Ação e dissimulação no romance Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos de Rubem Fonseca

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Walter Benjamin, Literatura brasileira, Essay, Crítica literária, Rubem Fonseca, Bernardo Barros
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Ação e dissimulação no romance Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos de Rubem Fonseca

Abraão Carvalho abraaocarvalho.com

RESUMO Nosso ensaio procura encaminhar uma interpretação acerca do romance de Rubem Fonseca

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, não sem uma incursão pelo

pensamento de Walter Benjamim no que se refere às suas reflexões em torno das condições históricas de sociabilidade e memória próprias ao habitante da cidade contemporânea

ocidental.

Procuramos

situar

como

a

dissimulação

opera

a

cumplicidade ou proximidade entre opostos na experiência brasileira, tais como uma loja de peles, próprias a um clima frio, numa cidade “onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”, nos termos do escritor brasileiro. O ensaio procura também posicionar o pensar acerca do aparecimento do personagem Áureo de Negromonte no livro de Rubem Fonseca, tomado como um emblema de nosso fascínio com o estrangeiro, que se inscreve em nosso raio histórico desde os tempos em que a capital da República “que não foi”, segundo José Murilo de Carvalho, era ainda a cidade do Rio de Janeiro do início do século passado. E se trata de uma pesquisa desenvolvida a partir de um projeto de pesquisa que percorreu o período de agosto de 2004 a julho de 2005, e que contou com o financiamento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) através do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa), inserido na linha de pesquisa de Filosofia e Literatura e sob orientação do Professor Bernardo Barros Coelho de Oliveira, na ocasião, do Departamento de Filosofia, CCHN, UFES, Vitória-ES. PALAVRAS-CHAVE:

Rubem Fonseca, Bernardo Barros, Dissimulação, Crítica

Literária, Walter Benjamin, José Murilo, Bajonas Brito

1

Literatura e Filosofia, um percurso até a leitura de Rubem Fonseca A literatura de Rubem Fonseca nos abre a possibilidade para um conjunto de reflexões que, embora o escapem do pensar, podem nos situar de algum modo em torno da temática da experiência urbana contemporânea. De todo, nos cabe aqui encaminhar uma perspectiva, que possa ao menos posicionar-se de algum modo acerca de um pensar deslocado da experiência européia, bem como, um pensar que têm sua dinâmica por entre uma cidade “onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro” 1, desde a perspectiva de Rubem Fonseca. Ou se quisermos, de um pensar que move-se por entre ou desde a ótica de Euclides da Cunha, para o qual em sua ecologia “não há situações de equilíbrio”, como lemos em Os sertões, ao seu capítulo I de nome “A terra”2. Nesta direção, para Euclides da Cunha é no “ascender do verão” que intensificam-se

os

desequilíbrios



“o

termômetro

oscila

em

graus

disparatados, passando, já em outubro, dos dias com 35 graus à sombra para as madrugadas frias” ; “No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio”; “...dias queimosos, noites enregeladas ”3. Este movimento de passagem entre extremidades opostas também encontramos na cidade brasileira desde a ótica de Rubem Fonseca, “cidade onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”, em que o corpo do narrador, quando sequestrado por um grupo de um homem que comia diamantes, tem este mesmo balanceio – “Rolei de um lado para o outro no curto espaço em que estava caído.” 4 - por entre extremidades opostas que encontramos no clima descrito por Euclides da Cunha, em que ocorrem “...dias queimosos, noites enregeladas”.

1

RF, VEPI, p. 11.

2

Euclides da Cunha, Os sertões, A terra, p. 9.

3

Idem, p. 27.

4

RF, VEPI, p. 200.

2

Em outra perspectiva, não em relação ao clima, mas em relação à ação em nossa experiência histórica, afetada que é por desequilíbrios ecológicos e sociais desde a colonização ibérica em solo americano até nosso raio histórico, em Rubem Fonseca é a dissimulação que opera esta proximidade entre opostos no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, em que encontramos incongruências como uma “peleteria”, isto é, uma loja onde se vendem peles em uma cidade em que se “fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”, ou até mesmo, o aparecimento de um homem que “usava uma capa comprida, fechada” em “um dia quente” 5.

Embora, também nos cabe

aqui precisar em não nos determos em um pensar acerca do inusitado ou exótico, quando nos deparamos com o pensamento de Rubem Fonseca. Nesta direção, para abrirmos a possibilidade de interpretação do pensamento de Rubem Fonseca, iremos lançar o nosso pensar a partir de traços da perspectiva de Walter Benjamin acerca das condições históricas de sociabilidade e memória do habitante da cidade contemporânea ocidental. Para o ensaísta alemão, o homem contemporâneo é estranho a uma tradição, e por isso mesmo desvinculado de uma possível memória coletiva, na qual as histórias individuais se entrelaçam com as histórias da coletividade. Deste modo, compreendemos ser a literatura de Rubem Fonseca atravessada por esta modalidade de vivência, na acepção do pensador alemão, que perdura historicamente no espaço urbano sem que os laços sociais e culturais possam ultrapassar o que está na ordem do fragmentário, do descontínuo e inconstante. A

estrutura

do

que

Benjamin

chama

de

experiência6,

com

as

transformações de ordem espacial e demográfica que abriram espaço para o surgimento da metrópole moderna no início do século XIX na Europa, por sua vez, passa por alterações abruptas, de modo que o descontínuo e o inconstante passam a afetar radicalmente este modo de vida que vê a cidade e seus subúrbios tomarem proporções nunca antes vistas na história da 5 6

Idem, p. 27. “...onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo...”; Walter Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 107.

3

humanidade. Ora, descontínuo e inconstante, remete-se à noção de experiência do choque - desenvolvida por Benjamin no seu ensaio Sobre Alguns Temas em Baudelaire -, uma vez que algo que está situado no tempo enquanto inconstante, súbito, ou mesmo como instante com intensidade, lembra algo da ordem do tempo do choque. Deste modo, a noção de choque, na acepção de Benjamin, não trata tão somente de um dos traços da sociabilidade urbana contemporânea, mas também remete à noção de raio, e assim sendo, trata-se portanto do movimento de irromper do pensamento, uma vez que este se dá subitamente, abruptamente. Neste sentido, na perspectiva de Benjamin acerca da experiência urbana, o homem contemporâneo é aquele, em certa medida, que está alheio a uma comunidade homogênea depositária de alguma tradição, onde a continuidade se faz possível. Este modo de vivência, em que as relações sociais, bem como as relações entre memória e história, estão na ordem do descontínuo, fragmentário e inconstante, encontramos na obra de Rubem Fonseca em diferenciados aspectos. Esta situação histórica do homem contemporâneo ocidental, que Benjamin dá o nome de vivência, consiste na constatação de que este modo de vida é por sua vez estranho a qualquer herança cultural adquirida através de uma possível experiência coletiva, na qual abre-se a possibilidade da lenta maturação, por mediação da tradição oral, de uma memória coletiva - “eu nada herdei”, afirma o narrador do conto de Fonseca de nome Ganhar o Jogo. Nesta direção, a ficção de Rubem Fonseca situa de algum modo, estes traços da vida urbana dos quais trata Benjamin, ao menos tendo como referência o conto que abre o livro Romance Negro, de nome A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. Neste conto, Fonseca situa uma das possibilidades desse modo de vivência, em seu súbito acontecimento que é o próprio existir em uma grande cidade, de maneira que solidão e multidão não estejam dispostos desde uma tensão inconciliável entre extremidades opostas. O atravessar a cidade mostra-se como indissociável do conhecer a cidade, e o 4

outro que nela habita, mesmo que este atravessar a cidade seja um passear ambiguamente distraído e interessado pela urbe solitariamente, desde a perspectiva do “passeador solitário e pensativo”, que aparece no pequeno poema em prosa de Baudelaire, nomeado As multidões. Este andarilho “solitário e pensativo”, que ecoa no conto de Fonseca, é sobretudo aquele que renuncia o modo de vida do “egoísta, fechado como um cofre” e do “preguiçoso, encaramujado feito um molusco7”. O modo de vida que entrelaça solidão e multidão, sem que estes estejam dispostos desde uma oposição, tal qual o andarilho Augusto, do conto de Fonseca, que pretende “encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade” 8, em sua tentativa de ler a cidade e ensinar prostitutas a ler, consiste na recriação do emblema que atravessa a tradição literária inaugurada pelo americano E. Allan Poe. Nesta direção, somente desde as transformações bruscas que abriram espaço para a metrópole moderna no século XIX, é que foi possível historicamente a alegoria do homem da multidão, o “velho decrépito”, que no conto de Poe, aparece subitamente diante do narrador convalescente, “velho” este que “não se deixa ler”, e por sua vez, “Recusa-se a estar só.”9 O emblema do “velho decrépito” 10 que “não se deixa ler”, do conto de Allan Poe, remete-se, desde a perspectiva de Walter Benjamin, à condição histórica do homem contemporâneo ocidental, situado no tempo como sem tradição, pois esta encontra-se em crise, na medida que nenhuma herança cultural atravessa as gerações. Esta experiência em crise, outrora assentada na tradição e referenciada em uma memória coletiva, não mais ouve do passado, ou seja, dos mais velhos, aquilo que está na ordem do narrável e necessário para a sua orientação no futuro. A experiência que segundo Benjamin “é matéria da tradição”11, não mais encontra continuidade no solo 7

Baudelaire, As multidões, p. 39.

8

Fonseca, Contos Reunidos, p. 600.

9

Poe, O homem da multidão, p. 139.

10

Idem, p. 135.

11

Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire.

5

urbano. Daí no conto de Poe, o “velho decrépito” ser aquele que é perseguido, porém não alcançado, pois não consiste como depositário de uma tradição, capaz de narrar uma possível orientação para o presente, pois é antes a desorientação diante da tradição que marca a crise mesmo desta, que por extensão, “não se deixa ler”.12 Ora, se por um lado encontramos em Poe, Baudelaire e Rubem Fonseca, referências a esta situação histórica do homem contemporâneo ocidental, afetado que é pela ausência ou escassez de uma possível experiência coletiva, que por sua vez o lança ao acontecimento distraído e interessado que é o atravessar a rua, a urbe, indiscriminadamente, sem que solidão e multidão estejam ex-postos desde uma oposição - no conto de Poe afirma o narrador convalescente acerca do “velho decrépito”: “Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto”13; Em As multidões de Baudelaire lemos: “Nem a todos é dado tomar um banho de multidão: gozar da multidão é uma arte; e só pode fazer,..., aquele em quem uma fada insuflou, no berço, o gosto do disfarce e da máscara, o horror ao domicílio e a paixão da viagem.”; Acerca de Augusto do conto de Fonseca lemos: “Acredita que ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os problemas”14; “Gostava de perambular pelas ruas, para ver as pessoas.”15, encontramos no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos - por outro, esta modalidade de vivência, na compreensão de Benjamin, não encerra-se aí, isto é, nestes traços. A saber, quando Baudelaire se refere ao habitante urbano “egoísta, fechado como um cofre” ou ao “preguiçoso, encaramujado feito um molusco”, está também se referindo à outra face da situação histórica do habitante urbano ocidental, que envia ao interior da moradia os rastros e vestígios, que por sua vez, se desintegram, 12

E. Allan Poe, O homem da multidão, p. 135.

13

Allan Poe, Contos. Tradução José Paulo Paes. Cultrix, SP, 1986, p. 136.

14

RF, Contos reunidos, p. 593.

15

RF, VEPI, p. 10. Mais adiante, encontramos a seguinte passagem acerca de Ellen, que aparece na cidade de Berlim: “Estudava na Universidade de Berlim. Estava sozinha em casa quando sentira, no meio da noite, uma vontade irrefreável de ver gente. Entrou no primeiro lugar que viu aberto.” (p.131).

6

passam desapercebidos, no seu atravessar a urbe por entre a multidão16. Isto é, não podemos pensar as mudanças radicais nas condições – ou situações - históricas de sociabilidade que ocorreram com o surgimento da metrópole moderna no século XIX, sem pensarmos nas transformações no âmbito da arquitetura. Em trabalhos de nome Luís Filipe ou o interieur, do ensaio Paris, Capital do século XIX, Benjamin trata da enfeitada interioridade da arquitetura que acompanha a capital Paris, sua referência para as reflexões acerca dos traçados deste velho rosto europeu e ocidental, em que aparece o emblema histórico do “homem privado, realista no escritório”. Este, para Walter Benjamim, “quer que o interior sustente as suas ilusões.” No que se refere às transformações na esfera da organização do trabalho, em certa direção, pela “primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho”. Esta separação espacial, nessa perspectiva, entre local de trabalho e moradia particular - impensável em uma sociedade organizada pela estrutura hierárquica erguida através da atividade da agricultura, como o feudalismo; lembremos que a referência de Benjamin que aqui ecoa é Europa Ocidental, Paris mais precisamente, sobretudo a moderna Paris reformada por Haussmann - abre a possibilidade da realização do ideal de arquitetura, isto é, do interior, como ornamento, como espaço para embelezamento17. Ornamento é a mediação de um certo modo de vida com o 16

Na perspectiva de Jeanne Marie Gagnebim em seu ensaio Não contar mais?, encontrado no livro História e Narração em Walter Benjamin, a noção de vivência além de ser caracterizada pelo isolamento do habitante urbano no que se refere à sua sociabilidade - fragmentária, inconstante e descontínua-, trata também de um certo modo de organização da moradia particular. Assim lemos: “Erlebnis (vivência)”, remete-se à situação histórica do modo de “vida do indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão. Essa interiorização psicológica é acompanhada por outra especificamente espacial: a arquitetura começa a valorizar justamente o ‘interior’. A casa particular torna-se uma espécie de refúgio contra um mundo exterior e hostil.” (p. 68).

17

Também em Rubem Fonseca encontramos, não sem um tom de ironia, este modo de vida que envia ao interior o sentido da existência, sobretudo, o interior como espaço para embelezamento. Trata- se de Gislaine, esposa de seu irmão José, o televangelista: “A porta foi aberta por um empregado uniformizado. Gislaine desenhava o uniforme de todos – arrumadeiras, copeiros, jardineiros, motoristas. Ela também fizera a decoração da casa, depois de frequentar numa escola durante seis semanas, um curso de decoração de interiores.” (p. 72); “Gislaine também ministrava aos empregados rigorosas lições de etiqueta. Me lembrei vagamente que ela dissera ter feito um curso de etiqueta, provavelmente na mesma escola do curso de decoração” (p. 73), afirma o narrador ao chegar em certa

7

mundo, pois estes serão os únicos vestígios e rastros de sua existência. “Em Van de Velde, a casa aparece como a expressão da personalidade. Para essa casa, o ornamento é o que a assinatura é para um quadro” 18. O ideal de arquitetura deste modo de vida arrodeado de ornamentos, instrumentaliza o interior de maneira que este não é somente: “...o universo do homem privado, mas também o seu estojo. Habitar significa deixar rastros. No interior, eles são acentuados. Colchas e cobertores, fronhas e estojos em que os objetos de uso cotidiano imprimam a sua marca são imaginados em grande quantidade. Também os rastros do morador ficam impressos no interior. Daí nasce a história de detetive, que persegue esses rastros.(...) as novelas de detetive apontam Poe como o primeiro fisionomista de tal interior. Os criminosos das primeiras novelas de detetive não são cavaleiros nem apaches, mas pessoas privadas pertencentes à burguesia.”19

A perspectiva de arquitetura desde a ótica do ornamento é o que seduz Haussmann na sua empresa de reformar a cidade de Paris para assegurá-la das revoltas e barricadas20, o que não conseguiu, sendo a Comuna a grande transgressora da cidade ornamentada, enfeitada e arrodeada de monumentos. Este traço da arquitetura da urbe parisiense, a saber, o ornamento, o disfarce, o embelezamento - não sem propósito afirma Benjamin: “Paris se afirma como a capital do luxo e da moda”21-, é como que o coroamento da dominação laica promovida pela ditadura de Haussmann, que “Em 1864, num discurso na Câmara, expressa o seu ódio contra a desarraigada população da grande metrópole”22, que aumenta desordenadamente, e pela sua própria condição de espoliada, deve ser encoberta, pois os abismos sociais radicais têm que ter a sua continuidade na organização do espaço urbano.

ocasião na casa de José. Mais adiante lemos: “A Gislaine garçonete de lanchonete não existira mais, não deixara restos, resíduos, vestígios, indícios. Um prodígio. “Estou fazendo um curso de história da arte”, ela disse, “mas não inclui o cinema, infelizmente. O cinema pode ser considerado uma arte, não pode?” (VEPI, p. 73). 18

Benjamin, Paris, capital do século XIX, p. 37.

8

É neste sentido que Pereira Passos, tal como Haussmann na cidade de Paris, empreende as reformas de embelezamento da cidade do Rio de Janeiro da primeira década da república, cidade esta que aparece no conto de Rubem Fonseca A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, como também no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. No que deveria ser o cartão postal da capital da “República que não foi”, segundo José Murilo de Carvalho, Pereira Passos visava ornamentar a cidade carioca com “fórmulas européias, especialmente parisienses”. Isso não sem o interesse de encobrir e dissimular a permanência dos traços que imperaram no regime escravista e que mesmo com o advento da República não só ainda perduravam, como 19

Idem, p. 38. Aqui, poderíamos traçar uma ligação, ainda que superficial, entre as novelas de detetive de Allan Poe, e o romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca. O que de algum modo o romance de Fonseca nos abre, está situado no âmbito daquilo que E. A. Poe inaugura, a saber, a narrativa indiciária, em que o vínculo entre multidão, investigação e perseguição, dá-se de modo a conduzir a dinâmica própria da narrativa. Antes mesmo, cabe ressaltar, este saber que se organiza através de indícios, vestígios, é algo que atravessa toda a história da humanidade, desde o caçador nômade, até o detetive urbano ocidental. Deste modo, afirma Carlos Ginsburg em seu ensaio de nome Sinais - Raízes de um paradigma indiciário: “Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas...”(p. 151). Em Poe, mais precisamente no conto O homem da multidão, a inquieta vontade de obter informações acerca do outro, a saber, o “velho decrépito” que “não se deixa ler”, acaba por encerrar-se de maneira inacabada, de modo que o saber acerca do “velho decrépito”, por sua vez, não ultrapassa a esfera de indícios. Sendo justamente estes indícios, vestígios, rastros, o que, uma vez reunidos desde uma certa ordenação hierárquica, dão o tom da investigação acerca do outro que é perseguido pelo narrador do conto de Poe. No romance de Rubem Fonseca, o aparecimento e assassinato de Angélica Maldonado irão lançar o narrador em investigações que de certo o levarão a situações limite, isto é, de risco, uma vez que, aos poucos, através de indícios, o narrador toma conhecimento da grandiosa movimentação financeira que envolveu o assassinato de Angélica. E é justamente a partir daí que o cineasta anônimo passa a reunir traços tanto do detetive, quanto do perseguido.

20

“A verdadeira finalidade das obras de Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil. Ele queria tornar impossível que no futuro se levantassem barricadas em Paris. (...) Mesmo assim as barricadas desempenharam um papel na Revolução de Fevereiro. Engels se ocupa com a tática das lutas de barricada. Haussmann quer impedi-las de duas maneiras: a largura das avenidas deveria tornar impossível erguer barricadas e novas avenidas deveriam estabelecer um caminho mais curto entre as casernas e os bairros operários. Os contemporâneos batizam este empreendimento de embelezamento estratégico.” Walter Benjamin, Paris, capital do século XIX, p. 42.

21

Idem, p. 36

22

Benjamin, Haussmann ou as barricadas, p. 41.

9

também se agravavam. Assim lemos no livro Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho, ao seu capítulo I, de nome O Rio de Janeiro e a República: “As reformas tiveram como um dos efeitos a redução da promiscuidade

social

em

que

vivia

a

população

da

cidade,

especialmente do centro. A população que se comprimia nas áreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou para se deslocar para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central. Abriu-se espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava a bairros chiques, como o Botafogo(...) No Rio reformado circulava

o

mundo

belle-époque

fascinado

com

a

Europa,

envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro.”23

Como vimos, juntamente com a perspectiva do interior da casa- “das pessoas privadas pertencentes à burguesia”, na ótica de Benjamin - como ornamento, espaço para embelezamento, segue-se a prática do Estado de ornamentar a urbe para encobrir suas misérias sociais e erguer seus monumentos.

Ora,

ornamento,

embelezamento,

nessa

perspectiva,

é

dissimulação, simulação, encobrimento, disfarce, e justamente neste sentido é que abre-se para o pensamento acerca da obra de Rubem Fonseca, a reflexão sobre um dos temas que ocupam lugar privilegiado na dinâmica de muitos de seus trabalhos, a saber, o vínculo entre ação e dissimulação na esfera da cidade. Dito de outro modo: um dos temas que situam-se em nosso âmbito de investigação, e que à nossa perspectiva pode ser uma via privilegiada de acesso à compreensão- apreensão da sociedade brasileira contemporânea, desde a ótica de Rubem Fonseca, consiste na investigação das maneiras diferenciadas em que a dissimulação aparece na ficção do escritor carioca24. 23

José Murilo de Carvalho. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras. 1987; p. 39- 41.

24

Rubem Fonseca na verdade não nasceu no Rio de Janeiro, é natural de Juiz de Fora, Minas Gerais, no entanto, utilizamos o termo “escritor carioca”, por este habitar a cidade do Rio de Janeiro desde os oito anos de idade, bem como pelo fato da cidade carioca atravessar grande parte de sua vasta obra literária.

10

Não sem propósito, na ficção de Rubem Fonseca, a práxis da vivência na acepção de Benjamin, afetada que é pela ausência de laços sociais e culturais -, mostra-se e aparece inúmeras vezes, desde o invólucro da dissimulação, seja como ornamento ou como disfarce, isto quer dizer: desde algo, em sua forma, como as ações impulsionadas pelo ideal urbanístico que orienta tanto Haussmann quanto Pereira Passos, isto é, a ação ou movimento de encobrir. Ora, mas qual o sentido dessa dissimulação, que por vezes aproxima domínios que nos parecem situados em extremidades opostas? No conto Ganhar o jogo, do livro Pequenas Criaturas, o narrador ressentido movido por seu “espírito de vingança”, que não hesita em assumir a sua miséria social, pretende ganhar o jogo, isto é, o jogo entre um sujeito pobre e um sujeito rico. A práxis da vivência, que persegue a efetivação da possibilidade de ganhar o jogo, por sua vez encontra na dissimulação a via necessária para tal anseio. “Eu descobri como ganhar o jogo entre um sujeito pobre, como eu, e um rico. Não é me tornando rico, eu nunca conseguirei isso. ‘Ser rico’, disse um deles num programa, ‘é uma propensão genética que nem todo mundo tem’. Esse milionário fizera sua fortuna saindo do zero. O meu pai era pobre, eu nada herdei quando ele morreu, nem o gene que motiva o cara a ganhar dinheiro. O único bem que tenho é a minha vida, e a única maneira de ganhar o jogo é matar um rico e continuar vivo.”25

Sem o tal “gene que motiva o cara a ganhar dinheiro”, e ao perceber em programas da televisão que se dedicam à ostentação das riquezas dos bemnascidos, o quanto é notável e “impressionante como os ricos são bem servidos”, o narrador anônimo26, tomado pela perspectiva da possibilidade de ganhar o jogo, orienta a sua práxis desde uma ótica na qual subordinação e obediência hierárquica articulada à violência letal, através de envenenamento, contra aquele que tem por privilégio subordinar, possam caminhar lado a lado 25

Fonseca, Pequenas criaturas, p. 15.

26

“...não vou dizer o nome de ninguém, nem o meu...”, Idem, p. 17.

11

sem que uma tensão entre estes domínios, que a princípio nos parecem inconciliáveis, sejam evidenciadas. Ora, mas o que isso significa? “...matar um rico e continuar vivo”, desde a perspectiva do narrador do conto de Rubem Fonseca, isolado27 e desvinculado de qualquer tradição, consiste em convergir para a ação domínios opostos, isto através de um certo modo de dissimulação, disfarce. Deste modo, caminhar rumo à efetivação da possibilidade de ganhar o jogo, consistiu em “conseguir um emprego no mais caro e exclusivo bufê da cidade”. Uma vez na condição daquele que serve os bem-nascidos, o agora garçom não hesita em agir desde a perspectiva da dissimulação, sendo a obediência e a subserviência hierárquica no âmbito das relações de trabalho, um de seus princípios norteadores, “...eu era um dos mais obedientes...”, afirma o narrador do conto de Fonseca. “Depois, o que foi mais importante, aprendi, no meu adestramento solitário, a ser um servo feliz, como são os bons garçons. Mas fingir esses sentimentos é muito difícil. Essa subserviência e felicidade não podem ser óbvias, devem ser muito sutis, percebidas inconscientemente pelo destinatário. A melhor maneira de representar essa impalpável dissimulação era criar um estado de espírito que me fizesse realmente feliz por ser garçom dos ricos, ainda que provisoriamente. A dona do bufê me apontava como um exemplo de empregado que realizava o seu trabalho orgulhandose do que fazia, por isso eu era tão eficiente.”28

No entanto, nos parece que ainda paira uma nebulosa fumaça de óleodiesel diante do sentido desta dissimulação, que dá-se desde o invólucro ofuscante da ambiguidade. Após o envenenamento letal, misturado a um café que o tal garçom pusera sutilmente na xícara de um homem que chegara para um certo jantar “num carro blindado, cercado de seguranças”, é que se 27

“Um sujeito como eu, branco, miserável, magro e famélico não tem irmãos nem aliados. Não foi fácil conseguir um emprego no mais caro e exclusivo bufê da cidade, precisei fazer demorados planos e manobras, levei dois anos nisso, perseverança é a única virtude que possuo”. Idem, p. 17.

28

Idem, p. 18.

12

viabiliza a efetivação da possibilidade de ganhar o jogo, e sobretudo “continuar vivo”. “A polícia está investigando. Gostei de ir depor na delegacia. Não demorei muito lá, a polícia achava que eu não tinha muito a dizer sobre o envenenamento, afinal eu era um garçom burro e feliz, acima de qualquer suspeita.”29

Nesta direção, pretendemos dar continuidade às reflexões em torno da literatura de Rubem Fonseca, no intuito de evidenciar o encaminhamento de questões

acerca

do

sentido

do

aparecer

da

dissimulação,

em

seus

diferenciados modos em sua obra. O que até então consiste em algo da ordem do inacessível em seu núcleo. O nosso âmbito de estudo é a reflexão- interpretação filosófica acerca da literatura de Rubem Fonseca, bem como o diálogo do escritor brasileiro com a tradição literária30, inaugurada por Edgar Alan Poe e Charles Baudelaire, tradição esta que dos emblemas da cidade contemporânea, tal qual o trapeiro, o andarilho urbano em seus diferenciados modos de ser, a voluptuosa passante, o mendigo, a prostituta, ...etc, faz possível o movimento de criação. Tomando como ponto de partida a perspectiva de Benjamin acerca da modalidade histórica de memória própria à vida do habitante urbano do 29 30

Idem, p. 22. No romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, são inúmeros os momentos em que o narrador flâneurcineasta-investigador faz referência à tradição literária do ocidente contemporâneo. Ao tomar conhecimento da existência de um possível romance que Bábel teria escrito, lança-se o narrador à seguinte reflexão: “Teria Bábel conseguido o prodígio extraordinário de escrever um texto longo com a mesma concisão cortante de seus contos? Se houvesse um escritor no mundo capaz de fazer isso, criar no romance a exatidão, a precisão do conto, este homem seria Bábel. Maupassant, Dostoievisk, Conrad, Laurence não haviam conseguido. Joyce, Proust talvez tivessem tentado inutilmente e por isso desistiram e foram para o outro extremo, a prolixidade” (p. 126). Em outro trecho lemos o seguinte: “Imaginei-me como o Oscar Wilde, arruinado, andrajoso...Não, minha fisionomia não era de um pedinte, era mais a de um assassino. Seria melhor assaltar alguém para conseguir o dinheiro da passagem. Mendigar, nunca.” (p. 231). Já no capitulo 7 da III parte do romance, é Baudelaire que subitamente aparece como referência literária (p. 248)... ; Na página 68 a referência é Peter Handkle; Os Sertões de Euclides da Cunha, logo ao início do romance é citado (p. 30).

13

ocidente moderno, enquanto fragmentária e por isso mesmo involuntária, pois a vivência, na acepção do ensaísta alemão, é desvinculada de uma possível tradição, é de nosso interesse, encaminhar uma interpretação filosófica acerca da modalidade histórica de narrativa que irrompe desde a perspectiva de criação de Rubem Fonseca. Isto é, pretendemos neste ensaio, situar a modalidade histórica de memória do homem urbano contemporâneo no processo de criação do escritor brasileiro, no sentido de refletir acerca da relação entre memória, cidade e criação. Pretendemos dar continuidade às reflexões acerca da literatura de Rubem Fonseca enquanto afetada pelos antagonismos que atravessam a sociedade brasileira. Sobretudo, o que consiste em nosso âmbito de interesse é a maneira do escritor brasileiro narrar a experiência urbana. Ora, mas no que consiste a experiência brasileira desde a perspectiva de Rubem Fonseca? Contudo, o nosso alvo de estudo neste trabalho, consiste em uma tentativa de compreensão-apreensão da narrativa de Rubem Fonseca, que narra a cidade brasileira e seus subúrbios desde a ótica de quem caminha por eles. Dito de outro modo, é no súbito acontecimento de andar pelas ruas atravessando a cidade, ora distraidamente, ora tomado e afetado por um súbito interesse extraordinário, que toda e qualquer enunciação acerca da experiência brasileira efetiva-se. Augusto, o andarilho solitário em meio à multidão, ou mesmo em ruas silenciosas sem movimento de passantes, que aparece no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, conto que abre o livro Romance Negro de R. Fonseca, “Acredita que ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os seus problemas”31. O que pretende-se neste ensaio, é a reflexão a partir de Rubem Fonseca, acerca do sentido de uma certa coexistência entre extremidades opostas, fundada no equilíbrio ou ausência de tensão, que aparece e mostra- se na experiência brasileira. Sobretudo, tendo como referência o emblema do “cinema-templo” - que aparece no conto A arte de andar nas ruas do Rio de 31

Contos Reunidos, p. 593.

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Janeiro, e que abriga em um mesmo local para públicos e horários distintos, um cinema pornográfico e um templo salvador das almas 32-, é do nosso interesse, encaminhar uma reflexão acerca do sentido desta dinâmica de inversão abrupta que aparece na experiência brasileira, e que antes de tudo encontra a possibilidade de efetivação da possibilidade da coexistência harmoniosa entre opostos extremados desde uma determinada dissimulação. Ora, mas o que é isto?Inversão abrupta entre extremidades opostas, que dáse desde uma dissimulação possível que nem sempre nos damos conta devidamente, nos limitando a lançar à ordem do inusitado ou mesmo do exótico, emblemas e acontecimentos que movem a dinâmica da experiência brasileira. Para a realização de tal percurso, não sem desvios ou devaneios, que ao invés de nos aproximar do núcleo mesmo das questões lançadas, tendem a criar outras, pretendemos abordar, no âmbito da obra de Rubem Fonseca, o romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, assim como iremos abordar contos que estejam vinculados com as temáticas que irão atravessar nossa investigação. Deste modo, é de nosso interesse abordar, no âmbito da filosofia, pensadores que através de suas reflexões, tenham encaminhado questões que estejam articulados com o tema proposto, tal qual o pensador alemão Walter Benjamin.

32

Acerca de uma possível interpretação do aparecimento do “cinema-templo” no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, de Rubem Fonseca, ver, de Abraão Carvalho, Cidade, violência e dissimulação: de Baudelaire a Rubem Fonseca, mais precisamente ao seu capítulo 3, de nome O ‘cinema-templo’ de Rubem Fonseca e a experiência brasileira, p. 21-28. Relatório Final CNPq-Ufes, julho de 2004.

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Cidade e sociabilidade "Acordei tentando me segurar desesperadamente, tudo girava em torno de mim enquanto eu caía sem controle num abismo sem fundo”. Rubem Fonseca

Levada à condição de metáfora, a frase que abre o romance de Rubem Fonseca de nome Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, indica em certa medida, na perspectiva de Benjamin, a situação histórica do homem contemporâneo ocidental, marcado pela ausência de laços sociais que tenham outra mediação senão a mercadoria, e desvinculado de uma comunidade homogênea assentada em uma possível tradição. A imagem de descida abrupta “num abismo sem fundo”, remete-se a noção de crise de experiência, pois por descida entendemos aqui o desencontro da vida com a própria vida. No raio histórico do que nomeamos experiência urbana moderna, as condições históricas de sociabilidade passaram por radicais transformações, de modo a transformarem também as modalidades históricas de memória. De certo, este processo histórico não pode ser desvinculado da identificação de transformações bruscas pelas quais passaram as forças produtivas no último século, e que consequentemente, desde a perspectiva de Walter Benjamin, expulsam “gradualmente a narrativa do discurso vivo” 33, uma vez que a tradição oral na qual se assenta a tradição, teve a sua comunicabilidade e continuidade afetada radicalmente pelas transformações inauguradas pela divisão técnica do trabalho, bem como pelas formas narrativas criadas através da técnica, tais como o romance impresso e a informação jornalística. Nesta direção, a literatura de Rubem Fonseca consiste em uma ação estética autêntica

no

raio

histórico

do

que

contemporânea.

33

Benjamin, O narrador, p. 201.

16

nomeamos

experiência

urbana

Alguns destes traços históricos que marcam o modo de vida urbano inserido na era da crise de tradição, encontramos no narrador do romance de Rubem Fonseca, que logo ao início da obra está passando por um “surto”, e por isso mesmo, não consegue sair da cama para atender os homens que tocam a campainha de seu apartamento para que sua mudança de moradia possa ser efetivada. Nesta direção, sendo a experiência urbana atravessada pela competitividade e concorrência e não pela reciprocidade 34, e o homem contemporâneo situado no tempo como sem tradição, e por isso mesmo desvinculado de uma comunidade homogênea onde os laços sociais são assentados na reciprocidade, o narrador do romance de Fonseca consiste neste emblema do modo de vida isolado, e sobretudo afetado por um conjunto de relações sociais que não têm outra mediação senão a mercadoria. Desde a perspectiva de Benjamin, este modo de vida isolado e desvinculado de uma tradição, consiste não em uma experiência, pois esta “é matéria da tradição”, mas sim em uma vivência, que relaciona-se com o outro, não a partir do privilégio dado ao discurso vivo, mas sim a partir da observação silenciosa, ou mesmo, através da dissimulação.

“Gostava de

perambular pelas ruas, para ver pessoas”, afirma o narrador do romance de Rubem Fonseca. Aqui encontramos um eco do modo de vida do andarilho Augusto, do conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, que cria o vínculo estreito entre o atravessar a rua e o irromper do pensamento. Augusto “Acredita que ao caminhar pensa melhor”35. Nesta direção, assim lemos em um fragmento do romance de Rubem Fonseca, onde o caminhar pelas ruas 34

Reciprocidade, aqui, ganha o sentido daquilo que está na ordem do fundamento de qualquer tradição, uma vez que a tradição, no sentido arcaico do termo, somente cria a sua própria continuidade na medida que há doação recíproca entre pai e filho. Por doação recíproca entendemos aquilo que está na ordem da orientação para o presente e futuro, isso através da tradição. Este modo de reciprocidade, no mundo urbano moderno, tem a sua crise, uma vez que a concorrência, a competitividade e o isolamento, constituem-se como traços marcantes da experiência urbana.

35

Quando aqui empregamos o vínculo entre o atravessar a rua e o irromper do pensamento, também estamos nos referindo àquele movimento do pensar que tem o seu súbito começo no gesto de lembrar. Uma indicação mais precisa acerca desta questão podemos encontrar em uma canção da Nação Zumbi: “Caminhando alto/ por todo grande subúrbio/ lá longe, afastado do centro/ perto daquele vento assim passo o tempo/ mas nesse mundo continuo aceso/ acordado no meu pensamento/ na beira da maré lembro do cheiro do que já passou/ lembranças ruindo na minha cabeça...” (Pixel 3000, Amaro Satélico).

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consiste em um pensar acerca da própria vida, bem como, os seus laços sociais, seu passado, sua dissimulação, etc. “Gostava de perambular pelas ruas, para ver pessoas. Mas naquele dia não olhava ninguém, pensava em Ruth, em Liliana, no trabalho infame que estava fazendo para meu irmão televangelista, nas

dificuldades

que

estava

enfrentando

para

arranjar

financiamento para um novo filme. Além disso, pela primeira vez em minha vida sentia uma espécie de desconfiança, e até mesmo receio, das pessoas que passavam - homens embuçados atrás de barbas, mulheres camufladas por cosméticos e perucas, crianças que pareciam anões, ou vice-versa. Os automóveis faziam um barulho irritante e soltavam uma fumaça preta, pareciam dispostos a me atropelar. Até o céu,..., exibia um falso azul... Que diabo estava acontecendo comigo?”36

Esta situação histórica do homem anônimo na multidão da urbe afeta radicalmente a estrutura do que nomeamos experiência urbana moderna, atravessada pela crise da experiência coletiva 37. Nesta direção, isto não deve ser tomado como apenas um dos traços que marcam o modo de vida contemporâneo, mas sim, como algo que de certo afeta de tal modo o 36 37

RF, VEPI, p. 10. Quando situamos o raio histórico do que nomeamos experiência urbana contemporânea, como afetada que é pela crise ou “surto” da experiência coletiva, estamos talvez sendo um tanto quanto afetados pela superficialidade ou mesmo ambiguidade. Ora, mas o que é isto? Tendo em perspectiva as transformações abruptas pelas quais o século XIX atravessou, principalmente de ordem espacial e demográfica, é que podemos situar um dos grandes paradoxos da vida urbana, isto é, se por um lado a cidade e seus subúrbios concentram cada vez mais pessoas em seu espaço, por outro, a possibilidade de inserir-se em uma tradição cultural, capaz de criar um fio de continuidade entre as gerações ao menos provisório historicamente, nos é crescentemente distante – sendo os movimentos populares e o culto religioso tradicional portador de verdades arcaicas, alguns dos espaços coletivos depositários da abertura da possibilidade de acolher ou mesmo escamotear a experiência em crise. Na perspectiva de Benjamin, quando da tentativa de interpretação das Flores do Mal de Baudelaire, é no culto que se abriga a experiência desvinculada de qualquer tradição, e sobretudo em crise, como afirma o ensaísta alemão acerca das Correspondências. Sendo este poema para Benjamin o que concentra o significado de um modo de vida que pode ser caracterizado enquanto "uma experiência que procura se estabelecer ao abrigo de qualquer crise. E somente na esfera do culto ela é possível". Sobre alguns temas em Baudelaire, p.132.

18

habitante urbano, que suas maneiras de relacionar-se com o outro são transformadas radicalmente. Rubem Fonseca está de certo modo situando no centro de sua obra esta questão de como este modo de vivência, na ótica de Benjamin, encontra vias de ação diferenciadas de relacionar-se com o outro, uma vez que a experiência coletiva, e por extensão, a memória coletiva, encontram-se em crise, ou mesmo em “surto”, tal como a situação que abre o romance do escritor brasileiro. Daí que as transformações de ordem demográfica e espacial, com o surgimento das grandes metrópoles no início do século XIX, afetaram radicalmente as condições históricas de sociabilidade e memória do habitante urbano, e por extensão, o modo próprio como o contar uma história aparece no mundo urbano contemporâneo. São estas mudanças estruturais pelas quais o habitante urbano é afetado que de certo criam na realização da ação deste modo de vivência, na compreensão de Benjamin, uma reunião, fundada no equilíbrio ou ausência de tensão, entre esferas que podem estas situadas entre extremidades opostas. Neste sentido, o romance de Rubem Fonseca, que tem um cineasta anônimo como personagem principal, aponta em vários momentos estes traços que atravessam a experiência urbana contemporânea, e sobretudo brasileira, a saber, o vínculo entre ação e dissimulação. Nesta perspectiva, não devemos aqui tomar o sentido de dissimulação como algo que aparece como um conceito bem delimitado na obra de Rubem Fonseca, antes mesmo, nos momentos em que encontramos o aparecer da dissimulação, o risco para o pensamento consiste em situar o modo próprio como o vínculo estreito entre o dissimular e o agir se dão. Daí não podermos fixar previamente ou antecipadamente, uma conceituação da dissimulação no pensamento de Fonseca.

19

Memória e história: entre o passado em estilhaços e o andar pelas ruas Alguns dos traços que afetam o modo de vida urbano estão situados na maneira como as relações entre memória e história se dão. Com as transformações radicais ocorridas principalmente desde o século XIX, de ordem espacial, demográfica e cultural, e que de certo abriram espaço para o surgimento da metrópole moderna, a modalidade histórica de memória própria

ao

habitante

dos

grandes

centros

e

subúrbios

urbanos

contemporâneos, fora também alterada abruptamente. Nesta direção, os traços que irão atravessar a modalidade histórica de memória do habitante urbano terão como aspecto marcante a crise da experiência cultural coletiva, única capaz de criar uma memória coletiva. Fragmentos de memória irão marcar o modo de vida que no pensamento de Benjamin recebe o nome de vivência, pois não é da tradição que o habitante urbano participa, e por extensão, o seu vínculo com o passado aparece do mesmo modo que o raio, isto é, subitamente. Neste sentido, os conteúdos da memória individual não se entrelaçam com os da memória coletiva, pois o passado não se encontra na tradição, porque está em crise, mas sim no espaço de vivência, em algum objeto, em alguma fotografia, rua, e em certa medida, na metrópole contemporânea. Daí Benjamin nomear um dos traços que afetam e atravessam a modalidade histórica de memória própria à vivência urbana, de memória involuntária. Pois se da crise da experiência cultural coletiva, desvinculada de uma tradição, resulta a vivência incapaz de criar laços culturais e sociais com os demais passantes da cidade, não é possível também uma memória coletiva na qual se insere a memória individual, daí a modalidade histórica de memória própria a esta vivência estar intimamente relacionada com o seu espaço, isto é, a cidade contemporânea ocidental. O que resulta na íntima relação entre memória, cidade e história. É nas ruas, nas calçadas, nas praças, nos teatros, nos cinemas, nas escolas, no interior das moradias, nas galerias, nos veículos de transporte, nos emblemas da vida urbana, etc, que o habitante urbano 20

involuntariamente estabelece vínculos fragmentados com o seu passado, pois é um "Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos", como o afirma Proust38. Neste sentido, o atravessar a rua entrelaça-se com o próprio irromper do conhecimento acerca da cidade contemporânea ocidental. Este conhecer sobretudo dá-se desde um raio súbito que efetiva-se junto com o gesto mesmo de caminhar, no qual o passado encontra possibilidades de ecos no presente, sempre de maneira diferenciada através da memória involuntária, da qual falam Proust e Benjamin. Dito de outro modo, é justamente neste horizonte entre o passado fragmentado do homem moderno ocidental e o irromper da experiência de andar pelas ruas, o instante no tempo onde efetiva-se o acontecimento súbito extraordinário que abre a possibilidade de olhar para o passado em estilhaços sempre de maneira diferenciada. No romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, é através da memória involuntária que o narrador estabelece vínculos com o seu próprio passado. Em certa ocasião, quando fora, após algumas caminhadas pela rua, almoçar em um restaurante próximo a uma banca de jornais, na qual comprara uma revista de cinema, lembra subitamente de um dos aspectos do modo de vida de seu pai. Tendo a impressão (causada através de um espelho, no interior do restaurante em que almoçava), de um homem que o “vigiava dissimuladamente”39 - “...senti que alguém me observava. Olhando para o lado notei que um homem me vigiava dissimuladamente” - , que após um olhar mais atento, descobre-se ser este suposto homem a imagem de si mesmo, é tomado o narrador subitamente pela lembrança de seu pai:

38 39

Marcel Proust, No Caminho de Swann, p.45. RF, VEPI, p. 11.

21

“Naquele restaurante com as paredes cobertas de espelhos, eu não olhava sujeito algum numa mesa próxima: olhava-me a mim mesmo, refletido. Era eu, aquela pessoa macilenta que parecia meu pai. Meu coração ficou gelado. Meu pai ao morrer tinha quase quarenta anos mais do que eu! Era então minha aquela cara velha devastada?”40

Como lê-se em Rubem Fonseca, é um olhar desatento para um objeto no interior do restaurante em que almoçava, isto é, um espelho, que abre a possibilidade para o narrador de criar um vínculo fragmentário com o seu próprio passado. Não sem propósito, um acontecimento referente ao passado, no qual o emblema do pai é lembrado, consiste em uma possível situação que encontre lugar na experiência brasileira, na medida em que encontramos na ação a reunião entre esferas opostas, que abre-se desde um certo modo de dissimulação, ou mesmo disfarce. Assim lemos: “Meu pai (...) Vivia envolvido com “sirigaitas”, como a minha mãe as chamava, e com fracassos comerciais crônicos. Tivera uma peleteria, numa cidade onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro. Claro que foi à falência, mas suas freguesas nunca foram tão bonitas, embora tão poucas. Antes tivera uma chapelaria e as mulheres haviam deixado de usar chapéu. No fim tinha um pequeno armarinho- sempre tivera lojas que fossem frequentadas principalmente por mulheres- na Rua Senador Passos.” 41

Tais “fracassos comerciais crônicos”, bem como, o interesse em abrir “lojas que fossem frequentadas principalmente por mulheres”, indicam, em certa extensão, o vínculo entre ação e um certo modo de dissimulação. Nesta direção, o que abre-se para o pensamento acerca destes “fracassos comerciais crônicos”, é o aparecimento da ambiguidade, que tanto atravessa a experiência brasileira. Ora, mas qual a perspectiva e o interesse, por exemplo, da abertura de uma loja onde se vendem peles “numa cidade onde se fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”? 40

RF, VEPI, p. 11.

41

Idem.

22

De certo, este modo de ação, reúne âmbitos que estão situados em extremidades opostas, pois trata-se de uma incongruência, ou mesmo um delírio, devaneio, criar-se uma peleteria “numa cidade onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”. Reúne-se em uma ambígua unidade o que é inconciliável, calor e frio, antes entendidos como opostos que se reúnem apenas em uma circularidade, aparecem lado a lado sem que uma tensão abrupta os afaste para os extremos desta unidade. Em certa medida, o fundamento deste modo de ação, que reúne esferas opostas para a realização de um mesmo acontecimento, possa ser o que o narrador anônimo do conto Ganhar o jogo, do livro Pequenas Criaturas, deu o nome de “impalpável dissimulação”42. A ação do pai do anônimo narrador, atravessada que é por um certo modo de incongruência ou ambiguidade, a saber, o empreendimento de “uma peleteria, numa cidade onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”, talvez possa nos abrir, em sua forma, a indicação do núcleo mesmo do agir do narrador. Este modo de ação do pai do narrador, que vêm à memória do cineasta anônimo de maneira súbita, em seu estar na urbe, trata-se por sua vez, de reunir desde uma “impalpável dissimulação”, da qual fala Rubem Fonseca, esferas que nos parecem opostas, inconciliáveis. Não somente isto; temos a perspectiva de que o vínculo entre ação e dissimulação atravessa em incontáveis momentos, os modos de vida de vários emblemas da vida urbana contemporânea que aparecem no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, que na obra ganham os nomes de Angélica Maldonado, Áureo de Negromonte, Maurício, quadrilha de contrabandistas de pedras preciosas, o televangelista José, além do próprio narrador anônimo, inseridos que são em uma experiência urbana afetada radicalmente pelos valores de mercado, pelo isolamento e anonimato.

42

Fonseca, Pequenas Criaturas, p. 18.

23

Um vestígio: o embrulho de papel pardo O acontecimento extraordinário que abre o desenrolar do romance, e que de certa forma já indica o vínculo entre o dissimular e o agir, trata-se do aparecimento do “embrulho de papel pardo” 43.

Subitamente, de repente,

acorda o narrador com o toque do interfone de seu apartamento, realizado por uma desconhecida que alega estar sendo perseguida. Chegando ofegante ao apartamento é questionada pelo narrador: “Quem estava perseguindo você?”, ao passo que ela responde: “Não posso dizer.”44 Ora, este “Não posso dizer”, trata-se de um embuste, um encobrimento daquilo que é, ou seja, trata-se de uma dissimulação, uma vez que sabemos através das páginas que se seguem, mais precisamente ao III e último capítulo de nome O diamante Florentino, que esta perseguição é realizada por um grupo de contrabandistas de pedras preciosas, a serviço de um homem que para viver, tem a necessidade orgânica de comer diamantes, isso mesmo, comer diamantes, estamos nos referindo ao emblemático Alcobaça, que de certa maneira nos causa espanto e curiosidade, na medida que trata-se de uma anedota, um delírio, ou antes mesmo um devaneio, pensarmos em um homem que come diamantes para manter-se vivo. Aqui, sobretudo, é o pensamento como delírio, isto é, como devaneio, que ganha forma no romance de Rubem Fonseca, assim lemos na enunciação de Alcobaça acerca de sua irrefreável necessidade de consumir diamantes, quando da oportunidade em que

o

narrador

anônimo

é

sequestrado

pelos

contrabandistas

que

acompanham Alcobaça, à procura das pedras preciosas que estavam no “embrulho de papel pardo”, levado por aquela mulher que subitamente aparece ao início do romance como sendo perseguida:

43

RF, VEPI, p. 8.

44

Idem, p. 9.

24

“Alcobaça sentou-se na poltrona, de olhos fechados. Estava mais pálido do que nunca. Ficou uns dois minutos com ar de morto. Depois disse: “Sou dominado por uma estranha patologia, uma ruptura da harmonia interna do meu corpo, de etiologia desconhecida”. Uma pausa. “Minha vida daria um filme.”45

45

Idem, p. 211.

25

Da mercadoria como mediação de uma sociabilidade descontínua Walter Benjamin em seu ensaio A Paris do Segundo Império em Baudelaire, mais precisamente no trecho de nome O Flâneur, nos abre a possibilidade de compreender a cidade – sociedade – contemporânea ocidental como afetada por um modo de mediação entre as relações sociais e culturais, que por seu turno não ultrapassa a esfera da mercadoria. Nesta direção, as condições históricas de sociabilidade, próprias àqueles que têm a urbe como espaço de vivência, situam-se de certo modo, no fato de que, segundo Benjamin, na cidade ocidental seus habitantes quase não se vêem em outra condição histórica, senão enquanto “devedores e credores,... vendedores e clientes,... patrões e empregados – sobretudo... se conheciam entre si como concorrentes.”46 Deste modo, ao encaminhar uma tentativa de interpretação do romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos de Rubem Fonseca, a questão privilegiada que se abre para o pensamento, trata-se de questionarmos: Qual a mediação por excelência das relações sociais que aparecem no percurso do romance de Rubem Fonseca? Ora, é a mercadoria, dito de outro modo: o “embrulho de papel pardo”, ou se quisermos, as pedras preciosas, que por um extra-ordinário acaso chegam às mãos do narrador do livro de Fonseca. Nesta direção, a mediação por excelência entre aqueles que aparecem no livro de Rubem Fonseca, isto é, a mercadoria, as pedras preciosas..., acabam por abrir a possibilidade do aparecimento da dissimulação, do disfarce, do encobrimento daquilo que é.

46

Walter Benjamin, p. 68.

26

Quando Angélica é perseguida pelo fato de ter roubado pedras preciosas dos contrabandistas liderados por Alcobaça, não só encobre, dissimula o motivo desta perseguição, quando perguntada pelo narrador, como também, a todo momento, digo, na ocasião em que liga para o cineasta pela primeira vez, depois que se retira sorrateiramente de seu apartamento – “Fora embora. Não sei como saiu tão silenciosamente. A porta do apartamento estava apenas encostada.”47-, o interesse de Angélica, sobretudo, trata-se de esconder do cineasta anônimo, o que há naquele “embrulho de papel pardo”. “Angélica?” “Ah, você lembra meu nome? Olha, estou te ligando por causa daquela caixinha que deixei aí. Você guardou ela pra mim, direitinho?” (...) “Está aqui, não se preocupe”, eu disse. Angélica deu um gritinho fininho de alívio. "Olha, não deixa a caixinha assim não, abandonada. (...) Não que tenha dentro da caixa alguma coisa de valor, é uma bobagem, mas seria melhor que você guardasse direitinho pra mim. Alguém pode passar aí e apanhar.” Sua voz ficou dengosa. “Guarda ela pra mim, guarda... Promete...”48

47

RF, VEPI, p. 10.

48

Idem, p. 20.

27

O assassinato de Angélica Maldonado “A notícia que me deixou preocupado era sobre o assassinato

misterioso

de

uma

mulher

chamada

Angélica

Maldonado. Angélica..., dizia o telejornal, ganhara notoriedade em desfiles de fantasia de luxo, na época do carnaval. Seu corpo mutilado fora encontrado pela empregada. A polícia acredita que ela fora torturada antes de morrer.”49

Este acontecimento, abre e lança o cineasta em duas investigações usemos esses termos- que acabam por entrelaçar-se, a saber: o que estava naquele “embrulho de papel pardo”? Que é isto, o assassinato de Angélica? É justamente a partir daí, que dissimulação, disfarce, falseamento, ganham algum sentido, poderíamos até dizer de uma arte do dissimular – nesta direção, o que é aqui visado trata-se de algo, que em sua forma ou movimento, está na ordem do que ocorre no conto Teoria do consumo conspícuo, do livro de contos Lúcia McCartney, também de Rubem Fonseca. Algo como um baile de mascarados em um carnaval, como acontece no conto acerca de um possível consumo ilustre, célebre, notável: “Estávamos dançando abraçados, de frente, da maneira convencional, ela não queria outra sorte de abraços, nem queria tirar a máscara.” 50 Disfarce e máscara é também o que afeta o humor e o agir do “pensador solitário e pensativo” do texto de Baudelaire, de nome As multidões, para o qual “gozar da multidão é uma arte”. Como lemos, esta arte não realiza-se senão desde um certo “gosto do disfarce e da máscara.”

49

Idem, p. 21.

50

RF, Lúcia McCartney, p. 199.

28

Nesta direção, ao des-cobrir o envolto daquelas, chamadas por Angélica de “pequenas quinquilharias”51, é o cineasta tomado de súbito, pelo interesse, perspectiva, ou dis-posição, de saber se o que tinha em mãos eram realmente mercadorias baratas, “pequenas quinquilharias”, ou o oposto disto, isto é, pedras preciosas de grandioso valor financeiro. Em um momento posterior, posterior embora não precisado anteriormente ao assassinato de Angélica, tem interesse o narrador de saber quem eram aqueles que segundo ela a estavam perseguindo – “ “Eles estão atrás de mim”, Angélica dissera naquela noite”52. Ora, a mediação deste lançar-se a colher indícios, vestígios, rastros, com o interesse, perspectiva ou dis-posição, que se abre desde o assassinato de Angélica, consiste na mercadoria. Isto é, o que opera a mediação à informação precisa acerca do conteúdo real do “embrulho de papel pardo”, bem como o que efetivou o assassinato de Angélica Maldonado, é em certa medida, a mercadoria. Dito de uma maneira mais precisa: aqueles a quem o cineasta se dirige, são procurados desde a mediação da mercadoria. Ao menos é o que se lê no diálogo do artista com “Maurício, que era proprietário da Florentino, uma das maiores empresas de comercialização de pedras preciosas no Brasil”53. “Tive que passar por várias portas, uma só abrindo quando a outra fechava, até chegar ao Maurício. “Como são as esmeraldas?”, perguntei. “Esmeraldas?” Riu. Devia surpreso com a minha consulta. “É para um filme que estou fazendo”, acrescentei.” 54

O que opera aí é dissimulação, encobrimento, pois este filme, como é sabido, não acontece, nem mesmo outro, apesar de ser o interesse em produzir um filme algo perseguido todo o tempo que atravessa o romance.

51

RF, VEPI, p. 20.

52

Idem, p. 22.

53

Idem.

54

Idem, p. 23.

29

Da dissimulação como cumplicidade entre opostos Situar no romance de Rubem Fonseca os momentos em que operam a dissimulação, o disfarce, o encobrimento, como já o dissemos, não consiste em precisarmos anteriormente à leitura e interpretação, a fixação de conceitos que alcancem através de sua posição, pela sua própria forma de ordenamento e controle, estes movimentos que atravessam o percurso do livro de Fonseca. Dito de outro modo: quando, em determinado trecho do romance, situamos dissimulação na categoria de conceito, logo nas páginas seguintes este mesmo conceito já não nos indica a ex-posição do pensamento acerca do aparecer da dissimulação. Deste modo, como que tateando em um labirinto à procura do sentido da dissimulação no pensamento de Rubem Fonseca, abre-se a possibilidade de ao início da parte 4 do primeiro capítulo nomeado A linfa do labirinto, encontrarmos uma indicação acerca do aparecer do dissimular no percurso do romance do literato brasileiro: “Ao retornar do escritório de Maurício, um sujeito parado na esquina me espiou de maneira esquisita, dissimulada, enquanto o porteiro abria a porta da rua. Era um dia quente, mas o homem usava uma capa comprida, fechada.”55

Ora, este movimento de cumplicidade, proximidade, entre os opostos, a saber, nesta passagem, “dia quente” e homem com “capa comprida, fechada”, abre-se, vem-a-ser, desde uma possível dissimulação, encobrimento ou disfarce, tal como a capa que encobre o corpo daquele que passa a vigiar e perseguir o que possui, digamos assim, a herança da conhecida pela imprensa como participante de “desfiles de fantasia de luxo, na época do carnaval”, Angélica Maldonado. Não sem propósito é o ornamento e o enfeite que encobre o corpo de Angélica no período de catarse coletiva que é o carnaval, onde a fantasia e a máscara ocupam lugar privilegiado.

55

Idem, p. 27.

30

Contudo, o que com isso estamos querendo dizer? Que no romance de Rubem Fonseca é dada à dissimulação, ao encobrimento, ao disfarce, o privilégio de reunir, desde uma cumplicidade ou proximidade fundada na ausência de tensão entre os opostos – “dia quente”, homem com “capa comprida, fechada”; “peleteria, numa cidade onde fazia um calor dos infernos quase o ano inteiro”; negação da modalidade de trabalho que o cineasta realiza para seu irmão José, o televangelista: “Gostava de perambular pelas ruas, para ver pessoas. (...) pensava...no trabalho infame que estava fazendo para meu irmão televangelista...”; etc -, o que aparece e mostra-se nas ações ou conjuntos de ações (não em sua totalidade) que atravessam o percurso do romance de Rubem Fonseca. Nesta direção, pensamento e ação, por vezes, têm essa dinâmica, que poderíamos dizer, têm algo semelhante ao gesto ou ação de sequestro, pelo qual o cineasta passa, em que ocorre um movimento de inversão abrupta entre extremidades opostas: “Rolei de um lado para o outro no curto espaço em que estava caído.” 56 Ora, mas de que balanceio abrupto “de um lado para o outro”, no espaço e no tempo, está Rubem Fonseca visando? Ao encontro deste problema, abre-se outro, a saber, qual o vínculo entre este balanceio abrupto “de um lado para o outro” e o tema de nosso interesse, isto é, o tema do vínculo entre o agir e o dissimular no pensamento de Rubem Fonseca? Este movimento abrupto “de um lado para o outro”, em nossa perspectiva, deve ser tomado como uma imagem que de certo remonta aos modos de vida que atravessam o percurso do romance de Rubem Fonseca. Assim, trata-se do movimento do agir, que oscila entre “um” ou “outro” modo de ação. “Um” e “outro”, entendidos como opostos, uma vez que “outro” não é o mesmo que “um”, e também de modo inverso, devem ser tomados como o lugar desde o qual a ação subitamente tem o seu começo, a sua irrupção, aparecendo ou mostrando-se desta ou daquela maneira, isto quer dizer: no percurso do livro de Rubem Fonseca podemos encontrar esta passagem abrupta entre “um” modo de pensamento que desdobra-se em uma ação radicalmente oposta, ou seja, radicalmente outra. Ora, mas o que opera esta passagem ou mediação entre “um” e “outro” modo de agir? 56

Idem, p. 200.

31

Antes de encaminharmos esta questão, cabe ressaltar, como já o dissemos, que é a mercadoria - seja como produto resultante do trabalho, ou antes mesmo como força de trabalho, ou também como objeto extraído da natureza, para ornamentação e geração de riquezas materiais, tal como as pedras preciosas que aparecem no romance de Rubem Fonseca-, que por sua vez, realiza e opera a mediação de muitas das relações sociais, econômicas e culturais da cidade contemporânea ocidental. Vejamos como isto aparece em Rubem Fonseca. A relação existente entre o narrador e seu irmão, o televangelista José, por sua vez não ultrapassa a esfera da mercadoria, que nesta situação aparece como força de trabalho. José, líder de um templo salvador das almas - templo que também aparece no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, funcionando lado a lado, ou melhor, no mesmo local de um cinema pornográfico,

porém

em

horários

e

clientela

distintas-,

para

seu

empreendimento, tem o narrador como seu funcionário, uma vez que a propaganda cinematográfica de seu templo é realizada pelo seu irmão: “Já passava das onze horas quando cheguei à mansão de José, uma das últimas que ainda restavam em Ipanema. Ele assistia, sozinho na sala, ao vídeo que eu havia feito. Estava sem a cinta que costumava usar para que os fiéis não vissem o volume de sua barriga. “Você se atrasou”, disse com suavidade... Rebobinou o vídeo. “Eu gosto do filme, sabe. A fotografia é linda, eu estou bem. Gostei dessa idéia de colocar esse casal, a moça acreditando desde o início no que eu digo e o rapaz duvidando e então, no fim, quando termino minha oração, o rapaz convencido, meneia a cabeça concordando com o que digo.”57

57

Idem, p. 15.

32

Se por um lado, o resultado do vídeo agradou José, o televangelista, em seu empreendimento político, econômico e religioso – “Meu irmão, não está longe o dia em que teremos um pastor na presidência do país.” 58 - fundado em um certo modo de dissimulação, simulação, ou disfarce, por outro, esta constatação de José não é recebida pelo seu irmão como uma forma de condecoração, na medida que para o cineasta isto não passa de um “trabalho infame”. “No dia seguinte, de manhã, fui trabalhar no filme do meu irmão José. Enquanto remontava o filme, pensava até que ponto eu estaria

fortalecendo

o

poder

e

favorecendo

a

ambição

dos

evangelistas. Para mim, todos os evangelistas eram espertalhões oportunistas, como o meu irmão, falsos como os sacerdotes de todas as religiões existentes. A religião era um grande negócio dirigido por estelionatários.”59

Ora, o que na perspectiva do narrador está mediando a realização do vídeo para o templo salvador das almas e a negação desde modo de trabalho, que ganha o nome de “infame” segundo ele próprio? Dito em outros termos: o que opera o movimento de passagem entre “um” modo de posicionamento do pensamento e “outro” modo de agir radicalmente oposto? Esta unidade fundada em uma ausência de tensão entre opostos, isto é, em um equilíbrio entre a realização e negação do mesmo, a saber, a propaganda cinematográfica da “Igreja Evangélica de Jesus Salvador das Almas”60, não poderia aparecer, mostrar-se, senão, desde o disfarce, da dissimulação, que por sua vez, efetiva-se desde o vínculo fragmentário, descontínuo e inconstante, que a mercadoria cria entre os habitantes da cidade contemporânea ocidental.

58

Idem, p. 16.

59

Idem, p. 35.

60

Idem, p. 16.

33

Não sem propósito o contrabando de pedras preciosas, ou seja, a movimentação de mercadorias para ornamentação, é realizada através de fantasias de carnaval, isto é, através de um certo modo de dissimulação, ornamento ou disfarce. Neste sentido, a situação de sequestro pela qual o cineasta atravessa, em virtude da posse de pedras preciosas pertencentes ao grupo de contrabandistas, evoca, ecoa e remete-se, em sua forma, a este movimento abrupto entre extremidades opostas, ao qual está sujeito, por vezes, o agir no percurso do livro de Rubem Fonseca, do qual falamos a pouco. Assim lemos acerca do movimento do corpo do cineasta anônimo quanto é sequestrado: “Tentei, desesperadamente, me livrar do capuz. Queria ar, luz - a luz me livraria de pensar em Ruth. Rolei de um lado para o outro no curto espaço em que estava caído. Tentei arrebentar as algemas que prendiam meus pulsos. Afinal parei exausto, sentindo muitas dores no corpo inteiro. (...) Senti uma picada dolorosa no braço. Dormi.”

Nesta direção, cabe ressaltar, que até mesmo a ex-posição pública e a vivência na moradia particular do irmão do narrador, o televangelista, oscilam circunstancialmente entre “um” e “outro” modo de agir, aparecer ou mostrarse. A saber, em público José aparece com uma “cinta”, que por sua faculdade de encobrir, dissimula para seus fiéis “o volume de sua barriga”, já em sua moradia particular, o uso da “cinta” não se faz necessário, ao menos nesta ocasião em que recebe o cineasta em seu apartamento. Ora, o que realiza e opera a mediação e a passagem entre “um” e “outro” modo de aparecer ou mostrar-se, trata-se da dissimulação, do disfarce, do ornamento, que ora abre a necessidade do uso da “cinta”, ora não. Esta proximidade e cumplicidade entre opostos é inter-mediada através da dissimulação, do adorno, ou encobrimento, que harmoniza, e situa desde um certo equilíbrio, “outro”

“um” e

modo de aparecer, uma vez que aqui, “um” modo de mostrar-se

consiste na negação do “outro” modo de agir, e também de modo inverso.

34

Áureo de Negromonte e o fascínio com o estrangeiro “Você não sabe quem é o Diderot Assunção?” “Não, não sei.” “O

maior

empresário

que

tem

no

ramo.

Um

grande

empresário. Os agenciados dele viajam para a Europa, os Estados Unidos, para mostrar as fantasias em grandes hotéis, clubes, ganhando uma boa grana.” “Você é agenciado dele?” Ainda não. Mas quando ele vir O Tesouro das Minas do Rei Salomão vai me contratar, tenho certeza. Olha este cabochão aqui”, disse mostrando uma enorme pedra arredondada, “você já viu coisa mais linda? Parece feita pela mãe natureza. Minhas pedras são todas assim, meu estrasse é francês, também os paetês, os canutilhos tudo importado, do melhor.”

O fascínio de Áureo de Negromonte com certa filiação ou vínculo cultural com a Europa, no livro de Rubem Fonseca, tem o seu cunho afetado por um tom de ironia. Ao menos é o que lemos nesta passagem em que Negromonte atribui à Europa o seu signo de distinção cultural - “meu estrasse é francês, também os paetês, os canutilhos - tudo importado, do melhor.” Junto a esta posição diante da Europa, Áureo de Negromonte anseia, com árduo esforço, ser condecorado pelo grupo de contrabandistas que talvez o levassem para “mostrar as suas fantasias em grandes hotéis”, na Europa ou Estados Unidos. Lamenta Áureo de Negromonte ao perder em um desses desfiles em que o grupo de contrabandistas de pedras preciosas seleciona quem envia ou não para a exterior: “Eu vou me matar hoje, não vou Mildred? (...) “Seis mil penas de pavão”, disse Negromonte, “duas mil penas de ema, milhões e milhões de vidrilhos e canutilhos e paetês e estrasses, um ano inteiro de trabalho, não é Mildred?” (...) “Eu fiz pesquisas, passei dias e dias na Biblioteca Nacional...Os livros nunca estavam lá...E eu voltava de novo...Li todos os livros que falam das Minas do Rei Salomão”...Deu um

35

suspiro bem fundo. “Cada cabochão desse simboliza uma coisa diferente, tem um significado próprio...Tudo inútil.”61

Como posicionar-mos o pensamento acerca do aparecimento de Áureo de Negromonte no romance de Rubem Fonseca? De certo esta ironia no que se refere ao vínculo do raio histórico do que chamamos experiência brasileira e o continente Europeu, está situada no aparecer, mostrar-se, ou ser, desde a perspectiva do ornamento, do disfarce, encobrimento, adorno, embuste, enfeite, simulação ou dissimulação.62 Este movimento de subordinação hierárquica desde o qual Negromonte aparece no romance de Rubem Fonseca - isto é, em sua tentativa de tornar-se um agenciado de Diderot, empresário envolvido com a promoção de desfiles de fantasias de luxo na época do carnaval, bem como com a movimentação do comércio de pedras preciosas; assim lemos o narrador perguntando a Negromonte: “Você é agenciado dele?”, seguramente responde Áureo, “Ainda não. Mas quando ele vir O Tesouro das Minas do Rei Salomão vai me contratar, tenho certeza.” -, trata-se de um agir que realiza-se não de outro modo senão através de um certo modo de dissimulação, que encontra no ornamento o seu signo de distinção cultural, e é justamente a perspectiva do ser como ornamentação que abriga o ressentimento de Negromonte, que tomado pela cólera afirma ao narrador: “Este ano será o Ano da Reparação, o ano em que as injustiças cometidas contra mim serão vingadas”. Ora, como darmos sentido então, ao conluio entre subordinação hierárquica e o aparecer 61

RF, VEPI, p. 54.

62

Não sem propósito, a filosofia, em sua origem européia, no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, é tratada também em um tom de ironia. Na medida que a filosofia no Brasil, em nosso raio histórico, tem sido tomada pelo mesmo fascínio com a Europa do qual partilha Áureo de Negromonte no romance de Rubem Fonseca. Em trabalho de nome Estética e Extética – Crítica Literária e Pensamento no Brasil, Bajonas Brito nos indica que uma vez “Feita desde o início supérflua, à filosofia restou apenas associar-se as lides do adorno”(p. 10). É neste sentido que se inscreve o tom de ironia que Rubem Fonseca atribui à filosofia no Brasil: “Augusto está sentado num banco, ao lado de um homem que usa um relógio digital japonês num dos pulsos e uma pulseira terapêutica de metal no outro. Aos pés do homem está deitado um cão grande, a quem o homem dirige as suas palavras, com gestos comedidos, parecendo um professor de filosofia a dialogar com seus alunos numa sala de aula...”; A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro; Contos Reunidos, p. 605 e 606.

36

ou mostrar-se desde a ótica do ornamento? Esta possibilidade de movimento de passagem de uma vida menos vida para uma vida mais vida, ou melhor, de um passar para outra coisa, de um modo de ser ou aparecer mais inferior para outro menos inferior, a saber, na ótica de Negromonte, o interesse em tornar-se um subordinado de Diderot, consiste em um dissimular. Ora, mas o que é isto? Esta situação em que a ação de Negromonte aparece a devemos tomar como afetada que é por um certo fascínio com o que vem do outro lado do Atlântico, principalmente de França – “meu estrasse é francês”. Esta distinção cultural que encontra na Europa seu signo de superioridade, tem no agir desde a ótica da ornamentação, o seu coroamento. Ornamentação aparece aqui como modo de atribuir a objetos pessoais o sentido da existência 63, afetada que é por uma experiência urbana marcada pelos valores de mercado e pelo isolamento. Do modo como Áureo de Negromonte aparece no romance de Rubem Fonseca, é o privilégio dado ao fascínio que opera a distinção cultural que encontra na Europa, ou melhor, em mercadorias vindas do outro lado do Atlântico, o que está situado em uma posição superior – “...tudo importado, do melhor”. Ora, este conluio entre subordinação hierárquica e fascínio pela Europa, que aparece em tom de ironia no livro de Rubem Fonseca, também encontramos no romance Dom Casmurro de Machado de Assis, mais precisamente ao seu capítulo V de nome O agregado. O agregado trata-se de José Dias, que em certa ocasião aparecera na fazenda de Itaguaí, onde residia o narrador Bentinho e sua família, “vendendo-se por médico homeopata”. Passadas algumas semanas, atendendo ao convite do pai de Bentinho, retorna José Dias para fixar moradia como agregado da família. Algum tempo depois, decidido a ir embora, devido a morte do pai de Bentinho, José Dias é solicitado pela mãe do narrador para que não vá embora da fazenda: 63

Esta situação histórica do indivíduo que envia ao ornamento o seu modo de ser ou aparecer, trata-se na perspectiva de Benjamin, de uma “reação de um homem cujos ‘vestígios sobre a terra’ estavam sendo abolidos.” Benjamin, Experiência e pobreza, p. 118 .

37

“ - Fique, José Dias. - Obedeço, minha senhora.” 64

Ora, esta obediência de José Dias, trata-se de um agir que oscila circunstancialmente entre extremidades opostas, uma vez que antes do ilustre convite da mãe de Bentinho, a posição era justamente a de negação da permanência na fazenda da família. Subitamente há uma inversão dessa posição, que altera-se na medida que é solicitado por aquela que tem por privilégio subordinar. Junto a isto, aquele que assumira sua própria dissimulação – “José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era médico.” –, também é tomado, tal como Áureo de Negromonte no romance de Rubem Fonseca, por um certo fascínio pelo continente europeu, assim lemos o narrador do romance de Machado de Assis afirmar: “Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá, tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus era tudo.”65

Este fascínio pelo continente europeu, emblema do estrangeiro, que encontramos nos romances de Rubem Fonseca e Machado de Assis, no que se refere aos modos de ser ou aparecer de Áureo de Negromonte e José Dias, não devemos tomar como algo desvinculado de nossa experiência histórica, uma vez que este fascínio fundado em um certo modo de dissimulação, seja como ornamento ou disfarce, é também o que seduz nossas elites no início do republicanismo no Brasil, bem como grande parte de nossa literatura, como o aponta José Murilo de Carvalho em seu livro Os Bestializados -O Rio de Janeiro e a República que não foi. Nesta direção, afirma José Murilo: "O brilho republicano expressou-se em fórmulas européias, especialmente parisienses. Mais do que nunca, o mundo literário voltou-se para Paris, os poetas sonhavam viver em Paris e, 64

Machado de Assis, Dom Casmurro, p. 19.

65

Idem.

38

sobretudo, morrer em Paris. Com poucas exceções, como o mulato Lima Barreto e o caboclo Euclides da Cunha, os literatos se dedicaram a produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas estéticas voltadas para a Europa.”66

Ora, este fascínio com o que se faz do outro lado do Atlântico, mais precisamente em Paris - que no século XIX, segundo Walter Benjamin, “se afirma como a capital do luxo e da moda” 67-, é o que seduz Pereira Passos em suas reformas na arquitetura do Rio de Janeiro. Tal como Haussmann na cidade de Paris, que inscreve a sua atuação no período do imperialismo napoleônico, tendo na realização de seu ideal urbanístico a perspectiva de ornamentar a urbe com monumentos e imprimir reformas para assegurar a cidade das barricadas populares, por meio do alargamento das ruas, etc..., também Pereira Passos tem o interesse de através da segregação espacial entre os setores da população, assegurar os privilégios de nossas elites e sobretudo ornamentar a cidade carioca para encobrir, de certo modo, a permanência dos traços mais marcantes do Brasil colonial e escravocrata. É neste sentido que afirma José Murilo: “No Rio reformado circulava o mundo belle-époque fascinado com a Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro.”68 Se por um lado os ventos da modernidade européia são recebidos aqui desde a ótica do fascínio, como forma de encobrir e dissimular nossas bizarrices sociais, isto é, o “Brasil pobre e... negro”, e por extensão, como modo de distinção cultural que encontra em certo vínculo com a Europa seu signo de superioridade, que em Rubem Fonseca é tratado por um tom de ironia - “meu estrasse é francês, também os paetês, os canutilhos – tudo importado, do melhor”. -, por outro, no Brasil, o arcaico e o moderno convivem desde certa cumplicidade, proximidade, ou seja, desde certo acordo fundado em uma ausência de tensão entre esferas que a princípio nos parecem opostas. 66

José Murilo de Carvalho, O Rio de Janeiro e a República, p. 40.

67

Benjamin, Paris, capital do século XIX, p. 36.

68

Murilo de Carvalho, p. 41.

39

Na cidade do Rio de Janeiro do início da República, o novo, o moderno, só alcança a carapaça da urbe, reformada e ornamentada por Pereira Passos, que encontra na realização de seu ideal urbanístico um modo de assegurar ou mesmo acentuar a permanência dos traços do Brasil arcaico, fundado em distâncias sociais abismais e desequilíbrios habitacionais. Como nos afirma José Murilo acerca do processo de embelezamento da então capital da República: “A população que se comprimia nas áreas afetadas pelo botaabaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central”69.

No romance de Rubem Fonseca encontramos a figura do emblemático Alcobaça, o homem que para manter-se vivo tem a necessidade orgânica de comer diamantes, isso mesmo, viver, para Alcobaça, líder do grupo de contrabandistas de pedras preciosas, é comer diamantes ilimitadamente. “Sou dominado por uma estranha patologia, uma ruptura da harmonia interna do meu corpo, de etiologia desconhecida”, afirma Alcobaça para o narrador quando este é confinado em um sítio em Mendanha, após seu sequestro. Ora, não é esta “estranha patologia” que afeta nossas elites desde a colonização ibérica até os dias de hoje, no seu trato com a natureza? O romance de Rubem Fonseca, mesmo tratando do Brasil contemporâneo, remete-se, desde a ótica de Alcobaça, ao modo de exploração da natureza, comum ao Brasil arcaico, colonial, natureza de onde se extrai o máximo sem nada retribuir. Daí não podermos tomar o emblema de Alcobaça como algo desvinculado de nossa mais arcaica experiência histórica, uma vez que um dos traços do modo de exploração de nossas elites, em seu trato com a natureza no raio destes cinco séculos, é justamente a extração das riquezas materiais de forma extremada e predatória. Isto é, tanto as reformas empreendidas por Pereira Passos na cidade do 69

José Murilo, p. 40.

40

Rio de Janeiro, bem como o aparecimento do homem que comia diamantes no romance de Rubem Fonseca, devem ser tomados como o ponto de acordo e cumplicidade entre o arcaico e o moderno em nosso raio histórico, daí que o emprego do conceito de modernidade comum à experiência européia, ser algo, de certo modo, incongruente e ambíguo quando transportado de modo mecânico para a experiência brasileira.

41

Entre monumentos e ruínas: atravessando Berlim Além do Rio de Janeiro, o romance de Rubem Fonseca atravessa também outra grande metrópole contemporânea, Berlim, sobretudo a Berlim partida pela cortina de ferro que ainda persistia, mesmo que decadente, no final da década de 80 do século passado, período em que se passa o romance. Após a edição do filme Guerra Santa, influenciado radicalmente pelo livro Os Sertões de Euclides da Cunha, o narrador-cineasta ganhara certa notoriedade internacional, a ponto de ser convidado para realizar um trabalho de adaptação para o cinema de Cavalaria Vermelha, um conto de Bábel. O convite para a realização de tal trabalho viera da então Berlim Ocidental, mais precisamente de Plessner, “que dirigia um conglomerado de empresas”, bem como era dono de uma editora, “uma das maiores da Alemanha”70. Em Berlim, o cineasta tem a informação, por meio de Plessner, de que um arruinado burocrata russo, de nome Ivan, possui, através de um roubo do setor de documentos confidenciais da Biblioteca Lênin, um manuscrito inédito de Bábel, que se tornara a sua obsessão 71. Também em Berlim, como na Europa, o dissimular consiste em um modo possível de mediação entre as relações sociais e políticas, afetadas que são pelos valores de mercado, uma vez que a mercadoria abriga o privilégio não só de separar e distanciar, mas também, o de reunir de modo fragmentário e aparente, pessoas, entidades e instituições. Nesta direção, delimita o narrador os contornos do projeto de Plessner: “Eu suspeitava que Plessner não queria fazer nenhum filme comigo, nunca quisera. Desde o princípio buscara apenas alguém para contrabandear os dólares para o outro lado e trazer o manuscrito. (...) Eu, que já era um ladrão de pedras preciosas, 70

RF, VEPI, p. 144.

71

“Subitamente tive consciência dos terríveis acontecimentos dos últimos dias: em menos de duas semanas, ..., eu me tornara um ladrão, uma quadrilha de contrabandistas de pedras preciosas queria me assassinar e Bábel tornara-se uma obsessão compulsiva. Bábel! Bábel! O que acontecera com a minha vida? Meus tormentos não haviam terminado.” (p. 147).

42

dispunha-me a cometer mais um roubo em proveito próprio. Plessner nunca poria as mãos naquele manuscrito.”72

De todo, em que pese o lugar da dissimulação enquanto mediação das relações sociais e culturais no mundo contemporâneo ocidental, o que queremos aqui privilegiar é a distinção de posição diante da Europa entre Áureo de Negromonte e o próprio narrador. Se Negromonte recebe no Brasil os ventos da história e cultura européias, não de outro modo senão fragmentário, desde a ótica do fascínio, o narrador uma vez atravessando parte da Europa, mais precisamente Berlim, de modo oposto, por sua vez, não é tomado pela mesma fascinação de Negromonte. O que para o cineasta, em sua passagem pela cidade européia quando do momento de seu encontro com Ivan, não ultrapassa a esfera do monumento edificado na urbe, para Negromonte no Brasil é motivo de ornamentação, tema para fantasia carnavalesca: “O guia explicou que aquela..., rua da procissão da Babilônia, fora reconstruída com fragmentos originais. Era do tempo de Nabucodonosor II, que reinou de 604 a 562 e destruiu Jerusalém cinco anos antes de morrer. Engraçado o guia falar nisso. (...) Áureo de Negromonte, o carnavalesco,..., tivera uma fantasia baseada na corte de Nabucodonosor.”73

Para o cineasta, o atravessar a urbe consiste em um modo súbito de estabelecer vínculos, mesmo que fragmentários, com a história ocidental. Ler a cidade através de seus monumentos ou ruínas, mesmo que atravessando Berlim, trata-se de posicionar-se não desde a ótica do fascínio, mas desde uma perspectiva que tome a arquitetura como o emblema da historicidade de um lugar. “Os museus de todas as grandes nações imperialistas permitem um grande reflexão sobre o poder”74, afirma o narrador ao atravessar certo museu 72

Idem, p. 146. Como é sabido, através das páginas que se seguem, tal como o filme que no decorrer do romance é perseguido, mas que não se efetiva, também o suposto manuscrito de Bábel, que o cineasta rouba e volta para o Brasil, á falso, não existe, como o atesta o velho Gurian.

73

Idem, p. 160.

74

Idem, p, 161.

43

em Berlim: “Quando saí do Pergamon, peguei novamente a Unter den Linden que dava diretamente na Karl-Liebknechtstrasse. O nome da rua levou-me a fazer indagações interiores: teria sido naquele canal do Spree, que eu acabara de passar, que Liebknecht e Rosa Luxemburgo haviam sido jogados depois de assassinados? (...)" Entrei

na

Spandaustrasse...passei

em

frente

da

Rotes

Rathaus, a antiga prefeitura, segui pela Rathausstrasse, atravessai a estação de S-Bahn e vi a enorme torre de TV. (...) A torre de TV plantada no meio da Alexanderplatz era um feio tributo ostensivo à soberania do progresso.”75

Este olhar não seduzido pela ótica do fascínio acerca dos monumentos da urbe, que encontramos no narrador do romance de Rubem Fonseca, afetado que é por uma certa consciência histórica e política, se aproxima sobretudo da perspectiva de Benjamin em torno dos ornamentos da cidade européia ocidental. Se em Hegel, não podemos pensar em algo senão em sua relação com o seu ser outro, que é a sua própria negação - tal como o vivente que morre, “e na verdade simplesmente pelo motivo de que, como tal, carrega dentro de si mesmo o gérmen da morte”76 -, na perspectiva de Benjamin, não podemos pensar em nossos monumentos senão já como ruínas. Neste sentido, afirma o pensador alemão: “Nas comoções da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem.”77

75

Idem.

76

Hegel, Fenomenologia do Espírito, Primeira parte da lógica, A doutrina do ser, p. 189.

77

Benjamin, Paris, capital do século XIX, seção VI. Haussmann ou as barricadas, p. 43.

44

Cultura de massa, arte e política enquanto problema no romance Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos de Rubem Fonseca “A televisão e a música pop tinham corrompido o vocabulário dos cidadãos, das prostitutas principalmente” Rubem Fonseca

Um dos temas que se inscrevem no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca, trata-se da relação entre grupos econômicos envolvidos com a promoção e edição de bens culturais, bem como a atuação de forças políticas tais como o Estado, e a circulação da obra de arte em uma sociedade em que a mediação por excelência das relações sociais não ultrapassa a esfera da mercadoria. No livro de Rubem Fonseca, não só o destino da cultura de massa ganha uma perspectiva pessimista em relação à realização do homem através da cultura, não sem um tom de ironia, mas também, encontramos em seu romance uma problematização acerca da relação entre arte e mercadoria, bem como entre arte e política. Grande parte desses temas se inscrevem nos diálogos entre o narrador e o velho Gurian 78. Se no conto de Poe o velho é aquele que “não se deixa ler”, no romance de Rubem Fonseca, o velho mostrase como aquele que de certa forma é um dos únicos personagens que aparecem sem que se tenha a mediação da mercadoria ou dissimulação situando o modo próprio do relacionar-se com o outro, que no conto de Poe não vai além de indícios e conjecturas. Acerca do que é vinculado na TV nos afirma o narrador, não sem um tom pessimista e irônico: 78

“Boris Gurian, um velho sábio judeu. Gurian nascera na Rússia e a família emigrara para a Áustria, fugindo dos comunistas, quando ele ainda era um menino. Vinte anos depois, ele era professor de literatura Russa da Universidade de Viena e tivera que fugir mais uma vez, agora dos nazistas. Foi para a Holanda, da Holanda para a França, os nazistas nos calcanhares dele. Afinal veio parar no Brasil, acompanhado da irmã Sara.” (p. 40); VEPI, Rubem Fonseca.

45

“Não gosto de televisão. Admito que talvez a televisão seja o meu futuro e o de todos os cineastas, lamentavelmente. Cenário sombrio: a televisão, depois de assegurar sua posição de principal veículo de lazer e informação, torna-se o único meio de comunicação de massa, mantido por cretinos e/ ou aproveitadores sinistros, que produzem uma gratificação espúria e emocionalmente deletéria para um público passivo e apático, facilmente manipulável por demagogos: todas as pessoas, de todas as classes sociais (os ricos usando telas imensas, do tamanho das telas dos antigos cinemas, que não existem mais, viraram farmácias, agências de bancos) vêem televisão a maior parte do tempo, uma média de doze horas por dia – muitos deixam a televisão ligada até para dormir.”79

Como lemos, o cenário traçado pelo narrador não é nada otimista, embora não esteja de todo efetivado o seu quadro acerca dos cinemas, pois ainda existem na cidade contemporânea. Não sem propósito, no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, Augusto, em diálogo com um certo velho que encontra na rua, é tomado de súbito espanto ao saber que na rua da Carioca o cinema que ali existira cedeu lugar para uma sapataria – “O cinema virou uma sapataria?”80. Embora tenha a dimensão de que os “empresários da cultura de massa só pensam em lucro”81, o cineasta, em suas reflexões, inscreve uma problematização acerca da possibilidade do artista não pensar em retorno financeiro com a difusão de sua obra, uma vez que é a mercadoria que abriga o privilégio de mediar muitas de nossas relações sociais e culturais, e sobretudo, por ser o dinheiro algo inseparável da viabilização da vida prática. Nesta perspectiva, situa o narrador a sua problematização: “E quem é que não pensa em lucro? Qual o artista, pensador, cientista que não pensa em alguma forma de lucro ao exercer sua atividade? A produção de bens culturais, modernamente, por ter 79

RF, VEPI, p. 21.

80

RF, A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, p. 619.

81

RF, VEPI, p. 21.

46

deixado

de

ser

uma

atividade

condenada

à

catarse

ou

ao

diletantismo, não se tornou uma coisa desprezível. O artista é um profissional como qualquer outro.82”

De todo, em que pese a movimentação financeira no que se refere à difusão da cultura de massa, bem como seus interesses político-ideológicos, Rubem Fonseca situa sua problematização em relação a este tema de modo a encaminhar uma perspectiva que tenha em seu horizonte situar não só a obra de arte também na condição de mercadoria que é, como também situar o artista como partícipe do mundo do trabalho. No entanto, cabe ressaltar, que a perspectiva do cineasta do livro de Rubem Fonseca em relação à forma e apropriação da cultura de massa, está situada no pensamento como delírio, devaneio ou sonho – não sem propósito encontramos em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos: “...a televisão,..., torna-se o único meio de comunicação de massa”; os cinemas “não existem mais”; etc. Dito de outro modo: quando encontramos em Rubem Fonseca uma crítica radical aos rumos da cultura de massa, isso não aparece em seu romance de outra maneira senão como delírio, devaneio, sonho, radicalização do pensar, que apesar de incongruente à realidade empírica, de certo modo, remete-se a uma situação histórica pela qual atravessa nosso raio histórico. Vejamos esta passagem em que o pensamento aparece como devaneio, delírio, sonho: “Acabei dormindo. Foi assim o sonho: Uma mulher vê televisão sem parar durante quase meio século, filmes dublados, telejornais, novelas, publicidade, entrevistas com idiotas, tudo enfiado no seu crânio. Centenas de vezes muda de vestido, de cara e de voz, de maneira de falar, de sabão em pó, de desodorante, de cigarro, de margarina. Diz: ‘Já não corro nos intervalos para fazer pipocas ou fuçar a geladeira’. Agora nem se levanta mais. Estende a mão, apanha uísque ordinário, o gelo na caixa de isopor. Suaves são as cores da indiferença: ninguém mais manda nela.” 83 82

Idem

83

Idem, p. 57

47

De certo que no mundo contemporâneo, a arte, através da cultura de massa em conluio com certo modo de se fazer política, tem sido limitada, ou até mesmo cerceada quando o assunto é criação. É justamente a partir deste tema que os diálogos entre o cineasta e o velho Gurian caminham. Acerca da posição de Bábel em relação à política soviética, quando da oportunidade do “Congresso dos Escritores, em 1934, três anos antes de ser preso”, afirma Gurian: “Na verdade, Bábel, ‘o grande mestre do silêncio’, queria reivindicar o direito do escritor de não escrever, o que era considerado uma heresia pelas organizações soviéticas de escritores. Ou melhor, ele preferia não escrever, se não tivesse liberdade plena para isso.”84 Esta posição se inscreve na direção contrária do militar Budeni, contemporâneo de Bábel: “Budeni acreditava que o papel do escritor devia ser o de propagandista.” 85, afirma o cineasta em certa ocasião. O que de certo modo o romance de Rubem Fonseca procura situar tratase da relação entre arte e política, que se inscreve na reflexão acerca da posição de Bábel e sua relação com o regime soviético que reivindicava a alcunha de revolucionário. Os contos de Bábel na Rússia, como o atesta o velho Gurian, não tiveram uma recepção muito agradável por parte de militares como Budeni, que segundo Gurian, “afirmara considerar injurioso o retrato que Bábel fizera de ‘seus homens.’”86 Formulações de Bábel como a que encontra-se em uma certa carta em que

afirma: “Alguns farão a Revolução, e daí? Eu, eu farei as coisas

marginais, aquilo que vai mais fundo” 87, causaram uma série de debates, problemas e controvérsias no meio russo, como a atesta o velho Gurian em diálogo com o cineasta. Nesta direção, afirma o velho Gurian: “É um erro catastrófico supor que, para consolidar uma revolução, é preciso tirar a liberdade dos artistas. Os soviéticos cometeram este erro e pagaram caro,

84

Idem, p. 49

85

Idem, p. 58

86

Idem, p. 67

87

Idem

48

muito caro, por isso.”88 Também a situação do narrador remete-se, de certo modo, a esta maneira de trato com a criação, na medida em que Plessner tem o interesse de orientar mais que o próprio cineasta, o conteúdo da filme acerca da Cavalaria Vermelha de Bábel. “Quero fazer um filme anti-stalinista que possa ser exibido na União Soviética...”89, afirma Plessner. Subitamente responde o narrador: “Minha idéia é fazer um filme que capte com perfeição todo o drama da Cavalaria Vermelha. Não estou preocupado com Stalin, nem com a política interna da União Soviética.”90

88

Idem, p. 68.

89

Idem, p. 110.

90

Idem.

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Referências



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__________ Obras escolhidas v. III: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.



___________ Organização: Flávio R. Koethe; Coordenador: Florestan Fernandes; Editora Ática S. A., São Paulo, 1991.



FONSECA, RUBEM. Contos Reunidos. Organização: Boris Schnaiderman. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.



...................., Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Círculo do Livro S. A. São Paulo.



...................., Pequenas Criaturas. São Paulo, Companhia das Letras. 2002.



ASSIS, MACHADO. Dom Casmurro. São Paulo, Abril Cultural. 1981.



ALLAN POE, E. Contos. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo, Editora Cultrix, 1986.



DE CARVALHO, JOSÉ M. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi; São Paulo, Companhia das Letras, 1987.



BRITO, B. Estética e Extética – Crítica Literária e pensamento no Brasil.

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