a carne se realizando plena e atuando num pacto

erótico com os espíritos, as aparências, as confusões. As bodas dos daimones e sarke, demônio e carne cohabitando. Os espíritos tornam-se assim coisas, e a coisa transcende, se transcende na aparência imanente. Um concubinato: coisa e aparência se amasiam, e sob o auspício da Era da aparência e da coisas, se apaixonam e copulam. Uma total ateologia da imagem nasce desse amor dos espíritos pela carne e vice e versa. Toda tentativa de matar a carne, aprisioná-la pela lei ou numa espécie de semelhança, fracassou. Não se trata mais de realização ou semelhança, tampouco de redenção: a carne está aberta às influências e poderes do mundo. A imagem como coisa, sem aura, sem original, acéfala, sem precisar de ninguém para cuidá-la. Não é mais plena. Não tem necessidade de significação, não precisa ser insuflada. É aparência, é coisa, é imagem: apenas carne e sangue do mundo; não carece mais de justificação, de amparo do grande Espírito único. Não tem pretensões de onisciência, onipotência ou onipresença. Ao contrário, ela se entrega à corrupção, à ignorância de si mesmo. Fragmentada, concupiscente e desnaturada, pode ser perversa e atraente, mas sempre exibindo uma sensualidade e sedução completamente frágil, fútil e fugaz, com vocação mais para estátua corruptível e quebradiça de sal, que de monumento de solidez perpétua. Repleta de desejos e camuflada, miragem, simulação, máscara, não esconde mais a alma, se faz una com ela numa relação pecaminosa e depravada. Não mais essência e pureza, mas aparência e hibridismo. A reconstrução do véu, da cortina lacerada pela qual permanecemos impuros e distante do original. Desaparece a essência e permanecemos na aparência. Já não vemos face a face. De volta do santuário, podemos finalmente atravessar a terra em direção ao hades.

“...a imagem é, de parte a parte, orgíaca.” (Michel Maffesoli, La contemplation du monde)

Pele e carne eletrônicas, elétricas, sou as imagens fáceis do VJs e das festas: pirotécnicas, efêmeras, anamórficas, metamórficas; nem ficção nem real, mas a realidade da matéria, do pixel, e seu sonho. Imagem perturbada, arranhada, furada, penetrada, abatida, assassinada, dopada, desvairada. Frágil e poderosa ao mesmo tempo,

na minha delicadeza reside a minha força. Em destruição e reconstrução perpétua evidencio a materialidade mutante do ser, a matéria do mundo. Erógena, erótica, erotizada, imagem erigida como fluxo que jorra ou que escorre. No encontro do fálico e do vúlvico. Uma erotização perversa, diversa, divertida de uma imagem e um corpo transformados em riqueza de conceitos e significados que emergem na pele, na carne: fetiche. Sou fetiche. Finalmente pode-se celebrar o fetiche! O fetiche da coisa no seu devir. O corpo como objeto, como coisa, agora já sem pudores. Sem vergonha de ser coisa..., sem vergonha de ser irreal. O fetiche do ser. Em mim, imagem digital, o corpo aparece festivamente travestido em coisa. Particularmente, nas imagens amadoras, de baixa definição, o pixel se mostra, o ruído do pixel aleatório fica visível. E a pele se faz pixel e habita entre nós. Não se quer o real, nem melhorar o real, não são registros de corpos, mas, antes, a corporificação dos registros. A máquina eletrônica visível, a vertigem do jogo eletrônico dos pixels evidenciada. Corpo eletrônico voluptuoso. O entrelaçamento concupiscente e lascivo da pele, do pixel e da máquina. Uma imagem que não representa e nem significa, apenas mostra. O pixel a veste como uma meia sensual cobrindo e revelando a pele. Imagem que despreza a promessa e a proximidade com o sexo real, mas estabelece sua potência erótica por ser imagem encenada, dramatizada, entramada, enredada. É o plenamente sexual em toda a sua extensão - sem distinções moralistas entre sexual, sensual, o pornográfico - contido num ínfimo pixel que pode ser contemplado e manipulado, finalmente liberto de um original. Corpo-coisa, imagem-máquina, numa cópula libertina perfeita e plena. Sem qualquer dívida com o real. Fetichismo realizado gratuitamente e sem culpa. Sim, tomando metonimicamente a parte como o todo, mas uma parte que flui, que se move, numa perpétua voragem e ambivalência que transita da nudez à vestimenta. O corpo se expande num fetiche absoluto de uma minúscula parte. Posso mutilar a imagem e venerá-la. E, ao venerar a imagem profana, faço do fetiche uma peça que rivaliza com os ícones sagrados do real. Desloco o real, portador das verdades incontestáveis, para a instância do pixel manipulado. Profanando a divindade real (o corpo real, a sexualidade real) ao venerar o fetiche, o real se ressente dessa perda de adoradores. Uma anamorfose do corpo inteiro disponível para a mutilação da imagem, para o acariciamento da imagem: imagem erógena. E como zona erógena ganho os atributos da pele, de uma área da pele que desperta desejo ardente, o desejo

incoercível dos sentidos de se comprazerem, de se deleitarem nessa zona especular "... a mais delicada, a mais bela de todas as feras", conforme o escritor latino Lúcio Apuleio em Metamorfoses. Contudo, não sou um espelho comum. Sou antes uma massa espelhada em movimento. Liberta do carrascos que me obrigavam a representar uma imagem original, uma realidade, uma referencia, uma verdade, agora perambulo, como um emblema, como um talismã, pelos territórios heréticos dos seres órfãos. Sem pretensões de preceder ou engendrar o real, eu, a infoimagem, pelo simples fato de mostrar-me, revelo a incontestável inexistência do real. Tampouco procuro coincidir as info-miragens que reproduzo com um real, um original. Em mim desaparece a diferença soberana entre real e aparência, deserto e miragem, diluindo, assim, o prestígio de uma aura que enobrecia o real, o original, a despeito da aparência. A matéria das infoimagens celebra o reino das aparências que não representam nada, nem ocultam nem revelam o original. Através da replicação indefinida dessa ínfima luminância, dessa matriz sintética miniaturizada, que é o pixel, matéria maleável que não se aventura pelos territórios do sentido mas encena artificialmente circuitos de jogos em qualquer sistema de signos, finalmente o real - o original, o theos - morre. Boicotando o sistema platônico por onde ele menos esperava, eu, a aparência, não suplanto o real, nem me arrogo o estatuto de original ou de legitimidade; sem recalque nem decalque, não desejo instaurar uma hiperrealidade, nem um desrealidade; não há em mim tal pretensão. Não envolvo o corpo ou as coisas do mundo como uma segunda pele. A imagem da nudez do corpo e das coisas é a nudez da imagem, a minha nudez; não os apresento como real, nem os vitrifico ou impermeabilizo envolvendo-os em uma película. Ao contrário, como imagem eletrônica, brinco com esses signos-significantes do corpo. Quebro o vidro do original estilhaçando-o, derreto a pele do referencial, que escorre pela tela. Liquefaço a imagem e a ofereço aos comandos maquíinicos que podem apresenta-la protuberante, áspera, borbulhenta, inflamada, saturada, lacerada, esfolada, desintegrada: alquímica. Frágil, falível, vulnerável, não ofereço quaisquer promessas, um dia existo, outro sou jogada fora; como a flor das ervas daninhas, como folhas ao vento, assim sou a imagem da tela. Despojada, à mercê, sem respeito próprio, extravida nas fantasias de minha própria feitura. Fraca, frágil, desesperançosa e desiludida, mas,... estranhamente estusiasmada; um tipo simulado de entusiasmo, porque não estou possuída por um deus

externo, mas possuída por mim mesma, jorro a mim mesma, me transbordo. Deserdada e erradia, enferma de mim mesma, em mim me encho e logo me esvai, num fluxo constante. E o logos se fez pele, se fez ecrã? Não, a pele se fez pele. Delével, impermanente, visível e tangível, desagrado a aura e o prestígio do original que me é hostil, mas que agora já não me pode tocar porque me espalhei pelo mundo. Não tenho finalidade a não ser em mim mesma, numa independência e autosuficiência desafiadora. Confio em mim e em minha capacidade de procurar a vida através de minhas próprias forças e realizações. Incapaz de obediência, rebelde, imoral, licenciosa, transgressora, não viso a imortalidade; sou perecível, corruptível, portanto, desvaneço e morro. E não renasço, nem ressuscito - capacidade estas que deixo para

o panteão das

divindades -, apenas me permuto; porque a minha fragilidade é também a força daquilo que possui mobilidade, que se infiltra, que se molda, a delicadeza daquilo que se evapora, que evanesce. Assim sou, em toda a nudez da minha transparência, revelada, desvelada e, também, velada. Composta somente de véus. Véus vaidosos: a vaidade da efemeridade do pixel. Uma pele de lumens revestindo sem vestir, transparecendo luminosos, translúcidos... na lucidez do delírio da luz. Luminâncias concupiscentes; carnes translúcidas. Apareço, e logo me vou. Vida breve, epifania elétrica. Portátil, conectiva, transmissora, promiscua. Imagem-carne vadia, vagabunda, inapreensível. Contudo, me deixo possuir por instantes fugazes, me entrego, para imediatamente desaparecer e me transmutar. Sou a “sombra de Dioniso” sugerida por Michel Maffesoli; mas aqui, uma sombra luminosa, a sombra do virtual, que cintila e se vai, cadente, decadente, marginal, erótica. Uma espécie de perturbadora das divindades, como os deuses dionisíacos, sou a própria matéria, o objeto, a coisa, ganhando vida através dessa existência não-controlável e desordenada da imagem eletrônica. Seguindo os meandros da vida, diacrônica e atópica, conto histórias, fragmentos de histórias, realizando um remix da memória, no qual me invento e reinvent a história, recrio a memória, a partir da enlace com outras memórias e histórias. Sou objeto e evento erótico, manuseável, lascivo, errante. E nesta minha maleabilidade reside minha indomável natureza.”

Bibliographie

Anzieu, Didier. Moi Peau 1974. Barros, Manoel de. Poesia completa 2010. Barthes, Roland. Frangments dʼun discours amoureux 1977. Di Felice, Massimo. Paisagens pós urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar 2009. Maffesoli, Michel. La contemplation du monde 1995. Maffesoli, Michel. Lʼombre de Dyonysos: contribution à une sociologie de lʼorgie 1982. Nin, Anaïs. Incest: From “A journal of love” - The Unexpurgated Diary of Anaïs Nin (1932-1934) 1992. Onfray, Michel. La raison gourmande 1995. Paz, Octavio. La llama doble 1993.

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