A VOZ DA CÂMARA: FOTOGRAFIA, INTERVENÇÃO, CIDADANIA

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Descrição do Produto

global  ­‑art ­‑scapes (series)

1

CIDADANIA,PAISAGEM URBANA E JARDIM PÚBLICO

CITIZENSHIP, URBAN LANDSCAPE AND PUBLIC GARDENS FILOMENA SERRA (organização/editor)

2014 FA C U L D A D E D E C I Ê N C I A S S O C I A I S E H U M A N A S   FA C U LT Y O F S O C I A L A N D H U M A N S C I E N C E S UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA  NEW UNIVERSITY OF LISBON

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Organização e coordenação: Filomena Serra Investigadora e membro integrado do Instituto de História da Arte, IHA-FCSH-UNL Conselho editorial e científico: Margarida Acciaiuoli, Ana Duarte Rodrigues, Filomena Serra

As contribuições reunidas nesta obra resultaram de um Workshop intitulado Cidadania, Paisagem Urbana

Título da Série: Global Art Scapes Título da Publicação: Cidadania, Paisagem Urbana e Jardim Público

e Jardim Público organizado por Ana Rodrigues e Filomena Serra, em 13 de Maio de 2013, no âmbito do

Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa

curso da Pós­‑Graduação Jardins e Paisagem.

+351 21 790 83 00; Fax: +351 21 790 83 08

Os textos não serão traduzidos em inglês;

[email protected]

só os títulos e a apresentação.

Capa, grafismo e paginação: Pedro Serpa

The papers collected in this volume are the result

Imagem da p.7: Andy Goldsworthy

of the workshop on Citizenship, Urban Landscape

Impressão e acabamento: Tipografia Várzea da Rainha Editores, S.A.

and Public Gardens, organized by Ana Rodrigues

www.varzeadarainha.pt

and Filomena Serra, on May 13, 2013, during the Postgraduate Course on Gardens and Landscape.

ISBN: 978-989-20-5115-4

However the papers will not be translated into

Depósito legal: 384331/14

English; only the titles and the Introduction.

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ÍNDICE TABLE

Introdução  Introduction

4

Margarida Acciaiuoli / Filomena Serra Autores  Authors

5

Cidade, cidadania & espaços públicos  The City, citizenship & public spaces

9

Manuel Villaverde Cabral Paradoxos e dilemas da governação das cidades europeias. O caso de Lisboa  Paradoxes and dilemas of European cities. The case of Lisbon

15

João Seixas Entrevista  Interview Filomena Serra A voz da câmara: fotografia, intervenção, cidadania  The voice of the camera: photography, intervention, citizenship

19

Paulo Baptista O paradoxo da cidade moderna: demolição «criadora» e conservação «renovadora» nos jardins públicos eborenses 

25

The paradox of the modern city: «creative» demolition and renovating conservation in Évora’s public gardens Paulo Simões Rodrigues Pequenos Jardins Urbanos — o paraíso ali à esquina  Small urban gardens — the Paradise at the sreet corner

35

Júlio Moreira A construção do jardim do cidadão: do Passeio Público ao Passeio na Estrela  Building the citizen’s garden: from the “Passeio Público” to the Estrela Garden

41

Ana Duarte Rodrigues

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A VOZ DA CÂMARA: FOTOGRAFIA, INTERVENÇÃO, CIDADANIA paulo baptista

Fig 1

Diariamente temos oportunidade de testemunhar o

gladesh. A mulher foi retirada dos escombros, 17 dias

produção têxtil de regiões como o Vale do Ave em Por‑

papel cada vez mais determinante que a fotografia

depois de a fábrica de têxteis em que trabalhava ter

tugal para o Extremo Oriente. Das mais de quatro mil

tem assumido relativamente à forma como olhamos a

colapsado, fruto das deficiências de construção do edi‑

e quinhentas fábricas têxteis a funcionar no Bangla‑

sociedade. Com efeito, podemos considerar que a foto‑

fício e da pesada carga de maquinaria e operários que

desh, a maioria está situada em edifícios de construção

grafia representa uma das mais importantes, senão a

a precária estrutura suportava. O impacto e as con‑

precária ou inapropriada, como sucedeu no caso do

mais importante, forma de mediação visual entre os

sequências políticas imediatas dessa tragédia foram

desastre a que aludimos. Pelas razões apontadas, em

cidadãos e a sociedade que nos rodeia. Com a enorme

consideravelmente potenciadas pela divulgação que

muitos casos essas circunstâncias dizem­‑nos muito

facilidade de difusão da informação e, nas últimas

as imagens trágicas e chocantes tiveram, através do

mais respeito do que à primeira vista possa parecer.

décadas, da informação visual contida nas fotografias,

Facebook onde primeiramente circulou a fotografia

A circulação de imagens pelas redes sociais tem

as circunstâncias de interacção social vieram a assumir

de Taslima Akhter (1974­‑). O impacto dessa imagem,

contribuído para catalisar as consciências, aglutiná­

um impacto global, contribuindo para que os impulsos

que representa o abraço de duas das vítimas mortais

‑las e potenciar as acções de cidadania. O encer‑

para a participação dos cidadãos nos fóruns de inter‑

daquela tragédia, foi tal que acabou por chegar às pági‑

ramento de muitas das fábricas do Bangladesh e o

venção política e social sejam constantes, propicia‑

nas da revista Time que a chegou a considerar um ver‑

propósito político colectivo de denunciar e alterar as

dos pelas múltiplas vias alternativas de circulação da

dadeiro epítome da tragédia, a dor de toda uma nação expressa numa só imagem. Fig 1

condições laborais existentes, foram os efeitos ime‑

tradicionais nesse campo. Nos nossos dias somos colo‑

Em termos político­‑económico­‑sociais estão em

global que se lhe seguiu. O futuro nos dirá das conse‑

cados perante o verdadeiro paradoxo que resulta da

causa as práticas laborais de países como o Bangla‑

circunstância de assistirmos a uma palpável restrição

desh, o segundo exportador mundial de vestuário,

Em Regarding the pain of others Susan Sontag

dos nossos direitos de cidadania ao mesmo tempo que

comercializado por marcas transnacionais como a bri‑

chama a nossa atenção para a importância que repre‑

a consciência individual e a capacidade de intervenção

tânica Primark ou as espanholas Zara, Berska e Mango,

sentara já a menção de Virginia Woolf à repulsa que a

global têm aumentado significativamente.

entre outras, com visibilidade global e presença per‑

guerra lhe suscitava e ao impulso que a escritora sentiu

informação visual, que há muito suplantaram os media

diatos da referida catástrofe e da campanha activista

19

Enquanto preparo esta intervenção (Abril de 2013)

manente nos espaços comerciais de todo o mundo.

de defender a República Espanhola que se encontrava

recebo no Facebook um post relatando o resgate de

Essas práticas, caracterizadas por custos de produção

sob o fogo das forças fascistas. Segundo o seu teste‑

G L O B A L A R T S C A P E S

mais uma sobrevivente da recente tragédia no Ban‑

extremamente baixos, provocaram a deslocalização da

munho, Woolf sentiu esse impulso ao observar um

1

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quências desse processo.

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20 G L O B A L A R T S C A P E S 1

maço de fotografias que recebeu de Espanha revelando

no início do século XX, terá sido um dos primeiros a

atrocidades sobre civis. Esse pacote de fotografias

utilizar a fotografia como uma ferramenta fundamen‑

equipa do National Child Labor Committee (NCLC).

teve a capacidade de despertar a sua consciência. No

tal nos seus estudos sobre trabalho infantil que vieram

Abandonou então a academia e passou a dedicar­‑se

entanto é significativo que um conjunto de fotografias,

a ter uma significativa influência na legislação ameri‑

inteiramente ao trabalho de campo. Durante a década

entregue pessoalmente, independentemente do seu

cana de reforma social produzida nesse domínio.

de 1910, Hine estudou e fotografou o trabalho infantil

com o convite que lhe foi endereçado para integrar a

impacto potencial, apenas possa sensibilizar as pes‑

Lewis W. Hine seguiu uma carreira académica

para a referida agência governamental, em particular

soas que as observam. Efectivamente, o impacto do

cursando sociologia nas universidades de Chicago,

na região americana da Carolina. Esses trabalhos vie‑

poder probatório da fotografia dependeu sempre das

Columbia e Nova Iorque, onde veio a dar aulas, na

ram a ter um papel de destaque como apoio aos esforços

contingências da sua circulação.

famosa Ethical Culture Fieldson School. Encorajava os

que o NCLC desenvolveu junto dos decisores políticos

A circulação de fotografias, durante o século XX,

seus alunos a utilizarem a fotografia como ferramenta

para que, no âmbito do Movimento da Reforma Pro‑

foi quase exclusivamente assegurada pela imprensa

pedagógica e as suas classes faziam trabalho de campo

gressista, fosse aprovada legislação para acabar com as

ilustrada. Nessa medida, a tentativa de traçar uma

na Ilha de Ellis e no porto de Nova Iorque, fotografando

práticas da exploração do trabalho infantil. Fig 3

fronteira entre a dimensão noticiosa e a dimensão

os milhares de emigrantes que diariamente chegavam

Os trabalhos fotográficos pioneiros de Lewis W.

puramente cívica da fotografia é extremamente

àquele país. Entre 1904 e 1909, Lewis W. Hine e os

Hine deram frutos logo nos anos subsequentes, em

complexa. Dificilmente se consegue estabelecer com

seus alunos recolheram cerca de duzentas fotografias

particular no conjunto de grandes levantamentos foto‑

rigor o estatuto de certas imagens: se documentam,

que integraram um documentário fotográfico, com o

gráficos levados a cabo durante o período da Grande

se denunciam, se testemunham, ou até se assumem

intuito de ser utilizado como ferramenta de mudança

Depressão americana, promovidos pela agência esta‑

várias dessas funções simultaneamente. Uma pos‑

e reforma social.

tal FSA (Farm Security Administration). Os fotógrafos

sível resposta a esse dilema poderá ser encontrada

O trabalho pioneiro de Lewis W. Hine com os seus

que colaboraram com o FSA lançaram as bases do que

na diversidade de modos de ver e é também isso que

alunos despertou o interesse de uma das mais presti‑

viria a ser o documentário fotográfico moderno, foto‑

podemos aprender no gesto de Virginia Woolf. O esta‑

giadas instituições americanas no campo da sociolo‑

grafando extensivamente as precárias condições de

tuto e o papel que as imagens podem assumir está

gia, a Fundação Russel Sage. Foi para essa fundação

vida das populações mais pobres dos Estados Unidos

inteiramente dependente das circunstâncias da sua

que, entre 1906 e 1907 Lewis W. Hine levou a cabo

da América, em particular nas zonas rurais assoladas

produção, da sua circulação e do seu «consumo». Com

um trabalho de campo que recorria extensamente à

pela fome.

efeito, nos nossos dias o empoderamento da fotografia

fotografia, com o objectivo de estudar os hábitos e o

Os levantamentos fotográficos patrocinados pela

resulta, em grande medida, da sua disseminação que é

trabalho das comunidades siderúrgicas de Pittsburgh,

FSA, que anteriormente se designara Resettlement

feita pelos mais diversificados canais disponíveis, pela

Pennsylvania. Nessa medida, colaborou no importante

Administration (RA), fundaram­‑se numa matriz dife‑

web e pelas redes sociais, pela imprensa, por meios audiovisuais, pela televisão… Fig 2

estudo sociológico que ficou conhecido como Pitts-

rente do âmbito sociológico que havia norteado os já

burgh Survey, o primeiro levantamento sistemático

citados Pittsburgh Survey e NCLC. No caso da FSA, na

das condições da classe operária numa grande cidade

base dos levantamentos patrocinados por esse orga‑

A DIMENSÃO SOCIAL DA FOTOGRAFIA

americana. As conclusões desse estudo inspiraram

nismo estava a intenção de documentar a actividade

A dificuldade de delimitar a fronteira entre a função

a adopção de reformas laborais que aboliram, para o

do próprio instituto. Contudo essas fotografias foram

puramente noticiosa da fotografia e o seu papel de

operariado siderúrgico, a semana de sete dias e as doze

utilizadas amiúde como material publicitário da FSA

rebate de consciências leva­‑nos a traçar um percurso

horas diárias de trabalho.

e, em última instância, do próprio governo dos E.U.A e

desde os primeiros estudos de Lewis Wickes Hine

O reconhecimento da importante contribuição de

da sua política designada por New Deal. Não devemos

(1874­‑1940), um sociólogo e fotógrafo americano que,

Lewis Hine para o Pittsburgh Survey veio logo em 1908,

esquecer o facto de muitos dos regimes autoritários

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europeus coevos disporem de organismos estatais de

mente lutavam pelos direitos dos afro­‑americanos

do país na Guerra do Vietname mereceu desde muito

propaganda, que faziam um uso exaustivo da fotogra‑

contra a segregação racial. O período mais activo dos

cedo uma cobertura mediática nacional com que a luta

fia e do cinema, em particular a União Soviética.

movimentos de defesa dos direitos civis caracteri­zou­

pelos direitos civis não tinha podido contar. Por isso

Efectivamente, o trabalho fotográfico para a FSA

‑se por um conjunto de manifestações não­‑violentas

a mobilização de largas franjas da população contra

realizado por uma plêiade de notáveis fotógrafos,

que ocorreram sobretudo no sul dos E.U.A., onde a dis‑

aquela intervenção bélica no estrangeiro pôde assu‑

como Arthur Rothsein (1915­‑1985), Russell Lee (1903­

criminação contra os afro­‑americanos ainda se fazia

mir, desde logo, ampla dimensão. Foram as extensas

‑1986), Walker Evans (1903­‑1975) ou Dorothea Lange

sentir de forma institucionalizada. Nessas regiões,

coberturas fotográficas dos grandes magazines ilus‑

(1895­‑1965) veio a constituir um modelo efectivo para

as comunidades descriminadas desenvolveram uma

trados, sobretudo a partir do momento em que as

o ensaio fotográfico contemporâneo. Muita da res‑

série de actos de protesto não violento e de desobe‑

fotografias de longas filas de body bags ou de caixões

ponsabilidade por esse facto se deveu a Roy Stryke

diência civil em defesa dos seus direitos. Assinalemos,

cobertos com a bandeira americana começaram a

(1893­‑1975), o supervisor da FSA para a actividade

a título de exemplo, o boicote aos transportes públicos

pontuar as páginas ilustradas da imprensa que a con‑

fotográfica que exemplarmente soube articular os

em Montgomery, Alabama de 1955 e 1956.

testação à guerra se generalizou. No entanto, dessas

levantamentos fotográficos desses colaboradores com

A luta pelos direitos civis nos E.U.A. foi um dos

as agendas das revistas ilustradas americanas que

melhores exemplos da importância que a fotografia

Vietname, algumas imagens assumiram dimensão

publicaram muitas dessas séries nas suas páginas, em

pôde assumir na denúncia e na mobilização sociais.

particular, como a de Eddie Adams (1933­‑2004) teste‑

particular a revista Life (Marien 2010: 280­‑288). Sendo

Com efeito, um dos mais importantes catalisadores da

munhando o momento da execução à queima­‑roupa de

constituída por fotógrafos com formações e inten‑

participação dos cidadãos afro­‑americanos nas lutas

um suspeito vietcong pelo general Nguyen Ngoc Loan

ções muito diversas, a «equipa» da FSA foi capaz de

pelos direitos civis foi a chocante publicação da foto‑

em 1968 (prémio Pullitzer para fotografia de reporta‑

retratar, de uma forma sistemática mas sensível, uma

grafia do corpo de Emmett Till Goldberg (1991: 200­

gem em 1969) e a de Nick Ut (1951­‑), conhecida como

América profunda e excluída, muito embora lhes tenha

‑201), uma criança assassinada por razões raciais. O

«a rapariga do Napalm» que mostra uma rapariga nua

escapado a dimensão de apelo, pelas circunstâncias

choque desse crime despertou as consciências de mui‑

a gritar, queimada, correndo com um grupo de crian‑

particulares da produção e circulação dessas fotogra‑

tos afro­‑americanos, mas o facto de essa fotografia só

ças a fugirem de um bombardeamento de Napalm em

fias. Esses trabalhos fotográficos estiveram na base

ter sido publicada na imprensa afro­‑americana limitou

1972 (Prémio Pullitzer para fotografia de reportagem

da moderna fotorreportagem e do ensaio fotográfico

o seu impacto junto de toda a nação. Só mais tarde,

em 1973). Ao percorrerem todo o mundo, essas duas

que viriam a ter um significativo desenvolvimento no

colocada perante as chocantes imagens dos abusos

imagens tiveram, como refere Vicky Goldberg, a capa‑

decurso da Segunda Guerra Mundial. Fig 4

policiais contra os manifestantes pacifistas que inte‑

cidade de catalisar a opinião pública mundial contra

graram as marchas pelos direitos civis1, merecendo

aquele conflito bélico (Goldberg 1991: 226). Porventura

A FOTOGRAFIA E A INTERVENÇÃO POLÍTICA

especial destaque nos magazines ilustrados de grande

foram essas imagens possíveis rastilhos dos processos

Porventura terá sido nos EUA, durante a segunda

tiragem, mesmo de primeira página, a sociedade ame‑

que, em última instância, acabaram por conduzir à

metade da década de 1950 e a de 1960, que o impacto

ricana tomou plena consciência da dimensão e gravi‑

resignação, logo em 1974, do presidente Richard Nixon

da fotografia veiculada pelos meios de comunicação

dade dessas lutas, justificando o gesto do presidente

(1913­‑1994). Deve assinalar­‑se que aquele presidente

social na mobilização de causas políticas e sociais se

John F. Kennedy (1917­‑1963) e do governo federal de

americano duvidava da veracidade da fotografia de

tornou mais evidente. Com efeito, a reivindicação de

impor pela força o direito dos afro­‑americanos de fre‑

Nick Ut, como atesta uma conversa com o seu chefe

direitos civis para os negros americanos agudizou­‑se

quentarem as instituições de ensino superior.

de gabinete Harry R. Haldeman gravada no sistema

extensas reportagens fotográficas sobre a Guerra do

21

no pós­‑guerra. Um sentimento colectivo de profunda

Coincidindo, em parte, com a luta pelos direitos

interno da Casa Branca. Foi esse sistema de gravação

G L O B A L A R T S C A P E S

injustiça reforçou as instituições que tradicional‑

civis, a contestação dos americanos ao envolvimento

que permitiu, mais tarde, confirmar o envolvimento do

1

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22 G L O B A L A R T S C A P E S 1

presidente no escândalo Watergate, de que o referido

gem. Na institucionalização legal deste encontro, ao

Haldeman foi um dos principais responsáveis.

indivíduo fotografado não é reconhecida a posse de

limite em que existe uma ténue fronteira entre cida‑

direitos de imagem enquanto o fotógrafo que produz

dania e exclusão, a dos territórios palestinianos ocu‑

O CONTRATO CIVIL DA FOTOGRAFIA

a imagem fica detentor dos respectivos direitos legais.

pados por Israel. Aí vivem cidadãos de pleno direito,

Mas afinal, desde o advento da fotografia, que formas

No entanto, a apropriação dos direitos da pessoa foto‑

os israelitas, mas também outros, os palestinianos,

tem vindo a assumir a sua contribuição para cida‑

grafada pelo fotógrafo pressupõe sempre um certo

que se encontram numa espécie de negação dos seus

dania? Cientes da complexidade dos conceitos que a

grau de violência, embora tacitamente admitida desde

direitos de cidadania. O poder é altamente discricio‑

fotografia, enquanto dispositivo de representação,

os primórdios da actividade fotográfica. Essa ordem

nário relativamente aos direitos que podem ser con‑

vem suscitar devemos, no entanto, relembrar que

de relações manteve­‑se praticamente inalterada até

cedidos. E essa concessão é totalmente arbitrária.

muito embora a fotografia tenha quase sempre sido

aos nossos dias. O pacto ou acordo tácito que regula

Num controle de fronteira, um militar israelita está

encarada como agrilhoada ao fardo da representação

os direitos entre fotógrafo e fotografado torna possí‑

investido de um poder discricionário de decidir se uma

da realidade, supondo­‑se geralmente como o mais

vel o encontro fotográfico e, desse encontro, resulta

determinada palestiniana pode passar para fazer uma

rigorosa possível (Tagg 1988: 1­‑33). Contudo, essa ideia

a fotografia. Importa contudo notar que nesse acordo

ecografia imprescindível ao acompanhamento da sua

preconcebida está muito longe de corresponder à rea‑

fotográfico não estava contemplado, até há bem pouco

gravidez. É um jogo absurdo em que justo e injusto são

lidade. No dispositivo fotográfico, as várias instâncias

tempo, o consentimento informado e de forma alguma

objecto de negociação e a que Jean­‑François Lyotard,

que se estendem do registo à visualização da imagem

esse pacto se baseava no conhecimento das condições

em conversa com Jean­ ‑Loup Thébaud, denominou

pressupõem um amplo número de decisões e ligações

de intercâmbio de direitos ou na possibilidade de dis‑

como «pragmática da obrigação» (Roman 2000: 172).

tomadas e estabelecidas pelos operadores envolvidos

cordância relativamente a essas condições.

A fotografia acaba por assumir uma dimensão civil que

seus ensaios, decorre da reflexão sobre situações

em todo o processo. Efectivamente, interessa­ ‑nos

Efectivamente, algumas propostas da académica

desafia essa pragmática visto que pressupõe aquilo a

agora rever apenas a discussão acerca das relações

Ariella Azoulay que rodeiam o conceito que aquela

que Azoulay chamou «contrato civil da fotografia» que

que se estabelecem entre o sujeito da representação

pensadora designou como «contrato civil da fotogra‑

escapa à regulação da autoridade.

e o fotógrafo. Afinal a complexa resolução dessa ques‑

fia» podem servir de base de reflexão acerca da forma

Um dos exemplos apresentados por Azoulay tem

tão situa­‑se na teia das relações do poder sobre a ima‑

como se cruzam fotografia e cidadania. O que o acordo

a capacidade de cruzar transversalmente várias das

gem, estabelecidas entre fotografado e fotógrafo no

tácito em fotografia ou no retrato fotográfico estabe‑

questões inerentes ao referido «contrato civil da foto‑

momento da produção de uma representação fotográ‑

lece é que ambas as partes possam reconfirmar o equi‑

grafia». Em 1988 o fotógrafo Miki Kratsman (1959­‑),

fica. A dificuldade de definir e delimitar os contornos

líbrio de poder que se estabelece entre elas sem haver

do jornal Hadashot foi enviado ao campo de refugia‑

dessa teia de relações foi abordada pela investigadora

uso manifesto da força. Ou seja, quando a câmara

dos de Balata, na margem ocidental do rio Jordão, em

Ariella Azoulay na sua obra The civil contract of photo-

dá início a um encontro entre fotografado e fotó‑

conjunto com o repórter Zvi Gilat e a tradutora Amira

graphy (Azoulay 2008: 105­‑106).

grafo, cada qual deve ser responsável pela sua parte

Hassan. Nesse campo foram interpelados por uma

Reflectindo sobre as relações entre fotografados e

do acordo tácito e saber o que é esperado de si nesse

mulher palestiniana, a Srª Abu­‑Zohir, que pediu para

fotógrafos, Ariella Azoulay parte de situações de uma

encontro, o que dispensa a formalização dos termos e

lhe serem fotografadas as pernas, porque tinham sido

violência limite de natureza política e social para con‑

a sua redação. Daí que se possa considerar que, mesmo

atingidas com balas de borracha disparadas por sol‑

seguir definir, de uma forma mais clara, a natureza

de forma tácita, se instituiu um contrato civil (Azoulay

dados israelitas. O fotógrafo procurou descartar­‑se do

das relações estabelecidas. Na situação clássica do

2008: 110­‑112).

pedido da mulher palestiniana, sabendo de antemão

retrato fotográfico, a câmara medeia o encontro entre

O conceito de «contrato civil da fotografia», que

que a redação do jornal preferiria imagens bem mais

o fotógrafo e o fotografado, sendo produzida uma ima‑

Ariella Azoulay tem abordado nos seus filmes e nos

chocantes do que as de ferimentos de balas de bor‑

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A aceitação universal do contrato civil da fotografia

were being rescued from the rubble. I remember

forma singular, como se fosse seu direito pedir para ser

baseia­‑se no facto de essa actividade se reger generica‑

the frightened eyes of relatives — I was exhausted

fotografada e fosse dever de todos testemunharem o

mente por um certo conjunto de princípios, a generali‑

both mentally and physically. Around 2 a.m., I

abuso de que fora vítima, um dever que não é fundado

dade, a acessibilidade, a publicidade, a transparência, a

found a couple embracing each other in the rubble.

na lei, no estado (até porque ela, como palestiniana,

neutralidade e a imparcialidade. Isso não significa que

The lower parts of their bodies were buried under

racha. No entanto a mulher foi insistente agindo de

não é considerada cidadã em Israel), ou na soberania,

esses princípios não sejam amiúde violados em várias

the concrete. The blood from the eyes of the man

o seu direito à fotografia funda­‑se no contrato civil da

circunstâncias, sujeitos a restrições e condicionalis‑

ran like a tear. When I saw the couple, I couldn’t

fotografia. Ela procurou ser reconhecida como uma

mos dos mais diversos tipos. Por outro lado, actual‑

believe it. I felt like I knew them — they felt very

das governadas através da (e com a) fotografia.

mente, o contrato civil da fotografia desvia cada vez

close to me. I looked at who they were in their last

Mas perante o pedido do fotógrafo para observar

mais o enfoque da relação entre fotógrafo e fotografado

moments as they stood together and tried to save

os ferimentos ela recusou, não exporia as suas pernas

para se virar para a ética do espectador. O espectador

each other — to save their beloved lives.

em público. A sua participação no contrato civil da foto-

da fotografia tem vindo gradualmente a abandonar a

Every time I look back to this photo, I feel

grafia, neste caso, é um acordo de se deixar fotografar,

atitude meramente passiva para assumir a interven‑

uncomfortable — it haunts me. It’s as if they are

mas não ver, pelo fotógrafo. Troca­‑se então o seguinte

ção, tornando­‑se num actor do próprio contrato civil

saying to me, we are not a number — not only

diálogo:

da fotografia. Um dos aspectos mais evidentes dessa

cheap labor and cheap lives. We are human beings

capacidade de cidadania é assumida através das novas

like you. Our life is precious like yours, and our

O fotógrafo: Mostre­‑me as suas pernas.

formas de circulação da fotografia, em particular atra‑

dreams are precious too.

A Srª Abu Zohir: Eu não lhe mostro as minhas per‑

vés das redes sociais. Trata­‑se afinal do acordo explícito

They are witnesses in this cruel history of

nas. Não vai ver as minhas pernas.

para ser fotografado, do «contrato civil da fotografia».

workers being killed. The death toll is now more

O fotógrafo para a tradutora: Explique­‑lhe que esta

Relembremos, por exemplo, um famoso e polémico sel-

than 750. What a harsh situation we are in, where

foto vai aparecer nos jornais e todo o mundo vai

fie com Barak Obama no funeral de Nelson Mandela e

human beings are treated only as numbers.

ver as pernas dela.

da circulação global dessa imagem.

This photo is haunting me all the time. If the

A Srª Abu Zohir: Uma foto é uma foto. Não quero

Regressamos, por fim, àquela imagem com que

people responsible don’t receive the highest level

saber se a foto é vista, mas você não vai estar nesta

iniciámos este percurso, a fotografia das duas víti‑

of punishment, we will see this type of tragedy

sala quando eu mostrar as minhas pernas.

mas abraçadas no desmoronamento de uma fábrica

again. There will be no relief from these horrific

Então o fotógrafo preparou a máquina, enqua‑

no Bangladesh, a sua autora, Taslima Akhter (1974­‑),

feelings. I’ve felt a tremendous pressure and pain

drou as saias da Srª Abu Zohir, deixa a câmara nas

testemunhou sobre o que sentiu ao registar aquela

over the past two weeks surrounded by dead bod‑

mãos da tradutora e retira­‑se da sala. A tradutora

imagem:

ies. As a witness to this cruelty, I feel the urge to

I spent the entire day the building collapsed on

cia dos cidadãos, ampliado pelo suporte que as redes

G L O B A L A R T S C A P E S

the scene, watching as injured garment workers

sociais asseguram e cujo poder, actualmente, quase se

1

dispara um rolo inteiro de que resulta esta imagem.

share this pain with everyone. That’s why I want

A mulhar palestiniana enrola os collants para

I have been asked many questions about the photo‑

baixo e levanta a saia mostrando os ferimentos,

graph of the couple embracing in the aftermath of

não fita o fotógrafo ausente, fita a câmara, o espec‑

the collapse. I have tried desperately, but have yet

Com efeito, o tremendo poder dessa horrível visão, que

tador, como se dissesse: Sou a Srª Abu Zohir, estou

to find any clues about them. I don’t know who they

a própria fotógrafa confessa assombrá­‑la, assume­‑se

a mostrar­‑vos as minhas feridas, seguro a minha

are or what their relationship is with each other.

como poderoso instrumento de catálise da consciên‑

saia como uma cortina levantada para que vejam as minhas feridas. Fig 5

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23

this photo to be seen.

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sobrepõe ao dos media tradicionais. Será, porventura,

NOTAS

essa uma das mais importante diferenças em termos

1. Essas imagens foram o mote da obra Race riot (1964) de Andy Wahrol (1928­‑1987).

de cidadania que nos separam, afinal, do tempo de Vir‑ gínia Woolf, a circulação e a mediatização da fotogra‑ fia, que podemos considerar globalização, permite que

BIBLIOGRAFIA

o despertar ou o catalisar das consciências seja hoje

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um fenómeno colectivo, ao contrário de 1930, quando essa circunstância era individual, como sucedeu com Virgínia Woolf.

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