A voz como gesto sonoro na música do cinema brasileiro: Uma análise da trilha sonora de \"Um Copo de Cólera\" e \"Domésticas\"

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VI ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA 1

“As dim ensões do cotidiano na interface m ídia, m úsica e consum o ” 05 a 07 de agosto de 2015 – UFES, Vitória - ES  

A VOZ COMO GESTO SONORO NA MÚSICA DO CINEMA BRASILEIRO1 Uma análise da trilha sonora de "Um Copo de Cólera" e "Domésticas" Geórgia Cynara Coelho de Souza Santana2 Universidade de São Paulo, São Paulo – SP Universidade Estadual de Goiás, Goiânia – GO Resumo: Este artigo visa perceber as performances vocais presentes na música de André Abujamra para "Um Copo de Cólera" (Aluizio Abranches, 1999) e "Domésticas" (Fernando Meirelles e Nando Olival, 2001) em suas relações com os demais elementos sonoros e imagéticos em cada caso, por meio da análise fílmica (Aumont e Marie, 2004). Para tanto, recorre-se ao conceito de performance e performance mediatizada, além de estudos sobre a voz no canto e suas especificidades/potencialidades, encontrados em Zumthor (2000), Valente (1999), e Storolli (2009); e considerações teóricas sobre o som, a música e a voz no cinema, em Chion (2004). Palavras-chave: André Abujamra; performance; voz; música; cinema. Corpo, voz, performance Os estudos de performance compreendem visões múltiplas, dialógicas e/ou não consensuais, devido às diversas abordagens do objeto em diferentes áreas do conhecimento, a partir das décadas de 1960 e 1970. No entanto, conforme Storolli (2009), em várias linhas de estudos, é recorrente a menção à ação e à atuação/encenação e o processo de sua materialização na corporeidade como traços definidores da performance. À corporeidade, a autora acrescenta a espacialidade, a sonoridade e a temporalidade, aos elementos básicos de materialização da performance. Zumthor (2000) também considera o corpo como a própria realização artística em processo; logo, a voz consiste em uma ação que parte do corpo e expande seus limites, representando-o por meio da vibração, da projeção sonora e de suas ressonâncias nos espaços internos e externos: “Ela [a voz] atravessa o 1

Trabalho apresentado no GT 6: Mídia, Música e Audiovisual do VI MUSICOM – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música, realizado de 05 a 07 de agosto de 2015, na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES. 2 Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por meio do qual desenvolve pesquisa sobre a música de André Abujamra no cinema brasileiro. Docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: [email protected].

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limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal” (ZUMTHOR, 2000, p. 98). O autor ressalta a complexidade da ação performática, por meio da qual “a mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora” (1983, p. 32). Nas artes performáticas (teatro, música, dança), há, portanto, a presença física e a ação consciente e restaurada previamente organizada - de seres dotados de certas habilidades, no espaço-tempo e na ressonância de sua demonstração, ante a apreciação de um público. As potencialidades musicais da voz humana em performance se ampliam e complexificam a partir da ruptura com o tonalismo e do advento/atualização de tecnologias de produção e reprodução sonora que, de acordo com Valente (1999), permitem a coexistência da “viva voz” com a voz gravada, manipulada, decodificada e reprocessada. Tal “esquizofonia”3 permite o surgimento da performance mediatizada, marcada pela separação entre a execução ao vivo e a apreciação de sua reprodução por meio da mediatização técnica - o que resultou na ampliação do acesso, via disco e rádio, a outras vozes distantes. “Ampliou-se, portanto, não somente a visão mas também a audição de mundo” (VALENTE, 1999, p. 148). Além do maior acesso e da ausência do corpo físico - do qual restam apenas vestígios registrados -, passam a fazer parte do universo da música cantada muitos sons vocais antes exteriores ao domínio da arte e da cultura musical tradicional,

como

tosse,

suspiro,

bocejo,

arroto,

etc.

Esse

conjunto

de

transformações evidencia a voz como gesto sonoro. Una vez eliminado todo lo que no es estrictamente suyo – el cuerpo que la sustenta, las palavras que transmite, las notas en las que canta, dos indicios que transmite sobre la persona que habla y el timbre que la matiza – ?qué queda? Ese extraño objecto que facilita las expansiones poéticas de quienes no se privan de ella (CHION, 2004, p. 12).4

É no contexto da convivência entre essas múltiplas vozes em performances mediatizadas que surge o compositor, músico, ator e artista multimídia André Abujamra. Em discos e filmes, sua obra musical é marcada pela convivência

3

Conceito elaborado por Schafer (1992), definido pelo deslocamento do som do espaço-tempo da emissão para um novo contexto, possibilitando a emergência da performance mediatizada.

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"Uma vez eliminado tudo o que não é estritamente seu [da voz] - o corpo que a sustenta, as palavras que transmite, as notas nas quais canta, dos indícios que transmite sobre a pessoa que fala e o timbre que a matiza o que fica? Esse estranho objeto que facilita as expansões poéticas daqueles que não se privam dela" (tradução da autora).

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entre sons vocais verbais e não verbais dentro do contexto abrangente e multifacetado da música pop. O compositor inventa idiomas inexistentes e reconfigura a pronúncia das palavras em idiomas estabelecidos, borrando os limites semânticos entre os gestos verbal e não-verbal e evidenciando as qualidades da voz enquanto ação sonora expressiva. Utilizando-se da atualização das tecnologias de produção e reprodução sonora e de um repertório diversificado de sonoridades de várias origens, o artista mistura diferentes gestos sonoros e vocais tanto em seus projetos musicais/fonográficos quanto nas composições de trilhas para cinema. A voz no cinema Com o advento do som sincronizado, no final dos anos 1920, tornou-se possível gravar e reproduzir a voz conjugada à imagem. No entanto, a possibilidade de direcionar para a fala de personagens informações importantes da narrativa cinematográfica provocou, conforme Chion, o esquecimento do gesto vocal. A voz no cinema representava, então, não uma vibração sonora, uma presença em si, mas um canal para a transmissão de conteúdo verbal inteligível: "La voz está ahí para que la olvidemos en su materialidad, y ése es el precio que paga por desempeñar su principal oficio" (CHION, 2004, p. 14)5. O autor destaca a grandeza da voz no cinema em relação aos corpos que a emitem justamente pela necessidade estética criada com o cinema sonoro de total inteligibilidade do texto falado, dada a hierarquização da percepção do ouvido humano - acostumado, antes mesmo do nascimento, a ter/buscar a voz como principal meio estruturador da escuta e de transmissão de informação. Isso levou à busca pela total clareza/audibilidade das falas nas gravações e à hierarquização dos elementos sonoros na mixagem, com a voz em primeiro plano. Essa construção consolidou-se na linguagem cinematográfica a ponto de provocar o receio, por parte dos editores de som, de que qualquer inovação na banda sonora que comprometesse a clareza dos diálogos fosse interpretada como

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"A voz está aí para que a esqueçamos em sua materialidade, e esse é o preço que paga por desempenhar sua principal função" (tradução da autora).

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falha técnica e o reforço da busca "automática" e prioritária, por parte do espectador, pela compreensão do que é falado no filme. Desde que el mundo es mundo, son las voces las que muestran las imágenes y confieren al mundo un orden de las cosas, dándole vida y nombre. La primera presentadora de imágenes es la Madre, cuya voz, antes del aprendizaje (eventual) de los signos escritos, hace que las cosas se destaquen dentro de una temporalidad viva y simbólica. Tanto en la función de charlatán y de narrador de historias como en la tradicional voz en off del comentario, subsiste siempre algo de aquella función original6 (CHION, 2004, p. 58).

Essa função de destacar a imagem relaciona-se à orientação imediata do espectador por meio da sincronia com o som. Assim, diálogos e ruídos cuja fonte encontra-se visível na tela colaboram para a manutenção da ilusão de profundidade na imagem bidimensional, enquanto a música extradiegética7 e a voz off de comentário orientam-se para um lugar imaginário, fora de campo. Os sons fora da diegese tendem a despertar a atenção e a crença dadas a clareza, a intensidade/proximidade/"intimidade" com o espectador, a ausência de reverberação/espacialidade e o destaque frente aos demais elementos sonoros do filme, enquanto os sons sincronizados em cena costumam ser considerados redundantes em relação à imagem. Entre uns e outros, sons e vozes "errantes" entre o campo e o fora de campo imagéticos - os acusmaseres, segundo Chion apresentam-se como específicos do cinema, porque perceptíveis apenas no movimento e no curso do tempo. Fora de campo e para além do comentário em voz off, o som vocal também pode estar na música de cinema sob a forma de canto, seja na forma de canções preexistentes8 - emuladoras de uma memória extra-fílmica, veiculadoras de mensagens verbais envoltas em música de determinada configuração harmônica e melódica e ressignificadas no contexto da narrativa -, seja na música original 6

"Desde que o mundo é mundo, são as vozes que mostram as imagens e conferem ao mundo uma ordem das coisas, dando-lhes vida e nome. A primeira apresentadora de imagens é a Mãe, cuja voz, antes da aprendizagem (eventual) dos signos escritos, faz com que as coisas se destaquem dentro de uma temporalidade viva e simbólica. Tanto na função de charlatão e de narrador de histórias como na tradicional voz off do comentário subsiste sempre algo daquela função original" (tradução da autora).

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Música extradiegética é aquela que não participa da cena, não sendo, portanto, ouvida pelos personagens; é inserida sobre a imagem, vinda de um outro lugar.

8

Além da inserção de canções preexistentes, há ainda a possibilidade de haver uma canção-tema composta para o filme, recurso comum no gênero musical.

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instrumental (score). Enquanto nas canções o que em geral se destaca é o conteúdo verbal e seu significado - "coloridos" com a incorporação da música -, no score sem conteúdo verbal ela pode se consagrar mais facilmente como gesto sonoro. Presente no cinema brasileiro desde o início do século XX, antes do advento do som sincronizado, a canção perdura até hoje. Graças à tecnologia digital, trilhas instrumentais convivem com diferentes vozes, cada vez mais em trânsito entre ruídos, efeitos e diálogos. Filmes como "Um copo de cólera" (Aluizio Abranches, 1999), "Bicho de Sete Cabeças" (Laís Bodanzky, 2001), "Domésticas" (Fernando Meirelles e Nando Olival, 2001) e "Durval Discos" (Anna Muylaert, 2002), cuja música original é assinada por André Abujamra, sua habilidade em promover relações contundentes entre som e imagem e entre música e demais elementos sonoros (diálogos, ruídos, efeitos), além da vocação para construir e “administrar” texturas musicais densas, combinando uma gama variada de timbres, contexto em que a voz adquire possibilidades que, ao mesmo tempo, superam ou elevam a simples entoação da palavra. Em busca dessas peculiaridades da voz, serão analisadas as obras "Um copo de cólera" (Aluizio Abranches, 1999), e "Domésticas" (Fernando Meirelles e Nando Olival, 2001). A partir do método de análise fílmica proposto por Aumont e Marie (2004) - no qual cada obra gera suas próprias demandas de análise -, interessa ao estudo a relação entre a música vocal tanto com os demais elementos sonoros quanto com a imagem cinematográfica. "Um copo de cólera" (Aluizio Abranches, 1999) Na adaptação para cinema do livro homônimo de Raduan Nassar, a voz transita entre o racional (argumentação nos diálogos) e o transe (gestos sonoros na trilha musical original). Já nos créditos iniciais, tem início a música composta por André Abujamra para o filme: vozes agudas femininas que reverberam em um ritual que lembra uma saudação tribal, sobre uma base percussiva que combina sons graves e agudos e palmas. O canto de densa textura de vozes femininas é colocado sobre um plano-detalhe de saúvas que se movimentam dentro e fora do formigueiro.

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A voz é o eixo da "dança" estabelecida entre o homem (Alexandre Borges) - ex-ativista e proprietário de uma chácara no interior de São Paulo, onde constrói seu mundo particular - e a jornalista politizada interpretada por Júlia Lemmertz, e apresenta-se conjugada à expressão corporal dos atores e aos paralelismos da montagem. À sequência inicial sucedem planos de vozes silenciadas, em que predominam o som ambiente da estrada e os ruídos dos carros que ali passam, em direção à chácara. Ao chegar, o homem passa pela mulher sem trocar palavra. É a mulher quem quebra o silêncio, perguntando o que ele tem. Ele pega um tomate na cozinha, tempera com sal e o devora, lentamente, em close up. A mulher observa-o com desejo, enfatizado pelos ruídos e enquadramentos fechados. A primeira fala do homem ocorre em off, em maior intensidade e proximidade com o espectador, e, portanto, em posição de superioridade em relação à voz feminina: "É como se fosse um ritual silencioso. Quanto mais indiferente eu me parecesse, mais a ela apetecia" (ABRANCHES, 1999). Aqui, o off mantém a tradicional característica explicativa, ironicamente justificando o silêncio com palavras, explicitando algumas "regras" do jogo entre os personagens e confirmando o ritual sugerido pelas vozes femininas da música durante a sequência das saúvas. O silêncio das falas a caminho do quarto (som ambiente evidenciado) é quebrado novamente pelo homem, que, em off, descreve, ora redundante, ora poeticamente, suas ações na imagem. Quando ele toca a mulher no sexo e tira sua saia, ressurgem o som agudo percussivo, e as vozes femininas dos créditos iniciais. Os dois se tocam e se cheiram, num ritual de acasalamento. Ela pega a saia e cobre a cabeça, como uma imagem sagrada, reforçando a ideia do transe. Fica evidente o contraponto entre as vozes masculina e feminina no filme: esta apresenta-se primeiro, sobre a imagem das formigas, como uma voz-gesto ancestral - a "voz da Mãe", a primeira voz que se ouve e se reconhece, como nos lembra CHION (2004) -, o que é reforçado pela quebra emocional do silêncio pela mulher. A voz masculina, em contraponto, apresenta-se como a voz da razão, da estratégia e do controle, e se destaca pelo conteúdo verbal que carrega. A saia torna-se a tela na qual são exibidas as imagens de sexo (flashback) sobre uma música orquestral extradiegética, que sugere um vínculo

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maior que o carnal ora demonstrado pela música vocal percussiva anterior. A trilha orquestral de Abujamra, de densa textura de cordas e melodia dramática, é o único elemento do plano sonoro neste trecho, e, com o auxílio da câmera lenta, imprime suavidade e delicadeza (amor) ao sexo animalesco na imagem, em contraponto à música vocal do desejo de possessão dos corpos. Quando os dois atingem o orgasmo, a percussão se une à música orquestral, enquanto, na imagem, são mostrados alternadamente os rostos de um e de outro, em close up. O solo de violino, alternado com a maior densidade de textura da trilha orquestral, dá o tom da memória do homem, que passa da projeção na saia ao seu próprio "solo", ocupando toda a tela. O carnal e o espiritual alimentam-se mutuamente, assim como música e imagem: durante um novo orgasmo, a música orquestral original soa em notas ascendentes; recua quando o casal sai do quarto e seu jogo/ritual continua na areia, em meio a risadas e ao som dos insetos do lugar. Ao amanhecer, a voz masculina em off retorna para reafirmar o seu controle e o do personagem. No banho, ele pede à mulher, em tom solene: "Me lave a cabeça. Eu tenho pressa disso". Ela obedece, enquanto a voz descreve o prazer masculino, em primeira pessoa. Nua e ajoelhada, ela lhe calça os sapatos, demonstrando sua submissão consentida. Na cozinha, dona Mariana - mais uma figura feminina em condição de serviçal -, é tratada com rispidez pelo patrão. O rosto do homem transforma-se em cólera, acentuada pela trilha percussiva que ressurge. Diante da cerca viva, ele vê o estrago feito pelas saúvas (em close up) - sobre as quais ele não detém controle -, e as vozes rituais femininas da música voltam a soar com intensidade. O homem perde o próprio prumo, gritando impropérios contra as formigas, borrifando veneno e pisando com violência contra o formigueiro. O som confuso da sequência mistura os gritos femininos da música, os latidos constantes do cachorro e a voz agressiva do homem, que pela primeira vez a revela destacando-a como gesto sonoro. Com a aproximação da mulher, ele se queixa (em off) de seu posicionamento político, de sua falta de iniciativa no sexo, demonstrando, ainda, a superioridade do conteúdo carregado pela voz em relação ao gesto apagado pela palavra e pela brutalidade na imagem. É como se a presença das saúvas

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"destravasse" a voz emocional do homem, ainda que dependente da palavra. Ela, ao contrário, começa a provocá-lo: "Não é pra tanto, mocinho que usa a razão". Paralisado pela raiva - enfatizada pelo efeito sonoro de sopro breve e intenso, como o suspiro de uma fera raivosa -, ele se volta lentamente para ela. A partir daí, há uma alternância recorrente entre planos de ação do homem na diegese e planos meta-narrativos em que ele, dentro da casa e fora da ação, olha diretamente para a câmera (espectador) e explica, com irritação e ironia, os motivos e reações decorrentes de sua ira. A voz dele interliga estes planos de modo a superpor ou transitar, com o poder que lhe é conferido, entre o off durante a interação com os demais personagens e o on nos planos explicativos: " Tranquei-me a palavra. Ela não teve o bastante; só o suficiente", diz ele, olhando para a câmera. À mulher cabe, em seu reduzido espaço verbal e imagético em comparação com o masculino, provocar e defender-se da agressividade. Vale ressaltar que durante a discussão o homem é acompanhado pela câmera a cada movimento, enquanto a mulher é revelada de forma estática, o que demonstra, também na imagem, a supremacia masculina. A interação com a música vocal, que se torna o espaço representativo legítimo da voz da mulher na narrativa, ocorre também sobre os planos explicativos do homem, quando este cita as saúvas. A associação da imagem dos insetos com a trilha musical de vozes femininas e a personagem de Júlia Lemmertz coloca tais elementos como responsáveis pela interferência não quista no mundo construído pelo personagem masculino, porque fora do seu controle e dos caminhos da razão: "... e as malditas insetas [sic] me tinham entrado em tudo quanto era olheiro, pela vista, pelas narinas, pelas orelhas, pelos buracos das orelhas especialmente. E alguém tinha de pagar. [...] É esse o suporte espontâneo da cólera". Esse sentimento é reforçado sonoramente com os latidos do cachorro cuja

imagem

em

plano-detalhe

é

inserida

na

sequência

-,

combinados

posteriormente com os guinchos dos macacos. Tais sons, além da função dramática de aumentar a tensão e fazer coro à crescente animosidade entre os personagens também acompanhada pela crescente instabilidade dos movimentos de câmera -, valorizam a presença do ambiente.

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As vozes exaltadas do casal em cólera contrastam com a docilidade dos serviçais Mariana e Antônio, e dos filhotes de coelho vacinados pelo patrão enquanto discute. A continuidade da briga é revelada, em um dos planos, através das gaiolas dos filhotes, como se estas delimitassem a arena dos ataqueis verbais. As poucas palavras sarcásticas da mulher parecem enfurecer ainda mais o homem, que a todo instante tenta afirmar seu poder pela força e pela voz (on e off). A agressão verbal é combinada à violência física, ao que a mulher responde com desejo, confirmando a cólera e a violência como componentes do ritual. O jogo é quebrado, no entanto, pela recusa do homem, que não cede à sedução e humilha a mulher, expulsando-a. O grito feminino de dentro do carro que parte ("Brocha!") põe fim à discussão, mas reverbera no orgulho do homem que, gritando, se vira do avesso, como descrito simultaneamente pelo off: "Um ator em carne viva, em absoluta solidão, às voltas com uma zoeira de sangue e vozes". A voz off perdura sobre as imagens da infância do personagem naquele mesmo lugar: o menino sob a mesa espia as pernas das mulheres através das saias, remetendo à saia que, tirada da parceira pelo homem adulto, serve de superfície/faísca para a projeção de suas lembranças. Soam os instrumentos agudos de percussão do tema musical das saúvas, num prenúncio das consequências do desejo daquela criança no futuro. A ideia da "profecia" é confirmada pela reverberação do motivo musical percussivo nos planos seguintes (família à mesa, batendo palmas e cantando uma música que o espectador não ouve), a ponto de descaracterizá-lo ritmicamente, em concomitância à voz masculina adulta, em off. O tema continua ressoando após o corte seco na imagem, ao que sucede o plano-detalhe da mãe dizendo ao filho: "o amor é a única razão da vida". A frase é repetida pelo homem após o transe de cólera, confirmando a importância emocional e simbólica da "voz da Mãe". Deitado sozinho na areia em posição fetal, ele chora, demonstrando, finalmente, sua voz em puro gesto sonoro. O som ambiente ganha intensidade, enquanto os empregados se aproximam para ajudá-lo. Dona Mariana comenta sobre a ninhada de treze filhotes de um dos coelhos, destacando, por meio da palavra, a continuidade da vida e a circularidade do ritual que a gera e é gerado por ela.

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Depois de um fade out de som e imagem, à mulher é concedida, pela primeira vez, a oportunidade (poder) da voz off, sobre imagens de seu carro passando pelo portão da chácara, em um fim de tarde. Também pela primeira vez, ela olha e fala diretamente para a câmera, contanto ao espectador sobre o momento em que o homem a esperava no quarto. É revelado o ponto de vista feminino do ato sexual que precede a cólera, com o retorno do tema orquestral de André Abujamra combinado à voz feminina em off. A câmera revela o homem nu, dormindo na posição fetal que lembra seu estado pós-transe. A ternura da voz feminina que cobre a imagem cede lugar à intensidade da música orquestral, confirmando o caráter emocional de ambos os elementos sonoros. Sobre a imagem da mulher de pé diante do homem deitado na cama (inversão da posição de fragilidade), surge, na música, um dueto de violinos, em melodias consonantes e simultâneas que embalam o ritual do sexo, acrescido de mais texturas ao longo dos créditos, confirmando a circularidade do ritual e a voz da Mãe como a voz da verdade. "Domésticas" (Fernando Meirelles e Nando Olival, 2003) Em "Domésticas", a voz se desenvolve em quatro camadas básicas, combinadas ao longo de todo o filme: a da diegese - a vida das personagens principais em diálogos em ações -; a testemunhal - quando as personagens refletem e opinam verbalmente sobre a própria vida, a vida alheia e sobre suas condições de trabalho -; as canções extradiegéticas preexistentes - quando a voz cantada/falada combina-se à música para demonstrar os sentimentos e o repertório musical que as personagens cultivam por meio da audição rotineira do rádio -; e a da trilha original extradiegética composta por Abujamra - quando a voz decompõe a palavra em gestos melódicos, harmônicos e rítmicos. A voz surge sobre as cartelas iniciais, lendo o nome dos patrocinadores. A doméstica é caracterizada de imediato por meio da deficiência na educação formal: no som, por meio da leitura trucada; na imagem, pela caligrafia cursiva de uma iniciante na escrita sobre azulejos de banheiro. Além de localizar as domésticas em uma classe social, a voz revela a singeleza, o esforço em decifrar as palavras, a pronúncia incomum em outros idiomas e a simplicidade dos comentários (humor).

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Sobre a tela preta, ouvimos uma voz feminina que logo atribuímos à doméstica Créo (Lena Roque), revelada em close up e plongée na imagem em preto e branco. Em depoimento à câmera, sua voz carrega a informação verbal com um tom reflexivo, enquanto, ao fundo, ouve-se um coro de vozes entoando uma melodia suave, melancólica e constante. A imagem sem cor, com foco no rosto e na fala, e as vozes em coro discreto ao fundo constituem as sequências da camada testemunhal, em que as personagens, deslocadas de seu cotidiano, refletem sobre o seu estar no mundo. Assim é com Quitéria (Olívia Araújo) - que fala sobre a diferença de linguagem entre ela e a família da patroa - e Cida (Renata Melo) - sobre a desilusão de chegar ao Rio e ter uma vida difícil. Alternadas com planos do cotidiano (camada da ação e dos diálogos na diegese), as sequências de depoimento também sofrem variações conforme a montagem e o tom das cenas que as antecedem ou sucedem. Quando Raimunda (Cláudia Missura) fala sobre injustiça social, por exemplo, sua voz está em off sobre imagens coloridas da favela (cor vinculada à "realidade"); quando seu rosto aparece sincronizado à fala, a imagem está sem cor. Outro plano testemunhal com imagens coloridas é o do vigia Antônio (Eduardo Estrela), que a princípio não fala de si, mas da vida no prédio onde trabalha, e é interrompido por Gilvan (Tiago Moraes), que busca trabalho no condomínio (humor). Outras sequências de depoimento não contêm a música vocal constante Cida falando sobre seu casamento entediante e o gosto por sexo -; ou ocorrem sobre a introdução de uma canção que vem logo antes ou logo depois - Cida comentando o casamento de Raimunda -; ou ainda apresentam outra música vocal cômica de Abujamra - como no primeiro testemunho de Roxane (Graziella Moreto); ou durante sequências com várias falas curtas de diferentes personagens sobre suas preferências, contando histórias de acusações de roubo por parte dos patrões, ou dando palpites esdrúxulos sobre o sumiço de Kelly (Roberta Garcia), filha de Créo, com o namorado Ausprício (rapper X). Os depoimentos contrastam com planos das personagens em seu cotidiano. Após o primeiro testemunho de Créo, surge o título do filme sobre a música vocal que depois está na fala de Roxane: a voz de Abujamra (melodia principal) é acompanhada de sons consonantais que marcam o ritmo (beatbox) e de

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vozes agudas que combinam pulso e harmonia. A música termina com o som de uma campainha - Quitéria se apresenta a uma nova patroa, repetindo mecanicamente o mesmo texto em todas as casas onde vai trabalhar (humor pela repetição do texto e do fracasso da doméstica em se manter no trabalho). As camadas de voz da trilha musical extradiegética de Abujamra aparecem combinadas tanto às vozes de depoimento quanto às das personagens em sua interação com o mundo. Algumas músicas pontuam a transição entre cenas, o deslocamento de personagens de um lugar para o outro, seus sentimentos - como durante a sucessão de fotos vulgares que Roxane faz para tentar ser modelo, sincronizadas a um bolero de vozes (engano, desilusão), que também soa durante o depoimento de Quitéria e suas testemunhas à polícia, após ser acusada de participar da quadrilha que assaltara a casa de sua patroa. Outras dão a ideia de simultaneidade de ações, como quando Gilvan lava carros no estacionamento do prédio, enquanto as domésticas trabalham em diferentes apartamentos. Outras músicas vocais ainda interferem na tensão/alívio da narrativa como na tentativa de assalto ao ônibus por Gilvan e seu amigo Jailto (Robson Nunes). Com a voz de assalto, a tensão aumenta e assim a densidade da textura do samba de vozes (diferentes timbres simulam cuíca, surdo, pandeiro, agogô), diminuindo quando Roxane humilha os rapazes, portadores de uma arma de brinquedo, sob as gargalhadas e palmas dos passageiros. O mesmo samba é ouvido quando Roxane e Gilvan se encontram na casa onde trabalha Zefa (Cleide Queiroz) - amiga de Roxane e madrinha do rapaz -; e em ritmo mais lento quando homens uniformizados como prestadores de serviço levam tudo da casa da patroa de Quitéria, com o consentimento da doméstica, enganada por sua ingenuidade. O samba vocal extradiegético confirma ao espectador que se trata de mais um crime. A trilha vocal constante e melancólica das sequências de depoimento sai do plano reflexivo para o cotidiano de Créo em busca de Kelly, que fugira com o namorado. A personagem mais calada dentre as colegas vaga triste pela cidade em time-lapse9, procurando pela filha em ruas, bares movimentados, parque de diversões. À música são acrescidos os sons dos ambientes por onde ela passa. Seu 9

Técnica cinematográfica que reduz a frequência dos frames por segundo em relação à frequência padrão do filme (24 a 30 quadros por segundo), dando a impressão de passagem mais rápida do tempo (lapsing).

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rosto sério e misterioso é revelado no reflexo da geladeira em inox na cozinha da patroa, ou no contra-luz das lâmpadas intermitentes dos brinquedos do parque. Sua voz surge em diálogos curtos com os colegas de trabalho, ou em offs nos quais ela expõe sua visão moralista de mundo. A personagem e a música que a acompanha e que dá voz a sua tristeza -, assim como a fotografia escura das sequências em que aparecem, estão na contramão da vida corriqueira, frenética e colorida dos demais personagens do filme. Em contraponto às sequências melancólicas de Créo e às vozes testemunhais também estão as canções preexistentes, que revelam o gosto musical das domésticas, vinculado ao hábito de limpar a casa ouvindo o radinho de pilha. Incorporadas à vida pelas próprias personagens, as canções estão situadas na extradiegese em grande intensidade, num convite ao espectador para que também disfrute das emoções vividas na tela, em identificação com as personagens. "Você é doida demais" (Lindomar Castilho) é a primeira canção que surge no filme, apresentando as domésticas em seus afazeres, como em um videoclipe. "Eu vou rifar meu coração", do mesmo compositor, aparece quando Cida é atropelada por Uilton (Luciano Quirino), e os dois acabam se envolvendo, apesar do casamento "parado" que ela mantém com Léo (Plínio Soares). Quando este morre em frente à TV, Cida se desfaz da poltrona já ocupada por Uilton, e a canção de Sidney Magal ("Tenho") enfatiza o frenetismo da doméstica no trabalho e no sexo. As canções românticas embalam a esperança de Raimunda em encontrar um príncipe encantado ("A namorada que sonhei", de Nilton César) - apesar de seus romances frustrados com o primeiro namorado (Déo Teixeira) e Gilvan - e o sonho de Mercedes (Cybele Jácome) - realizado na imagem -, de dançar com o ídolo Raul Gazolla (participação especial). "Estrada do sol" (Perla) é a canção que acompanha a saga de Roxane, por caminhos duvidosos, em busca do estrelato, e consagra, em primeiro plano sonoro, a realização da sonhadora Raimunda, que se casa com Jailto, após o sumiço do ex-namorado Gilvan - que perdera o encontro com a namorada e a festa do amigo após passar a noite preso no elevador. Recorrente na paisagem sonora cotidiana das personagens, o radinho de pilha, geralmente em plano sonoro de fundo, oscila entre visível e invísivel na imagem. A importância do rádio é confirmada quando o locutor dá a notícia do

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desaparecimento da filha de Créo (sensação de proximidade); quando Léo, marido de Cida, tenta consertar o rádio diante da TV, ignorando-a. O aparelho adquire um maior destaque narrativo e sonoro quando o ruído da mudança de estação é utilizado para que se mostre, alternadamente, as ações de cada personagem enquanto Gilvan está preso no elevador: Raimunda o espera na casa da patroa, para que ele a peça em casamento; Jailto o aguarda para a festa na laje; Roxane gargareja no banheiro; Quitéria e Zefa cantam "Domingo feliz" (Ângelo Máximo). Quando Gilvan sai do elevador, inicia-se um dos vários raps presentes no filme, realçando a interpretação do personagem, que, perdendo Raimunda, acaba no mundo do crime. Representação sonora do contexto sócio-cultural das personagens, o rap está na narrativa em forma de vinhetas curtas (planos de transição ou deslocamento de personagens); na atuação de X, rapper que interpreta o motoboy e rapper Ausprício - cuja imagem em preto e branco em estética de videoclipe surge enquanto Créo ouve a música do rapaz no fone de ouvido de Kelly. A energia rítmica do rap, combinada ao ritmo e entoação das vozes faladas, gera impacto na montagem pela brevidade da inserção e pela alta intensidade. O rap presente na vida de Kelly dá lugar à música vocal constante, que se mistura aos sons da cidade no plano geral do reencontro com a mãe, sobre uma ponte. A voz das personagens dá lugar a um longo abraço - momento em que os demais elementos sonoros se destacam em textura - e retorna em alta intensidade, apesar do alargamento do plano geral, quando Kelly conta à mãe sobre seu novo emprego em uma empresa. O destaque concedido à informação verbal remete à esperança das domésticas em ter uma vida melhor no futuro - sentimento que se mistura à alegria da canção de Ângelo Máximo ("Domingo feliz") sobre imagens de rostos sorridentes de várias domésticas, do filme e da "vida real", ao lado dos créditos principais em letra cursiva. Os demais créditos sobem na tela enquanto são mostrados fragmentos de uma doméstica reclamando da patroa, falando sem parar, enquanto se ouve a alternância entre texturas mais ou menos densas da música vocal de Abujamra (sem melodia, com ritmo marcado). Considerações finais

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O minimalismo e a densidade presentes nas músicas de Abujamra demonstram a flexibilidade das canções na incorporação de novos gestos vocais. O humor trazido pela simplicidade das letras (quando há), por suas combinações silábicas, pelo encadeamento das palavras ou expressões vocais de outra ordem, pela métrica e pelos arranjos musicais também é uma característica de grande parte das composições do artista. A fala e o canto em "Domésticas" misturam-se não somente nas canções que demonstram as emoções e posicionam cultural e socialmente as personagens (o rap e o romântico/brega), mas nos próprios diálogos repletos de ritmo e musicalidade. Essas vozes são atravessadas pela trilha vocal composta por Abujamra, responsável pela desconstrução da palavra e pela reciclagem de sílabas, vogais e consoantes, juntas ou separadas, em ritmo, melodia e harmonia, em gestos vocais cujo significado transcende a palavra e só é possível em sua relação com os demais elementos sonoros e com a imagem. Em "Um copo de cólera", a voz também opera em camadas de percepção e significação que interagem entre si, demonstrando o jogo entre a razão e o desejo feminino e masculino por meio da adaptação da poética verbal de Raduan Nassar, da interpretação dos atores e das composições musicais de Abujamra. Em uma peça, a voz opera como provocadora da desordem que mina a razão; na outra, restabelece a harmonia dos corpos na consumação amorosa do desejo. Portanto, em ambos os filmes, "voz é poder" - como afirma Chion (2004), tanto em verbo quanto em gesto. O empoderamento pela voz, no entanto, não está apenas na supremacia da palavra, mas também no uso criativo do gesto vocal. Referências AUMONT, J. e MARIE, M. A Análise do Filme. Lisboa: Texto & Grafia, 2004. CHION, Michel. La voz en el cine. Madrid: Ediciones Cátedra, 2004. SCHAFER, R. M. O ouvido pensante. São Paulo: Edunesp, 1992. STOROLLI, Wânia M. A. Movimento, respiração e canto: A performance do corpo na criação musical. Tese de Doutorado apresentada à ECA/USP, 2009. VALENTE, Heloísa de A. D. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume, 1999.’ ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Educ, 2000.

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