Aa primeiras manifestações da Revolução Cultural em Macau (1966-1967) – Um inédito do Padre Manuel Teixeira

June 8, 2017 | Autor: F. David e Silva | Categoria: Maritime History, Naval History, Macao, Macau
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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA Introdução e Notas de F. David e Silva CALM (Ref) [email protected] RESUMO

ABSTRACT

A Revolução Cultural, movimento político que The

Chinese

Cultural

Revolution,

the

convulsionou a China entre 1966 e 1976, teve gigantic upheaval which brought chaos to as

suas

primeiras

e

mais

expressivas China between 1966 and 1976, showed itself

exteriorizações em Macau em Dezembro do in Macao in December of the yaer of its seu ano inicial, com incidentes e manifestações inception, with street demonstrations and de rua que se dirigiram contra as autoridades incidents, protesting violently against the portuguesas que administravam o território. O Portuguese padre Manuel Teixeira, experiente missionário territory.

authorities

who

ruled

the

Reverend Manuel Teixeira, a

e prolífico estudioso da história local, escreveu, seasoned missionary and prolific expert on com o seu estilo peculiar, um pequeno mas local history, then wrote a small but lively muito

expressivo

texto

sobre

os text on the events, supporting his evaluation

acontecimentos, cuja avaliação sustentou no on the centuries old relations between Macao passado das seculares relações entre Macau e a and China. Circumstancial evidence shows China. Provas circunstanciais permitem aventar that the concerned text, now published for the a hipótese de o documento, que aqui se first time, may have been written at the reproduz com uma introdução de contexto e request of the then Portuguese primenotas explicativas, ter sido escrito a pedido do minister, head of the authoritarian regime, doutor Oliveira Salazar.

doctor Oliveira Salazar.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORD

China, Incidentes do 1-2-3, Macau, padre 1-2-3 Incidents, China, Cultural Revolution, Manuel Teixeira, Revolução Cultural

Macao, Reverend Manuel Teixeira

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

INTRODUÇÃO Em 3 de Dezembro de 1966 eclodiram em Macau um conjunto de incidentes, que iriam passar à História com a sigla “1-2-3”1, envolvendo confrontos entre manifestantes e a polícia, que se saldaram em oito vítimas civis mortais, para além de mais de duas centenas de feridos. Na sua origem próxima encontrou-se uma cadeia de decisões de algumas autoridades administrativas e policiais portuguesas, inicialmente relacionadas com uma questão de natureza menor, que deram lugar a manifestações de protesto contra as autoridades e a exigências de reparações materiais e políticas. A instabilidade prolongou-se por cerca de dois meses, atenuando-se com um pedido de desculpas formal por parte do governador. Mais uma vez na história de uma presença de mais de quatro séculos, Portugal permaneceu no pequeno enclave em terra chinesa por vontade expressa do poder de Pequim. E também desta vez, o poder imperial não quis deixar dúvidas sobre quem verdadeiramente exercia a soberania em Macau. Os incidentes, ainda que desencadeados por um episódio localizado, encontraram raízes num contexto mais profundo, que remetia para a complexa e tumultuosa evolução política na China no decurso do último século e meio, que começou com a ingerência militar ocidental na China (com a I Guerra do Ópio, 1939-1942) e culminou na Revolução Cultural, desencadeada por Mao Zedong 2 [Mao Tse-tung] na Primavera de 1966, então em pleno desenvolvimento. A descrição dos acontecimentos e alguns juízos relativos à participação de alguns dos elementos da administração portuguesa, civis e militares é conhecida, tendo sido objecto de abordagem por parte de orientalistas3, bem como de outros autores4. Como iremos referir mais adiante, o padre Manuel Teixeira, há muito estabelecido em Macau, escreveu a sua descrição e análise dos acontecimentos (quando ainda não se conhecia o seu termo nem desfecho) cremos que a pedido do doutor Salazar, que pretenderia obter a visão da Igreja, a instituição que há mais tempo estava estabelecida no Território.

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Designação popularizada através da notação inglesa das datas: 12-3. Recorremos normalmente à transliteração dos nomes e locais através do “pinyn” (literalmente “soletração dos sons”), método aprovado pelo governo chinês em 1958. 3 De entre as quais relevamos Moisés Silva Fernandes, Sinopse de Macau nas Relações Luso-Chinesas 1945-1995. Cronologia e Documentos, [s.l.], Fundação Oriente, 2000. 4 Merece especial realçe José Pedro Castanheira, Os 58 dias que abalaram Macau, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1999. 2

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O contexto continental: da criação da RPC à Revolução Cultural A República Popular da China foi proclamada por Mao Zedong, em Pequim, em 1 de Outubro de 1949. O figurino soviético foi adoptado como seu modelo de organização política, substituindo a “ditadura do proletariado” pela ”ditadura democrática do povo”, que abrangia os camponeses ricos, a burguesia nacional e outras franjas da sociedade, além das grandes massas de camponeses pobres e operários urbanos. Acima destas alianças, o poder era exercido pelo Partido Comunista, cuja comissão permanente incluía, em 1949, os nomes mais sonantes dos dirigentes da Longa Marcha5. Foi assim recuperado o modelo imperial, assente no princípio confucionista do respeito pela hierarquia instituída, sobre o qual tinha repousado a monarquia duas vezes milenar, cujo derrube em 1911 tinha dado origem ao caos a que o novo poder centralizado pretendia pôr termo. A novel liderança chinesa declarava a sua vontade em libertar o povo chinês da pobreza, da má governação e da carga das humilhações impostas pelas potências estrangeiras no século XIX. Os objectivos eram a construção de uma Nova China, moderna, socialista, igualitária, olhando para o futuro. Como parte deste processo, foi empreendido um corte cultural com o passado, destruindo-se símbolos urbanos seculares para modernizar as cidades, Pequim em particular. A religião foi remetida para a categoria de superstição feudal, tal como os velhos hábitos de deferência para com os superiores e das mulheres para com os homens. Empreendeu-se uma vasta revolução social, nomeadamente nos planos dos direitos da Mulher e da liberdade de casamento. A implantação dos novos modelos político e social não era possível sem o condicionamento dos intelectuais. De origens, experiências e percursos diversos, a sua integração no ordenamento do novo Estado, considerada indispensável, passava pela reforma do seu pensamento, pela autocrítica e, finalmente, pela sua adesão à causa do socialismo. Em 1956, Mao apelou aos 5

Depois de ver as suas hostes massacradas pelas forças de Chiang Kaishek, em Shanghai, em 1927, Mao liderou o reagrupamento de alguns milhares dos seus fieis nas montanhas da fronteira entre as províncias de Hunan e Jiangxi, a sudeste, onde estabeleceram um soviete e adoptaram políticas de apoio aos camponeses. No Outono de 1932, juntou-se-lhe o Comité Central do PCC, então forçado a abandonar Shanghai. Durante a estadia em Jiangxi, os comunistas continuaram a ser objecto de ataques dos exércitos nacionalistas, até que se tornou inevitável romper o assédio a que estavam sujeitos e empreender a procura de uma região mais segura, que lhes proporcionasse o reagrupamento e fortalecimento das suas próprias unidades militares e permitisse desenvolver o trabalho político junto da população. Foi com este objectivo em mente que, em Outubro de 1934, se pôs em marcha uma coluna de 80.000 soldados, quadros políticos, carregadores e seguidores dos ideais do PCC. A Longa Marcha prolongou-se por um ano e dez mil quilómetros, quase sempre sob pressão das forças nacionalistas. Da sua constituição original, apenas 8.000 membros do Exército Vermelho chegaram ao destino. O número de sobreviventes é situado entre 4000 e 8000 (sendo este o valor mais citado) e incluía figuras de grande relevo no futuro próximo da RPC, como Zhou Enlai, Peng Dehuai, Zhu De e Deng Xiaoping.

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intelectuais no sentido de mobilizar o seu contributo para identificar problemas sentidos no interior do Partido, nomeadamente os que envolviam os membros que se desviavam do contacto com as massas populares e se comportavam como tiranos. Lançou então uma campanha sob o mote “Que Cem Flores Desabrochem”, estimulando a crítica ao Partido e às suas práticas. A campanha terá ultrapassado os propósitos do seu criador, já que vencidas desconfianças e precauções iniciais, os intelectuais, porventura desprevenidos, lançaram-se na crítica aberta, ao ponto de Mao se ver obrigado a lançar uma iniciativa de contra-vapor, acusando-os de práticas direitistas e de oposição ao Partido. Três milhões de cidadãos escolarizados foram englobados nesta categoria, meio milhão dos quais enviados para a reeducação pelo trabalho manual. A velha elite foi assim substituída por quadros jovens, disponíveis para a mudança e a adaptação aos novos tempos. Oito anos após a proclamação da República Popular, Mao estava insatisfeito quanto aos progressos conseguidos. O modelo soviético aparentava ser incapaz de responder aos desejos de um crescimento rápido que recuperasse o país de um atraso secular um país onde escasseava o capital e a capacidade técnica. Mao começou então a falar de um “grande salto em frente”, que se traduzisse numa mobilização de massas para garantir que a China ultrapassaria a capacidade económica do Reino Unido no prazo de quinze anos, através da “libertação do poder criativo das massas trabalhadoras”. Em 1958, as comunidades rurais, que asseguravam a sobrevivência de uma larga parcela da população chinesa, foram mobilizadas em exclusivo para empreendimentos de industrialização, que deveriam produzir as matérias-primas essenciais à ambicionada evolução. Alguns deles eram bizarros referindo-se, a título de exemplo, as aciarias “de quintal”, nas quais se fundiam as alfaias agrícolas e de cozinha para obter aço) Os intelectuais, economistas e técnicos com capacidade para planear aquelas operações, estavam nos campos de reeducação, tendo sido substituídos pelos quadros políticos, que se tornaram especialistas em manipular as estatísticas da produção. O espírito da época era bem sintetizado pela canção então popularizada: “O Comunismo é o céu/ A Comuna é a escada/ Se construirmos a escada/ Podemos alcançar as alturas”. Não obstante a confusão instalada, alguns projectos foram bem sucedidos, casos de pontes, caminhos-de-ferro, canais e reservatórios, centrais de produção de energia eléctrica, minas e 4

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programas de irrigação rural. Mas um ano após o lançamento do Grande Salto em Frente, já Mao se apressava agora a pedir moderação e objectivos mais realistas. No entanto, Mao Zedong ainda se via forçado a lutar pelo poder no seio do partido, acreditando que este lhe tinha sido usurpado na sequência dos fracassos das campanhas anteriores e que apenas podia ser recuperado através de uma "grande revolução cultural", capaz de encorajar o movimento popular e desmascarar os inimigos do socialismo. Acentuaram-se então as lutas e as perseguições no partido, no governo e em todas as organizações do Estado. A “Grande Revolução para Criar uma Cultura Proletária”, a Revolução Cultural como ficou conhecida, iniciou-se na Primavera de 1966, quando o presidente da municipalidade de Pequim foi acusado de promover uma peça de teatro tida como crítica de Mao. A lógica deste movimento, que se desenvolveu entre 1966 e 1976, enraizava-se na convicção de Mao que o partido e as organizações do Estado estavam infiltrados por "contrarevolucionários revisionistas", que delas tinham afastado "os marxistas e o povo". Foi então formado um grupo para dirigir o processo, tendo como figura importante Jiang Qing, terceira e última mulher de Mao. No entanto, a agitação por si estimulada escalou rapidamente com a participação activa dos estudantes, acabando por escapar ao controlo do grupo de Jiang e mesmo do próprio Mao. Em Junho de 1966, as escolas foram fechadas e toda a juventude foi canalizada para se alistar e participar nas actividades dos Guardas Vermelhos, cuja fidelidade pessoal a Mao Zedong era factor essencial. O livro das Citações Revolucionárias do presidente, compilado anos antes por Lin Biao para servir propósitos de doutrina junto dos militares, tornou-se o texto sagrado dos radicais. Entre Agosto e Novembro realizaram-se oito comícios gigantescos em Pequim, na praça Tienanmen, cada um deles envolvendo mais de um milhão de pessoas. Os Guardas Vermelhos encabeçavam a caça e destruição de tudo quanto fosse estrangeiro ou velho, no sentido em que se trataria de objectos de corrupção moral, representativos da velha ordem de subordinação e humilhação da China perante interesses que lhe eram estranhos. Quadros políticos, professores e intelectuais, contaram-se entre os principais alvos das acusações e condenações públicas. Em meados de 1967, o próprio chefe do Estado, Liu Shaoqi foi, com o apoio de Mao, apontado como “inimigo do povo” e “chefe dos capitalistas”. Morreu dois anos depois, consequência do tratamento então sofrido.

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A Revolução Cultural depressa se tornou num conjunto de violentos processos de ruptura social, que transbordou das cidades para os campos e se estendeu aos militares. Esta fase mais aguda prolongou-se até meados de 1968 quando Mao, procurando retomar o controlo da situação, dissolveu os Guardas Vermelhos, despachados para reeducação por via do trabalho rural. A agitação, que mergulhou a China no caos social e político, envolvendo prolongadas lutas internas no seio do Partido, múltiplas purgas de dirigentes e altas patentes militares, prolongouse até à morte de Mao, em Outubro de 1976. Desaparecia assim o sustentáculo de Jiang Qing e dos seus três parceiros (o “bando dos Quatro”). Foram presos e julgados em 1980-81, sendo responsabilizados pela maior parte dos excessos da Revolução Cultural. Deng, no poder a partir de 1978, reabilitou os mais de três milhões de vítimas da Revolução Cultural oficialmente contabilizadas. O juízo feito pelo Partido Comunista Chinês em 1981 sobre o papel de Mao Zedong, elogiou o seu contributo intelectual e a sua liderança durante a guerra, mas imputou-lhe responsabilidades por tudo quanto correu mal a partir de 1956. De então para cá, a imagem de Mao vem sofrendo progressiva erosão. Os juízos oscilam entre os que consideram que Mao foi megalomaníaco nas suas tentativas de construir um regime à sua imagem, e os que entendem que é perigoso transformar a sua figura num monstro maléfico, que iliba todos os outros das responsabilidades que devem ser partilhadas perante a História. Macau em meados da década de 1960 Em 1966, ano de início da Revolução Cultural, Lisboa e Pequim não mantinham relações diplomáticas, que apenas seriam estabelecidas em 1979. Ao longo dos séculos, as relações entre os dois países tiveram como referência exclusiva a “questão de Macau”. Quer isto dizer que Portugal se relacionava com a China através do governo de Macau, que não era uma entidade autónoma nem exercia poder sobre um território soberano, vigorando assim um modelo que não diferia radicalmente do que vigorava no séc. XVI. Era através de Macau, com as autoridades provinciais de Cantão, que se processava o diálogo. Mas agora existia uma diferença apreciável relativamente ao passado, devida à existência em Macau de uma comunidade chinesa economicamente robusta que, em boa verdade, liderava a economia (formal e informal) do Território. Os representantes desta comunidade eram igualmente os representantes da RPC ou 6

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seus mediadores, que preencheram um papel de largo significado no desenvolvimento dos incidentes do “1-2-3”. Sem esquecerem a defesa dos seus interesses, e até por causa dela, adoptaram uma postura de diálogo e moderação. Não foram, no entanto (se é que o quiseram) capazes de mudar o rumo dos acontecimentos, já que o ímpeto adquirido pela Revolução Cultural era então imparável. O Estatuto Político-Administrativo de Macau6 em vigor em 1966 dispunha, no seu artigo 1º, que “A província de Macau abrange a Cidade do Nome de Deus de Macau e suas dependências, conforme o que for direito de Portugal e o Tratado com a China de 1 de Dezembro de 1887.”. Portugal reafirmava assim o princípio da posse perpétua estabelecido no referido instrumento diplomático, mesmo sabendo que eram agora mais frágeis os argumentos que, de facto, a procuravam sustentar. O governador era o titular do poder executivo de Macau, tendo como parceiros do governo próprio do território, o Conselho Legislativo e o Conselho de Governo. Para exercício do seu poder executivo, o governador dispunha dos serviços de administração provincial, que incluíam a Repartição do Gabinete, as repartições provinciais de serviços (Marinha, Administração Civil, Economia e Estatística Geral, Educação, Fazenda e Contabilidade, Obras Públicas, Saúde e Assistência), e ainda os serviços autónomos e as divisões de serviços integrados em serviços nacionais. Para além do chefe de Gabinete, o governador apenas dispunha de um secretário e um ajudante-de-campo. Em termos demográficos, de acordo com o censo realizado em 1960, Macau tinha então cerca de 170 mil habitantes. Segundo avaliação local qualificada, a população real seria, no entanto, da ordem de 230 mil, dos quais 6 mil na ilha da Taipa e 3 mil na ilha de Coloane. A área do território era de 15,5 quilómetros quadrados, repartidos por 5,5 na península, 3,5 na Taipa e 6,5 em Coloane. Uma pequena brochura turística publicada pela Agência Geral do Ultramar em 1964, em língua inglesa, abria o texto comparando Macau a Lisboa: “It has seven hills, just like Lisbon”. Mais adiante o autor, levado por irreprimível zelo e entusiasmo, arriscava mesmo a descoberta de semelhanças entre a vegetação de Macau e as serranias de Sintra. Apesar do manifesto exagero no paralelo, é inegável que em Macau se respirava uma certa atmosfera mediterrânica, reconhecendo-se uma Europa do sul na arquitectura da cidade ocidental, tornada mais pitoresca e mais doce pela introdução de elementos de adaptação ao clima subtropical do território, a 6

Aprovado pelo decreto nº 45377, de 22 de Novembro de 1963.

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reflectir, também ela, a diversidade étnica das comunidades locais. Com a cidade portuguesa que cresceu à volta da elegante Baía da Praia Grande7, coexistia a cidade chinesa, de ruas estreitas, construções térreas e ambiente rico de cores e sons da actividade comercial e social que constituía a rede vital do dia a dia de Macau. Em consonância com a doutrina oficial então vigente, a brochura da AGU acentuava a união das raças “in fellowship, sympathy and friendship”. E, por conveniência de promoção turística, alongava-se na descrição das originalidades pitorescas com as quais a comunidade chinesa e as suas actividades coloriam o território. A tessitura social e cultural de Macau era complexas, ali coexistindo, separados por imateriais fronteiras, a diminuta comunidade portuguesa expatriada – então quase exclusivamente formada por militares e funcionários públicos, a esmagadoramente maioritária comunidade chinesa – que em parte regressava a casa, no continente, ao cair da noite, e a comunidade macaense, étnica e culturalmente caldeada no Portugal europeu, na Índia, na Malásia e na China. Por seu lado, as lideranças da comunidade chinesa que, como atrás referimos, representava os interesses da RPC em Macau, eram assim vistas pelo governador Lopes dos Santos (19621966)8: “[…] Ho Yin, como presidente da Associação Comercial e deputado à Assembleia Nacional de Pequim, como representante dos chineses de Macau e já comprovado amigo dos Portugueses – era homem notável e esclarecido, mostrou-se sempre disponível e pronto a colaborar com o Governador na resolução dos casos “difíceis” com implicações políticas locais ou externas em relação à China. […] Por vezes, pequenas questões afectas à Administração Portuguesa, serviços públicos, departamentos militares ou Leal Senado, envolvendo população ou interesses chineses, avolumavam-se, sobretudo quando intervinha a Associação dos Operários […] outras figuras destacadas da comunidade chinesa, como Ma Man Kei, Vice-Presidente da Associação Comercial, Chui Tak Kei, Vogal da Comissão Administrativa do Leal Senado, Roque Choi, procuravam defender os interesses de Macau perante o Governo. […] Logo a seguir à ocorrência do incidente em que foram recolhidos no limite das nossas águas, por uma vedeta da Polícia Marítima e Fiscal, alguns fugitivos da República Popular da China, […] em conversa com Ho Yin concluiu pela grande vantagem em iniciar contactos com o Sr. Ho Ping [O Cheng Peng], efectivo representante da China em Macau e gerente da verdadeira embaixada chinesa em Macau, firma Nam Kwong. […] Considerei-os sempre da maior utilidade, durante cerca de três anos, mantendo nós as melhores relações pessoais, embora não oficiais, como é 7 8

Hoje desaparecida, por via de novos aterros e arranjos urbanísticos. Ver Paradela de Abreu (coord.), Os últimos governadores do Império, Lisboa, Edições Inapa, 1994, p. 356.

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óbvio, mas com pleno conhecimento do Ministro do Ultramar, Prof. Adriano Moreira, e do Doutor Salazar.”. As questões pendentes no relacionamento entre Macau e a RPC, pontos de atrito que iriam emergir como capital de queixa, adicionado às vítimas dos incidentes de Dezembro de 1966, estavam bem identificados pelo então governador9: “Durante o meu governo três questões [de que sublinhamos duas] levantadas com relativa frequência por aquelas autoridades [o chefe do Departamento de Negócios Estrangeiros do Governo de Cantão, que se correspondia com o governador de Macau em nome do governo central da RPC] e transmitidas por carta [eram] – a exigência da entrega às autoridades da China dos sete fugitivos [da RPC, recolhidos por uma embarcação da Polícia Marítima e Fiscal de Macau nos limites das águas tidas como de jurisdição portuguesa, ainda que tais limites não tivessem nunca sido objecto de estabelecimento formal], - as actividades da Delegação do Governo da Formosa em Macau, consideradas pela China atentatórias da sua soberania e criminosas […] Mais do que um posto diplomático era um centro de actividades clandestinas e espionagem [… que] por determinação do Governo Central através do Ministério do Ultramar [… foi] encerrada […] em Abril de 1965.” Quanto à guarnição militar, as forças estacionadas em Macau ascendiam a pouco mais do que um milhar de homens. No plano orgânico existiam, pelo lado da Marinha, o Comando da Defesa Marítima10 (criado em 1960, extinto em 1975), e pelo lado do Exército, o Comando Territorial Independente de Macau (criado em 1953, igualmente extinto em 1975). A presença naval já não existia em Macau, por altura dos incidentes. A última unidade estacionada no território, tinha sido o Aviso “Gonçalves Zarco”, cuja comissão tinha decorrido entre 1955 e 1964 (intercalada por ausências na Índia e Timor). O último navio a visitar Macau, em data anterior aos incidentes, foi a Fragata “D. Francisco de Almeida”, em Fevereiro de 1966. No referente aos militares então em comissão no território, as condições não eram brilhantes. Em carta escrita ao autor, um oficial em serviço em Macau no início da década de 1960 (entretanto já falecido), traçava um retrato sombrio do que tinha encontrado à sua chegada "[...] Quando cheguei a Macau, a fase por que se passava era de vacas magras. A colecta sobre a importação das barras de ouro, mal chegava para pagar aos funcionários. O vencimento dum Primeiro-Tenente não chegava a 5 contos ilíquidos. A mulher era professora. Para sopa e um prato, e leite para os filhos, vivendo na barraca das Oficinas [Navais, O.N.], a coisa chegava [...] As verbas eram uma miséria; os salários outra 9

Ver id., ibid., pp. 356-357. Cujo comandante era, por inerência, Capitão dos Portos de Macau, chefe da Repartição Provincial dos Serviços de Marinha e presidente do Conselho Administrativo das Oficinas Navais. Dele dependiam ainda o Comandante da Polícia Marítima e Fiscal e a Estação Radionaval. 10

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miséria; apetrechamentos, idem; as condições de trabalho miséria pior. Por tabela, as O.N., vivendo nesse "pantanal" onde as chefias atascadas em guerras mesquinhas (nas quais as saias e cabaias tinham papel determinante) chegaram a um estado degradante, vergonhoso, lastimável." As primeiras manifestações da Revolução Cultural em Macau vistas pelo padre Manuel Teixeira O Coronel António Adriano Faria Lopes dos Santos era governador de Macau desde 1962 11. Com a sua partida para Lisboa, em Julho de 1966, de licença que se haveria de revelar sem retorno, por razões familiares, tomou posse como encarregado do Governo o Comandante militar, coronel Carlos da Mota Cerveira12. Foi este o contexto em que se desencadearam os incidentes que passariam à história como do “Um-Dois-Três”, deles se ocupando o texto do padre Manuel Teixeira (1912-2003), que pode bem ter sido elaborado a pedido do doutor Salazar, quando Lisboa tardiamente resolveu interessar-se pelo problema. Em 1966, o padre Manuel Teixeira era então residente em Macau há 42 anos. Durante essas mais de 4 décadas, viu passar trinta e três governadores e encarregados do governo diferentes, um imenso cortejo de funcionários da administração portuguesa e militares expatriados, bem como duas gerações de chineses e macaenses influentes nas respectivas comunidades e empenhados em defender interesses que lhes eram próprios. Ao longo desses anos, o sacerdote viu a China submetida a convulsões e sofrimento permanentes, em resultado dos seus conflitos internos, humilhada pelas potências ocidentais desde há um século e meio e, finalmente, invadida pelo Japão. Era, em suma, um observador atento e privilegiado, porventura o mais qualificado de todos os portugueses que então viviam em Macau, por via do seu longo e profundo conhecimento das realidades locais.

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O então coronel António Lopes dos Santos (n. 1919-2009), teve uma longa carreira de comando operacional e na administração ultramarina, tendo sido governador do distrito de Moçambique (1959-1962), governador de Macau (1962-1966) e de Cabo Verde (1968-1970). General de três estrelas, foi Vice-Chefe do EME entre Outubro de 1974 e Novembro de 1975. 12 Carlos Mota Cerveira (1920-1981), oficial do Exército da arma de infantaria (coronel em 1965), estava na sua segunda comissão em Macau, durante a qual desempenhou os cargos de comandante da PSP (1963), comandante militar (1965-1966) e encarregado do Governo de Julho a Novembro de 1966, acumulando ainda com o cargo de presidente do Leal Senado.

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Em 25 de Novembro de 1966, já agitação continental tinha atingido Macau, chegou ao território o novo governador, brigadeiro José Manuel de Sousa e Faro Nobre de Carvalho. O governo em Lisboa tinha-o posto a par dos desenvolvimentos da Revolução Cultural na China, mas não dos incidentes que tinham eclodido dez dias antes na ilha da Taipa (ver Anexo 1, para uma cronologia dos acontecimentos mais relevantes). Em 3 de Dezembro eclodiram os distúrbios mais significativos: o palácio do governo foi invadido e os confrontos com a polícia provocam três mortos e mais dez feridos a tiro. A situação degradou-se, seguindo-se mais manifestações ocasionalmente reprimidas, subindo do saldo de vítimas para oito mortos e mais de duas centenas de feridos, com boicote aos portugueses expatriados e progressivas exigências por parte das organizações locais e das autoridades da província de Cantão. Lisboa deixou o governador à sua sorte, ao ponto de, em finais de Janeiro, o doutor Salazar lhe ter retirado a confiança política. Em 14 de Janeiro, a memória de Goa em 1961 perpassa nas mentes de quantos lêem a carta, sombria e enigmática que o presidente do Conselho escreveu a Nobre de Carvalho13: “Não temos aí forças para bater as forças chinesas – seria uma impossibilidade – mas para garantir a ordem e lutar até ao extremo limite pela dignidade e pela soberania nacional…. Confiamos aqui que em caso de necessidade todos cumprirão o seu dever, mesmo com os maiores sacrifícios…”. Neste mesmo dia 14, Salazar convocou o padre António da Silva Rego, seu amigo e historiador com obra reputada sobre a presença de Portugal no Ultramar 14, pede-lhe a sua visão sobre a situação. Silva Rego contactou com o padre Manuel Teixeira (ver Anexo 2 para umas breves notas biográficas), em Macau. Este, por sua vez, Manuel Teixeira contará a José Pedro Castanheira que tinha escrito o relatório pedido e que o padre Silva Rego lhe tinha feito saber que Salazar “tinha gostado muito”15. Salazar tomou esta iniciativa mesmo antes da chegada a 13

Ver Moisés da Silva Fernandes, Sinopse de Macau [...], p. 674. António Silva Rego (1905-1986) ingressou no Seminário de S. José de Macau com onze anos, sendo ordenado aos vinte e um. Leccionou no Seminário até 1927-1928, sendo então enviado para Singapura, onde ficou até 1938. Neste ano, foi enviado para a Universidade de Lovaina para se dedicar à História das Missões do Padroado do Oriente. Regressou a Portugal em 1942. Quatro anos mais tarde foi convidado pelo proessor Marcelo Caetano para leccionar no recém-criado Curso de Altos Estudos Coloniais. Em 1975 jubilou-se da docência universitária. Enter 1947 e 1958 publicou a sua obra monumental, em 12 volumes, Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Foi designado procurador à Câmara Corporativa em 1953. Autor d euma vastíssima bibliografia sobre Portugal no Oriente, foi membro da Academia Portuguesa de História e da Academia das Ciências (onde ocupou a Cadeira 27, que tinha pertenciado ao almirante Sarmento Rodrigues). 15 Ver José Pedro Castanheira, ob. cit., p. 253. 14

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Macau de uma missão oficial (23 de Janeiro), chefiada pelo então capitão-de-fragata Pedro Correia de Barros, ex-governador de Macau (1957-1958) e de Moçambique: o chefe do governo sabia bem que a Igreja era a instituição que melhor deveria conhecer a situação que se vivia em Macau e seus antecedentes políticos e sociais. No dia 29 de Janeiro, um Domingo, às duas da tarde, no edifício da Associação Comercial (“território chinês”), realizou-se a cerimónia de assinatura do acordo possível com as autoridades chinesas. Em pouco mais de dez minutos, o governador, grave e digno, deixado só por Lisboa nesta emergência, assina dois documentos que dão satisfação às exigências formuladas pelos alegados representantes dos “habitantes chineses de Macau” e pelo governo da província de Cantão. Ao fundo da sala, ocupando toda a parede, um retrato de Mao Zedong, ladeado por duas bandeiras da RPC. O singular conjunto de restrições, tanto locais como originadas em Lisboa, bem como os episódios recentes e imediatamente anteriores à chegada do general Nobre de Carvalho a Macau, limitavam severamente a sua liberdade de acção, que enfrentava um único caminho, ainda que inteiramente por si indesejado. A opção simplesmente não existia perante o radicalismo dos seus interlocutores chineses, para os quais a resposta de Macau teria que ser de “tudo ou nada”. Relatos de quem com ele privou de perto qualificam o brigadeiro Nobre de Carvalho como senhor de uma personalidade calma, sem deixar de reagir quando as circunstâncias impunham, um homem bem intencionado e sem ambições de projectar a sua imagem pessoal, honesto, extremamente respeitável e bem formado16. Missionário no Oriente há mais de 42 anos, mais de trinta dos quais em Macau, o padre Manuel Teixeira viu passar mais de trinta governadores e episódicos encarregado ou conselho de governo, um imenso cortejo de funcionários da funcionários civis e militares expatriados, e duas gerações de chineses e macaenses influentes nas respectivas comunidades e empenhados em defender interesses que lhes eram próprios. Ao longo desses anos, o sacerdote viu a China submetida a convulsões e sofrimento permanentes, em resultado dos seus conflitos internos, humilhada pelas potências ocidentais desde há um século e meio e, finalmente, invadida pelo Japão. 16

Ver Fernando Lima e Eduardo Cintra Torres (ed.), Macau Entre Dois Mundos, Editorial Inquérito/ Fundação Jorge Álvares, 2003, p. 183.

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Era, em suma, um observador atento e privilegiado, porventura o mais qualificado de todos os portugueses que então viviam em Macau, por via do seu longo e profundo conhecimento das realidades locais. O documento escrito pelo padre Manuel Teixeira 17 está datado de 21 de Janeiro. Não temos provas de que tenha sido produzido a pedido do Silva Rego o qual, por sua vez, tinha recebido esse encargo directamente do presidente do Conselho. No entanto as circunstâncias que assinalamos apontam nesse sentido: o texto pode ter sido enviado para Lisboa poucos dias depois de subscrito, através de um dos membros da missão oficial a que já aludimos. Quando se evoca o quinto centenário da chegada dos portugueses a Macau, os primeiros europeus a desembarcar em terra chinesa, é relevante recordar um episódio da contemporaneidade que, de certo modo, constitui uma metáfora da natureza daquela longa e singular presença: os portugueses foram os primeiros a chegar, por mar, ao Império do Meio e seriam os últimos a sair, fruto de uma cumplicidade de conveniências, ainda que recheada de incidentes cujo desfecho favorável à China não esteve nunca verdadeiramente em causa. Não obstante estas circunstâncias é seguramente apressada mas muito discutível qualquer conclusão que se inscreva na ideia de que à presença de Portugal em Macau faltou interesse ou sequer dignidade: uma pequena potência, do extremo mais ocidental da Europa, deixou marcas e vínculos culturais indeléveis e respeitados pelas autoridades de Pequim. As breves notas com as quais ilustramos o texto do padre Manuel Teixeira dirigem-se ao leitor menos informado sobre a história e a geografia física e humana de Macau: assim se justificam algumas delas, que decerto surgirão como inúteis aos olhos do conhecedor do território.

AGRADECIMENTO: O autor agradece ao Centro Científico e Cultural de Macau, a autorização para a publicação do texto “Filosofando sobre os acontecimentos”, do padre Manuel Teixeira, concedida em 2005 e validada pelo 17

O texto que reproduzimos abaixo pertence a um conjunto de 38 páginas dactilografadas, das quais 12 correspondem à suposta versão final e as restantes, algumas das quais com emendas pela mão do seu Autor, com um título diferente do suposto original. Esta versão emendada refere-se já à assinatura do que o padre Manuel Teixeira designa como “[...] um documento humilhante […]” (posterior, portanto, a 29 de Janeiro de 1966). Admite-se que estas alterações tivessem em vista actualizar o seu escrito inicial, datado de 21 de Janeiro, eventualmente com vista à sua publicação, que se crê nunca ter acontecido. É proibida a sua reprodução.

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CCCM em 2013. O texto é propriedade do Centro Científico e Cultural de Macau, sendo proibida

a sua reprodução. Está descrito no seu catálogo como “Os distúrbios de 1966-1967”, cota MMT.MAN.A210 – cx51.

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“Filosofando sobre os acontecimentos18 No passado Estamos em Macau desde 1557. Como nos fixamos aqui? Como recompensa pela luta contra os piratas? Pela vantagem dos comerciantes chineses em manter relações connosco? A origem de Macau é um mistério até hoje insolúvel. Uma coisa é certa; estabelecemo-nos em Macau há 4 séculos, não como em África, na Índia ou na América; mas duma forma dependente, pagando foro 19 à China e acatando as ordens imperiais ou mandarínicas. Uma feitoria com bandeira portuguesa e leis portuguesas para os portugueses; os chinas estavam sob os seus mandarins. Vivemos assim até 1849, [ano] em que Amaral 20 derrubou o “hopu”21 e expulsou o 18

Pelo P. Manuel Teixeira. Foram corrigidas as gralhas tipográficas evidentes mantendo-se, todavia, a grafia utilizada pelo Autor. Incluimos entre parêntesis rectos [ ] palavras ausentes do original por presumido lapso de dactilografia. 19 Ver Nota 25 infra. 20 João Maria Ferreira do Amaral governou Macau entre 1841 e 1846, ano em que ali foi morto. Nasceu em 1805, alistando-se na Academia Real dos Guardas Marinhas em 1821. Serviu no Brasil em combate contra a independência do reino americano, nele perdendo o braço esquerdo, em condições que a História regista como de singular heroísmo. Regressado a Portugal, comandou navios e participou na expedição do Mindelo (1832). Era deputado por Angola quando, em 1845, foi nomeado governador de Macau. Sublinhe-se que foi apenas um ano antes, reinava D. Maria II, que foi publicado o decreto que criou a província de Macau, Timor e Solor, independente do Estado da Índia. Amaral embarcou em Fevereiro de 1846, chegando ao território em Abril. Aí se deparou com o facto de que a navegação que praticava o porto de Hong Kong, não estava sujeita a qualquer tipo de taxas alfandegárias, ao contrário do que sucedia em Macau, por via da Alfândega chinesa. Cumprindo ordem do governo, decretou Macau como porto franco, substituindo os rendimentos alfandegários por um imposto cobrado junto de todas as embarcações que praticavam o porto. Este imposto deu origem à insurreição que ficou conhecida como a “Revolta dos Faitiões”, envolvendo proprietários daquele tipo de embarcações (“barcos ligeiros”). A revolta foi combatida a tiro. No ano seguinte, a 27 de Fevereiro de 1847, mandou abrir três estradas, uma das quais obrigou à remoção de cerca de 700 sepulturas. O caso suscitou, de novo, a ira da comunidade chinesa, afrontada pelos distúrbios assim causados ao repouso dos seus antepassados. Em 1849, no quadro das circunstâncias referidas na Nota seguinte, Amaral foi assassinado quando se passeava a cavalo, acompanhado do seu Ajudante-de-Ordens. Foram-lhe cortados e transportados para a China, a cabeça e o braço sobrante. Estes restos mortais apenas foram devolvidos no ano seguinte, conservados em sal, por iniciativa do governador de Cantão, que reclamava ter condenado os assassinos de governador à pena capital. 21 O termo “Hopu” transcreve sinteticamente para português a designação de Superintendente Imperial das Alfândegas Marítimas Chinesas. Este órgão estabeleceu-se em Macau em 1684 para cobrar direitos aduaneiros aos navios que demandavam o porto, tanto locais como estrangeiros, As taxas revertiam em favor do fisco imperial quando se tratava de navios chineses ou de exportações portuguesas, sendo arrecadadas pela cidade apenas no caso das importações feitas por portugueses. A Alfândega Chinesa em Macau, que dispunha de dois postos aduaneiros, conhecidos como o Hopu da Praia Pequena e o Hopu da Praia Grande, foi abolida por um edital do governador de 5 de Março de 1849. A ordem de abolição foi desobedecida e, oito dias mais tarde, o comandante Ferreira do Amaral mandou expulsar os funcionários dos Hopus das respectivas casas. O vice-rei de Cantão reclamou e Amaral respondeu “Em quanto às ameaças do último oficio de V. Exa., cumpre-me asseverar a V. Exa. Que nada me assusta, pois quem por vezes pôde servir de profícuo auxílio do Governo Chinês, muito melhor poderá tratar de se defender”. A cabeça de Amaral rolou em 22 de Agosto de 1849. A expulsão do Hopu não apenas custou a vida do governador, como também não foi definitiva, já que a Alfândega Chinesa foi restabelecida em 1868, no quadro do

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mandarins; foi a época em que a Inglaterra se apossou de Hong Kong (1841) e a China se curvava perante os europeus. Como sobrevivemos nos 300 anos da nossa dependência da China (1557-1849)? Pela

nossa

embaixada

cultural

e

pelas

peitas 22.

Essa

embaixada

eram

os

jesuítas de Pequim com a sua influência junto do imperador ; a eles recorria 23

o Senado24 nas questões com a China e a eles se deve [a] conservação de Macau25.

combate da China ao tráfico do ópio. 22 S.f., do latim pactu, significa, no contexto, dádiva com intuito de suborno. 23 A expansão do cristianismo a Oriente iniciou-se com os jesuítas e a sua chegada à Índia em 1542, no rasto dos mercadores: “… Os pregadores levam o Evangelho e os mercadores levam os pregadores.”, escreveu o padre António Vieira (1608-1697). O rápido alargamento da sua esfera de acção ficou a dever-se, em larga medida, à eficácia dos seus métodos de implantação e “fusão” cultural, para além de um enorme entusiasmo e espírito de sacrifício, por vezes levado até ao martírio. O mais notável dos precursores foi S. Francisco Xavier (n. 1506, m. 1552 na ilha de Sangchuan – Sanchoão na designação portuguesa usual, no sul da China). Os três primeiros jesuítas chegaram a Macau em 1563. Dois anos mais tarde, pediram licença para entrar na China, recusada pela burocracia imperial por não saberem a língua chinesa, como foram delicadamente informados. Levantaram, em 1565, a primeira residência da Companhia de Jesus em Macau. Os padres Miguele Ruggieri (1543-1607) e Matteo Ricci (1552-1610) foram os primeiros e entrar na China, logo no início da década de 1580, após estadia em Macau, onde se familiarizaram com a língua e costumes locais. Ricci, em particular, era um estudioso das ciências, tendo sido discípulo de Clavius (1538-1612), importante matemático e astrónomo, também membro da Companhia de Jesus, que estudou em Coimbra e se admite tenha tido contacto com Pedro Nunes. Ensinou no sul da China, estabelecendo-se em Pequim em 1601, pago pelo erário imperial na sua qualidade de académico ocidental, tendo publicado diversos livros científicos em chinês, privando com académicos locais e adquirindo enorme prestígio junto da Corte. Parte do prestígio então adquirido pelos membros da Companhia, resultou do respeito que os jesuítas mostravam pela cultura chinesa, vestindo-se como os locais e estudando a doutrina de Confúcio. Note-se, entretanto, que a China tinha desenvolvido conhecimentos de cosmologia e astronomia bastante avançados, embora os jesuítas nem sempre tenham adquirido essa percepção. Sem embargo deste facto, os jesuítas foram encarregados de reconstruir e reequipar o Observatório (ou Tribunal Astronómico) de Pequim. O trabalho do padre Ricci foi acompanhado por numerosos outros jesuítas, entre os quais muitos portugueses. 24 O Senado de Macau foi criado em 1583 ou 1585, segundo diferentes autores, para substituir a dependência da cidade do Capitão-Mor das Viagens da China e do Japão. O Senado da Câmara existia então nas cidades mais importantes do reino, como Lisboa, Goa e Malaca, funcionando como assembleia concelhia. No entanto, sublinhamos desde já que o Senado de Macau veio a adquirir uma importância singular na governação da cidade, muito mais significativa do que sucedeu Os moradores de Macau formaram o Senado local, que ficou constituído por 2 juízes, 3 vereadores e um procurador da cidade, todos cargos eleitos. O termo “moradores” tem aqui o significado, usual nos séc. XVII e XVIII, de “homens-bons”, i.e. os que possuíam bens e tinham, em consequência, capacidade eleitoral. O procurador tinha especial importância, já que era o representante da cidade perante os chineses. Era com o Senado que as autoridades de Cantão tratavam dos assuntos económicos, sociais e políticos da cidade, deixando os assuntos de defesa da cidade ao capitão-geral, depois ao governador. A história de Macau regista largos períodos e numerosos episódios de oposição e mesmo de acrimonioso conflito entre o representante da Coroa e o Senado da Câmara. O afastamento de Goa, e a predominância do Senado nas decisões locais, conferiam a Macau a natureza de uma pequena república urbana. O Senado teve o seu período de maior influência até 1783, quando providências da rainha D. Maria I limitaram a sua autoridade, em favor do governador. A designação Leal Senado foi-lhe foi dada por D. João VI em 1810. Em 1834 (decreto de 9 de Janeiro), a Nova Reforma Administrativa Colonial reduziu os poderes do Leal Senado aos de uma autarquia comum, dependente do governador. Esta redução da autonomia do Senado não foi pacífica, criando atritos com o governador de então, o comandante Soares de Andreia (1833-1837). Em 1846, chegou a Macau o governador Ferreira do Amaral. Sendo pouco dado à partilha do poder, reforçado pelas instruções que levava de Lisboa, acabou por liquidar as veleidades de autonomia do Senado que ainda subsistiam. Ver Manuel Teixeira, O Leal Senado, Macau, [s.d.].

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

Portugal encerrou essa embaixada26, cortando pela raiz o maior esteio de Macau. A “peita do Aitão”27 resolveu também inúmeras questões com os mandarins da “Casa Branca” (Heung-Shan)28 e com o V. R. de Cantão29; o Leal Senado dobrou sempre a cerviz aos mandarins sob a ameaça de não virem mais provisões das Portas do Cerco30. De 1849 até 1949, a China viveu acocorada perante a Europa. Nesse ano, Mao-Tse-Tung deu o golpe definitivo nos nacionalistas e TchangKai-Chek refugiou-se na Formosa. Pequim tornou-se uma potência mundial com 25

Um dos episódios que deve ter estado na mente do Autor do documento que anotamos, passou-se em 1622 (reinava Tianqui, o penúltimo governante da dinastia Ming) e nos anos que se lhe seguiram, quando o imperador proibiu Macau de exercer qualquer actividade de comércio ou navegação, condenando assim a república à morte por asfixia. Como razão paraeste édito, o imperador alegou a necessidade de criar condições para por termo às actividades criminosas de um notório pirata que assolava as costas do sul, a coberto de uma poderosa frota de juncos. Esgotadas, debalde, outras vias para conseguir a sobrevivência da presença portuguesa em Macau, os habitantes apelaram à intersecção dos “padres da corte”, no que acabaram por ser bem sucedidos. Os bons ofícios dos jesuítas da Missão de Pequim, sustentados no crédito de que desfrutavam junto do imperador, voltaram a mostrar a sua importância, ainda que por razões diferentes, em 1686, 1726-1727 e 1752. 26 Não foi por vontade portuguesa que a SJ viu drasticamente reduzidos o seu campo de manobra e influência. Durante o reinado do imperador Kangxi (o segundo da dinastia Qing, 1661-1722) a Companhia de Jesus atingiu o auge do seu prestígio junto da corte de Pequim. Depois da morte daquele monarca vingaram os esforços dos adversários do cristianismo. Em 1724 o cristianismo foi declarado heterodoxo e banido da China pelo sucessor de Kangxi, o imperador Yongzheng (1723-1735). A excepção ao banimento foram os padres de Pequim, que o imperador (fazendo uso de uma moral utilitária) pretendeu conservar, na condição de astrónomos e artistas, designadamente arquitectos, músicos e pintores. Mas a influência dos jesuítas na corte do Filho do Céu estava condenada, tendo os seus bens e fieis sido herdados pelos padres lazaristas (entre os quais se contaram portugueses), na época de influência francesa. O banimento só foi levantado em 1846, já debaixo da pressão ocidental, em particular da França. Importa ainda recordar que, em Portugal, os jesuítas tinham visto os seus bens confiscados e expulsos do reino e dos seus domínios pelo Marquês de Pombal em 1759. A ordem foi executada em Macau em 1762, tendo os 24 padres ali residentes sido presos e, quatro meses depois, despachados para as masmorras de S. Julião da Barra, com atribulada passagem pela Índia e pelo Brasil. Paralelamente, em 1773 a Companhia de Jesus foi extinta pelo Papa Clemente XIV, situação que apenas foi revertida em 1814, no pontificado de Pio VII. Todas as provações por que passou a Ordem terão seguramente contribuído para a progressiva escassez de jesuítas portugueses na Missão de Pequim. O último deles, o padre Bernardo de Almeida faleceu na capital da China em 1805, assim se extinguindo uma importante fonte de influência de Macau junto da corte. 27 Aitão é a designação dada pelos portugueses ao cargo de Intendente de Defesa Marítima de Cantão (Haidao Fushi). Figura em fontes portuguesas com a designação de Almirante do Mar, Comandante do Mar ou “Cabeça” do Mar. Foi com este mandarim (no sentido genérico de alto funcionário chinês), Wang Bo de seu nome, que Leonel de Sousa tratou em 1554 um acordo verbal de grande importância para o estabelecimento estável dos portugueses em Macau. Também surge com os nomes de “haitao” ou “haitão”. A expressão “peita do Aitão” refere-se aos pagamentos em prata que, desde as primeiras décadas do seu estabelecimento em Macau, os portugueses que iam comerciar a Cantão entregavam ao mandarim em causa, a título de pagamento pessoal, paralelamente aos direitos locais. Parece seguro afirmar que, na maioria das vezes, a autoridade chinesa não entregava a prata assim recebida nos cofres públicos. Em 1571 ou 1572 Pedro Gonçalves, o intérprete macaense que acompanhava os comerciantes, fez menção de entregar a peita anual ao Haidao que, todavia e na circunstância, estava acompanhado de outras autoridades locais. O Haidao transformou o embaraço inicial em expediente e mandou que a prata desse entrada no tesouro do imperador, a título de “foro de chão” da cidade da Macau. Esta foi a avaliação corrente até data recente, mesmo na historiografia de origem chinesa. No entanto, será importante olhar de novo para aqueles episódio, agora à luz de autores chineses, com mais fácil acesso às suas fontes, antes dificilmente acessíveis ao autor ocidental mais comum. Um exemplo desta renovada visão é a de Tan Shibao e Cao Guoqing, “Nova Avaliação de Wang Bo e do Primeiro Acordo Sino-Português”, Revista de Cultura, Edição Internacional, nº 1, Macau, Janeiro 2002. Neste texto, os autores levantam dúvidas sobre o suborno e exoneram o Haidao do labéu de funcionário corrupto,

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

mais súbditos do que nenhum outro poder desde que o mundo é mundo. Hoje vivemos sob a ameaça deste poder. Ménage à trois Durante a II Guerra Mundial, Macau, foi o único centro de refugiados e a maior base de espionagem no Extremo-Oriente31: ingleses, alemães, japoneses, italianos, americanos e chineses de todas as cores aqui se refugiaram e aqui fizeram o jogo da sua nação. Toda esta actividade política resultou na formação de dois bandos apenas, que se digladiaram à mão armada: o japonês e alegando que o acordo com Leonel de Sousa terá decorrido de uma correcta decisão política do governo Ming. Designação corrente para o “Sub-Prefeito militar e Civil da Defesa Marítima de Qianshan”. Tratava-se do mandarim que detinha as competências directas relativamente a Macau. Qianshan ou Xiangshan (conforme a romanização) é uma localidade situada cerca de 25 km a norte de Macau e a cerca de 40 km de Cantão, a capital provincial. Era sede da circunscrição administrativa a que pertencia Macau. Em 1925 a cidade alterou o seu nome para Zhongshan, em honra do dr. Sun Iat-sen (natural da região, era também conhecido por Sun Zhongshan). 29 Certamente o Vice-Rei de Cantão, responsável pelo governo da província, superior do “Aitão” e do “mandarim da Casa Branca”. Referido em textos portugueses como o Suntó, aportuguesamento da época da designação cantonense Tsong-Tou. Também surge em textos portugueses e chineses como o “vice-rei dos Dois Guangs”, já que governava então as províncias de Cantão (Guangdong) e de Guangxi, contígua da primeira, a oeste. 30 A Porta do Cerco ou do Limite existiu a partir do início da década de 70 do séc. XVI (ver Luís Filipe Barreto, Macau: Poder e Saber – Séculos XVI e XVII, Lisboa, Editorial Presença, 2006, pp. 132-133). As fontes referem uma porta onde os mandarins montavam o seu posto de cobrança dos direitos sobre as mercadorias adquiridas pelos portugueses, na feira que periodicamente se realizava no continente. A porta, situada no istmo que liga a península ao continente, dispunha de uma barreira guarnecida com militares chineses. O mesmo Autor remete para 1564 a data hipoteticamente mais recuada para o estabelecimento da referida barreira fronteiriça. De início apenas abria uma vez por semana (provavelmente nos dias de feira no continente) até que, progressivamente, passou a abrir todos os dias: o acto era assistido por um mandarim que, à noite, selava a porta com seis papéis, que ele mesmo retirava na manhã seguinte. Até época recente (presumivelmente no séc. XIX), a porta mostrava a inscrição “Admirai a nossa grandeza, respeitai as nossas virtudes” colocada pelos chineses, em caracteres sínicos. O arco presentemente existente foi inaugurado em 1871, em memória do governador João Maria Ferreira do Amaral durante o governo do vice-almirante António Sérgio de Sousa, (1809-1878, foi governador no período 1868-72) sendo encimado pela inscrição “A Pátria Honrai que a Pátria Vos Contempla”. O arco tem hoje funções meramente monumentais. A divisa, cuja inscrição na nova Porta do Cerco não será estranha à sua condição de oficial da Marinha, era originalmente inscrita no vau do tombadilho (dos navios que o possuíam) dos navios da Marinha desde 1863, por portaria de 20 de Março do ministro da Marinha e do Ultramar, José da Silva Mendes Leal. 31 Em 7 de Dezembro de 1941, o Japão atacou a base aeronaval americana de Pearl Harbour. Invadiu Hong Kong no dia seguinte, conseguindo a rendição da colónia britânica no dia 25 de Dezembro. Iniciou-se então um afluxo de deslocados que iria aumentar para quase meio milhão a população de Macau. Esta tinha anteriormente atingido 140 mil habitantes, após o acolhimento dos deslocados de Cantão e Shanghai, no seguimento da invasão japonesa da China, em 1937 (os números variam conforme as fontes). Entre os finais de 1941 e 1945 viveu-se um período dramático da vida de Macau, marcado pela fome, falta de abrigo e sucessão de epidemias, que chegaram a vitimar mais de 100 pessoas por dia em 1943. A situação política era também de grande delicadeza, em particular pela pressão japonesa, exercida através de um Consulado e uma missão especial do exército instalados em Macau. O controlo das fronteiras de Macau pelo Japão forçou a jogos de diplomacia e mesmo de conivência com o ocupante da China, de modo a viabilizar alguma entrada de alimentos em Macau. Não deve deixar-se sem referência a venda às autoridades japonesas da canhoneira Macau (comprada em Glasgow e lançada à água em Hong Kong em 1909), a troco de 10 toneladas de arroz. A Igreja, a administração portuguesa e a sociedade macaense deram então provas da sua solidariedade com os mais necessitados. Importa destacar as figuras do governador, capitão-de-fragata Gabriel Maurício Teixeira (1940 a 1947) e do chefe dos Serviços de Economia, dr. Pedro José Lobo (1892-1965). Quanto à questão da espionagem, é de referir que agentes ingleses poderão ter migrado para Macau, integrados nos contingentes de refugiados de Hong Kong nos princípios de 1942. Por outro lado, ocupados Hong Kong e Singapura, Macau era o único território que permanecia em mãos ocidentais, embora se encontrasse refém da 28

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

o chinês. Foram abatidos a tiro de lado a lado vários indivíduos, até de alto coturno, tais como o cônsul japonês32 e alguns coronéis e oficiais chineses. Os americanos bombardearam várias vezes Macau33 e houve ameaças de invasão. Mas Macau sobreviveu. Veio o após-guerra e Macau tornou-se um modelo de coexistência

pacífica;

mas

esta

resultava

dum

casamento

complicado,

um

casamento de três (ménage à trois, diriam os franceses); os portugueses, os nacionalistas e os comunistas. Temos pois o português a viver com duas damas em sua casa. Ora

cada

uma

delas,

odiando-se

mortalmente,

tinha

as

suas

amigas

ou

simpatizantes enredando-se, intrigando-se numa rede de espionagem que se estendia daqui até às duas Chinas antagónicas. Fora

deste

enredo

político,

ficava

a

massa

amorfa

e

incolor,

indecisa,

calculista e neutra. Foi este ménage à trois que manteve o equilíbrio em Macau desde 1948 até 1966, em que se deu o repúdio de uma das damas, a quem se cerrou a porta da casa

por

se

ter

excedido

no

enredo

dos

seus

ciúmes.

Repudiada

a

dama

nacionalista, rica, generosa e educada, ficou a dama comunista, odienta, egoísta e de colmilhos34 aguçados. Vejamos como se deu o desequilíbrio. O desiquilíbrio [sic] O equilíbrio era mantido por seis partidos. delicada (e pouco transparente) neutralidade oficial portuguesa. A circunstância de Macau não ter sido invadida, ao contrário do que sucedeu com Timor, terá visado servir os interesses do Japão no domínio da recolha de informações. 32 O cônsul do Japão em Macau foi alvo de um atentado mortal, em sua casa, no dia 2 de Fevereiro de 1945. A responsabilidade foi atribuída a chineses, pagos pelo responsável da polícia nipónica em Cantão, em resultado de alegadas divergências quanto à política de relacionamento entre Portugal e o Japão, em Macau. Em 4 de Abril registou-se outro assassinato de um outro súbdito japonês, desta vez de um funcionário da Marinha imperial. 33 O primeiro bombardeamento aéreo ocorreu em 16 de Janeiro de 1945. Foi realizado por três aviões dos EUA, tendo como alvo os depósitos de combustível do extinto Centro de Aviação Naval, visando evitar a sua venda aos japoneses. Esta venda tinha sido negociada por Pedro Lobo, em troca de facilidades na entrada de alimentos. Na tarde daquele mesmo dia foi realizado um segundo bombardeamento, que visava a destruição de um vapor japonês, objectivo que não foi alcançado. Estes dois bombardeamentos provocaram 2 mortos e 5 feridos, bem como a destruição do antigo Museu Marítimo de Macau. Em 25 de Fevereiro, os EUA repetiram a operação, procurando agora destruir o já referido vapor, para além de um avião japonês que, dias antes, tinha feito uma aterragem de emergência em Macau. Resultaram mais 4 mortos e vários feridos. Em 7 de Abril, um avião aliado afundou uma lancha surta no Porto Exterior de Macau, morrendo 19 pessoas. Em 11 de Junho, quarto bombardeamento americano, voltando a visar o vapor já referido, provocando mais 1 morto e alguns feridos. Em 26 de Julho, quinta operação dos EUA, agora sobre a ilha de Coloane e, desta vez, sem vítimas nem danos apreciáveis. Em 6 e 9 de Agosto foram lançadas as bombas atómica em Hiroxima e Nagasaqui. O imperador do Japão apresentou a rendição incondicional exigida pelos aliados em 14 de Agosto de 1945, pondo assim termo ao conflito no Oriente. Começaram então a regressar aos seus locais de origem os refugiados que se tinham acolhido em Macau durante a guerra. 34 O mesmo que dentes caninos.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

1



O

nacionalista,

reconhecidos

por

com

o

Taipei,

seu os

delegado,

seus

as

bancos,

suas o

escolas

seu

com

comércio,

diplomas os

seus

capitalistas, as suas festas, arcos triunfais e os seus jornais. 2 – O comunista, com menos poder económico, mas mais força política, as mesmas

actividades

do

seu

rival

e

sob

protecção

dos

arredores;

muitos

arvoravam a bandeira comunista apenas para poderem comerciar com o interior; o mesmo faziam os inúmeros barcos de pesca do nosso porto. 3 – O pro-nacionalista, ou seja, os simpatizantes. 4 – O pro-comunista, idem. 5 – A geleia política, que é a maioria sem cor, que se encosta ao mais forte. 6 – O português, administrando uma terra chinesa com um governador português; sem comércio, sem indústria, sem recursos próprios; mas na dependência total da China para a mão de obra, a água, a areia e tudo o mais. As autoridades portuguesas totalmente ignorantes da língua e da idiossincrasia chinesa. É esta a nossa vulnerabilidade: um corpo com os pés de barro assentes em areia movediça. E quando esta se moveu, veio a vertigem da queda. Como é que se moveu? A delegacia nacionalista foi encerrada e proibidos os seus arcos triunfais no Duplo Dez (10 de Outubro, aniversário da República). Talvez tivesse sido melhor proibir ao delegado toda a espionagem e deixar aberta a Delegacia para os

passaportes.

As

escolas

comunistas

tornaram-se

antros

de

propaganda

subversiva; os jornais, idem. O equilíbrio rompeu-se. O partido comunista engrossava e os outros recuavam e definhavam Nada se fez para atalhar ou contrabalançar esta propaganda diária. Uma faúlha seria o bastante para atear o incêndio. Macau, base de actividades políticas Macau convém à China, apenas sob um aspecto – o económico, porta aberta para o mundo exterior. Mas não pode tolerar que Macau seja uma porta de subversão no interior da China. E isto é o que se estava dando. Cheng Yat Meng 35 vivia em Macau, onde exercia o papel de chefe dos agentes secretos nacionalistas da 35

Era militar, responsável desde 1959 pelas acções de guerrilha nacionalista dirigidas sobre território chinês vizinho, depois de ter sido director de relações públicas do Kuomintang em Macau. Desertou para a RPC em Dezembro de 1964. Ver Moisés Silva Fernandes, A China e Macau: as origens e repercussões da “Revolução Cultural” chinesa em Macau nas relações sino-portuguesas. Tese de doutoramento em Ciências Sociais – Sociologia Política, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2004, p. 8.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

Formosa.

Ho-Yin36,

representante

da

China

comunista

em

Macau,

conseguiu

aliciar Yat Meng e este passou a desempenhar um duplo papel: agente dos comunistas e nacionalistas. Resultou que na China comunista foram presos todos os que trabalhavam a soldo da Delegacia Nacionalista de Macau. O Governador Lopes dos Santos encerrou então esta Delegacia; mas continuou a funcionar

a

sua

sucursal



a

Associação

Geral

dos

Refugiados

Chineses

Residentes em Macau. Esta, aberta em 1953, só foi encerrada a 10-1-196737, tendo durante esse período dispendido $100.00038 com os refugiados. Estes,

fugidos

da

China

por

terra,

por

barco

ou

a

nado,

eram

primeiro

registados e identificados pela Polícia, depois registados na Casa Ricci39 (assistência a cargo dos jesuítas) e, por último iam à sede da Associação dos Refugiados que dava a cada um $20 patacas e comida e dormida durante 15 dias; isto era apenas um pretexto para lhes extorquir todas as informações da China comunista – movimentos de tropas, etc. Passados esses 15 dias, os refugiados ficavam a cargo da Assistência Pública de Macau e da Casa Ricci. Daqui se vê [como] as actividades da Delegação no campo

da

espionagem

passaram

para

a

Associação

de

Refugiados.

A

China

36

Nasceu em 1908, numa localidade situada a cerca de 100 km de Macau. Foi homem de negócios e líder respeitado da comunidade chinesa em Macau durante longos anos. Nesta qualidade, era o intermediário do relacionamento entre o governo da RPC e o governo português do Território. Foi delegado ao Congresso Nacional Popular (o órgão legislativo da RPC, o mais importante órgão do Estado chinês, de acordo com a sua Constituição), tendo acesso aos principais dirigentes políticos. Acompanhou o seu pai para Hong Kong em 1938, na sequência da invasão japonesa da China. A família viajou para Macau em 1914 onde, anos mais tarde, fundou um banco. Tornou-se proprietário de duas centenas de empresas e foi, a partir de 1950, presidente da influente Associação Comercial de Macau. Foi ainda membro do Conselho Legislativo de Macau e, depois do 25 de Abril, deputado à sua Assembleia Legislativa, de que foi, em 1976, o primeiro presidente provisório. No início da Revolução Cultural, em Maio de 1966, foi alvo de um atentado, atribuído a agentes do Kuomintang, alegadamente por causa da sua ligação íntima com o PCC. Morreu em Macau em 1983. Foi uma personalidade marcante de um quarto de século da vida de Macau. Era pai Edmund Ho Hauwah, em 1999 o primeiro chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau. 37 Uma das imposições das autoridades chinesas, alargadas às restantes agremiações associadas aos interesses formosinos em Macau. 38 Uma pataca, moeda de Macau, valia então 5 escudos portugueses. 39 A Casa Ricci foi fundada em 1951 como residência da Companhia de Jesus, que incluía também um Centro de assistência social. Matteo Ricci, o seu patrono, nasceu em 1552, nos então Estados Papais, hoje território da Itália. Estudou teologia e leis e, em 1577, estava em Lisboa, onde se candidatou a uma posição de missionário jesuíta na Índia. Embarcou para Goa, onde chegou em 1578. Foi ordenado em Cochim, em 1580, e partiu para a China dois anos depois, estabelecendo-se em Macau. Aqui aprendeu a língua e os costumes da China. Entre 1583 e 1589 encontra-se em Zhaoqing, província de Cantão, exercendo actividades de matemático e cartógrafo. Foi autor do primeiro mapa do mundo em língua chinesa. Regressou a Macau, de onde partiu para posteriores diversas viagens pela China, alcançando Pequim em 1598. Em 1601, foi recebido pelo imperador Wanli, a quem presenteou um relógio musical. Em Pequim, tomou contacto íntimo com os princípios e valores confucianos, especialmente influentes na sociedade chinesa. Foi responsável, na época, por um importante diálogo inter-cultural, religioso e filosófico entre o Ocidente e o Oriente. Viveu o resto da sua vida na China, onde morreu em 1611, estando sepultado em Pequim. Foi uma figura de grande influência no relacionamento entre a China e o Ocidente.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

comunista não estava disposta a consentir que Macau continuasse a ser uma das bases de actividades políticas contra ela. Outra base é Hong Kong, que mais cedo [ou] mais tarde há-de sofrer também um rude choque.40 Antecedentes Junho de 1963: sete agentes subversivos da Formosa foram capturados com armamento pela nossa polícia marítima nas águas do porto. Os comunistas dizem que em águas chinesas; nós que em águas portuguesas41. Tanto a China como a Formosa tem reclamado desde 1963 a entrega desses guerrilheiros, mas foi-lhes recusada. Em

Setembro

actividades actividades,

de

1963,

contra

a

seriam

publicamos China: deportadas

uma

Nota

quaisquer para

lá;

Oficiosa

pessoas este

proibindo

que

todas

exercessem

subterfúgio

as

essas

revelou-se

desastroso42. 22-5-196643: Atentado bombista contra o representante da China comunista em Macau, Ho-Yin. A polícia fez uma rusga minuciosa e demorada, interrogando milhares

de

pessoas.

Descobriu

armamento

abundante

e

cinco

indivíduos

responsáveis foram presos. Pois esses 5 agentes foram deportados para a Formosa, contrariamente ao estatuído na Nota Oficiosas. Perante este impasse, a China manifestou o seu desagrado e a sua indignação contra a nossa duplicidade. Seria esse o momento mais oportuno para soltar os 40

No seguimento de um incidente laboral, eclodiram em Hong Kong, em 11 de Maio de 1967, incidentes paralelos dos que afligiram Macau uns meses antes. A firmeza demonstrada pelas autoridades coloniais inglesas não permitiu, todavia, que a situação em Hong Kong se deteriorasse. Já anteriormente, em Abril de 1966, emergia a revolução Cultural, levantou-se na colónia inglesa em Hong Kong um protesto contra o aumento de tarifas que acabavam de afectar a 1ª classe das embarcações que faziam o transporte de passageiros entre a Ilha e a península de Kowloon. As manifestações deram lugar a distúrbios nas ruas, com assaltos e fogo posto, dos quais resultou um morto. 41 A questão dos limites, em especial quanto ao domínio marítimo, foi sempre uma matéria complexa e disputada. Datam de 1871, no governo do almirante Sérgio de Sousa, as primeiras tentativas para delimitar as águas de Macau. Para o estudo desta questão no séc. XIX ver António Vasconcelos de Saldanha, Negociações e Acordos LusoChineses sobre os Limites de Macau no século XIX, Lisboa, Instituto do Oriente/ ISCSP e Instituto Internacional de Macau, 2010. 42 A nota oficiosa, com meia dúzia de linhas nada mais diz do que o autor aqui escreveu: Ver Moisés da Silva Fernandes, Sinopse de Macau [...]. Os protestos da República da China (Formosa) não se fizeram esperar mas foram inconsequentes. Não estamos em posição de interpretar a expressão “resultados desastrosos”. 43 Moisés Silva Fernandes, ibid., p. 230, refere que o atentado contra Ho Yin e outro importante dirigente da comunidade chinesa em Macau ocorreu em 8 de Maio e não em 17 de Maio. O atentado foi atribuído a agentes nacionalistas. Ho Yin recebeu os votos de melhoras do ministro do Ultramar, Joaquim Silva Cunha, e foi visitado no hospital pelo govenador Lopes dos Santos. É oportuno anotar aqui, ainda que não exista – obviamente – qualquer relação causal, que o início da “Grande Revolução Cultural Proletária” foi oficialmente anunciado em Pequim por Zhou Enlai em 15 de Maio.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

sete guerrilheiros presos antes da Nota Oficiosa e remeter estes cinco à China. Nada se fez. Avolumavam-se as parcelas do nosso débito e as do crédito chinês. Havia Associações com nome injurioso contra a China; escudos e bandeiras nacionalistas voltadas para a Lapa44 e Portas do Cerco. Perante estes factos, a China deixou de acreditar em nós. Tudo se preparava para um grande incêndio. O terreno estava preparado. Bastava uma faúlha. Esta foi lançada na Taipa. A faúlha A faúlha foi o incidente da Taipa. Pessoalmente, estou convencido de que, com Taipa ou sem Taipa, isto se viria a dar; a Taipa foi um simples pretexto. O incidente foi simples; pediu-se licença para transformar um prédio em escola45. A complicada burocracia portuguesa demorou, como costuma, em conceder essa licença.

E

a

chamada

Associação

dos

Operários

iniciou

as

obras

sem

autorização. A polícia interveio, como era seu dever. Encontrando resistência, usou de força para desalojar os operários e os desordeiros do interior do prédio; houve pancada, pedradas e ferimentos de parte a parte. Isto passou-se em 15 de Novembro de 1966. As autoridades administrativa (Rui de Andrade46) e policial (Major António Vaz Antunes47)

procederam

correctamente.

Se

o

caso

se

desse

em

Portugal,

os

desordeiros não só seriam desalojados, mas iriam parar à cadeia. A imprensa chinesa, acaudilhada pelo jornal Ou-Mun (dirigido por um comunista militante) fascistas

transformou portugueses

este contra

incidente a

policial

população

num

pacífica

caso

político:

chinesa,

omitindo

os a

44

Ilha vizinha de Macau, localizada a leste da península, tem a designação chinesa Wanzai. Teve presença de missionários portugueses a partir do séc. XVII. São ainda próximas da península de Macau, outras duas ilhas, a de D. João (Da Hengqin) e a da Montanha (Xiao Hengqin), também com presença de missionários no séc. XIX. As três ilhas foram ocupadas pelos japoneses em 1938 e retomadas pela China, após o fim da 2ª Guerra Mundial. 45 Tratava-se de uma escola “patriótica Fong Chong [Geral do Bairro]”, de iniciativa comunista. Ver Moisés Silva Fernandes, Sinopse de Macau […], p.238. 46 Rui Tomás de Aquino da Graça de Andradre era Administrador interino do Concelho das Ilhas (Taipa e Coloane). Nasceu em Macau em 1926. 47 António Vaz Antunes, mais tarde coronel (1923-1998) era então segundo-comandante da PSP.

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agressão artigos

e

a

desobediência

subversivos

e

dos

desordeiros.

caricaturas

foi

Essa

preparando

imprensa, os

por

tumultos

meio de

3

de de

Dezembro. Ex. dumas caricaturas um polícia gigante com um pé na Taipa, outro em Macau, esmagando na mão um china. Dia a dia, o polícia vai diminuindo de tamanho e o china aumentando. Por fim, o china gigante agarra no polícia pequenino e atira com ele, aplaudido pelos punhos cerrados de milhares de chinas. A censura, que é da lei, continuou a censurar a imprensa portuguesa, mas deixou de censurar a imprensa chinesa, quando mais que nunca o devia ter feito. O incêndio 3 de Dezembro de 1966. Dia fatídico, Macau recuou um século. Voltou ao regime de antes de 184948, i. é., ficamos à mercê, não dos mandarins da Casa Branca mas do dragão comunista. Nos dias 30 de Novembro, 1, 2 e 3 de Dezembro, alunos e alunas guiados e incitados pelos professores ocupam o Palácio do Governo49 e ali ficam toda a manhã a ler em voz alta as obras de Mao-Tse-tung. No dia 3, os estudantes, maltrapilhos e velhas invadem o Palácio, levantam 10 a 15 taxis e começam a buzinar. O Governador perde a paciência e manda a polícia desarmada desalojar à força a malta; esta empurrada sai, quebrando acidentalmente os vasos de flores do Palácio. Fora, na Praia Grande, formam cordões, dando-se os braços. Passa um grande jeep da Polícia marítima e é derrubado. Vem a polícia com mangueira de água e bombas lacrimogéneas, mas sem máscaras. A malta apanha as bombas e atira-as à polícia. Parece anedota, mas é verdade. Desalojados dali, segue a malta às 13.30 em direcção do Palácio das Repartições, que é apedrejado, partidas as janelas e 48

Refere-se à data da morte de Ferreira do Amaral, cuja linha de acção, que procurou concretizar desde a sua chegada a Macau (1846), se orientava no sentido de reforçar os poderes do governador. Procurou este reforço sobretudo por via da extinção das Alfândegas Chinesas (“Hopu”), bem como do pagamento do “foro de chão”. Ver, para desenvovlimento, José Manuel Pinto Faria de Menezes, “João Maria Ferreira do Amaral”. Jorge Santos Alves e António Vasconcelos de Saldanha (Coordenação), Governadores de Macau, Macau, 2013, pp. 212-217. 49 O Palácio da Praia Grande, como é correntemente conhecido, foi construído em 1849 para residência de Alexandrino António de Melo, Visconde de Cercal. O traço foi do arquitecto macaense José Agostinho Tomás de Aquino (1804-1852). O palácio foi arrendado pelo governo em 1875 e adquirido em hasta pública, decorrente de penhora a bens da viúva do Visconde, em 1881. O governador Tomás de Sousa Rosa instalou ali a sua residência em 1884. O edifício foi alvo de várias remodelações, tendo sido reposto o risco original em época recente. Artur Tamagnini de Sousa Barbosa, governador pela segunda vez no período 1926-30, transferiu a sua morada para o Palacete de Santa Sancha. O Palácio da Praia Grande alberga a sede do governo e da Assembleia Legislativa. Ver Padre Manuel Teixeira, Residência dos Governadores de Macau, Macau, Direcção dos Serviços de Turismo e Comunicação Social, [s.d.].

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portas e quebrada a estátua da Justiça dentro do mesmo Palácio. Um estudante sobe então à estátua de Jorge Álvares50, em frente deste Palácio e tenta cortar-lhe a cabeça mas não consegue; outra criança tenta subir e caiu 3 vezes; mas por fim lá chega. Arrancaram-lhe um braço e a Cruz de Cristo e partiram-lhe um pé. Ninguém impediu este vandalismo. Dali passaram ao Leal Senado, onde entram umas centenas de estudantes (uns 400

e

durante

3

horas

destroem

impunemente

tudo

o

que

lhes

apetece:

documentos, os arquivos históricos, os retratos dos governadores, as alfaias e vidros, as armas da cidade, os automóveis dos empregados, etc. A estátua de Mesquita51 derrubada. O mesmo vandalismo no cartório notarial. Uma camioneta de adultos sobe a Rua Central em direcção ao Comissariado da Polícia. O Major Antunes dá ordem de fogo: e basta uma metralhadora ferir o motorista para tudo se por em debandada. Se o mesmo se tivesse feito no Senado ou se a polícia mesmo desarmada tivesse feito um cordão em frente da porta, ter-se-iam salvo os arquivos históricos e tudo o mais. Porque não se fez? Estado de emergência 50

Jorge Álvares foi, em 1513, o primeiro português a viajar por mar até à China: Jorge de Albuquerque, capitãomor de Malaca fez de Álvares o seu enviado à China, na qualidade de escrivão e consequente guardião dos interesses oficiais, embarcado num junco. Este junco, carregado de pimenta e armado a meias com Nina Chatu, um rico mercador de Malaca, viajou na companhia de outros quatro. Jorge Álvares aportou e levantou padrão na ilha de Lintin (chamada Tamão ou Tumen pelos protugueses). A ilha situava-se no estuário do rio das Pérolas ou de Cantão, a cerca de vinte quilómetros desta cidade, que era o grande centro mercantil do sul da China. O monumento, mostrando Álvares de espada à cintura, mão direita erguida em gesto misto de saudação e demarcação de território, à frente de um padrão encimado pela Cruz de Cristo, deveu-se ao escultor Euclides Vaz por encomenda, em 1954, do ministro do Ultramar, o então capitão-de-mar-e-guerra Sarmento Rodrigues. 51 Vicente Nicolau de Mesquita foi um trágico herói macaense, uma verdadeira personagem de romance. Nasceu em Macau em 1816, assentando praça em 1835, no Batalhão do Príncipe Regente, criado para defesa de Macau em 1810. Notabilizou-se por actos heróicos, numa refrega que opôs as tropas de Macau e a guarnição do forte chinês de Pak Shan Lan, situado a escassas centenas de metros da Porta do Cerco. O incidente ocorreu em 25 de Agosto de 1849, no rescaldo do assassinato de Ferreira do Amaral, e ficou conhecido como o combate do Passaleão. Desde o dia da morte do governador, 22 de Agosto, as forças chinesas aquarteladas no forte tinham começado a disparar sobre Macau. Embora o sucesso dos ataques fosse nulo, foi decidido pôr termo à afronta, tendo o forte chinês sido atacado com cerca de 120 homens. Mesquita, à frente de uma força de 32 soldados, tomou a última posição, no final do dia. Conta-se que bradou então para os seus subordinados a exortação “Quem quiser morrer que me siga!”. A sua vida pessoal foi atravessada por acontecimentos fatídicos, de entre os quais releva, entre 12 e 26 de Maio de 1842, a morte, por razões desconhecidas, das suas três primeiras filhas. Seguiram-se episódios igualmente funestos: a morte da primeira mulher, o assédio de um homem casado à sua filha do segundo casamento (com a anterior cunhada). Tudo culminou ainda com o julgamento da sua incapacidade para o serviço, por decisão de uma junta médica em 1865, no seguimento de indícios de perturbação mental. Foi reformado no posto de coronel, em 1873. Mesquita viria a ter um fim trágico: em 20 de Março de 1880, matou a mulher e dois filhos e, de seguida, atirou-se a um poço pondo termo à vida. Privado de sepultura cristã, apenas foi reabilitado em 1910, por diligências da filha que lhe sobreviveu. Trinta anos mais tarde, uma subscrição pública fez-lhe erguer uma estátua, no Largo do Senado, porventura o mais simbólico lugar de Macau. Durante o “1-2-3”, a estátua foi derrubada no decurso de um dos incidentes de rua. Guardada num armazém das Oficinas Navais de Macau foi, em 1986, enviada para Portugal.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

Ao analisar os acontecimentos desses dias, há que distinguir duas coisas. 1. A manifestação pacífica; 2 – a desordeira. A primeira foi feita segundo o estilo comunista: estudantes, adultos e velhas passam quatro manhãs seguidas no Palácio do Governo a ler o Mao, entregando

no

fim

ao

Governador

papelinhos

de

protesto.

Vê-se

que

o

objectivo era provocar a autoridade. O Governador, que adivinhou isto, ao ver que a legítima intervenção na Taipa provocara barulho, suportou com paciência as manifestações não ruidosas dos dias 30 de Nov. 1 e 2 de Dez. Mas no dia 3 de Dez. houve ruído, lendo eles Mao em alta voz; foram expulsos à força pela polícia por ordem do governador. 2. Começa aqui a segunda manifestação – a desordeira. Há táxis (que haviam recebido 100 patacas cada) ali estacionados a buzinar; há desordeiros; há o Zé povinho, há a malta anónima; vêm autos com bandeiras a dirigir o movimento, vêm camionetas da Cruz Vermelha do Hospital Kiang-Wu 52 para levar feridos e mortos; Tudo bem organizado e comandado pelos comunistas; estes estão detrás dos bastidores, lançando os desordeiros para a frente, para [a] refrega. Como havia ressentimentos contra a Câmara e os seus empregados e sobretudo contra o seu presidente, foi o Leal Senado o alvo do ataque mais feroz. A

polícia

não

esteve

à

altura

da

situação;

borrifou

com

água

os

desordeiros e eles riram-se. Atirou-lhes com bombas de gás lacrimogéneo, mas estas não rebentaram; os desordeiros pegaram nelas e atiraram-nas contra a polícia que nem máscaras tinha para se proteger. Perante esta farsa ou anedota, os desordeiros ficaram senhores do campo. E foi o caso. Foi então proclamado pela rádio o estado de emergência, proibindo-se a reunião de grupos e fixando-se a hora de recolher. Mas muita gente não tem rádio e muitos não o abriram; assim quando a tropa saiu para a rua disposta a atirar, havia lá muita gente que nada sabia da emergência. Meses antes houve tumultos em Hong Kong muito mais graves que os de Macau53, mas não foi chamada a tropa com armas de fogo; a polícia bastou para pôr termo à desordem, prendendo, dizem, mais de 800 desordeiros.

52

Era um dos dois hospitais de Macau, sendo propriedade de uma associação privada, a Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu, fundada em 1871, sendo especialmente dedicado à medicina e às técnicas terapêuticas de tradição chinesa. 53 Ver nota 38 supra.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

Aqui foi a tropa que salvou Macau; ela portou-se ao nível do soldado. Primeiro

atirou

para

o

ar;

eles

riram-se

e

continuaram

as

suas

provocações. Então, a tropa fez fogo para o solo; as balas apanharam de ricochete várias pessoas, matando 8 e ferindo 160, sendo detidos 45. Isto durante toda a semana (3 a 11 de Dez), que durou a emergência. Se o fogo tivesse siso dirigido contra a multidão, em vez de 8 teriam caído 800. A tropa esteve à altura da situação. Só foi pena que ela tivesse de intervir, quando esse papel podia e devia ser desempenhado pela polícia. Bom é que esta se prepare melhor para enfrentar o futuro, em que a tropa não poderá mais intervir senão quando a situação for desesperada. E nesse caso já nada haverá a fazer. Confusão Uma coisa há a salientar: a polícia foi apanhada de surpresa, revelando completa ignorância da situação. Esta completa ineficiência de informação tanto da situação de Macau como da China deixou o Governador desarmado. Rebenta o incidente da Taipa; e aparecem no Palácio do Governo a fazerem exigências ao Governador uns verdadeiros maltrapilhos: 13 indivíduos a proclamar-se representantes de 13 grupos diversos. 1



Leung-Pui,

ex-polícia

e

carpinteiro,

dizendo-se

representante

da

Comissão Representativa dos Sectores da Vida de Macau; 2 – Um professor Tam, dos professores; 3 – Um estudante, tipo guarda vermelho, dos estudantes; Uma sufragista, das mulheres. E outros do mesmo jaez. Ho-Yin, o legítimo representante da China em Macau, declara-se impotente, dizendo que o assunto lhe fugira das mãos. O Governado promete atender as reclamações, mas não sabe com quem tratar.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

Por fim, Cantão nomeia seu representante O-Peng 54, gerente da firma Nam Kwong55, a qual é uma espécie de departamento dos Serviços Económicos da China. É com este que o Governador começa a negociar, pois ele é o elemento dos delegados de Cantão. As negociações prolongam-se por mais dum mês e o Governador e os seus conselheiros passam dias e noites a fio no Palácio a discutir os problemas, quase sem dormir. A grande falha é a ignorância do chinês. Falta um intelligence service56 para ler, investigar e saber o que se passa dentro e à roda de nós. O batuque A imprensa chinesa local, sem peias de espécie alguma, tocou o bombo e lançou-se numa campanha desenfreada e subversiva. Agitando o espantalho dos 8 mortos e publicando fotografias dos cadáveres e feridos nas posições mais grotescas, foi incitando os ânimos. Os

cadáveres

população

ficaram

andava

insepultados

sobressaltada,

durante

pois

mais

fixaram-se

de

duas

várias

semanas 57; datas

para

a o

enterro (que se ia adiando de dia para dia) com a ameaça de tumulto no dia do funeral. Nos vários dias fixados para o enterro, os alunos e professores faltavam às aulas e muita gente não saía à rua. Durante

mais

dum

mês,

as

aulas

sofreram

da

falta

de

alunos

ou

de

professores e a intranquilidade impediu o estudo. A

imprensa

chinesa

continuou

o

seu

batuque,

publicando

fotografias

e

caricaturas. Dois exemplos: 54

O Cheng Peng (Ke Zhengping) morreu em Macau em 30 de Setembro de 2005, com 94 anos. Foi um dos mais importantes dirigentes da comunidade chinesa do Território no último meio século, tendo sido fundador da empresa Nam Kwong, assessor da agência Xinhua (a agência de notícias oficial da China) e delegado ao Congresso Nacional Popular. 55 Firma comercial de capital chinês fundada em 1949. Desdobrou-se em numerosas subsidiárias ao longo dos anos. Representou os interesses da RPC em Macau até à assinatura da Declaração Conjunta Luso-Chinesa, em 1987, sendo então substituída naquele papel pela Agência de Notícias Xinhua (“Nova China”). 56 O Autor assinala a fragilidade dos serviços de Informações das polícias (de Segurança Pública por um lado, Marítima e Fiscal por outro) e do Exército. Como já atrás se referiu, não havia em Macau delegação permanente da PIDE, recorrendo-se à de Timor quando era necessário, como foi o caso destes incidentes. 57 Os funerais de sete das oito vítimas foram realizadas em 17 de Dezembro, acompanhados por uma multidão. O oitavo tinha já sido sepultado quatro dias antes.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

1) Milhares de chinas de punhos cerrados a olhar para o mar, donde emerge a cabeça do governador de Macau, tentando agarrar-se à Praia Grande58. Foi

tão

estrondoso

o

batuque

feito

pela

imprensa

chinesa

que

este

encontrou eco na imprensa chinesa e inglesa de Hong Kong e chegou a Pequim. Mao Tse-tung, que já liquidou mais de 15 milhões de chineses interveio a favor

das

vítimas

dos

fascistas

portugueses

e

impôs-nos

condições

humilhantes; a não ser aceitas, Macau seria invadido. Nesse dia, 11 de Dezembro, o pânico apoderou-se das senhoras portuguesas, que evacuaram para Hong Kong em grande número, levadas pelo exemplo das esposas dos militares59.

O

comandante

militar

(Cerveira)

era

de

opinião

que

se

rejeitassem as condições e se resistisse. Poderíamos resistir 2 dias e então seria o massacre. Julgou-se que se devia manter a nossa bandeira aqui e cedeu-se. Sem embaixada em Pequim, fomos cedendo a todas as condições, perdendo o brio, a honra e o prestígio. Recuámos um século60 e ficamos sem segurança alguma. A nossa fraqueza Se nem a Rússia, nem a América se atrevem a atacar a China, loucura seria resistir a este colosso. Nada aproveitaríamos e o massacre seria geral. Materialmente, somos um zero. Culturalmente, também não apanhamos nota positiva. Perante a campanha subversiva dos jornais chineses, não tivemos nem temos um só jornal que pudesse desmentir as atoardas e informar o público objectivamente. Um jornal pró-governo em chinês vale mais que toda a nossa tropa, polícia, fortaleza e canhões. E nós não temos esse jornal.

58

A baía em cuja orla se desenvolveram as edificações mais significativas da cidade ocidental. Hoje está prfundamente transformada, fechada ao mar e com lagos no seu interior. 59 Nas fases mais agudas dos incidentes, primeiro em meados de Dezembro de 1966, depois em meados de Janeiro de 1967, verificaram-se dois surtos de evacuação de famílias, para Hong Kong ou mesmo para Lisboa (com passagem obrigatória pela colónia britânica). Não foram apenas famílias de militares, mas também de civis expatriados e macaenses. No caso das famílias de militares, as evacuações suscitaram alguma comoção na comunidade portuguesa e o governador terá mesmo feito sentir que as considerava pouco oportunas. O certo é que a muito instável situação social e as fortes limitações logísticas não convidavam à permanência. 60 Alusão à situação pré-1849.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

As autoridades ignoram o chinês e nenhum é capaz de ler um jornal. Não há aqui uma universidade, um bureau sinológico, um centro de cultura luso-chinesa, um único português que possa escrever um livro ou um simples artigo em chinês. Eu próprio publiquei aqui um folheto em inglês em 1965 sobre o “IV Centenário dos jesuítas em Macau”61; a tradução chinesa foi feita pelos jesuítas da Formosa, visto que em Macau ninguém o pode fazer. O Governo gasta centenas de milhares de patacas com o CIT 62 e mantém a secção

do

Expediente

Sínico63,

uma

e

outra

funcionando

em

condições

deficientes. Não seria melhor reduzir o pessoal português a metade, escolhendo outra metade

entre

os

chineses

e

editar

imediatamente

um

jornal

diário

em

chinês? Qual o pessoal? Há vário seminaristas chineses (alguns em teologia) saídos do Seminário com mais cultura que esses primários comunistas que redigem os jornais chineses. A nossa grande falha é a falta dum jornal chinês. O “Clarim” jornal católico64, teve por vários anos um suplemento em chinês, muito apreciado. Bastaria ressuscitá-lo. A nossa força Se

militarmente,

intelectualmente,

culturalmente

e

até

espiritualmente

pouco ou nada valemos, há um campo onde Macau pode jogar com cartas dobradas: é o económico. Macau e Hong Kong são as únicas portas abertas da China para o mundo. Por elas entra o numerário de que carece a sua economia.

61

Trata-se do texto The Fourth Centenary of the Jesuits of Macau, impresso na Escola Salesiana, em 1964. O evento comemorou a chegada ao território, em 1563, dos três primeiros jesuítas, os padres Francisco Perez (espanhol) e Manuel Teixeira e o noviço André Pinto (ambos portugueses). 62 Centro de Informação e Turismo. 63 A repartição do Expediente Sínico foi criada em 1855, incluída na Procuratura do Leal Senado. Em 1866, este órgão da cidade passou a designar-se Procuratura dos Negócios Sínicos. O Expediente Sínico separou-se da Procuratura em 1885. Na repartição do Expediente Sínico funcionavam os tradutores (os “línguas”), normalmente macaenses, que dominavam a língua chinesa falada, e cujos talentos se empregavam principalmente nos tribunais. Alguns nomes ilustres da cultura macaense foram intérpretes nesta repartição. O então 2TEN José Maria Lopes, director das Oficinas Navais de Macau entre 1912 e 1918, foi director interino daquele serviço em 1914, não tendo sido possível apurar quanto tempo durou o exercício do cargo. 64 Fundado em 1948, é o mais antigo periódico em língua portuguesa ainda em publicação. É propriedade da Diocese de Macau, embora não se anuncie como seu órgão oficial. Teve como precursor uma pequena revista com o mesmo nome, criada em 1943 pelo Pe. Manuel Teixeira.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

De Macau ela recebe 50% do que lhe entra por Hong Kong. Mais dum milhão de patacas diárias lhe mandam de Macau; uns 400 milhões anuais. A população de cerca de 300.000 pessoas vive do que lhe vem da China e paga as suas provisões, a água, a areia, a fazenda, as mercadorias, etc. Isto significa que cerca dum milhão de pessoas vive do lado de lá à custa de Macau. Ora os chinas, embora comunistas, não são tolos. Sabem muito bem que, tomando Macau, se lhes fecha esta porta e em vez de receberem um milhão por dia, terão eles de o gastar ou de matar estes 300.000 chinas. Acresce que ficariam ainda 300.000 do lado de lá sem emprego. Mas há mais: teriam contra o seu regime mais um milhão de esfomeados. Ora os comunistas são calculistas; tomando Macau teriam tudo a perder e nada a ganhar. Portanto, nem Macau nem Hong Kong lhes convém até liquidarem a Formosa. E daqui até lá ainda vão largos anos. Temos, pois, um grande trunfo nas mãos: o interesse comum; importa jogar com ele. Ora

as

condições

nacionalistas

e

que

dos

nos

seus

são

impostas

interesses,

que

tendem

visam a

criar

à

eliminação uma

situação

dos de

insegurança, que levará os capitalistas e capitais a levantar voo. Assim todos sofrem e os chinas, incluindo os comunistas, mais que ninguém. Parecem-me que se lhes devia dizer: “Para vosso bem e para bem de todos, não podemos ceder mais. Ne plus ultra65.” Condições humilhantes Altas horas da noite, o ladrão entrou solapadamente pela porta traseira da casa e começou a fazer o seu ofício: abrir gavetas, roubar jóias e tudo quanto era de valor. Os homens dormiam como justos; mas a esposa, que tinha sono leve, acordou e, sentindo um ruído estranho, acorda os filhos – uns verdadeiros latagões. Estes armam-se de cacetes e vão em busca do rato que, ao ouvir ruído, foge; valentes abriram-lhe a cabeça. Feito isto, os caceteiros deixaram o pobre diabo para ir lamber as feridas. Foi parar ao hospital. Apenas curado, mete os dois caceteiros num processo e faz as suas exigências: 65

Expressão latina que significa “Nada mais além”. A lenda associada e esta locução tem referências ao mar e à navegação, rezando que a frase, em grego, estava inscrita nas Colunas de Hércules, no estreito de Gibraltar, para informar que os navios não poderiam ultrapassar esse ponto. Para Hércules esse era o limite do mundo e o termo dos seus gigantescos trabalhos. Nenhum mortal se deveria aventurar para além daquele ponto.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

1. O dono da casa deverá ser demitido do seu emprego por ter consentido punir o ladrão. 2. Banir da casa todos os cacetes, que podem perturbar a paz pública. 3. Castigar os dois fascistas que racharam a cabeça ao pobre inocente. 4. Pagar a hospitalização do ferido e todo o tempo que esteve sem emprego, pois no seu honroso ofício, poderia embolsar milhares. Ora o que sucedeu? O juiz, sob pressão, atendeu todas estas exigências. O ladrão foi solto e a família condenada. Real ou fantástico? Real, real, real, na cidade do nome de Deus de Macau em Dezembro do ano da graça de 1966. Dizem que Macau pagou ou vai pagar três milhões de patacas66 à China comunista; é o que anunciou a imprensa de Hong Kong. O Major Vaz Antunes, segundo comandante da Polícia de Segurança Pública de Macau, foi demitido e remetido para Portugal por ter cumprido o seu dever mandando

desalojar

um

edifício

da

Taipa

ilegalmente

ocupado

pelos

operários; o mesmo sucedeu ao administrador das Ilhas, Rui de Andrade, por ter

mandado

prender

os

desordeiros;

o

Comandante

da

Polícia

(Octávio

Galvão de Figueiredo) e o comandante militar (Mota Cerveira) seguiram o mesmo caminho. Os casse-tetes da Polícia vão ser substituídos. As vitimas indemnizadas de todos os prejuízos. A justiça amachucada e a honra de Portugal calcada aos pés. Os homens que, no cumprimento do seu dever, pretenderam manter essa honra, demitidos

e

remetidos

para

Portugal.

Sete

agentes

nacionalistas,

capturados pela nossa polícia marítima em 1963 e desde então na cadeia local foram entregues à China comunista67. Ninguém mais poderá cumprir o seu dever nem manter a ordem pública. 66

De acordo com um dos dois documentos assinados pelo governador em 29 de Janeiro de 1967, as indemnizações ascenderam a 2.058.424 patacas, destinando-se a pagar os funerais das vítimas, a compensar as respectivas famílias, a pagar as despesas de hospitalização dos feridos, bem como a indemnizar as “[…] demais vítimas, por todos os prejuízos derivados destes incidentes.”. 67 Os agentes nacionalistas foram presos em 1963, como atrás se referiu. A sua entrega à China, recusada pelo governador Lopes dos Santos na ocasião da sua prisão, foi objecto de reclamações periódicas pelas autoridades continentais. As exigências reacenderam-se após os incidentes de Dezembro de 1966. No dia 19 deste mês, foi feito pelo representante do governo de Guangdong, um ultimato para a sua entrega em 48 horas. Nesse mesmo dia, o governador Nobre de Carvalho acedeu à exigência chinesa. Os sete agentes de Taiwan foram entregues a representantes da RPC, na Porta do Cerco, à 1 hora da madrugada de 20 de Dezembro. Ver Moisé da Silva Fernandes, Sinopse de Macau [...], p. 262.

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A cobardia será a única tábua de salvação neste pântano onde se perdeu a honra e se afogou a justiça. Há certos princípios que se devem manter acima de tudo: - são os princípios da honra e da justiça. Aqui é o caso para dizer: - Percam-se as colónias, mas salvem-se os princípios. Ora aqui sucede precisamente o contrário: são-nos impostas cada dia novas condições, as quais aceitamos para que a nossa bandeira aqui continue. Vale a pena? O papel de Macau No decurso da sua história Macau tem sido o refúgio dos infelizes. Os Manchus tomaram Pequim em 164468 e Cantão em 165269; acudiram a Macau milhares de refugiados que foram sustentados pelos jesuítas de S. Paulo 70 (cf.

P.

M.

Teixeira,

Macau

e

a

sua

Diocese,

III,

177).

Durante

a

perseguição contra a igreja no Japão (1614-1640)71, idem. Em 1910, aqui se refugiou Sun-Yat-Sen72, o fundador da República. De 1939 a 1946, a população duplicou com os refugiados. De 1948 até hoje, milhares têm preferido o inferno de Macau ao Paraíso comunista. 68

Referência à tomada da capital pelas forças Manchus, que nesse mesmo ano puseram termo à dinastia Ming (“Brilhante”, 1368-1644), inaugurando a dinastia Qing (“Pura”, 1644-1911). 69 A conquista da China pelos manchus levou uma geração inteira a concretizar-se. A data da tomada de Cantão é 1651. Taiwan apenas se submeteu aos novos senhores em 1683. 70 A primeira residência dos jesuítas em Macau, uma pequena capela em taipa, foi construída em 1565, por iniciativa dos três primeiros jesuítas chegados ao território em 1563, aos já nos referimos. Esta primeira capela ardeu, sendo substituída por uma nova, em madeira. Até final do século, várias construções adicionais foram sendo construídas, designadamente em 1573 e 1579. Em 1582, todas as instalações foram mudadas para o local actual, tendo sido destruídas pelo fogo em 1601. Em 1602-1603 foi construído um novo templo, nas proximidades dos anteriores, numa das faldas da colina de S. Paulo do Monte. Nasceu assim a igreja da Madre de Deus ou de S. Paulo, nome sob o qual acabou por ficar conhecida. A histórica fachada, de traçado barroco-maneirista, pleno de elementos orientais, foi concluída em 1644. O seu risco tem sido atribuído ao jesuíta genovês Carlo Spínola, embora não existam provas definitivas. Em consequência de mais um incêndio, em 1835, dela restam hoje apenas a fachada e a escadaria, ex-libris de Macau. 71 Em 1587 começando as restrições à prática do cristianismo no Japão, sendo decretada a expulsão dos jesuítas. Estas medidas apenas se concretizarão no início do séc. XVIII. Em 1612, o shogunato Tokugawa (regime chefiado por um senhor “feudal” e chefe militar, apenas dependente do imperador) decretou a proibição do cristianismo e, em 1614, ordenou a expulsão dos jesuítas e a perseguição aos cristãos no Japão, que atingiam já alguma centenas de milhar. Alguns deles refugiaram-se então em Macau. Em 1625, os portugueses foram proibidos de residir a título permanente no Japão e, entre 1628 e 1630, vigorou um embargo contra os navios portugueses. Em 1636 os portugueses foram mesmo expulsos do Japão embora, nos anos seguintes, se tenham verificado algumas fugas a este banimento. Em 1639, o Japão proíbiu o comércio com os portugueses, acto que se traduziu na imediata asfixia económica de Macau. No ano seguinte, o Senado decidiu o envio de uma embaixada para tentar a revogação da proibição. Esta embaixada chegou a Nagasaqui em 3 de Agosto e teve um fim trágico, já que 61 dos 74 enviados foram decapitados e o navio em que viajaram destruído. As vítimas eram leigos, de 16 nacionalidades, de entre os quais se contavam 14 portugueses da Europa e 4 de Macau. 72 O Dr. Sun Yat-sen praticou medicina em Macau depois de concluir o seu curso em Hong Kong. Esteve depois por diversas vezes no Território, designadamente em 1912, depois de renunciar ao cargo de presidente provisório República da China, mas não encontamos referência à sua passagem pelo Território em 1910.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

Só por isto se justificava a existência de Macau. Mas se nem isto nos for permitido, justificar-se-á a nossa presença? Digo isto, porque temos sido forçados a ceder a todas as imposições comunistas, incluindo a de banir as bandeiras e encerrar todas as agências nacionalistas ou inimigas da China. Ora

o

Clarim

dinheiro

dos



retiniu

imperialistas

contra

a

beneficência

americanos

e,

de

portanto,

Macau, é

uma

que

recebe

agência

dos

E.U.A.: a 26-12-66, um jornal comunista de Hong Kong dizia em parangonas na sua I pág.: “servindo-se da beneficência como cebo73 (?) criminoso, os sacerdotes espias prosseguem as suas actividades” …. Por meio do cebo [?] ao auxílio norte-americano “violaram a virgindade de não poucas mulheres”. O batuque começou em Hong Kong; há-de continuar em Macau e ecoar em Pequim.

E

então

exigirão

o

encerramento

desta

agência

criminosa

de

beneficência estrangeira. Nós, que temos cedido a tudo, poderemos resistir a esta imposição? E, se não, teremos coragem de matar à fome 300.00074 que se acolheram à sombra da nossa bandeira? Uma coisa é certa: a China comunista não virá substituir com a sua “virtuosa benfeitoria” este “cebo criminoso”; nem com seus capitais os capitais e o comércio dos nacionalistas. E os 30.000 alunos das escolas católicas? Os seus diplomas são reconhecidos pelo Governo da Formosa. Ora se a China nos forçar a cortar essa ligação, e ela vier a reconhecer esses diplomas (pois nada lhe custa), de que servirão? Irão estes alunos depois empregarse na China comunista, eles que fugiram dela? Teremos de encerrar as nossas escolas e forçar os alunos a frequentar os comunistas. E sem comércio e capitais, Macau morrerá. Não se pode continuar a ceder, pois o terreno é resvaladio; amanhã teremos um bispo comunista (ou progressista) e um seminário e escolas do mesmo jaez. Parece que é tempo de dizer: - stop. UMA FARSA EM DOIS ACTOS

73

Figuradamente “espírito” ou “ânimo”, segundo o Grande Dicionário de Língua Portuguesa, coordenação de José Pedro Machado. 74 Como atrás se referiu, o censo de 1960 tinha arrolado 170 mil habitantes. Uma estimativa do ex-governador Lopes dos Santos, em 1966-67, avançava com 230 mil. Admite-se, no entanto, que os números fossem incertos e voláteis.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

I Acto: Os 8 cadáveres Durante mais de 15 dias, a população de Macau viveu sob um contínuo sobressalto.

Os

cadáveres

estiveram

hospital Kiang Wu, junto do Canídromo

em 75

caixões

na

Casa

Mortuária

do

da Ilha Verde . Foi uma romagem 76

contínua de chinas a vê-los e a levar-lhes coroas de flores, que eram expostas ao longo da estrada, encostadas ao muro dessa casa. Pretendiam fazer do enterro uma manifestação política e ruidosa: levá-los em procissão pelas ruas da cidade e obrigar o governo e as autoridades a incorporar-se no cortejo e pedir desculpas públicas. Ameaçavam com tumultos no dia do funeral; este foi-se adiando de dia para dia, causando enorme inquietação. Nos vários dias anunciados, as escolas encerravam-se e poucos se atreviam a sair. - Quando é o funeral? – era a pergunta geral. Até que, por fim, lá se enterraram para lá das Portas do Cerco 77 num dia chuvoso, com a bandeira do Senado a meia haste e pedido de desculpas do governador. II Acto: O crime Mao já matou mais de 15 milhões de chinas e tem hoje presos uns 10 milhões. Mas ele é o sol da China… A nossa tropa matou 8, feriu 160 e prendeu 45: - tal é o nosso grande crime. É crime matar; é crime prender. E as negociações arrastam-se por mês e meio em volta do vocábulo “crime”; os chinas exigem que reconheçamos o nosso “crime”; o nosso governo recusa terminantemente confessar que cometeu um “crime”. E as negociações não caminham. Quando se chegou a um ponto morto e houve ameaças

de

greves,

o

governador

aconselhou

as

mulheres

e

crianças

a

evacuarem para Hong Kong . Ora nós que recebemos em Macau de braços 78

75

A companhia do canídromo de Macau foi inicialmente fundada em 1932, oferecendo então uma casa de chá e espectáculos de teatro e ópera chineses. As instalações a que se refere o texto foram inauguradas em 1963. 76 Anteriormente uma pequena ilha situada a noroeste da península de Macau, ocupada pelos jesuítas no séc. XVII. Foi ligada à península através de um istmo construído em 1890, por decisão do governador, o então primeirotenente Custódio Miguel de Borja. A decisão valeu-lhe a posterior atribuição do seu nome à avenida que, rasgando o aterro, liga a península à antiga ilha. Hoje só dificilmente se lhe reconhece a anterior condição insular em resultado de aterros adicionais. O canídromo fica situado na raiz do aterro que ligou a ilha à península de Macau. 77 Não foi exactamente assim: cinco das oito vítimas foram enterradas em Macau, no cemitério de Nossa Senhora da Piedade, e as três restantes é que seguiram para território chinês, sendo sepultados perto de Cantão. 78 Em 11 de Janeiro de 1967, o governador pediu autorização de Lisboa para a “[...] evacuação [para Hong Kong] de mulheres e crianças, metropolitanas e macaenses [...]”. Moisés da Silva Fernandes, Sinopse de Macau […], p. 268, sustenta que esta iniciativa se destinuo a pressionar o ministro Silva Cunha para a aceitação das exigências chinesas.

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abertos todos os refugiados de Hong Kong, deparamos com o enxovalho e o ridículo da parte dos agentes da imigração inglesa. Mais pudor! Agora a grande questão é: “crime” ou não “crime”? Negociações Há mais dum mês que o governador Nobre de Carvalho anda em negociações com os delegados de Cantão. O encarregado do governo, Mota Cerveira, não quis negociar e recusou receber quaisquer associações ou delegados: - “eu é que tenho razão e não quero diálogos nem aceito condições de espécie alguma; sujeitem-se à lei”. Extremo descuido. Carvalho, pelo contrário, recebe-os a todos, a qualquer hora, e passa dias e noites com o seu Conselho de Defesa e os seus conselheiros políticos em intermináveis conferências, com telegramas para Lisboa, e propostas aos delegados de Cantão. Trabalha e faz trabalhar sob pressão,

mal

comendo,

mal

dormindo,

pensando

apenas

na

solução

do

incidente. Parece-me que se deveriam evitar os dois extremos: nem o descuido do primeiro nem a pressão do segundo. O carácter chinês é muito diferente do europeu;

calma

dum

lado;

impaciência

do

outro;

tranquilidade

versus

agitação; impassibilidade v. nervos; Buda apático v. Demónio do Meio Dia 79; apatia v. sangue a ferver. A história diplomática sino-europeia ensina-nos que o china, amigo dum ritual

complicado

embaixadores

de

e

todas

de as

infindas nações,

cerimónias, arrastando

quase as

que

exasperou

negociações

em

os

Pequim

durante vários meses. E quando os sorrisos amarelos pareciam indicar que tudo estava resolvido, tinha de se recomeçar. Caso típico foi o de José Rodrigues Coelho do Amaral, governador de Macau (1863-1866), que foi a Pequim80 tratar do reconhecimento da independência 79

Metáfora que está largamente explicada no contexto do parágrafo, tratando da comparação de temperamentos entre orientais e ocidentais: “apatia versus sangue a ferver”. O “Demónio do Meio-Dia” aparece nos textos bíblicos, Nos Salmos cap. 91, 5- 6 trata-se da protecção de Deus aos que nele crêem: “5- Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia, 6- Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade [o tal demónio] que assole ao meiodia.”. Outras referências foram encontradas, com emprego próximo do que lhe dá Manuel Teixeira. É o caso do texto de Antero de Quental “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”, apresentado nas Conferências do Casino, em 27 de Maio de 1881: “[...] a centralização do absolutismo, prostrando o povo, corrompia ao mesmo tempo o rei. D. João III, esse rei fanático e de ruim condição, Filipe II, o demónio do MeioDia, inquisidor e verdugo das nações, Filipe III, Carlos IV, João V, Afonso VI, devassos uns, outros desordeiros, outros ignorantes e vis, são bons exemplos da realeza absoluta […]. 80 O Autor comete uma pequena imprecisão geográfica. Na verdade, em 1864, Coelho do Amaral foi a Tianjin e não a Pequim, que se situa a uma distância de cerca de 120 km. O governador foi enviado à China pela Corte

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de Macau. Quando tudo havia terminado e ele se vestira do uniforme de gala e se dirigiu ao palácio para assinar o tratado, ouviu esta: “Não podemos assinar, pois Macau é chinês”. Foi preciso esperar 20 anos para se concluir o tratado81. O

chinês

é

sádico

e

deve

gozar

com

fazer

perder

noites

às

nossas

autoridades. Demos tempo ao tempo e… vamos dormir. A minha opinião A China tem maturidade política e não vai jogar uma cartada em falso. Se quisesse tomar Macau, tinha-o tomado após os tumultos do dia 4 de Dezembro; nem precisava destas negociações que já levam mês e meio. Como não temos informação do que se passa no interior, não sabemos as pressões que tenha havido sobre Mao para este intervir em Macau. Mais: a América e a Rússia já lhe lançaram ao rosto nada ter feitos contra 600 soldados portugueses de Macau, ele que tem 700 milhões. Ele só tomará Macau se vir vantagem nisso. Servirá melhor Macau aos seus interesses com os portugueses aqui ou sem os portugueses? Enquanto os papéis de cá ostentarem S.R.P. (Serviço da República Portuguesa) e o nosso escudozinho, o comércio com o exterior far-se-á; senão, não. Ora daqui entram por ano 400 milhões de patacas na China. Se esta porta se fechar, nada entrará. Este factor joga a nosso favor. Mas porque não se fecham então as negociações? É que tivemos culpas no passado e agora eles sentem um prazer sádico em nos humilhar. Parece-me que tudo isto é uma chantage. Se eles quisessem tomar isto, cortavam-nos a água e as provisões; e ou nós aceitávamos todas as condições ou tínhamos que sair em poucos dias. O não o terem feito só mostra que não têm intenção de o fazer. portuguesa, na qualidade de ministro plenipotenciário, para proceder à troca de ratificações do Tratado de Amizade e Comércio entre a China e Portugal de 1862. Era o próprio tratado, no seu artigo 54º, que estabelecia Tianjin como o local para a troca de ratificações. A diligência malogrou-se, dado que depois de, na aparência, tudo parecer bem encaminhado, o representante chinês pretendeu introduzir uma alteração de última hora, tentativa que que foi recusada pelo governador e plenipotenciário português. 81 Em 1887, quando se tinham acentuado as vulnerabilidades da China perante as potências ocidentais, Portugal encetou a preparação de um novo tratado destinado a substituir o de 1862, que nunca entrou em vigor, procurando agora indo mais longe na questão da soberania sobre Macau. Ao contrário do que tinha sucedido com os anteriores tratados com os impérios orientais, em vez de designar o governador de Macau (no caso, Firmino José da Costa, que presidiu aos destinos do território entre 1886 e 1888) como seu plenipotenciário, Lisboa designou para aquelas funções o antigo governador Coelho do Amaral. Este novo tratado, assinado em 1887 e ratificado por ambas as partes no ano seguinte, previa “[...] Artigo II [a] perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal […]”. Não obstante, o mesmo artigo adiava a delimitação do território para ocasião posterior.

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Há que aguentar e não querer cortar este nó górdio num momento. A nossa política tem que ser uma política de cedências; mas é preciso sabê-las fazer num equilíbrio estável. Foi assim que Macau viveu durante três séculos. É assim que Macau terá de viver no futuro. Deus seja connosco. Macau, 21 de Janeiro de 1967. Padre Manuel Teixeira.

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AGRADECIMENTO: O autor agradece ao Centro Científico e Cultural de Macau a autorização para a publicação do inédito do padre Manuel Teixeira, concedida em 2005. Esta autorização foi validada pelo CCCM em 2013.

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ANEXO 1 BREVE CRONOLOGIA DOS INCIDENTES82

1966-7-22: O coronel Lopes dos Santos, governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas em Macau desde 1962, parte para Lisboa, no uso de licença. Assumiu as funções de encarregado do governo o tenente-coronel Mota Cerveira. Convidado pelo ministro do Ultramar, Joaquim Silva Cunha, para um segundo mandato, o Coronel Lopes dos Santos declinou, por razões de doença da sua mulher. 1966-9-5: Guardas Vermelhos assaltam e destroem os arquivos do consulado português em Cantão. 1966-10-11: O novo governador e comandante-chefe, brigadeiro Nobre de Carvalho, toma posse em Lisboa. Despede-se do presidente do Conselho a 21 e parte para Macau a 22. 1966-11-15: O Administrador interino das Ilhas, Rui Tomás de Andrade, detecta a demolição de duas casas em ruínas, que manda embargar por ausência de licença. Apura-se depois que se tratava de uma iniciativa da Associação de Moradores (kaifong83) da Taipa, que tinha dado entrada a um pedido de licença para obras de construção de uma nova escola, sem despacho desde Julho na Repartição dos Serviços de Obras Públicas. As partes que se hãode opor nos incidentes reclamam cada uma a sua versão quanto à natureza anterior da propriedade, à finalidade das obras e ao cumprimento das formalidades legais. A suspensão das obras levanta protestos populares, que tomam a forma de escaramuças com a polícia nesse mesmo dia. O diálogo do Administrador das Ilhas com seis representantes do kaifong acaba com a detenção destes últimos, que passaram a noite nos calabouços da polícia e foram libertados sob fiança, liquidada por um empresário chinês bem relacionado com as autoridades. Dois repórteres do diário Ou Mun84 foram também temporariamente detidos. A contagem dos feridos varia conforme a fonte: três das forças da ordem e dois manifestantes de acordo com o relatório oficial, 52 feridos dos quais 8 graves e 17 detidos de acordo com o diário Ou Mun.

82

Ver Moisés Silva Fernandes, Sinopse de Macau [...], pp. 229-280, José Pedro Castanheira, ob. cit., passim e Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo do Estado Maior da Armada (224). 83 Trata-se de associações de assistência, criadas para proporcionar aos seus associados serviços de educação, saúde, apoio à juventude e à terceira idade e apoio legal gratuitos ou a baixo custo. Estruturam-se depois numa União representativa das Associações do Território, politicamente influente. Em 1966 os kaifong eram tidos como dominados “pelos comunistas”. 84 O “Ou Mun Iat Po” ou “Diário de Macau” foi fundado em 1958, sendo o mais divulgado e mais influente órgão de comunicação social em língua chinesa do Território, oficioso das posições da RPC em Macau.

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1966-11-16: O Ou Mun, à margem das ordens da Comissão de Censura, divulga na 1ª página a alegada agressão da polícia a trabalhadores no dia anterior. A imprensa local em língua portuguesa ignora os acontecimentos. 1966-11-17: Uma delegação de moradores da Taipa vai ao Palácio da Praia Grande com um caderno reivindicativo de 5 pontos: “Severo castigo para os causadores dos incidentes do dia 15”; “Reconhecimento que as autoridades não podem impedir a reparação da sede da escola”; “Indemnização dos feridos pelas despesas hospitalares”; “Anulação dos processos levantados pela polícia”; “Garantia de que, no futuro, não ocorrerão incidentes semelhantes”. O encarregado do Governo, coronel Mota Cerveira, não recebeu

a

delegação. 1966-11-21: Mota Cerveira envia um ofício ao ministro do Ultramar informando sobre os incidentes. O mesmo faz o comandante da PSP local, tenente-coronel Galvão de Figueiredo, relativamente ao director da PIDE em Lisboa. 1996-11-25: O governador chega a Hong Kong, sendo recebido pelo cônsul de Portugal e pelo governador inglês, Sir David Trench85. Durante o almoço, é o governador inglês que põe o português a par da situação em Macau. O general Nobre de Carvalho é surpreendido pelas notícias: o seu antecessor, ausente de Macau há 4 meses, não tinha delas conhecimento, e quanto ao Ministério do Ultramar é posteriormente asseverado pelo ministro que não havia em Lisboa indicação da ocorrência. Com efeito, um relatório do encarregado do Governo, enviado a 22 pelo correio apenas terá chegado ao Ministério a 26 de Novembro. A tradicional cerimónia de boas-vindas decorre no Leal Senado. Ho Yin, que tinha acolhido o novo governador no seu desembarque em Macau, esteve ausente da festividade. Findos os discursos na Câmara, ao fim da tarde é altura de Nobre de Carvalho acolher as forçasvivas, entre as quais se encontra de novo o dirigente da comunidade chinesa Ho Yin. O novo governador não precisa de muito tempo para se aperceber da delicadeza da situação que se vivia em Macau e, de acordo com Silva Cunha, no próprio dia da sua chegada ao território, envia-lhe um telegrama pedindo a nomeação do Juiz da Comarca para proceder a um inquérito sobre os incidentes. O ministro autoriza, mas pede mais informações sobre os acontecimentos, dos quais alegava não ter conhecimento. 1966-11-26: O diário Ou Mun noticia a posse do novo governador e adopta uma atitude de expectativa, referindo que o teste será o destino a dar a Rui de Andrade, o funcionário apontado a dedo 85

Sir David Crosbie Trench (1915-1988) foi governador de Hong Kong entre 1964 e 1971. Foi militar, alcançando o posto de tenente-coronel em 1947, e funcionário colonial. Serviu em Hong Kong, numa primeira comissão, entre 1959 e 1961.

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como responsável pelo atear da fogueira na Taipa onze dias antes. Este é também o dia em que uma delegação da Associação dos Operários exige ser recebida pelo governador, que recusa a audiência. 1966-11-29: Por estes dias sucedem-se as manifestações junto ao Palácio da Praia Grande. O governador apenas recebe a da poderosa Associação Comercial, alegando medida de cortesia. Convida-a a fazer-se representar na Comissão de Inquérito, não sendo bem sucedido. Durante a audiência decorre uma manifestação no exterior, na qual são entoadas frases do Livro Vermelho. 1966-12-2: O Boletim Oficial publica o despacho do governador com a nomeação da Comissão de Inquérito. O presidente é o juiz da Comarca, Rodrigo Leal de Carvalho 86 e Carlos Pais de Assumpção87 um dos vogais. O despacho admite desde logo que teria existido demora excessiva na concessão da licença das obras da escola da Taipa, facto que teria contribuído para o desencadear dos incidentes de 15 de Novembro.1966-12-3: A meio da manhã, delegações de várias escolas primárias e secundárias, com professores e alunos, concentram-se no Palácio da Praia Grande, exigindo serem recebidos pelo governador. Ao meio-dia, noventa manifestantes são admitidos no interior do Palácio. No átrio do primeiro andar encontram, segundo o relato do Ou Mun, uma centena de polícias armados e com capacetes. Uma ordem para retirar os jornalistas de dois jornais chineses de Macau e dois de língua inglesa de Hong Kong enfrenta a oposição dos manifestantes. Estes acabam empurrados para o exterior do Palácio, cujas portas são fechadas. Na rua são já cerca de três mil os manifestantes. Aparece o carro com canhão de água, que tenta dispersar a multidão. Há alguns feridos, fervilham os boatos e adensam-se os tumultos junto ao Palácio. O edifício das Repartições é invadido e, no exterior, a estátua de Jorge Álvares é vandalizada. Os manifestantes, que o Comando-Chefe das FFAA estima em 3 milhares, dirigem-se depois ao Leal Senado, o centro geográfico e simbólico da cidade. A polícia faz avançar mais três dezenas de efectivos, entre os quais membros da sua banda de música, naturalmente sem experiência de contenção de motins. O edifício do Leal Senado é invadido e saqueado, perante a impotência das autoridades. O recheio de mobiliário, equipamento e o precioso e vetusto acervo documental são deitados pelas janelas 88. A estátua do coronel Mesquita, fronteira ao edifício do Senado, é amarrada a um camião e 86

Jurista e escritor, nasceu na Ilha do Pico, Açores, em 1931. Estava em Macau há cerca de 6 meses, depois de ter já sido delegado do Procurador da República em Goa e Juiz em Bissau. 87 Natural de Macau, nasceu em 1929 e licenciou-se em Direito em Coimbra. Foi notário e exerceu advocacia em Macau. Foi Procurador à Câmara Corporativa entre 1968 e 1974 e deputado à Assembleia da República pelo CDS, após o 25 de Abril. Foi deputado e presidente da Assembleia Legislativa de Macau entre 1976 e 1992. Morreu em Macau em 1992, sendo considerado o mais ilustre macaense do seu tempo.

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arrastada pelas ruas. O edifício do comando da PSP é o alvo seguinte e aí soam os primeiros tiros. O estado de emergência é decretado ao fim da tarde. O recolher obrigatório cumpre-se entre as 0700 e as 1800. Cerca de 350 militares de infantaria tentam controlar os motins na rua, com o auxílio de alguns blindados. Sem surpresa, verificam-se dificuldades quanto ao controlo de alguns elementos chineses da polícia. O Corpo de Voluntários de Macau, uma milícia de funcionários públicos, presta a sua colaboração na vigilância e prevenção de incidentes adicionais. O governador comunica o agravamento da situação para Lisboa. Ao final do dia faz-se um balanço de três mortos e meia centena de feridos, dos quais 36 a obrigar a internamento. 1966-12-4: Os diários chineses desobedecem à censura e apodam de “fascista” o comportamento das autoridades portuguesas. É feito um novo balanço dos incidentes e a contabilidade das vítimas sobe para oito. São todos do sexo masculino e maioritariamente jovens. Existem também 123 feridos, dos quais 55 com baixa hospitalar. 1966-12-5 Um mensagem do governador para Lisboa dá nota de uma acalmia na situação. Relata, no entanto a ocorrência de “incidentes esporádicos provocados elementos tipo teddy-boys…”. 1966-12-9: O conflito verbal sobe de tom e ultrapassa as Portas do Cerco. Os incidentes são comentados e condenados pela estrutura política e administrativa da província de Cantão, que chama a si as exigências das organizações de Macau e acrescenta as suas próprias, designadamente a da entrega às autoridades do continente de sete elementos nacionalistas que se tinham acolhido em Macau em 1963, fugidos da perseguição de um navio patrulha chinês. Continuam as dificuldades com a obtenção de alimentos, escassos devido ao embargo praticado pela quase totalidade dos comerciantes chineses em relação aos portugueses. 1966-12-10: Surge a “Comissão dos 13”, um grupo que representa um grande número de associações chinesas. É recebida pelo governador a quem apresenta um documento reiterando a exigência de castigos e afastamento do anterior encarregado do Governo, do comandante e segundo-comandante da PSP e do administrador do Concelho das Ilhas, a libertação dos detidos durante os motins e a apresentação de um pedido de desculpas escrito, a divulgar nos jornais e emissoras. O governador transmite as exigências para Lisboa. O ministro do Ultramar rejeita os termos do documento chinês, considerado inaceitável. A “linha dura”, preconizada pelo ministro Silva Cunha, do Ultramar, terá chegado a afirmar que “preferia

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Parte dos documentos são salvos dos escombros pela iniciativa de três dos mais salientes intelectuais e estudiosos de Macau: Pe. Manuel Teixeira, Pe. Videira Pires e Luís Gonzaga Gomes.

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ver o governador morto mas não humilhado”. Familiares de civis e militares portugueses refugiam-se em Hong Kong. 1966-12-12: O governador exonera e manda regressar a Portugal o segundo comandante da polícia e o administrador do Concelho das Ilhas. A Comissão de Inquérito nomeada a 1 de Dezembro encerra o seu trabalho depois de, com o governador, reconhecer a sua inutilidade, até pela ausência de qualquer colaboração dos chineses. Encorajado por um telegrama de Lisboa, que aponta para a aceitação da entrega dos sete elementos nacionalistas refugiados em Macau, ouvido o Conselho de Defesa, o governador aceita a totalidade dos artigos reclamados pela autoridade chinesa de Cantão. 1966-12-15: É exonerado o comandante da PSP e do Corpo de Voluntários. Será enviado para Lisboa uma semana mais tarde. 1966-12-16: O coronel Mota Cerveira é exonerado dos cargos de comandante militar e de presidente do Leal Senado: deixará Macau dois dias depois. 1966-12-17: Realizam-se finalmente os funerais das vítimas dos motins de 3 e 4 de Dezembro. Por ordem do governador, a bandeira nacional hasteada nas Portas Cerco é colocada a meiahaste durante a passagem da fronteira dos corpos de algumas das vítimas. Durante os funerais apenas há retórica (“O imperialismo português há-de ser vencido. Os compatriotas chineses de Macau triunfarão”), não se verificando incidentes. 1966-12-19: Ho Cheng Peng, administrador da Nam Kwong e representante não-oficial da hierarquia política do continente, é recebido pelo governador a seu pedido. Não sendo encontro inédito (Lopes dos Santos recebia-o periodicamente, embora com discrição) era invulgar. Vem, em nome do governo provincial, reiterar as exigências anteriormente formuladas, agora em tom mais duro. Marca prazos: 48 horas para entregar os sete nacionalistas refugiados em Macau, 72 horas para enviar um representante português à China, para receber a fórmula de concretização das restantes reivindicações. A entrega dos nacionalistas é desde logo organizada uma vez obtida a confirmação de Lisboa, e concretizada na madrugada seguinte. Constou que foram fuzilados pouco depois. 1966-12-25: É Domingo e dia de Natal, mas o diário Ou Mun escreve mais uma peça de retórica típica da Revolução Cultural “…Queremos esmagar as vossas cabeças de cão, transformar os vossos corpos em pó e esmigalhar os vossos ossos por forma a que nunca mais possais voltar ao corpo! … Vós as autoridades portuguesas de Macau, não passais de uns

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ratoneiros que se assemelham a cães que ignoram o poder dos seus inimigos… Somos os soldadinhos vermelhos do presidente Mao, armados com o seu invencível pensamento…”. 1966-12-31-O governador recebe, através de Ho Cheng Peng, um documento do continente com diversos pontos, todos eles impondo o termo das actividades e exibição dos símbolos nacionalistas e dos agentes do Kuomintang em Macau. Nos dias seguintes, o governo de Macau irá dando passos no sentido da sua concretização. 1967-1-11: Silva Cunha, Franco Nogueira e Gomes de Araújo reúnem-se com Salazar. De acordo com o relato do ministro dos Negócios Estrangeiros no seu diário, todos estão de acordo sobre a necessidade de rejeitar os termos propostos por Macau e o presidente do Conselho convoca um Conselho de Ministros extraordinário para a tarde deste mesmo dia. Salazar abre a reunião e sintetiza: a opção é entre aceitar o documento e a injúria e perda da honra que tal implica, e rejeitá-lo aceitando as consequências tidas por inevitáveis. Registam-se banalidades, bajulações a Salazar, a excomunhão da China e mesmo apelos à resistência armada. O resultado é um texto alternativo para o documento a emitir pelo governo de Macau, sanitizado relativamente à minuta anterior, tentando atenuar o reconhecimento de culpas e responsabilidades pelos mortos e feridos. Cresce a impaciência chinesa e estreitase a margem de manobra do governo de Macau. O governador pede a Lisboa, por telegrama cifrado, o envio urgente a Macau de uma missão investida de poderes para decidir em última instância. O pedido é bem acolhido pelo ministro do Ultramar. 1967-1-3: O governador envia para Cantão um documento com as suas respostas às exigências chinesas formuladas pela “Comissão dos 13” e também as referentes às actividades nacionalistas. Na China avoluma-se o poder dos guardas-vermelhos: depois do presidente da República Liu Shao-shi e do secretário-geral do PCC Deng Xiaoping, é demitido e preso o exgovernador da província de Cantão. 1967-1-9: Segue para o ministro Silva Cunha uma minuta da resposta do governo de Macau à “Comissão dos 13”. Entre outras expressões, o ministro considera “inaceitável” os termos propostos, designadamente com o reconhecimento de que a existência de mortos e feridos nos incidentes de 2 e 4 de Dezembro teria configurado um “crime” e acusa o governador de não observar as orientações que lhe tinham sido dadas anteriormente. 1967-1-12: Em Macau prepara-se a vinda da Missão sugerida pelo governador, enquanto em Lisboa se ajusta a sua composição.

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1967-1-13: Más notícias em Macau: após um encontro entre as delegações chinesa e do Território, Cantão recusa-se a receber a Missão cuja vinda de Lisboa está iminente. Este endurecimento de posições é sublinhado pelas alterações de linguagem do documento da Comissão dos 13, onde passam a figurar expressões como “carnificina”, “matança” e”graves crimes”. O tempo joga claramente a favor dos radicais chineses. 1967-1-14: A memória de Goa em 1961 perpassa nas mentes de quantos lêem a carta que neste dia 14 Salazar escreve a Nobre de Carvalho, sombrio e enigmático: “Não temos aí forças para bater as forças chinesas – seria uma impossibilidade – mas para garantir a ordem e lutar até ao extremo limite pela dignidade e pela soberania nacional…. Confiamos aqui que em caso de necessidade todos cumprirão o seu dever, mesmo com os maiores sacrifícios…”. De acordo com José Pedro Castanheira (op. cit.), Salazar chama o padre António da Silva Rego e pede-lhe a sua visão sobre a situação. O padre Rego contacta com o seu colega Manuel Teixeira, há longos anos expatriado em Macau, de quem tinha sido colega no Seminário. Manuel Teixeira contará a Castanheira que tinha escrito o relatório pedido e que o padre Rego lhe tinha feito saber que Salazar “tinha gostado muito”. 1967-1-16: O ambiente de ameaça de mais greves e mais pressões no sentido de boicotar fornecimentos de água, energia e alimentos constituem origem de ondas de boatos e factores do quasepânico que se gera em Macau. Famílias inteiras de portugueses, macaenses e chineses retiram-se para Hong Kong, onde são bem acolhidos. Em apenas dois dias chegarão a Hong Kong 700 portugueses e cerca de quatro mil e quinhentos chineses idos de Macau. 1967-1-17: Nova reunião (a sétima) entre delegados de Cantão e Macau demonstra a hostilidade chinesa perante as últimas emendas propostas por Lisboa para o documento de aceitação das exigências chinesas. 1967-1-21: O governador dá a conhecer ao ministro a impossibilidade de fazer vingar o modelo de documento enviado de Lisboa. É desta data o documento escrito pelo pe. Manuel Teixeira, intitulado “Filosofando sobre os acontecimentos”. 1967-1-23: Chega a Macau, ao final da tarde, a Missão anunciada há dez dias atrás. A chefia cabe ao comandante Correia de Barros89, antigo governador do território (1957-58). O seu 89

Pedro Correia de Barros nasceu em 1911. Terminou o curso da Escola Naval, sendo promovido a guarda-marinha em 1932. Comandou o Centro de Aviação Naval de Macau (1941-43) e a fragata “Diogo Gomes” (1961-63). Era capitão-tenente quando, em Fevereiro de 1957, tomou posse do cargo de governador de Macau, cargo que exerceu até Novembro de 1958. Foi governador-geral de Moçambique entre 1958 e 1961. Faleceu em 1968, no posto de capitão-de-mar-e-guerra.

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propósito principal declarado é a observação directa da situação e o aconselhamento do governador. Lisboa, no entanto, espera que ela seja capaz de corrigir o que julgam ser a postura de menor firmeza por parte do governador. Os relatórios de Hall Themido (8/2/67) e de Ribeiro da Cunha (30/1/67) dão conta da situação de forma minuciosa e realista. Consideram o governador pessoa “capaz e corajosa” e reflectem a opinião generalizada dos responsáveis de Macau quanto à necessidade de ceder perante as imposições chinesas. O embaixador Themido parte no dia seguinte para Lisboa, sinal da urgência que a Missão tinha reconhecido como indispensável a evitar males maiores. Os restantes dois membros permanecem em Macau e prosseguem a audição de responsáveis locais. 1967-1-24: Novos contactos com a delegação de Cantão (décima reunião) e com a Comissão dos 13 em Macau. É reiterada a necessidade de aproximar a versão portuguesa do documento da versão chinesa, sem o que não haverá acordo. Na Associação Comercial é aprovada uma resolução sobre sanções a aplicar contra os portugueses em Macau: boicote ao pagamento de impostos, contribuições e taxas; não vender qualquer bem ao governo nem a portugueses que trabalhem em qualquer repartição oficial. 1967-1-25: Themido chega a Lisboa. É chamado logo à chegada por Salazar, a quem faz um relato detalhado da situação, concluindo: atendendo aos compromissos já assumidos pelo governador, já não possível retroceder nas cedências aos chineses. Não se duvida que o governador assumiria uma posição de firmeza, se tanto lhe fosse ordenado por Lisboa, mas não lhe parece existir ambiente entre a população, a polícia e os militares para adoptar uma política diferente da que estava apontada em Macau. Aqui, começa o boicote decretado no dia anterior: serviços do Estado, transportes públicos, comércio, cinema, restaurantes, tudo é paralisado. Durante meses não é possível comprar vidros para reparar as janelas do Leal Senado destruídas no princípio de Dezembro. Na maioria dos casos, nomeadamente quando em situações de exposição pública, o boicote é cumprido. Portugueses em Macau na época relatam, todavia, numerosos casos de quebra do boicote por parte de comerciantes ou meros cidadãos chineses com anteriores laços de relacionamento com os expatriados ou os macaenses. 1967-1-26: Ribeiro da Cunha, que tinha partido no dia anterior de Macau, é recebido por Salazar imediatamente após a sua chegada a Lisboa. Através da leitura do relatório manuscrito do comandante Correia de Barros, de que é portador, transmite ao chefe do governo a percepção dos membros da Missão de que ou se aceitam as exigências chinesas ou se perde Macau. Franco Nogueira ajuíza no seu Diário: “[…] Existiam [em Macau] sinais

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exteriores da soberania: a bandeira, a moeda, umas autoridades. Mas os elementos efectivos da soberania haviam-se dissolvido, mais do que em épocas passadas. Não éramos soberanos: sob fiscalização alheia, administrávamos um condomínio.”. No entanto, terminada a reunião, Silva Cunha assina um telegrama para o governador assinalando que a situação de facto consumado perante a qual Lisboa foi colocada avisa que o governo de Macau actuará sob sua própria responsabilidade se decidir assinar a declaração nos termos em se encontra, dando ainda instruções para que se tente não publicitar o seu texto ou, no mínimo, restringir a sua divulgação. A pressão sobre o governador atinge o auge: desautorizado por Lisboa, enfrenta um boicote civil e a coação política interna e externa, para além da que é representada pelas canhoneiras chinesas que se mostram desde há dias à população de Macau. 1967-1-29: É domingo e o diário Ou Mun titula “Longa vida ao invencível pensamento de Mao Tse-tung. A luta contra as atrocidades sanguinárias saldou-se por uma vitória completa. As autoridades portuguesas de Macau vão reconhecer hoje, humildemente, a sua culpa”. Às duas da tarde, no edifício da Associação Comercial (“território chinês”), realiza-se a cerimónia de assinatura. No exterior encontra-se uma multidão de populares. Nobre de Carvalho traja civilmente, fazendo-se acompanhar pelo ajudante-de-campo, chefe do gabinete, vice-presidente do conselho legislativo e por um tradutor. Na circunstância e dada a natureza do acto, desempenhou estas funções um dos secretários de Ho Yin, Roque Choi. O acto dura pouco mais de dez minutos, envolvendo a assinatura de dois documentos, que dão satisfação às exigências formuladas pelos alegados representantes dos “habitantes chineses de Macau”, e pelo governo da província de Cantão. As fotografias da cerimónia mostram os seus participantes sentados numa mesa longa, com a pequena delegação portuguesa em face dos membros da Comissão dos Dezassete. Ao fundo, ocupando toda a parede, um retrato de Mao Zedong, ladeado por duas bandeiras da RPC. Uns meses mais tarde, em Setembro de 1967, uma separata do influente diário chinês local Ou Mun resumiu assim os acontecimentos: "Macau é uma península chinesa. O imperialismo português tem-na ocupado há mais de 400 anos e oprimido cruelmente a população chinesa. No inverno de 1966, enquanto a grande revolução cultural proletária do nosso país entrou numa nova etapa, os imperialistas portugueses em Macau chegaram a servir de vanguarda precipitosa à contracorrente anti-chinesa, levantada pelo imperialismo norte-americano e pela camarilha dirigente revisionista soviética, e tiveram o atrevimento de por um fogo anti-chinês à porta sul do nosso país, tendo provocado sucessivos incidentes sangrentos [...] Em face de tudo isto, os compatriotas chineses de Macau, sob a direcção do

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pensamento de Mao Zedong, uniram-se resolutamente e empreenderam uma luta heróica e em salvaguarda dos seus direitos e interesses legítimos, da dignidade da Pátria e da grande revolução cultural proletária[...] E tendo obtido o firme apoio do povo pátrio, do Exército Popular de Libertação e da Guarda Vermelha [...] repeliram os repetidos ataques dos inimigos [...] e acabaram por conseguir obrigar os imperialistas portugueses em Macau a baixar a cabeça para confessar os crimes e apresentar pùblicamente desculpas à população chinesa. [...] Foi uma brilhante vitória do pensamento de Mao Zedong [...]". A Revolução Cultural conhecerá o seu epílogo com a morte de Mao Zedong em 1976. O seu impacto em Macau não termina com o episódio de 29 de Janeiro de 1967, prolongando-se, ainda que não voltando a assumir proporções semelhantes.

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ANEXO B PADRE MANUEL TEIXEIRA – NOTAS BIOGRÁFICAS Nasceu em 15 de Abril de 1912, em Freixo de Espada à Cinta. Em Setembro de 1924 partiu para Macau para, durante os dez anos seguintes estudar no Seminário de S. José. Ordenado em 1934 foi designado pároco da freguesia de S. Lourenço, mas a sua capacidade de iniciativa leva-o à sua nomeação para outras numerosas funções no seio da diocese, incluindo a direcção do Boletim Eclesiástico de Macau, que contou com Charles Boxer entre os eus colaboradores. Foi, em 1948, nomeado para exercer funções em Singapura, como vigário-geral das Missões Portuguesas de Malaca e Singapura. Também aqui se distinguiu pelas actividades no campo da História. Regressou a Macau em 1962, retomando as sus funções no seio da diocese, dedicando-se também à docência dando, mais uma vez, corpo ao seu interesse pela História do Território. No decurso dos anos seguintes dará à estampa centenas de monografias (deixou mais de 120 títulos publicados) e artigos em jornais. O valor da sua produção historiográfica irá valer-lhe a sua designação como membro de um largo número de instituições científicas, de entre as quais relevamos a Associação Internacional de Historiadores da Ásia, Academia Portuguesa de História, Sociedade de Geografia de Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos e a Academia de Marinha. Recebeu numerosos prémios pela sua produção na área da História, bem como altas condecorações portuguesas. Continuou, entretanto, a dedicar-se a actividades de assistência social, em Macau e em Portugal, estabelecendo um fundo a favor de um lar de terceira idade em Chaves, local onde, aliás, viria a falecer. A Santa Sé atribuiu-lhe o título de “monsenhor” em 1982. Ainda que tivesse chegado a referir que ficaria em Macau até ao fim dos seus dias, não resistiu às mudanças operadas após a transferência da soberania de Macau para a China, em 1999, regressando a Portugal em 16 de Maio de 2001. Faleceu em 15 de Setembro de 2003 na casa de S. Marta, em Chaves. Escritor e divulgador da História, personalidade singular, de espírito vincadamente transmontano, o padre Manuel Teixeira não deixou indiferente quem o conheceu, nem tão-pouco quem leu e lê a sua obra.

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BIBLIOGRAFIA Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo do EMA (224). ABREU, Paradela de (coord.), Os últimos governadores do Império, Lisboa, Edições Inapa, 1994. ALVES, Jorge Santos e SALDANHA, António Vasconcelos de (Coordenação), Governadores de Macau, Macau, 2013. BARRETO, Luís Filipe, Macau: Poder e Saber – Séculos XVI e XVII, Lisboa, Editorial Presença, 2006. CARVALHO, general J. M. de Sousa e Faro Nobre de, Macau – Acção Governativa, Macau, Centro de Informação e Turismo, 1971. CASTANHEIRA, José Pedro, Os 58 dias que abalaram Macau, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1999. CONCEIÇÃO, Lourenço Maria da, Macau entre dois tratados com a China 1862-1887, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1988. FAIRBANK, John King, The Great Chinese Revolution 1800-1985,Londres, Pan Books, 1988. FAIRBANK, John King e GOLDMAN, Merle, China. A New History, Cambridge, Massachussets/ Londres, Harvard University Press, 2006. FERNANDES, Moisés Silva, A China e Macau: as origens e repercussões da “Revolução Cultural” chinesa em Macau nas relações sino-portuguesas. Tese de doutoramento em Ciências Sociais – Sociologia Política, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2004. FERNANDES, Moisés Silva, Macau na Política Externa Chinesa 1949-1979, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006. FERNANDES, Moisés Silva, Sinopse de Macau nas Relações Luso-Chinesas 1945-1995. Cronologia e Documentos, [s.l.], Fundação Oriente, 2000. GUEDES, João, “O Um, Dois, Três”, Revista Macau, II série nº 5, Setembro de 1992, pp. 7785.

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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CULTURAL EM MACAU (1966-1967) – UM INÉDITO DO PADRE MANUEL TEIXEIRA

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