Acampados no \"Carlos Mariguhella\": Um Estudo sobre a Formação da Consciência Política entre Famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Pontal do Paranapanema - SP

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Alessandro Soares da Silva

Acampados no "Carlos Mariguhella": Um Estudo sobre a Formação da Consciência Política entre Famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Pontal do Paranapanema - SP

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2002

Alessandro Soares da Silva

Acampados no "Carlos Mariguela": Um Estudo sobre a Formação da Consciência Política entre Famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Pontal do Paranapanema - SP

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social sob orientação do Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2002

Dissertação de mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Banca:

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval - Orientador

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado - Membro Titular da Banca

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Odair Sass - Membro Titular da Banca

_____________________________________________________________ Profª. Drª. Márcia Regina de Oliveira Andrade - Membro Suplente da Banca

DM Silva, Alessandro Soares da. 302 Acampados no "Carlos Mariguhella": a formação da S586a Consciência política entre famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Pontal do Paranapanema - SP / Alessandro Soares da Silva. -- São Paulo: s. n., 2002. xxxvi, 222 f. Orientador: Salvador A. M. Sandoval Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Social. 1. Psicologia social. 2. Movimentos sociais rurais. 3. Consciência política. 4. Família. 5. Acampados. I. Sandoval, Salvador Antonio Mireles. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Social. III. Título. CDD 302

IN MEMORIAN

De meu irmãozinho Rodrigo Soares da Silva e de minhas avós Calícia Soares Machado e Glória Eliziário Fernandes.

"Uma sociedade que reprime, bloqueia ou elimina os movimentos sociais destrói seu próprio mecanismo de auto-aperfeiçoamento e auto-transcendência (...) ela se torna uma "sociedade passiva", de pessoas ignorantes, indiferentes e impotentes, às quais não é dada nenhuma chance de cuidar de seu próprio destino e que, por conseguinte, deixarão de cuidar de tudo o mais. A única perspectiva de uma tal sociedade é a estagnação e a decadência"

(Piort Stompka, 1998:479)

Com todo o meu amor dedico este trabalho às famílias que colaboraram em muito para a realização desta pesquisa, dedico ao povo do Pontal. Dedico também esse trabalho aos meus pais e irmãos, ao meu sobrinho João Antônio, ao meu afilhado Rafael e aos meus amigos Cassiano e Jurandi.

AGRADEÇO...

... a todos quantos foram aqueles que por um motivo ou outro me ajudaram a chegar até aqui. De modo especial, quero agradecer a Deus que me ampara e fortalece e a meus pais, Valdeni Terezinha e Antonio Zacarias, que mesmo de longe acompanham e apoiam meus passos como pesquisador. Aos meus irmãos Rossano e Rossieli. Ao amigo Pedro Paulo dos Santos e a família Magnificat que, durante um período tão conturbado de minha vida, ajudaram-me a abrir os olhos para o mundo da vida e a crescer, que me fizeram ver com carinho as questões que hoje persigo em meus estudos. A amiga, e primeira incentivadora, Jaqueline Oliveira, que me mostrou que já era hora de partir para estudos mais complexos, hora de trilhar um novo caminho, sem medo. A minha família adotiva paulista, os MOCHIATTI (Zenaide, Luis Moisés, Rose, Valdo, Renato, Marli, Jéssica, Fernanda, Bruno, Rodrigo e Vânia) que me acolheram ricamente como um dos seus quando voltei à São Paulo para esta empreitada. A Salvador Sandoval que se revelou mais que um orientador, revelou-se um amigo de todas as horas e um permanente incentivador. De maneira muito especial a Ângelo Colucci que me acolheu em Presidente Prudente e ao Dombeck e a Iracema que me acolheram em suas casas durante as vezes em que estive em Teodoro Sampaio. Aos amigos da Coordenação Regional do MST. Ao meu povo que luta no Pontal do Paranapanema, especialmente aos acampados do Pontal. De modo muito particular, àqueles com os quais eu convivi nos acampamentos Dorcelina I e II e Carlos Mariguela. Ao amigo Marco Aurélio pelo carinho e amizade; por ter se disposto a ler, criticar e corrigir este trabalho infindáveis vezes durante estes dois anos de mestrado,. Aos meus formadores, de modo especial aos amigos e professores Odair Sass e Raul Albino Pacheco Filho que contribuíram em muito para a minha formação como pesquisador. A Márcia Andrade que trouxe preciosas contribuições a esse trabalho durante a qualificação. Aos companheiros de núcleo de pesquisa em Psicologia Política e Movimentos Sociais (Márcia, Pedro, Enock, Fernanda, Maria Célia, Luiz Humberto, Rosa, J'mas, Zartú e Majú) que discutiram diversas vezes este trabalho. A Eliana Kawata que, além de companheira de turma, foi um ouvido carinhoso em meus dias de crise. Agradeço também a nossa incansável Terê; mais que a secretária do programa foi para mim uma superamiga dando-me todo o apoio que lhe era possível. Aos amigos inesquecíveis da Secretaria de Alunos ((Cida, Vera, Elvis, Marta, Lene, Marilene, Mônica, Bete, Márcia) e do

CPD (Raquel, Marizete, Alessandra e Betinha) que em tantos momentos me foram solidários. A Soraia Ansara e a Maria Virginia Siede, amigas que leram cuidadosamente e comentaram a versão final deste trabalho. Agradeço ainda a Ivan Ducatti e a Maria Virginia que fizeram as versões de meu resumo para o inglês e o espanhol. E, por fim, aos amigos César Vilaça, Ernesto Richter e Renato Barboza que abriram suas casas para que eu refizesse parte de meu trabalho. Obrigado ao CNPq que contribuiu com a bolsa de pesquisa que possibilitou uma pequena parte dessa pesquisa, já que as bolsas não são reajustadas no Brasil faz sete anos. Certamente alguns foram esquecidos aqui, mas não no meu coração. Obrigado. Este trabalho também é de vocês.

RESUMO

Para que um movimento social possa ser um agente de mudança, transformação social, é necessária a adesão de seus integrantes as suas propostas e as suas bandeiras. Assim, importa que se indague sobre as razões que motivam sujeitos a adotarem ações coletivas como alternativa para a transformação social da realidade em que vivem. No presente estudo buscamos responder a essa pergunta através da análise do processo de formação da consciência política entre famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST - acampadas no Pontal do Paranapanema - SP. No intuito de alcançarmos nossa meta, realizamos entrevistas semi-estruturadas com 6 famílias do acampamento Carlos Mariguela, as quais foram analisadas à luz da Teoria Social do Self e do Modelo analítico para o estudos da consciência política. Tal modelo tem por objetivo entender exatamente a indagação anterior, ou seja, o que faz com que alguém participe ou não de ações coletivas. Como o modelo é composto por sete dimensões distintas, as quais se articulam de modo dinâmico, dando origem à configurações diversas dessa consciência, nós adotamos aqui essas dimensões como categorias de análise para podermos entender o processo de formação dessa consciência. Por fim, mediante a análise das entrevistas dos acampados, pudemos discutir algumas das contradições internas do MST (como, por exemplo, a relação individual X coletivo) buscando propor algumas alternativas para o enfrentamento delas. Importa ainda registrar que na presente pesquisa utilizou-se o referencial psicossocial para tentar entender nosso objeto e responder às questões que surgiram no decorrer dos trabalhos.

RESUMEN

Para que un movimiento social pueda ser un agente de cambio, transformación social, es necesario que sus integrantes adhieran a sus propuestas y banderas. De esta manera, es pertinente indagar sobre las razones que motivan a los sujetos a la adopción de acciones colectivas como alternativa para la transformación social de la realidad en que viven. En este estudio, buscamos responder a esa pregunta a través del análisis del proceso de formación de la conciencia política entre familias del Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra MST – acampadas en el Pontal de Paranapanema –SP. Para alcanzar nuestra meta, realizamos entrevistas semi estructuradas con seis familias del campamento Carlos Mariguela que fueron analizadas a la luz de la Teoría Social del Self y del Modelo analítico para el estudio de la conciencia política. Dicho modelo tiene como objetivo entender exactamente la pregunta anterior, o sea, qué hace que alguien participe o no de acciones colectivas. Como el modelo es compuesto por siete dimensiones diferentes, articuladas de un modo dinámico y dando origen a configuraciones diversas de esa conciencia, nosotros adoptamos esas dimensiones como categorías de análisis para poder entender mejor el proceso de formación de esa conciencia. Finalmente, mediante el análisis de las entrevistas realizadas con los acampados, podemos discutir algunas de las contradicciones internas del MST (como, por ejemplo, la relación individual X colectivo) buscando proponer algunas alternativas para su enfrentamiento. Es necesario destacar que en esta investigación utilizamos el referencial psico-social para intentar entender nuestro objeto y responder a las cuestiones que nos surgieron en el devenir de nuestro trabajo.

ABSTRACT

Social movements are expected to be a social transformation, as well; and their members’ clinging to their purposes and slogans are, thus, necessary. Hence, the reasons that make subjects adopt collective actions as an alternative to social transformation upon their day-by-day reality must be inquired. This research is an attempt to answering the inquires needed by focusing our attention on the analysis of political consciousness construction among families belonging to Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST (Rural Landless Workers) at a camp in Pontal do Paranapanema (SP). To reach our goals, semi-structured interviews with six families at the camp Carlos Marighela have been done, analyzed through Social Theory of Self and Analytic Samples for the studies of political consciousness. The target of such samples is the exact comprehension of prior inquires, i.e. to check out what makes a person take part or not of a collective action. As different dimensions, which communicate with each other in a dynamic way resulting different configurations of such consciousness, compose the samples we hereby adopt those dimensions as investigation categories in order to comprehend the consciousness construction process. At last, through the analysis of the interviews of the people at camp, some contradictions in the heart of MST (e.g. individual x collective conflicts) have been examined, with the purpose of pointing out the possibility of contradiction overcoming. It’s important to notice psychosocial milestone has been used in our studies as an effort to have our object be included in as well as the emerging inquires that came out along our work.

SUMÁRIO

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INTRODUÇÃO CAPÍTULO I A GÊNESE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS NO BRASIL

1

1 - TRABALHADORES RURAIS: UMA HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA

1

1.1 - Anos 60: O caminho da desmobilização

2

1.2 - Igreja Católica: De aliada do regime à defensora do trabalhador

4

1.3 - O Estatuto da Terra: Democraticamente consolidando a opressão

6

1.4 - É Preciso Resistir

9

2 - O MST NO BRASIL

10

2.1 - Conflitos Agrários: Uma luta entre o poder e a sobrevivência

12

2.2 - Igreja e Sindicalismo como Atores na Retomada dos Movimentos Sociais Rurais

18

2.3 - MST: Uma história de lutas

20

2.4 - Desvelando os Princípios e a Proposta do MST

23

3 - O MST EM SAO PAULO

25

4 - O MST NO PONTAL DO PARANAPANEMA

28

4. 1 - A Ocupação do Pontal do Paranapanema: Uma história de grilos e violência

29

4.2 - O Poder da Mídia

34

4.3 - O Nascimento do MST

38

4.4 - Igreja Católica no Pontal: Uma Igreja particular com uma atuação particular

40

4.5 - O Retrato do Pontal do Paranapanema nos Últimos Anos do Seculo XX e

43

Princípio da Primeira Década do Século XXI CAPÍTULO II OS

ESTUDOS

PSICOSSOCIAIS

SOBRE

O

MST:

UMA

REVISÃO

47

BLIBLIOGÁFICA CAPÍTULO III DISCUTINDO AS BASES TEÓRICAS DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA

85

1. A Psicologia Social de George Herbert Mead

86

2. A Teoria da Identidade Social

94

3. A Teoria da Identidade Coletiva

101

4. Consciência e Identidade: Uma outra Perspectiva

105

CAPÍTULO IV CAMINHANDO RUMO AO ACAMPAMENTO CARLOS MARIGUELA

117

1. O Retrato do Carlos Mariguela

117

2. Chegando ao Pontal: A realidade a estrutura dos acampamentos

118

3. O Exercício da Escolha

120

4. Desmontando o Barraco e subindo no Caminhão

122

5. Entrando na Terra Prometida

124

6. Restringimdo o Campo de Pesquisa

125

7. Acampados com os Companheiros e Companheiras do Carlos Mariguela

127

8. As Famílias no Contexto da Pesquisa

143

9. Espaços de Socializaão Política: O Possível e o Concretizado

145

10. Os Espaços de Socialização Política Mistos

146

11. Outros Espaços de Socializaão a Espera de uma Oportunidade de se Materializar

150

12. Entrevistando a Familia Mariguela

155

12.1 Roteiro de Entrevista Familiar

156

12.2 Roteiro de Entrevista Individual

157

CAPÍTULO V O DISCURSO DOS ACAMPADOS E AS DIMENSÕES DA CONSCIÊNCIA

159

1. Crenças e Valores Societais

160

2. Identidade Coletiva

166

3. Identificação de Adversarios e Sentimentos Antagônicos

170

4. Sentimento de Eficácia Política

175

5. Sentimentos de Justiça e lnjustiça

182

6. Metas de Ação Coletiva

187

7. Vontade de Agir Coletivamente

190

7.1 Diálogo: Um aliado da formação da consciência, um Sinal de Democracia

195

Algumas Considerações Acerca das Consciências de nossos Sujeitos

199

CONSIDERAÇÕES FINAIS

201

BIBLIOGRAFIA

211

ANEXOS

222

i

INTRODUÇÃO

“Na verdade a questão agrária engole a todos e a tudo, quem sabe e quem não sabe, quem vê e quem não vê, quem quer e quem não quer.” (José de Souza Martins, 1994: 12-13)

O regresso ao campo das populações que originariamente lá viviam e que posteriormente migraram para os centros urbanos provocando a reconfiguração demográfica e social do país – esvaziamento do campo e o fortalecimento dos latifúndios, e o inchaço das cidades bem como a expansão das favelas e das situações de fome, miséria, violência urbana e desemprego - tem sido apontado como um possível modo eficaz de reverter o atual quadro de exclusão social vivido no Brasil. Investigar as alternativas que se apresentam a nós intelectuais com o intuito de contribuir à superação das injustiças sociais impostas ao nosso povo é nossa responsabilidade. Quando lançamos nosso olhar sobre à história da luta pela terra no Brasil, percebemos que encontra suas raízes no período da colonização portuguesa. Nessa linha ressalta Maria Antonieta de Souza: “Desde a colonização até 1850 (lei de terras), todas as terras pertenciam à coroa e esta as distribuía em forma de sesmarias. Nessa época, milhares de indígenas foram massacrados. Ao mesmo tempo, os negros que foram trazidos ao Brasil para trabalho escravo, também lutavam contra a subordinação às normas que lhes eram impostas”. (Souza, 1994: 67). Os negros nas suas lutas contra as injustiças organizaram suas vidas em comunidades rurais onde conservavam seus costumes culturais. Eram locais onde se entendiam enquanto iguais sendo o quilombo dos Palmares-Alagoas o principal foco de resistência quilombola sob a liderança de Zumbi dos Palmares. Segundo Oliveira (1988) pode-se classificar os conflitos sociais no campo em: lutas na escravidão; lutas de Canudos e Contestado; lutas de camponeses contra latifundiários; lutas de colonos nas fazendas de café; lutas de Trombas e Formoso; lutas pela terra no Paraná e a Formação das Ligas camponesas. Essas últimas surgiram na década de 50 e constituíam uma tentativa de articular as várias lutas presentes no campo. Podemos destacar três ligas que

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tiveram papéis relevantes na luta pela reforma agrária no Brasil, a saber: As Ligas camponesas, consolidadas em Pernambuco; as ULTAB’s (União dos Trabalhadores Agrícolas do Brasil) criadas em 54 e o MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra). E é a partir das Conferências Nacionais dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas e dos Encontros Estaduais de Trabalhadores que a luta dos trabalhadores rurais ganha força. Contudo, a luta pela terra se intensifica na década de 80, surgindo novos personagens – os expulsos da terra pela construção de barragens, e a conseqüente inundação das terras em que trabalhavam, e os excluídos do campo em virtude da mecanização do campo -, os chamados Sem Terra. Desse contexto surge o atual Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, tema de nossa pesquisa. Queremos contribuir com nossa dissertação para a compreensão de uma problemática vivida no interior dos movimentos sociais agrários como o MST, a saber: porque as linhas de ação adotadas pelas lideranças tem dificuldade de serem interiorizadas pela base. No caso específico desse trabalho, queremos colaborar para a compreensão dessa problemática estudando qual o papel da família dos acampados ligados ao MST na construção daquilo que chamamos consciência política. Muitas são as investigações que se ocupam com temáticas como a mulher e o MST, o levantamento histórico do Movimento, as questões envolvendo a formação política e as relações de líderes e com líderes. Mas tratar da família enquanto um importante locus das ações constitutivas inerentes ao movimento, das dinâmicas vividas por ele, parece-nos inovador, relevante e instigante. É preciso que se investigue com a devida atenção o papel das famílias sem terra na conscientização de seus membros, como também nas dinâmicas vividas pelo movimento, visto que a associação a este não se dá de modo individual como nos sindicatos, mas sim de maneira coletiva: associam-se a ele o grupamento familiar e não o sujeito em particular. Agora parece-nos necessário investigar como esses processos de mobilização do MST impactam nos membros do grupo familiar. Não encontramos na literatura pesquisada investigações aprofundadas que focalizem a família no MST. No caso da tese de Márcia Regina de Oliveira Andrade (1998), o papel da família na formação da consciência política dos jovens assentados é focalizado apenas de modo tangencial. No caso da dissertação de Maria Antonieta de Souza (1994), a autora não aprofunda como os líderes do MST atuam no universo familiar e de que modo suas ações intervém na construção da identidade coletiva das famílias assentadas. A partir desses estudos propomos nosso trabalho de pesquisa, trazendo uma nova

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contribuição à própria compreensão das dinâmicas de conscientização propiciadas por esse importante movimento social. Habitualmente atribui-se aos movimentos sociais um papel de transformação social, identificam-lhes como agentes de mudança social. O MST empenham-se por organizar os trabalhadores rurais tornando-os mais fortes e capazes de enfrentar os reveses sofridos por eles no campo. O Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra continua ao longo das duas últimas décadas do século XX e dessa primeira década do século XXI, a ser apontado como sendo o movimento social ligado às questões agrárias com maior e melhor articulação interna e por isso com maior homogeneidade de discurso na realização de ações coletivas. “Ocupar, Resistir e Produzir” é a palavra de ordem que direciona essa organização interna e as ações coletivas do movimento em ocupações, acampamentos e assentamentos. Parece-nos mister reparar que, na atual conjuntura vivida no Brasil, o Movimento Sem Terra – MST – vem a ser o principal foco de resistência ao crescente avanço do individualismo neoliberal no país. Ainda pensamos que o homem pode construir algo com o outro e disso o MST é exemplo bastante convincente. Podemos notar que o MST ao mesmo tempo unifica os interesses de sujeitos individuais possibilitando a construção do coletivo; torna-se um meio de enfrentamento e denúncia das injustiças sociais, fruto dos caminhos percorridos pelo país e agravados pelo neoliberalismo1 que domina a política nacional. Quando consideramos as questões referentes ao MST, notamos que há poucos estudos com um

enfoque psicossocial, especialmente no que diz respeito ao processo de

conscientização política de seus participantes. Como pudemos observar, em suas obras, Bernardo Mançano Fernandes (1996; 2000) faz um resgate da sua gênese no Brasil e em São Paulo, bem como uma análise das contradições vividas no interior do movimento; Souza 1

Neoliberalismo: O termo designa uma doutrina que aspira a renovar certas posturas do velho liberalismo, mas permanecendo fiel às raízes do mesmo. O Neoliberalismo a partir do séc. XVIII se torna um sistema filosófico, político e econômico. Os critérios inspiradores eram a liberdade de pensamento e a competição política entre os indivíduos mediante a representatividade e o livre comércio. No séc. XX procurou-se retirar-lhe a excessiva carga de abstração e de individualismo difuso, depurando-o mediante a incorporação da experiência social. Atualmente busca adequar sua defesa da liberdade de mercado às exigências da sociedade de consumo. O neoliberalismo reconhece que somente o Estado pode preservar o princípio fundamental da concorrência ameaçada pelo monopólio. O neoliberalismo constitui um sistema influenciado por diversas correntes. Carece de rigidez, mas afirma as essências liberais, sobretudo diante dos atuais tecnocratas (cf. Dicionário de Ciências Sociais, FGV, 1986 p. 814-815). Contudo, segundo o Prof. Pièrre Bourdieu assinala em seu artigo La Esencia del Neoliberalismo (Revista Le Monde Diplomatique), "(...) essa teoria tutelar é uma pura ficção matemática baseada em uma formidável abstração, que, de uma concepção estranha da racionalidade, identificada com a racionalidade individual, consiste em pôr entre parênteses as condições econômicas e sociais que são a condição de seu exercício. Para perceber a dimensão destes aspectos omitidos, basta pensar no sistema de ensino que nunca se levou em conta enquanto tal no momento em que desempenha um papel determinante na produção de bens e serviços, assim como na produção dos produtores." (tradução nossa)

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(1994) procura compreender quais são os acontecimentos cotidianos e quais são as aprendizagens que levam os indivíduos a se tornarem lideranças de assentamentos, como também quem são esses líderes e Márcia Andrade (1998) investiga a formação da consciência política a partir das transformações experienciadas por um grupo de jovens assentados, acompanhando como se davam tais alterações em termos da capacidade de analisar o seu contexto social. Mas quando falamos em MST, ocupações de terra, assentamentos, reforma agrária e outros assuntos correlatos, não podemos perder de vista que no centro desse movimento está o homem. Há sujeitos que se encontram engajados na luta pela terra, que buscam superar a condição de espoliados da terra e dos meios de produção. Eles surgem na contramão do programa neoliberal que ordena o mundo globalizado atual. “O assentado surge como uma identidade2 nova, buscando conciliar as raízes de uma vida no campo com a exigência do mundo rural moderno”. (Andrade ,1998). O MST é a clara expressão da luta do homem para superar as desigualdades a que é submetido. Nesse sentido observamos a coesão manifesta pelos participantes do Movimento Sem Terra na luta pela aquisição legal da terra. Percebemos que há uma identidade grupal, coletiva – constituída a partir da luta pela posse da terra – que se sobrepõe aos desejos individuais de cada sujeito associado a este movimento social. Assim, o desejo de possuir um lugar será um dos referenciais de identificação e signo de esperança às gerações presentes e futuras durante o contínuo processo de luta; durante a formação de uma identidade coletiva que supere as diferenças históricas e culturais dos sujeitos. Entendemos que essa identidade grupal e a consciência política são expressas nas representações sociais e seus significados sobre a posse da terra; nos conteúdos presentes em cada uma das dimensões da consciência política que estudaremos de modo mais detalhado no decorrer desse trabalho e, por fim, nas experiências vividas por cada sujeito no decorrer de sua existência e em particular no tempo em que permanece no movimento. As condições sociais em relevo neste instante são a política e a econômica, as quais atuam sobre o grupo como catalisadores de interesses, tornando-o aparentemente homogêneo. Todavia, quando colocamos que essas condições atuam mais efetivamente no processo de 2

Identidade é um conceito oriundo da Psicologia do Desenvolvimento e refere-se ao sujeito singular. Entretanto, tal conceito se trata de um campo complexo que tem sido objeto de estudo de disciplinas como a filosofia, psicanálise, ciências sociais, história, antropologia, semiótica... Refere-se a um campo multidisciplinar. (cf. Penha, 1990; Ciampa, 1985). Alguns autores, (Mezan, 1988), colocam o conceito de identidade como algo construído no confronto com os outros, no ponto de intersubjetividades, para falar de algo que é próprio do sujeito, do que ele é de diferente dos outros. Ele permite nos situarmos na tensão do processo de diferenciação entre o “eu e os outros”. Ao falar de identidade, Andrade baseia-se nas teorias propostas por Tajfel e Sandoval.

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construção da identidade coletiva desse grupo de acampados, não pretendemos dizer que os demais aspectos sociais não estariam desempenhando seus papéis grupais. Em outras palavras, parece-nos que em um primeiro momento a posse da terra

destaca-se

consideravelmente sobre os desejos de cada sujeito histórico. Num segundo momento emergiriam os desejos até então relegados a um segundo plano. Mas este predomínio do primeiro momento sobre segundo parece-nos não ser absoluto. Em um certo momento os aspectos subjetivos devem vir à tona. Os estudos revistos por nós e os nossos dados apontam para que essa alteração seja desencadeada no ato da posse da terra. Desse modo, a posse da terra pode modificar a identidade coletiva do grupo. O assentamento modifica as representações sociais sobre a terra e a identidade coletiva do grupo. Nesse instante é que emergem os desejos de cada sujeito até então relegados ao segundo plano, latentes em cada um, inconscientes e a procura de um momento para voltarem à cena cotidiana. De um grupamento homogêneo, passaríamos a conviver com um agrupamento heterogêneo, com conflitos de interesses e contradições oriundas das diversidades históricas e culturais destes sujeitos. Parece-nos haver aí a metamorfose de uma identidade social presente até o instante do assentamento legal. No entanto essa consideração não está desenvolvida nesse trabalho por não ser objeto de nosso estudo mais uma constatação decorrente dele que mereceria ser melhor averiguada. Em nosso estudo queremos entender como se dá a formação da consciência política dos acampados para, quem sabe, colaborar para que com a futura experiência do assentamento não sejam tão abruptas as transformações que inviabilizam os sonhos coletivos.

Ao

estudarmos a consciência política estamos buscando compreender as questões subjetivas dos fenômenos políticos que levam os sujeito à participarem de ações coletivas. Para realizarmos a presente pesquisa escolhemos como campo um acampamento de 10 meses na região do Pontal do Paranapanema, estado de São Paulo3. Esse acampamento era conhecido como Carlos Mariguela e estava4 localizado no trevo do município de Euclides da Cunha Paulista. Nele viviam cerca de 280 famílias provenientes da região nordeste do Estado do Paraná e do Paraguai. As famílias que vieram do Paraguai eram de brasileiros que há muito tempo haviam migrado para aquele país em busca de uma vida melhor. Em não conseguindo alcançar essa vida melhor em terras paraguaias e ao ouvir falar do sucesso do MST no Brasil, 3

O Pontal do Paranapanema constitui-se de uma área de 1,2 milhão de hectares, localizados no extremo oeste do estado, fronteira com o Paraná e o Mato Grosso do Sul. Os dados acerca do pontal e dos assentamentos nele efetivados são oriundos do Instituto de Terras de São Paulo – ITESP .

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elas resolvem regressar ao Brasil para tentarem a sorte junto com as outras famílias do MST. Segue o mapa da divisão Política da região do Pontal5:

A - Tupi Paulista * B – Marília C – Rancharia D - Presidente Bernardes * Presidente Prudente E - Mirante do Paranapanema F - Teodoro Sampaio G - Rosana * Primavera * Euclides da Cunha Paulista H - Presidente Venceslau Fonte: ITESP

Escolhemos o acampamento mais novo porque é nele que mais claramente poderemos observar o processo de construção e metamorfose da consciência Política entre as famílias acampadas e o reflexo disso na identidade coletiva do Movimento. Já a região foi fruta de sua importância política no plano regional e nacional da luta pela terra. A região do Pontal do Paranapanema se diferenciou rapidamente de outras regiões do Brasil onde o MST atua, seja pela ausência do apoio eclesial, seja em função de ser uma região onde as terras ainda hoje não estão totalmente descriminadas. Além disso, contribuiu para nossa escolha o fato de que no Estado de São Paulo, 33 % das famílias acampadas estão localizadas nessa região. Segundo os dados fornecidos pelo ITESP -Instituto de Terras de São Paulo - as famílias acampadas no Estado de São Paulo estão distribuídas da seguinte forma:

Fonte: ITESP

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O referido acampamento foi transferido, juntamente com outros, para o município paulista Teodoro Sampaio, formando um novo acampamento. A esse respeito trataremos com mais detalhes no capítulo IV dessa dissertação.

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Como podemos verificar no gráfico acima, entre as dez regiões paulistas, a que concentra o maior número de acampados é a região do Pontal seguido de Promissão com 18% e Andradina com 11% e Araraquara e Ribeirão Preto também com 11%. Ao que se refere à estrutura de nosso trabalho, nós o organizamos em cinco capítulos. O primeiro capítulo tem por objetivo localizar o leitor quanto a origem e desenvolvimento dos movimentos sociais agrários no Brasil. Contudo, nosso levantamento histórico e o próprio objeto dessa pesquisa nos conduziu em dado momento a priorizar, entre os movimentos sociais agrários que se organizaram no final da década de 70 e início da de 80 do século XX, o MST. Ao fazê-lo, discutimos o caminho percorrido pelo movimento dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil, em São Paulo e, de modo especial, no Pontal do Paranapanema, região onde nos debruçamos durante o processo de construção dessa pesquisa. Importa fazermos notar ao nosso leitor que os dados trabalhados nesse capítulo são especialmente relacionados ao acampados e acampamentos vinculados ao MST. No capítulo dois vimos por bem realizarmos uma revisão dos estudos feitos na psicologia social que tiveram como objeto o MST. Surpreendentemente descobrimos serem eles quase inexistentes. Prova disso, é o fato de que os estudos por nós revisitados, apesar de partirem do viés psicossocial, em sua maioria não foram desenvolvidos em programas de pósgraduação em psicologia ou, mais especificamente, de psicologia social, mas em outros como o programa de pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Entendemos que já esteja passando da hora de a psicologia social brasileira debruçar-se sobre questões tão relevantes à compreensão da realidade nacional como é o caso do MST e dos movimentos sociais de modo geral. Nesse capítulo, trabalhamos as com pesquisas de Luís Carlos Tarelho (1988); Márcia Regina de Oliveira Andrade (1998); Maria Antonieta Souza (1994), Sandra Maria de Freitas (1994) e Wilka Coronado Antunes Dias (1999). Ao discutirmos cada uma delas procuramos demonstrar a relevância de cada uma delas no cenário da psicologia social bem como a relevância da presente pesquisa visto que cada uma delas respondem a outras questões que não aquelas por nós levantadas. O referencial teórico por nós trabalhado nessa pesquisa é apresentado e discutido em nosso terceiro capítulo. Mead (1932); Tajfel (1981); Melucci (1996) e Sandoval (2001) são os pilares teóricos de nosso trabalho. De modo especial discutimos nesse capítulo o modelo de

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Em algumas letras são encontrados mais de um município.

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estudo da consciência política desenvolvido por Sandoval e com o qual as demais teorias encontram-se articuladas. Tratamos a questão metodológica no quarto capítulo. Baseando-nos nos pressupostos da etno-metodologia apresentamos os sujeitos da pesquisa, o acampamento pesquisado, a região onde ele encontra-se inserido. Nele descrevemos e analisamos nossas experiências entre as famílias acampadas no Pontal do Paranapanema e, sobretudo, àquelas com as quais convivemos mais intensamente no acampamento Carlos Mariguela localizado no município paulista de Euclides da Cunha Paulista. Vale observarmos aqui que a escolha de nossos sujeitos se deu via família uma vez que a unidade de mobilização do MST é a família. E ela é utilizada tanto nos acampamentos como nos assentamentos. No capítulo cinco analisaremos as entrevistas realizadas com 6 famílias6 a partir das sete dimensões da consciência política presentes no modelo de Sandoval. Centramos nossa análise na busca da compreensão das semelhanças e diferenças de posturas, de diferenças e semelhanças presentes nas configurações da consciência política desses sujeitos. Ainda que tivéssemos tido a intenção, não pudemos realizar a análise da dinâmica da família no desenvolvimento da consciência política. Em nossas considerações finais estaremos pontuando os principais resultados alcançados nesse trabalho. De modo especial, estaremos ponderando acerca das configurações da consciência política resultantes das dinâmicas estabelecidas entre as dimensões da consciência bem como acerca da relação que existente entre esses sujeitos e o MST. Por fim, queremos registrar o quanto ficamos impressionados com a força e a capacidade de resistir daquele povo. Como pesquisador, procuramos observar os acontecimentos, ler aquelas histórias que cada depoente partilhou conosco de forma a compreender os processos psicossociais implicados na formação da consciência política. Entretanto, não poucas vezes durante a escrita desse trabalho nos pegamos como que nos apossando dos sujeitos, das histórias, da cultura etc., como se fossem nossos ou como se fossemos um desses lutadores, um membro de cada uma dessas famílias. Garantir a distância necessária - o que não significa de maneira alguma o mesmo que neutralidade - para analisarmos sobriamente os dados da pesquisa, constituiu-se um desafio permanente durante todo processo de gestação dessa dissertação. Durante o tempo em que estivemos entre o povo acampado do Pontal, pudemos aprender muito. Lá, entre o nosso povo sofrido, debaixo do barraco de lona, sob o sol

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Foram entrevistados 11 sujeitos.

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causticante do verão do ano 2001, recebemos algumas das mais belas lições; lá tivemos professores que nos deram lições de vida. Gostaríamos de poder transcrever as emoções que vivemos naquela região, naqueles dias, de forma a propiciar aos leitores vivê-las também. Porém, bem sabemos que não somos capazes de fazê-lo e achamos que o papel não seria capaz de comportá-las devido a sua intensidade. Assim, antes de iniciarmos as páginas que seguem, trazemos uma das mais belas canções que falam desse povo humilde; trazemos a canção ''Levantados do chão?" da autoria de Chico Buarque de Holanda e de Milton Nascimento, dois expoentes da música popular brasileira. Nela, através das interrogações reiteradas que dão voz àqueles que vivem privados dela, observamos a profunda indignação e recusa desses viventes em aceitar a exclusão como um dado de fato. Como registrara Adélia Bezerra de Meneses em texto publicado no jornal Folha de São Paulo, essa canção "(...) coloca, em sua radicalidade, a questão do desarraigamento, do desenraizamento, do ''desassentamento'' e do seu absurdo". É ao abusar da ironia7 que Chico e Milton denunciam os absurdos da condição humana a que esses heróis estão relegados. Repetimos: heróis, pois não nos vemos capazes de encontrar outro adjetivo para essas pessoas que resistem anos a fio debaixo de lonas que chegam a registrar temperaturas em torno de 50º C, que sobrevivem partilhando "o pão nosso de cada dia". Em meio as negativas é que os sem terra são definidos, nomeados mediante a terra de que carecem e pela qual lutam. Nessa canção, a terra sonhada por homens e mulheres; crianças, jovens ou velhos, se faz presente mediante a sua ausência. Lembrando os elementais aos quais os filósofos atribuíam o princípio ordenador do cosmo, vemos o elemento terra tomar o lugar na vida dessa gente. E ela o faz cada vez que a água que brota de suas mãos e forma a lama com o pó da estrada ou a cada vez que o boi alado foge de seus sonhos e paira no ar distante. Já o fogo é o elemento que se faz presente da maneira mais dolorosa e odiosa em suas vidas. Ele surge sorrateiro e fatal. Ele brota das armas de jagunços e policiais que ceifam as vidas daqueles que só queriam ceifar o trigo. Na vida dos sem terra, diferentemente da filosofia pré-socrática, o fogo é o principio da morte e não da vida. É na crueldade dos conflitos de terra dos quais o massacre de Eldorado de Carajás tornou-se um ícone, que encontramos a gelidez ontológica do fogo presente na vida desses heróis forjados a ferro e fogo, em suor e lágrimas.

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Ironia: palavra que provém do grego eironein que significa ação de interrogar, fingindo ignorância, ou que diz menos do que aquilo que se pensa. Forma privilegiada do exercício da crítica social, no avesso da duplicação das ideologias dominantes, a ironia é arma de combate. A ironia também foi um dos componentes do método socrático.

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Dessa realidade extraímos nossos aprendizados, nossa dissertação. Dessa dura e triste realidade Chico e Milton extraíram essa sublime canção.

Levantados do chão Milton Nascimento - Chico Buarque/1997 Para o livro Terra de Sebastião Salgado

Como então? Desgarrados da terra? Como assim? Levantados do chão? Como embaixo dos pés uma terra Como água escorrendo da mão?

Como em sonho correr numa estrada? Deslizando no mesmo lugar? Como em sonho perder a passada E no oco da Terra tombar?

Como então? Desgarrados da terra? Como assim? Levantados do chão? Ou na planta dos pés uma terra Como água na palma da mão?

Habitar uma lama sem fundo? Como em cama de pó se deitar? Num balanço de rede sem rede Ver o mundo de pernas pro ar?

Como assim? Levitante colono? Pasto aéreo? Celeste curral? Um rebanho nas nuvens? Mas como? Boi alado? Alazão sideral?

Que esquisita lavoura! Mas como? Um arado no espaço? Será?

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Choverá que laranja? Que pomo? Gomo? Sumo? Granizo? Maná?

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CAPÍTULO I A GÊNESE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS NO BRASIL

“A força do latifundiário vem do dinheiro; a do governo, na polícia; a nossa, na capacidade de juntar gente, de conscientizar” (João Pedro Stedile, entrevista concedida à revista Caros Amigos n.º 39, junho de 2000)

1 - TRABALHADORES RURAIS: UMA HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA

A finalidade deste capítulo é realizar um histórico, ainda que não aprofundado, a respeito dos movimentos sociais agrícolas brasileiros e suas ações coletivas e contextualizar o surgimento do MST. Com esse intuito faremos um breve resgate histórico dos movimentos sociais rurais no Brasil e concluiremos o capítulo com uma análise dos fatores que mais contribuíram para o surgimento do MST. Como já assinalamos na introdução os movimentos sociais rurais remontam o período do Brasil colônia. Os povos pré-colombianos, os negros escravizados, os imigrantes e os camponeses, todos lutaram pelo direito a terra, pelo direito de permanecer na terra em que viveram, na terra em que

plantavam. Cada qual desses grupos empreenderam diferentes

formas de luta para resistir a dominação. Os que detinham o poder se contrapuseram a todos essas tentativas e procuraram descaracterizar o processo de exploração a que submetiam esses grupos para que, desse modo, as lutas por eles empreendidas fossem vistas como ilegítimas. A partir da proclamação da república as questões agrárias bem como as

terras

devolutas passam a ser de responsabilidade estatal. Na república, a força política das oligarquias rurais se contrapunha a força dos militares. Enquanto os oligarcas queriam a autonomia dos estados, os militares defendiam o fortalecimento da União. A autonomia dos estados era fundamental para se garantir a força do coronelismo regional. Contudo o prevalecimento das posturas unionistas dos militares, contribuiu para o enfraquecimento dos coronéis, possibilitando que, paulatinamente, os trabalhadores rurais começassem a adotar estratégias de ação que lhes possibilitasse o enfrentamento dos latifundiários e a sua emancipação desse poder.

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Se antes as ações empreendidas pelos trabalhadores rurais eram baseadas na expectativa messiânica de salvação e justiça concretizada na luta religiosa ou no cangaço que fazia o enfrentamento armado da questão agrária, a decadência do poder dos coronéis possibilitou a adoção de estratégias de luta que abrangiam mais profundamente a sociedade e assumiam um caráter claramente político (cf. Tarelho, 1988; Moura, 2000). Verificamos a radicalização dessas transformações com o surgimento das ligas camponesas e dos sindicatos de trabalhadores rurais no início dos anos 60.

1.1 - Anos 60: o caminho da desmobilização

A conjuntura política pela qual passava o país quando do surgimento das ligas e sindicatos foi crucial para a construção do estilo e da estrutura do sindicalismo rural1 adotado no Brasil. A pressão exercida tanto pelo poder público (o ministério do trabalho impunha restrições às possibilidades de organização sindical) quanto pelos latifundiários (eles reprimiam aos trabalhadores rurais

e as suas tentativas de organizar-se) resultou em

dificuldades internas e externas pois governo e latifundiários constituíam uma barreira a ser transposta para que a justiça social viesse a ser algo viável. A estratégia adotada para a superação dessa barreira foi a criação das ligas camponesas que agruparam arrendatários, posseiros, parceiros e pequenos produtores rurais. As ligas começaram a crescer rapidamente. Paralelamente a elas cresciam também os sindicatos rurais compostos em sua maioria por trabalhadores rurais assalariados. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica começa a fundar sindicatos cristãos por temer a ação das ligas e de comunistas junto as organizações rurais. Durante o período que precedeu ao Golpe Militar, entre 1961 e 1964, houve a intensificação da ação dos movimentos rurais mas também a intensificação das disputas entre as diversas correntes que compunham o movimento das ligas camponesas, fator que ajudou a enfraquecê-lo. Com o golpe militar em 64 (que resultou nas duas décadas de ditadura militar), houve o quase aniquilamento do movimento agrário. No entanto, conseguiu-se garantir a 1

No Brasil a estrutura sindical comporta sindicatos de trabalhadores e sindicatos de patrões. Quando observamos a cunjugação dessa estrutura, observa-se certas curiosidades como, por exemplo, o uso do sindicato patronal pelo trabalhador rural paa ter acesso à tratamento médico e odontológico qualificado, enquanto procuram o sindicato dos trabalhadores rurais para busca auxilio do tipo jurídico para enfrentar o mesmo patrão que, através do sindicato rural, lhe propicia acesso ao tratamento médico odontológico. Não queremos nos ater a essas questões porque não é o objeto dessa pesquisa. Para um estudo mais aprofundado das questões referentes aos sindicatos rurais ver...

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continuidade entre o movimento das ligas e sindicatos que antecederam ao golpe e as atividades de resistência e reestruturação que se desenvolveram durante o regime militar. Isso se verifica através das lutas empreendidas nos anos que se seguiram ao golpe. Como sabemos através de trabalhos publicados nas mais diversas áreas sobre os anos em que o regime militar comandou o país, não bastou aos militares proibirem reuniões, vetar nomes nas composições das chapas, apreender publicações que considerassem subversivas e prender pessoas que nem sempre voltavam. Era mister para os militares controlar as atividades sindicais para evitar o surgimento de ações subversivas. Uma das estratégias de controle utilizadas pelos militares foi a de reduzir o campo de atuação dos sindicatos às atividades assistenciais. Com o intuito de incentivar afiliações ao sindicato, afastar os políticos das atividades assistenciais, combater a influência da Igreja sobre os camponeses e na tentativa de implementar atividades que combatessem a pobreza, é que o movimento sindical assentiu em assumir a responsabilidade pelas ações assistenciais como propunha o governo federal. Contudo a estratégia dos sindicatos não surtiu o efeito desejado. Não houve a mobilização esperada. Os trabalhadores rurais desconfiavam dos novos dirigentes que, após a intensificação da intervenção estatal no sindicalismo pelos militares, passaram a participar da ala conservadora da Igreja Católica. Outro fator que é relevante para a compreensão da desmobilização dos movimentos sociais rurais foi a aprovação do Estatuto da Terra. Os militares, desejando acelerar o desenvolvimento do capitalismo no campo, implementam uma política agrária que privilegiava as grandes empresas, concedendo-lhes incentivos financeiros e fiscais. Estas passam a ocupar o setor agropecuário. As bases da política agrária do regime militar foram concebidas no período que antecedeu ao golpe. Através das atividades do instituto de Pesquisas e Estudos sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), civis e militares que se opunham ao governo Goulart e as mobilizações populares, construíram um projeto de reforma agrária que acabou sendo transformado no Estatuto da Terra da era militar. O Presidente João Goulart, juntamente com o seu Partido (PTB), defendia que a reforma agrária fosse instaurada com o objetivo de aumentar a produção agrícola do país e ampliar o mercado interno. Ampliar o mercado interno nacional levaria a concretização de uma outra bandeira de seu governo: o desenvolvimento da indústria nacional. Com esse intuito o presidente Goulart formou uma aliança com a Igreja e os comunistas - a chamada Política de Frente Única - que buscava realizar mudanças profundas nas relações agrárias no

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Brasil e, ao mesmo tempo, combater as Ligas Camponesas que nesse momento assumiam uma posição mais radical - a revolução camponesa. Para garantir o sucesso dessa estratégia, Goulart buscava o apoio da burguesia - que não poucas vezes era a mesma proprietária das terras - quando defendia o aumento do seu lucro através da ampliação do mercado interno. Contudo a burguesia aliou-se não a Frente mas aos latifundiários e ao exercito opondo-se aos planos da Frente Única. Tarelho aponta que haviam três caminhos possíveis para a resolução da questão agrária brasileira nesse momento: o projeto de mudança radical defendido pelas Ligas Camponesas poderia ter sido um caso a esquerda o tivesse apoiado; a nacionalização da economia e a reforma agrária progressiva defendida pela Frente Única poderia ter sido outro caso a burguesia tivesse se incorporado á Frente. "Mas ambas as formas foram liquidadas de uma só vez pelo golpe e o caminho seguido foi o da internacionalização da economia, da concentração da terra, da militarização da questão agrária e da modernização abrupta do campo." (Tarelho, 1988:18)

1.2 - Igreja Católica: De aliada do regime à defensora do trabalhador

As tentativas de Goulart para conseguir o apoio da Igreja também não foram bem sucedidas. Alguns setores da Igreja apoiaram o golpe militar acreditando que as questões fundiárias brasileiras seriam atacadas através do Estatuto da Terra; que a implementação desse traria benefícios sócio econômicos reais aos trabalhadores rurais. No entanto suas expectativas foram logo frustradas e ela passa a compactuar com os trabalhadores. Exemplo dessa virada de posição da Igreja Católica pode ser vista em uma das figuras mais carismáticas da Igreja Católica brasileira e que na ocasião do golpe estava alinhado as forças mais conservadoras da sociedade de então: dom Paulo Evaristo Arns. Recentemente o próprio prelado católico escreveu sobre essa questão em sua autobiografia2. O cardeal Arns conta, entre outras coisas, como essa virada se deu. Durante o lançamento de seu livro, em entrevista à Folha de São Paulo do dia 14/09/2001, ele afirmou que

“No começo, eu também, estava a favor. Mas logo começaram as injustiças. Vimos que era uma grande farsa e nos separamos.(...) Quando alguém era preso eu sabia que ele ia ser torturado. Nascia alguma coisa dentro de mim que me dizia: você é obrigado a ir e você tem de falar a verdade. Então no caminho sempre pensava: não sou eu que estou em jogo, mas a vida de outras pessoas que não tinham defesa, enquanto eu tinha defesa.” (Cardeal Arns em entrevista a Folha de São Paulo: 14/09/01 p. A6) 2

ARNS, Paulo Evaristo. (2001) Da Esperança à Utopia – O testemunho de uma vida” São Paulo: Sextante.

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Dom Paulo ingressa na luta contra o regime militar em 1969 quando começa acompanhar o caso de seminaristas dominicanos que haviam sido presos por ajudarem a universitários que eram oposição a ditadura. Em 1971, na qualidade de presidente da regional sul – 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – e de arcebispo da maior diocese católica do mundo – São Paulo -, d. Paulo Evaristo Arns encontra-se com o presidente Emílio Garrastazu Médice para denunciar as práticas de tortura feitas pelo regime. No ano seguinte, ele capitaneou os trabalhos da Igreja Católica que resultaram em um importante documento sobre direitos humanos, o qual teve grande repercussão, intitulado Testemunho de Paz. Para d. Paulo os anos da ditadura quase lhe tiraram a esperança, tamanhos eram os horrores. Segundo o cardeal,

“Houve momentos em que pensava: estamos num túnel e não vemos nenhuma luz, nenhuma possibilidade de saída. No tempo de Médici, 1970, 1972, eu pensava que era um tempo de condenação do Brasil a uma escravidão nova, um tempo em que não havia comunicação permitida e não havia meios de defender a justiça. Mas também vi como acordavam os espíritos.” (Cardeal Arns em entrevista a Folha de São Paulo: 14/09/01 p. A6)

Certamente a ação do Cardeal de São Paulo foi fundamental para a reorganização das forças sociais contrárias à ditadura. Assim, tornava-se cada vez mais patente o fato de que os modelos de desenvolvimento e de propriedade defendidos pela Igreja não eram os mesmos defendido pelo Estado militar. A Igreja buscava atacar o problema através de critérios distributivos enquanto o Estado tratava o problema através da ótica da acumulação de capital. Assim se dá a aproximação da Igreja aos sindicatos e partidos oposicionistas: ambos observam, enfocam, os problemas nacionais a partir da idéia de pobre, da idéia de pobreza e não da idéia da acumulação e especulação do capital. (cf. Martins, 1986:68) Em 1980, durante a 18º Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi ratificado o compromisso formal da hierarquia católica e de todos os seus fiéis de apoiar o trabalhador rural em sua luta pela conquista de uma reforma agrária autêntica, condenado o uso da terra como exploração. Para a CNBB a terra deveria ter uma clara função social. A Igreja que já vinha tomando essa postura através da ação de certos bispos, padres e leigos engajados na questão, amplia de forma decisiva sua participação na luta por justiça social no campo.

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1.3 - O Estatuto da Terra: Legalmente consolidando a opressão

Como já dissemos anteriormente, durante os anos da ditadura o Estatuto da Terra serviu como instrumento para a desmobilização social das forças camponesas. O Estatuto da Terra propunha a implementação de um modelo de reforma agrária no país que atendia amplamente aos interesses dos grandes proprietários de terra, às empresas rurais e a todos os que tivessem interesse de criar a propriedade capitalista no meio rural. Ele apenas de modo aparente se propunha resolver a demanda por terra expressa pelos sindicatos e movimentos rurais (sendo os últimos incipientes). Mas na realidade através do Estatuto o Estado manteve centralizada a questão agrária, impedindo, assim, o acesso a terra para os trabalhadores rurais, à propriedade Familiar. Desse modo os grandes proprietários rurais e empresários do setor viram afastado o fantasma do confisco das suas terras pelos militares para fins de reforma agrária. Promover uma melhor distribuição da terra, dar função social à propriedade rural, criar o Fundo Nacional para

a Reforma Agrária, incentivar o cooperativismo, classificar os

imóveis rurais em categorias... deveriam ser alguns dos objetivos do Estatuto. Mas a bem da verdade, como dissemos, ele tinha, entre seus reais objetivos, a meta de transformar a terra em bens de negócio e estimular o desenvolvimento de empresas agrícolas de grande, médio e pequeno porte (cf. Martins, 1981). Como podemos notar, o Estatuto da Terra tinha em sua essência uma configuração capitalista e por essa razão acabou por ser um dos promotores da modernização capitalista do campo que, por sua vez, provocou o êxodo rural às grandes metrópoles. O Estatuto da Terra e o esvaziamento do campo estão intimamente ligados. O modelo agrícola implementado no Brasil através do Estatuto da Terra estava voltado ao mercado, exigindo, assim, altíssima produtividade com uma mão-de-obra menor e o uso em larga escala de insumos modernos comercializados pelas multinacionais do setor agrícola. Nesse quadro não havia espaço para a agricultura familiar, pois o custo para que as famílias pudessem se manter no campo era muito maior do que a sua capacidade de gerar a renda necessária para tanto. Esse modelo agrícola demandava investimentos que os trabalhadores rurais que praticavam a agricultura familiar, de subsistência, não eram capazes de arcar: necessitava-se de dinheiro para adquirir os insumos modernos, mais caros que os tradicionais, e de unidades produtivas maiores. Sem ter como enfrentar essa situação de injustiça e desigualdade trazida pelo progresso, muitos dos pequenos produtores abandonaram o campo e foram para as cidades e muitos dos que ficaram tornaram-se proletários rurais. Esse grande êxodo rural

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provocou um inchaço na zona urbana e o esvaziamento da zona rural, o que transformou a condição brasileira de país rural para país urbano. Segundo dados do IBGE entre 1960 e 1980 mais de 28 milhões de brasileiros abandonaram o campo, fugindo da miséria que os assombrava no campo. Contudo a reencontraram ainda mais assustadora na zona urbana. Houve uma progressiva inversão dos números populacionais no campo e na cidade.

População Residente, por situação do domicílio e por sexo - 1940-1996 Anos

Total

Homens 1940 (1) 20.614.088 1950 (1) 25.885.001 35.055.457 1960 46.331.343 1970 59.123.361 1980 72.485.122 1991 77.442.865 1996

Mulheres 20.622.227 26.059.396 35.015.000 46.807.694 59.879.345 74.340.353 79.627.298

População Urbana Homens Mulheres 6.164.473 6.715.709 8.971.163 9.811.728 15.120.390 16.182.644 25.227.825 26.857.159 39.228.040 41.208.369 53.854.256 57.136.734 59.716.389 63.360.442

Total Urbano

População Rural Homens Mulheres 12.880.182 14.449.615 13.906.518 18.782.891 16.913.838 16.247.668 31.303.034 19.935.067 18.832.356 52.084.984 21.103.518 19.950.535 80.436.409 19.895.321 18.670.976 110.990.990 18.630.866 17.203.619 123.076.831 17.726.476 16.266.856

Total Rural

Total Geral

28.356.133 33.161.506 38.767.423 41.054.053 38.566.297 35.834.485 33.993.332

41.236.315 51.944.397 70.070.457 93.139.037 119.002.706 146.825.475 157.070.163

1 . População Presente – Fonte: IBGE

O gráfico que segue demonstra a evolução do êxodo rural no Brasil em percentual populacional:

Percentual da População Residente, por situação do domicílio - 1940-1996 Anos

Total Urbano

1940 (1)

12.880.182 1950 (1) 18.782.891 31.303.034 1960 52.084.984 1970 80.436.409 1980 1991 110.990.990 1996 123.076.831

% 31.24% 36.16% 44.67% 55.92% 67.59% 75.47% 78.36%

Total Rural

Total Geral

%

28.356.133 33.161.506 38.767.423 41.054.053 38.566.297 35.834.485 33.993.332

68.76% 63.84% 55.33% 44.08% 32.41% 24.43% 21.64%

41.236.315 51.944.397 70.070.457 93.139.037 119.002.706 146.825.475 157.070.163

1 . População Presente – Fonte: IBGE

Durante os anos 70 a conjuntura econômica produz efeitos nefastos para o homem do campo e para o movimentos sociais que buscavam se reorganizar. A crise econômica se estendeu ao campo onde encontrávamos baixos níveis de renda para a maioria dos agricultores. Nesse momento é que a proposta de modernização do campo presente no

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Estatuto da Terra era implementada no país. A modernização do campo era vista como uma resposta a superação da crise do campo: aumentando a produção aumentaria a renda no campo e na cidade, aumentaria as ofertas de emprego. O Estatuto da Terra compunha o receituário mágico do governo militar. A situação econômica desfavorável (como o aumento brusco dos preços do petróleo, o surgimento do déficit público e da recessão, o aumento da dívida externa etc.) produziu um aumento das tensões sociais no meio rural no país. Nestas condições o Estatuto da Terra revelou-se um instrumento estratégico no controle de tais tensões sociais e na desmobilização dos conflitos por terra. O Estatuto vem institucionalizar as reivindicações dos movimentos sociais tornando a reforma agrária uma questão técnico-administrativa e militar. Essa estratégia visava a despolitização da questão frente a opinião pública ao mesmo tempo que, na verdade, se exercia o real controle político da questão e excluía a participação dos trabalhadores rurais das esferas decisórias de seus próprios interesses. As desapropriações de terra eram realizadas com o intuito de minimizar os conflitos agrários. Entre 1965 e 1981 temos uma média de 8 decretos de desapropriação por ano contra 70 conflitos por terra ao ano. O Estatuto da Terra trazia em seu corpo a alternativa de resolver a questão fundiária brasileira utilizando as regiões Centro-Oeste e norte para ocupações pioneiras. Essa tática resolvia tanto os conflitos no campo quanto os problemas sociais das regiões. A esse respeito é importante assinalarmos o que diz Fernandes:

“Em seu encaminhamento político, os governos militares utilizaram-se da bandeira da reforma agrária, mediante projetos de colonização, na promessa de solucionar conflitos sociais no campo, atendendo assim aos interesses do empresariado nacional e internacional. Como o objetivo era colonizar, para não reformar, o problema da terra jamais seria resolvido com os projetos de colonização na Amazônia, pois o que estava por trás desse processo era uma estratégia geopolítica de exploração total de recursos pelos grandes grupos nacionais/internacionais. Assim o envolvimento das forças armadas, do Estado autoritário garantiram aos grandes grupos econômicos a exploração da Amazônia.(...) Nesta época (1968), o governo militar beneficiou vários grandes grupos empresariais que adquiriram, nas regiões Centro-Oeste e Norte, imensas áreas de terra para projetos de colonização e projetos agropecuários. Dessa forma, os governos militares com sua política agrária praticavam mudanças no campo sem modificar o regime de propriedade da terra.” (Fernandes, 1996: 34-35)

Com a implementação dessa política agrária o regime militar agravou ainda mais a triste história nacional da distribuição da terra: a concentração de terras nas mãos de poucos que remonta à instituição das capitanias hereditárias pela coroa portuguesa agravou-se ainda mais durante a ditadura militar. Ajunte-se a isso que a repressão das lutas por terra foi brutal.

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Para os militares desmobilizar as ações coletivas e movimentos sociais agrários emergentes, provocando o seu esvaziamento político, constituía uma peça-chave para a concretização do projeto capitalista para o meio rural encampado por eles e instrumentalizado através do Estatuto da Terra. O Estado autoritário estava decidido a implementar essa política a qualquer preço. Tal decisão resultou na manutenção dos latifúndios já existentes na região Nordeste, na criação de latifúndios na região Norte e na proliferação de empresas rurais e agroindústrias tanto no Centro-Sul quanto no Nordeste do país. Em conseqüência dessa política houve a intensificação, de um lado, da concentração de terras e da expropriação dos trabalhadores rurais de outro. Essa população rural de expropriados por estar incapacitada para enfrentar à política modernizante do campo e impossibilitada de continuar a reproduzir sua agricultura familiar foram obrigados a migrar rumo a região Amazônica, ou tornam-se trabalhadores assalariados nas agroindústria e latifúndios produtores de soja, laranja ou cana, ou ainda, seguiram rumo às cidades.

1.4 – É Preciso Resistir

Observamos na década de 70 uma mudança no modelo de ação dos trabalhadores. Com o inchaço das cidades a ação sindical é caracterizada pelas greves dos trabalhadores assalariados. O ABC paulista3 passa a ser um dos grandes focos de ação sindical comandada pelos metalúrgicos e apoiados pelos setores progressistas da Igreja Católica – representados nos bispos Paulo Evaristo Arns e Helder Câmara e nos Freis Betto e Leonardo Boff, adeptos da Teologia da Libertação – que publicamente saíam em defesa dos trabalhadores e de seus líderes. Nos locais onde a economia capitalista ainda não chegara ao seu pleno desenvolvimento, centrava-se a luta contra o processo de espoliação e expropriação da terra por parte dos pequenos produtores e a defesa de seu direito de permanecer na terra por parte dos posseiros. Segundo Freitas “(...) ressurgem a partir daí movimentos que opões posseiros a grileiros, assalariados rurais a latifundiários ou empresas, pequenos proprietários a agroindústrias, trabalhadores rurais a projetos governamentais ou a empresas estatais”. (Freitas, 1994:6) 3

Região industrial no estado de São Paulo composta pelas cidades de Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema.

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A política agrária desse período só veio a beneficiar os grandes latifúndios e as empresas agrícolas. Aos pequenos agricultores restou a nefasta situação de espoliação e expropriação quase que legalizada pelo Estatuto da Terra. Transformar os pequenos lavradores em assalariados rurais era o projeto da burguesia rural. A valorização da terra ocorrida com a modernização do campo associada a alguns programas federais como o próálcool4 contribuíram decisivamente para o surgimento de uma nova situação de exclusão social e inclusão em contextos socialmente marginais. Essa privação vivida pelos agricultores espoliados e expropriados os conduziu a constituir movimentos sociais que buscavam recuperar a terra perdida. As lutas no campo adotam várias formas de enfrentamento da questão e ocorrem por diversas motivos que são compreendidos em seus respectivos contextos sócio-históricos. Cada um dos movimentos sociais agrários adotou uma bandeira de luta. As ligas camponesas da década de 50 defendiam a bandeira “Reforma Agrária na Lei ou na Marra”; a Comissão Pastoral da Terra adotou o mote “Terra de Deus, Terra para Todos” e com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – no final da década de 70 e início da de 80, teremos com bandeira o mote “Terra não se ganha, se conquista”. Para o MST o retorno do homem rural ao campo é o caminho para a transformação social.

2 - O MST NO BRASIL “É preciso Construir outro modelo agrícola, voltado para a pessoa não para o lucro. Que garanta comida na mesa de todos. , ” (João Pedro Stedile, entrevista concedida à revista Caros Amigos n.º 39, junho de 2000)

Não podemos entender a questão agrária no país e nem a própria atividade do MST sem que observemos duas importantes dimensões dos conflitos no campo. A primeira dimensão é a agrícola. Nela localizam-se os conflitos originados pela disputa do crédito agrícola, pela comercialização da produção agrícola, pela garantia de infra-estrutura (saneamento, educação, saúde etc.) no campo. A segunda dimensão dos conflitos no campo 4

Programa federal de subsídio para desenvolvimento e ampliação do uso do álcool-combustível brasileiro pela indústria automobilística nacional. Como o álcool deriva da cana-de-açúcar, esse programa alterou em muito as

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diz respeito a luta pela terra propriamente dita. A essa dimensão estão ligadas questões como a luta contra a concentração de terras nas mãos de poucos e que nem sempre fazem a terra produtiva, a luta contra a espoliação e expropriação da terra sofrida pelos pequenos agricultores. Essa divisão é apenas didática, pois que essas dimensões só podem ser compreendidas quando articuladas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra atua em ambas as dimensões do conflito agrário. De nada adianta conquistar a terra se não houver os meios para torná-la produtiva. A conquista da terra se encontra ancorada no sucesso da produção. Algo de que não podemos nos esquecer é o fato de que ao utilização da terra agricultável no Brasil é expressivamente pequeno. Petras e Weltmeyer afirmam no livro Brasil de Cardoso: A desapropriação do país que “(...) calcula-se que menos de 20% da terra cultivável é plantada, deixando 80% para funções não produtivas” (Petras e Weltmeyer, 2001:124). Esses autores defendem a posição de que as razões que levam ao uso inadequado e ineficiente da terra no Brasil centra-se sobretudo “(...) no padrão de posse da terra” (p. 124) Segundo eles os números que corroboram revelam que “(...) 9% dos proprietários de terra possuem cerca de 78% da terra enquanto, no outro extremo, 53% da população rural tem pouca ou nenhuma terra (menos de 3%)” (p. 124). Como veremos nas páginas que seguem, o modelo agroexportador adotado durante os governos militares e civis nos últimos 37 anos é um dos grandes vilões do empobrecimento do campo e do elevado números de agricultores vivendo nos cinturões das regiões urbanas. Petras e Weltmeyer afirmam que esta política agrária resulta em “(...) enclaves de crescimento dinâmico de exportações e um mar de pequenos e médios fazendeiros decadentes e trabalhadores rurais sem terra desenraizados num mercado externo estagnado” (Petras e Weltmeyer, 2001:126). Assim, podemos dizer que essa sucessão de governos militares e civis, que culmina em nossos dias no Governo de Fernando Henrique Cardoso, empobreceu a zona rural5 brasileira e “(...) descapitalizou a economia agrícola, particularmente o setor ligado aos pequenos produtores que produziam para o mercado local” (Petras e Weltmeyer, 2001:122). relações sociais nas regiões produtoras de álcool, pois fortaleceu os donos de grandes capitais e fragilizou, e porque não dizer, inviabilizou a economia familiar existente nessas áreas. 5 Segundo Petras e Weltmeyer (2001) “Nos primeiros dois anos do governo de Fernando Henrique, entre 1995 e 1997, a população economicamente ativa do setor agrícola diminuiu em 500.000 proprietários rurais e trabalhadores agrícolas além dos 1,1 milhão de trabalhadores rurais que fugiram do campo entre 1990 e 1994. Estimativas recentes afirmam que entre os pequenos agricultores, 400.000 famílias foram obrigadas a abandonara zona rural durante os primeiros cinco anos do governo Cardoso”. (p. 122-23)

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Desta forma pensamos e estamos de acordo com aqueles pesquisadores que a realização da reforma agrária no Brasil além de necessária se faz urgente. A reforma agrária é um caminho possível para superarmos as gritantes diferenças sociais que dividem nosso povo; “(...) para trazer a agricultura de volta ao seu ciclo produtivo” (Petras e Weltmeyer, 2001:126).

2.1 - Conflitos Agrários: Uma luta entre o poder e a sobrevivência

Como já assinalamos anteriormente, os inimigos dos movimentos sociais (o Estado e as classes envolvidas direta ou indiretamente nas lutas contra a privação empreendidas pelos movimentos) buscam de todas as formas torná-los ilegítimos e assim desmobilizar qualquer forma de ação coletiva que afetem seus interesses. Utiliza-se de instrumentos que vão desde a persuasão até a repressão que não poucas vezes culmina na morte de lideranças do movimento ou de simpatizantes. É o caso dos agentes de pastoral, advogados, religiosos, sindicalistas, etc. assassinados em função de sua atuação nos conflitos de terra no Brasil. Quando estudamos as estatísticas referentes às lutas no campo, verificamos que é no final da década de 70 e início da de 80 que se dá a sua expansão. Em 1984 foram registrados 483 conflitos agrários, os quais reuniram 332 mil pessoas. No ano seguinte registrou-se 42 ocupações espalhadas pelo pais, reunindo 11.500 famílias sem terra. Em todas as manifestações registrou-se violência e morte6. É importante lembrar que os fazendeiros a fim de defender ‘suas’ terras formaram milícias armadas para guardarem as propriedades. Maria Celma Borges (1996) observa que tal situação corresponde a um “(...) Estado de defesa dentro do Estado” (p. 89). Para esta autora os ‘donos da lei’ institucionalizam a ação dos jagunços que agora atendem por seguranças e tem por função a guarda a qualquer preço da propriedade privada. Borges escreve que “(...) o antigo jagunço passava a ser conhecido como segurança da propriedade. Institucionalizava-se o seu papel, dando legitimidade e legalidade à violência" (Borges, 1996:89) A violência no campo tem sido um forte elemento motivador para se levar adiante o movimento. Podemos observar com mais clareza essa questão através do quadro comparativo elaborado pela CPT e MST que engloba dados de 1980 a 2000: 6

Segundo Fernandes “durante o regime militar foram assassinados 1.106 trabalhadores rurais, numa luta sangrenta contra a expropriação, a grilagem de terras, contra os despejos violentos, o trabalho escravo, a queimada das casas e das lavouras, a super-exploração dos trabalhadores assalariados e sem direitos, etc. Estes são fatos reais dessa política de desenvolvimento que quis levar o progresso ao campo (numa concepção

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Assassinatos no Campo - 1980 a 2000* UF AC AL AM AP BA CE ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RS SC SE SP TO Brasil

80 81 02 01 02 03 01 06 11 01 05 09 02 00 02 16 00 01

07 02 01 01 04 14 02 05

01 01 04 07 01 02 01

82

83 84 85 86 87 88 01 01 01 02 06 07 01 08 07 06 03 01

09 02 01 03 12 00 00 02 19 00 03

21 18 01 02 02 07 10 09 18 02 11 05 05 06 18 28 02 03 04 08 01 01 01 01 02 01 01 01 01 01 02 01 01 01

01 06

01

53 69

57

02

11 04 10 24 27 01 09 57 00 06 03 02

03

01 02

18 05 02 11 09 21 03 20 31 01 07 00 01 01 01 07 01 03 06

26 10 15 22 07 05 18 45 03 12 01 05 04 05 19 02 01 01 02

89

90 91 92 02 01 01 02 01 01

18 09 11 08 06 02 01 02 04 01 01 02 02 01 01 07 07 09 06 05 02 03 02 02 04 11 10 01 23 12 20 16 04 02 01 01 03 01 02 01 01 01 07 02 04 01 06 00 01 02 01 02 02 01 07 01 01 01 01

81 124 171 150 216 89

01

07 04 02 01 13 04 04 02 03 01 01 01

93 94 95 96

97

98

01 02 01 04 05 01 01 02 04 03 02 03 01 01 01 02 05 04 03 03 01 04 05 02 01 04 04 04 03 02 01 14 04 14 33 09 10 00 00 01 01 06 01 04 03 01 04 01 03 06 03 01 01 01 01

03

01

99 2000 03 01

1 1

1 01 2 1 8 2 01 2 2 2 5

2 2 1

01

02 01 70

78

2 01 01 05 02 51 50 45 29 34 49

02 02 26 38

1 26

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TOTAL 28 34 12 06 183 36 14 77 162 94 23 112 406 25 75 10 47 39 13 44 15 14 05 24 19 1520

Fonte: CPT e MST - Dados atualizados até 29/11/2000 – http://www.mst.org.br/biblioteca/assassinato/ass89-99.html

Em recente trabalho publicado no Brasil, Petras e Weltmeyer (2001) afirmam que a escalada da violência no campo foi resultado da aliança que os latifundiários estabeleceram com políticos e autoridades em nível local, estadual e federal. Os autores atribuem a escalada da violência a esta aliança que é encabeçada pela União Democrática Ruralista – UDR7 –, entidade representativa dos latifundiários, e por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), presidente da República Federativa do Brasil entre os anos de 1994 e 2002. Ações repressivas e jurídicas foram a estratégia adotada por essa aliança para tentar barrar o crescimento dos movimentos sociais agrários, sobretudo do MST, diminuir o apoio popular e desmobilizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Para Petras e Weltmeyer, o ícone dessa escalada da violência foi o massacre sofrido pelos sem terra em Eldorado do Carajás no estado do Pará por mando do governador Almir Gabriel (PSDB). Segundo esses autores:

burguesa do termo), que, ao fortalecer uma única forma de relação social, pela violência da cassação dos direitos, promoveu a miséria resultante da expropriação e exploração.” (Fernandes, 1996:54) 7 Para a melhor compreensão do papel da UDR na estrutura fundiária brasileira, sugerimos a leitura do livro A Questão Agrária Hoje, organizado por João Pedro Stédile (1994).

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“(...) a nível local e estadual os aliados de Cardoso entre os governadores, os funcionários locais e os latifundiários organizaram uma violenta repressão e processos judiciais para destruir a crescente atração do MST. Os latifundiários organizaram-se na UDR – União Democrática Ruralista – e, através de sua influência emtre os governadores e funcionários locais, lançaram uma violenta contra-ofensiva direitista, com o apoio político e propagandístico do governo de Fernando Henrique. Isto culminou, em abril de 1996, no infame massacre de Eldorado de Carajás, estado do Pará, onde 19 trabalhadores sem terra foram massacrados pela Polícia Militar, a quem o governador do estado mandou para reprimir o protesto pacífico dos trabalhadores sem terra. Ao todo, mais de 163 foram assassinados nos primeiros quatro anos no governo de Cardoso. (...) O massacre de Eldorado do Carajás pretendia intimidar o movimento. Mas teve o efeito contrário. A opinião pública passou a ser predominantemente a favor do MST que respondeu lançando uma nova onda de ocupações pelo país todo.” (Petras e Weltemeyer, 2001:146)

O apoio popular registrado por Petras e Weltemeyer ajudou na expansão das ações coletivas organizadas pelo MST. Nesse sentido as informações obtidas junto ao Banco de Dados da Luta pela terra - DATA LUTA - mostram que o número de ocupações organizadas e famílias engajadas no MST vem crescendo. Esse crescimento pode ser observado nos dois gráficos que seguem. No primeiro, temos o cômputo das famílias que participaram de ocupações de 1990 até 1995. O segundo no dá uma visão mais detalhada da situação das famílias do MST no quadro geral do país entre os anos de 1996 a 1999. Vejamos:

Ocupações e número de famílias do MST entre os anos 1990-1995

Período 1990 1991 1992 1993 1994 1995

Nº famílias 11.484 9.862 18.885 17.587 16.860 31.531

Fonte: MST - Atualizado: maio/99

Número de Ocupações e número de Famílias * Participação do MST entre 1996-1999 Ano

Total de ocupações

Total de famílias

Ocupações MST

%

Famílias MST

%

1996

398

63.080

176

44

45.218

72

1997

463

58.266

173

38

28.358

54

1998

399

76.482

132

22

30.409

40

1999

249*

29.223*

149**

60

24.519**

83

Total

1.709

227.051

630

37

128.504

57

Fonte: Data Luta; Base de dados: CPT/MST/INCRA

Obs.: * até abril ** até maio

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Observe-se que os anos de 1995 e 1996 são os anos em que se há o maior número de famílias ligadas ao MST, respectivamente 31.531 e 45.218 famílias. Esses anos são os anos da eclosão do movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra no Pontal do Paranapanema, Estado de São Paulo. 1995 e 1996 são anos importantes porque marcados por uma mudança na política de ocupação de terras do MST que passa a ser massiva. Já entre os anos de 1996 a 1999 observamos que 57% das famílias mobilizadas estavam vinculadas ao MST. Entendemos que esses dados demonstram a força do movimento e a grau de aceitação de suas proposições e estratégias por parte daqueles que estão vivendo à margem da economia agrária, excluídos de uma vida digna no campo. Note-se também que em 1999 das famílias mobilizadas pelos diversos movimentos sociais agrários 83% estão vinculadas ao MST. Assim, no final da era FHC, o MST consolida-se como uma frente respeitável de oposição à política neoliberal promovida nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Quando analisamos o panorama nacional das ocupações promovidas pelo MST em 1999 os Estados com o maior número de ocupações são os Estados de Pernambuco com 40 ocupações , do Paraná com 35 ocupações, de Alagoas com 17 ocupações e da Paraíba com 11 ocupações. Já os recordistas em número de famílias mobilizadas são os Estados de Pernambuco com 5. 023 famílias, de Alagoas com 3.254 famílias, do Mato Grosso do Sul com 3.205 famílias (O Estado do Mato Grosso do Sul distribuiu as suas 3.205 famílias em apenas 5 ocupações) e do Paraná com 2.472 famílias.

Importa notar que não foram

encontrados dados referentes aos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Distrito Federal, Roraima e Rio Grande do Sul para o ano de 1999. Vejamos os números da tabela oferecida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST:

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Dados das ocupações de 1999 . Estado Ocupações Famílias Alagoas 17 3.254 Bahia 03 180 Ceará 03 370 Espírito Santo 02 220 Goiás 02 420 Maranhão 03 412 Minas Gerais 04 528 Mato Grosso do Sul 05 3.205 Mato Grosso 01 700 Pará 05 2.300 Pernambuco 40 5.023 Paraíba 11 1367 Piauí 01 70 Paraná 35 2.472 Rio de Janeiro 03 360 Rio Grande do Norte 02 270 Rondônia 01 150 Sergipe 11 1.358 Santa Catarina 01 500 São Paulo 03 1.756 Tocantins 07 720 TOTAL 160 25.635 Fonte: MST - Atualizado em 10/10/99

Mas são os dados referentes aos acampamentos que dizem da capacidade mobilizadora do MST. O número de famílias acampadas entre 1990 e 2001 aumenta a cada ano e retrata a enorme dimensão da força mobilizadora do MST. O movimento em doze anos reuniu em acampamentos 517.121 famílias, isto é, reuniu mais que o número das famílias que foram forçadas a abandonar o campo durante a era FHC. Só durante os três primeiros anos do segundo mandato do presidente Cardoso, foram mais de 220.377 famílias distribuídas em mais de 1.329 acampamentos no Brasil, visto que os dados de 1999 e 2001 são parciais. No primeiro mandato de FFHH foram 189.431 famílias distribuídas em 1.020 acampamentos existentes no Brasil. Durante o governo Collor (1990-92) o MST mobilizou em todo o país 22.008 famílias distribuídas em 197 acampamentos e no governo Itamar Franco (1992-93) 60.705 famílias espalhadas em 363 acampamentos. Enquanto que no período referente aos governos Collor/Itamar o MST organizou 560 acampamentos o que perfazia um total de 82.713 famílias mobilizadas, na era FFHH (1994-2001) já foram 409.768 as famílias que se organizaram em 2349 acampamentos pelo Brasil a fora. Em porcentagem, o crescimento das

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ações patrocinadas pelo MST entre 1990 e 2001, do governos Collor/Itamar para o governo FHC, foi de 419 % para o número de acampamento e de 495 % para o número de famílias acampadas. Vejamos a tabela que contém esses dados: Acampamentos e número de famílias mobilizadas Período

Total acampamento

2001 até agosto 2000 1999 até outubro 1998 1997 1996 1995 1994 1993 1992 1991 1990 TOTAL

585 555 489 388 281 250 101 125 214 149 78 119 3.334

Total de famílias

75.730 73.066 71.581 62.864 52.276 42.682 31.619 24.590 40.109 20.596 9.203 12.805 517.121

Fonte: MST - Atualizado: 26/10/99

Podemos observar melhor o retrato do movimento dos sem terra no Brasil através dos números de cada uma das unidades da federação. Nesse quadro, os Estados com maior número de mobilizações são em 2000 os Estados de Pernambuco com 203 acampamentos e 28.024 famílias acampadas, Bahia com 59 acampamentos e 6.886 famílias acampadas, Alagoas com 52 acampamentos e 8.687 famílias acampadas, Paraná com 42 acampamentos e 5.578 famílias acampadas e Sergipe com 42 acampamentos e 3.790 famílias acampadas. O Estado de São Paulo vem logo atrás com 14 acampamentos e 3.225 famílias acampadas. Já 2001, durante os seus oito primeiros meses, os números mostram os estados de Pernambuco com 202 acampamentos e 27.050 famílias acampadas, da Bahia com 71 acampamentos e 7.100 famílias acampadas, Paraná com 51 acampamentos e 5.134 famílias acampadas, Alagoas com 48 acampamentos e 9.049 famílias acampadas, Sergipe com 48 acampamentos e 4..660 famílias acampadas. Novamente São Paulo aparece com 23 acampamentos e 2.461 famílias acampadas. Em ambos os anos o estado de São Paulo aparece na Sexta colocação no rankimg dos estados com maior número de acampamentos. Somente no primeiro semestre de 2001 o Estado já havia apresentado um crescimento de 61% no que se refere ao número de acampamentos. Ele passara de 14 (2000) para 23 (2001/1) dos quais até o mês de abril 10 estavam localizados na região do Pontal do Paranapanema. Para melhor observarmos esse quadro, trazemos os dados referentes aos anos de 2000 e 2001:

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Dados dos Acampamentos – 2000 Estado

Acampamentos e Famílias do MST em 2000 e 2001 Acampamentos em 2000 Famílias Acampamentos em 2001* Famílias 8.687 AL 52 48 9.049 6.886 BA 59 71 7.100 210 CE 4 6 700 515 DF 4 6 722 690 ES 5 5 700 1.030 GO 4 7 2.365 1.182 MA 14 13 2.225 860 MG 8 10 920 2.887 MS 14 16 2.592 1.410 MT 5 50 1.970 826 PA 4 7 1.657 28.024 PE 203 202 27.050 1.360 PB 13 5 302 495 PI 4 7 780 5.578 PR 42 51 5.134 1.960 TO 5 4 2.475 860 RJ 6 7 914 1.303 RN 19 8 914 2.119 RS 11 15 3.542 1.220 RO 8 8 781 3.790 SE 42 48 4660 949 SC 15 15 949 3.225 SP 14 23 2.461 76.066 587 TOTAL 555 79.962 Fonte: MST Levantamento Parcial, até 30/12/2000

* Fonte: MST - Dados atualizados em 30/8/2001

Ainda convém registrar que quando observamos os dados referentes a agricultura brasileira entre os anos de 1990 e 1994 verificamos que cerca de 400.000 pequeno agricultores faliram. Segundo Petras e Wltmeyer (2001) esses trabalhadores “(...) foram expulsos da terra ou foram convertidos em trabalhadores sem terra ou empregados de grandes empresas agroindustriais exportadoras, que era a peça central da assim chamada ‘estratégia de exportação e modernização agrícola’ de Cardoso”. (Petras e Weltmeyer, 2001:147)

2.2 - Igreja e Sindicalismo como Atores na Retomada dos Movimentos Sociais Rurais

Outro fator que se mostrou importante na retomada das ações coletivas no meio rural foi o apoio da chamada Igreja Progressista através das Comunidades Eclesiais de Base –

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CEB’s8 -, da Comissão Pastoral da Terra – CPT9 -, da Pastoral da Juventude – PJ - , entre outros setores e dos sindicatos rurais melhor estruturados e mais combativos. Apesar de a atuação da Igreja e do sindicalismo para estruturação de ações coletivas no campo e de um movimento social em si tenha sido crucial(e ainda ser importante), ela não ocorreu de modo harmonioso. Eram claras as divergências políticas entre ambos. Política sindical e ação pastoral com tendências opostas muitas vezes fizeram com que o Movimento seguisse caminhos opostos e acabasse por se fragilizar. Através das pesquisas de Fernandes e Souza, confirmamos alguns aspectos relevantes a respeito da gênese do MST aqui já registrados. Os autores nos ajudam a perceber que o MST não surge a partir de um momento específico da história nacional. O MST é o resultado de todo um processo sócio-histórico-político-cultural e econômico vividos no país pelos movimentos sociais agrários. O MST nasce na confluência de posturas políticas que nem sempre podem ser associadas. É entre a Igreja e o Sindicalismo que surge o MST como um movimento social autônomo. Ora o MST se coloca em oposição a Igreja que o ajudou a se constituir, ora em oposição ao sindicalismo que, tanto quanto a Igreja, foi importante para sua existência. Como nos mostra Fernandes “O Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nasce em um processo de enfrentamento e resistência contra a política de desenvolvimento agropecuário instauradas durante o regime militar. Esse processo é entendido no seu caráter mais geral, na luta contra a expropriação e contra a exploração do desenvolvimento do capitalismo. (...) Nesse momento de ruptura e desafios às instituições convencionais, os trabalhadores rurais construíram uma nova forma de organização social. As lutas populares que se desenvolveram nesse período contribuíram muito nas mudanças das estruturas tradicionais das organizações políticas, especialmente da Igreja Católica, do novo sindicalismo representado pela CUT e na construção do Partido dos Trabalhadores (PT). Estas instituições foram, no decorrer do tempo, as principais matrizes políticoculturais do movimento de trabalhadores rurais que emergia”. (Fernandes, 1996: 67)

Contudo, a Igreja será uma matriz preponderante na formação e constituição das 8

As CEB's surgiram no começo da década de 60 na Arquidiocese de Natal – RN – e na diocese Volta Redonda –- RJ. Elas constituíram-se no período ditatorial em verdadeiros espaços de reflexão e conscientização política. Nelas se erigiu estratégias de ação tanto para os trabalhadores rurais quanto para os urbanos. Podemos dizer que é nas CEB's que se constituirá o espaço social e político de enfrentamento das políticas agrária e desenvolvimentista do governo militar. Das Comunidades Eclesiais de Base sairão inúmeras das lideranças que comporão mais tarde o MST; o que faz das CEB’s verdadeiras escolas de política agindo na ilegalidade nesse período. Essa atividade das lideranças católicas renderam-lhes investidas ferozes por parte do Estado autoritário. 9 A CPT foi criada pela CNBB em 1975. Ela trabalhava juntamente com as paróquias da periferia urbana e da zona rural com o intuito inicial de refletir a realidade do campo brasileiro. Ela contribuiu para a organização e na luta dos trabalhadores rurais sem-terra. É importante registrar que os primeiros encontros de trabalhadores rurais sem-terra como os de Medianeira - PR (jul/1982) e Goiânia (set/ 1982) foram patrocinados pela CPT. Também o I Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra realizado em janeiro de 1984 teve a importante contribuição da Comissão Pastoral da Terra.

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lideranças do MST bem como na maneira de o movimento construir suas linhas de ação. Em certos casos, porém se dá também a vinculação do MST a certos sindicatos ditos combativos. Mas, segundo Freitas, “(...) o surgimento do MST é apontado como o reflexo da oposição e antagonismo ao movimento sindical e ao papel ambíguo da CONTAG10”. (Freitas, 1994:11)

2.3 - MST: Uma história de lutas

Vários são os movimentos sociais que vão sendo concebidos nos anos setenta e que tomam corpo no final dessa década. Nesse contexto os anos de 1978 e 1979 tem uma importância particular porque trazem novidades aos cenário político de então. Em 1978 a novidade

“(...) foi primeiramente enunciada sob a forma de imagens, narrativas e análises referindo-se a grupos populares os mais diversos que irrompiam na cena pública reivindicando os seus direitos, a começar pelo primeiro, pelo direito de reivindicar direitos. O impacto dos movimentos Sociais em 1978 levou a uma revalorização de práticas sociais presentes no cotidiano popular, ofuscadas pelas modalidades dominantes de sua apresentação”. (Sader, 1988: 26-27)

Sader aponta para o desenvolvimento de uma nova consciência política por parte daqueles que se comprometeram com o movimento popular no fim dos anos 70. Isso possibilitou que o MST se constituísse num desses movimentos emergentes no cenário nacional da década de 70; que ele também fosse um daqueles que no ano de 78 reivindicavam o direito de reivindicar. E foi a partir das ações de resistência e das ocupações de terra iniciadas no sul do país decorrentes da política de modernização do campo, da exclusão gerada por esta e, sobretudo, graças ao desenvolvimento de uma consciência política cada vez mais complexa que o MST foi gestado. Nas palavras de Souza

“O Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra surge em fins da década de 70, tendo sua organização sido concretizada na região sul do país, onde o fator modernidade agrícola estava expropriando muitos trabalhadores rurais. É a partir de meados da década de 80 e início de 90 que o MST começa se espacializar em nível de Brasil, organizando ocupações de terra em 19 estados. (...) A origem do MST está ligada ao modelo de modernização da agricultura e concentração fundiária, principalmente. Atrelado a isso, vem a resistência dos trabalhadores rurais que são excluídos do processo produtivo, por conta dessas transformações no campo”. (Souza, 1994:81)

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CONTAG: Confederação dos Trabalhadores na Agricultura.

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Ainda em 1978 acontece a organização dos chamados colonos de Nonoai. Os colonos de Nonoai eram cerca de 1.000 que desde 1968 vinham arrendando terras da reserva dos índios Kaigang por intermédio da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) no município gaúcho de Nonoai. Como os índios exigissem a devolução das terras e por esse motivo estivessem havendo conflitos entre índios e colonos, as famílias de Colonos de Nonoai começam a se retirar da localidade. Parte das famílias que saíram da reserva dos Kaigang, cerca de 700 famílias, permaneceram acampadas nos municípios de Ronda Alta e Sarandi no Rio Grande do Sul. Destas, 550 foram transferidas para o Mato Grosso para integrarem um projeto de colonização da cooperativa Canarana. Mais 128 famílias foram assentadas em Bagé - região noroeste do Rio grande do Sul. Aqueles trabalhadores que permaneceram na região de Ronda Alta e Sarandi começaram a organizarem-se com o auxílio da Igreja Católica11 e de outras entidades, lançando, assim as bases do futuro MST. Em junho de 1978 cerca de 200 famílias tentam ocupar a fazenda Sarandi mas fracassam em função da desorganização interna. Mas é especialmente no ano de 1979 que encontramos as lutas marcantes para a compreensão histórica do MST. Catorze meses depois do fracasso da tentativa de ocupação da fazenda Sarandi, cerca de 110 famílias ocuparam a Gleba Macali (7 de setembro) e outras 70 a Gleba Brilhante (25 de setembro) em Ronda Alta - RS. Essas ocupações constituem como que o referencial histórico das origens do MST. Outras lutas que se seguiram as ocorridas no estado do Rio Grande do Sul e que também foram importantes para a concretização do MST foram, em 1980, a ocupação da fazenda Burro Branco no município de Campo Êre em Santa Catarina; o conflito entre mais de 10.000 famílias e o estado do Paraná por ocasião da desapropriação de suas terras em função da construção da barragem de Itaipú. O estado se propôs apenas a indenizar as famílias que tiveram suas terra inundadas e não a recolocá-las em outras. Em São Paulo marcante foi a luta dos posseiros da fazenda Primavera nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência; no Mato Grosso do Sul milhares de trabalhadores rurais arrendatários lutavam pelo direito de permanecer na terra nos municípios de Naviraí, e Glória de Dourados. (cf. MST, 1986:42-43) Em 1984, porém, é que durante o I Encontro Nacional dos Sem-Terra realizados em Cascavel – PR se deu a fundação oficial do MST. Quando observamos a realidade agrária brasileira antes do surgimento do MST e depois da sua fundação, notamos que o movimento constitui um divisor de águas na história 11

O apoio da Igreja Católica se deu através do clero e dos leigos engajados nas CEB's e demais pastorais da diocese de Passo Fundo -RS - do qual os municípios supracitados fazem parte.

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da luta pela terra, por uma reforma agrária real, pela democracia e pelo resgate da cidadania entre os agricultores. O MST traz em sua base trabalhadores rurais, filhos de colonos, parceiros e arrendatários, agregados e assalariados temporários, os que foram expulsos de suas terras para a construção de barragens etc. É na dolorosa expressão das privações comuns por eles vividas e que os identifica e une, que encontramos o significado político. Expressam suas dores a uma sociedade que fecha os olhos a sua existência; expressam e exigem uma resposta de um Estado as suas necessidades, ao seu desejo de integração a sociedade que finge que não os vê, a sua luta por um pedaço de terra e por um lugar ao sol. Como escreveu Gryzbowski a esse respeito,

“O sentido político da luta dos sem terra não decorre das relações mais imediatas que eles mantém, mas está no fato de porem a nú a sua comum situação de excluídos, devido a estrutura agrária vigente, e de exigirem do Estado medidas que lhes garantam o acesso a propriedade da terra e a sua integração econômica e social como pequenos proprietários” (Gryzbowski, 1987)

O movimento dos chamados "sem terra" traz consigo novas formas de luta, como as ocupações de terra e a reunião e organização de famílias de trabalhadores rurais em acampamentos, em propriedades rurais, à beira de estradas ou em praças públicas e na ocupação de edifícios públicos. Essas novas formas de luta funcionam como instrumentos de pressão e enfrentamento dos problemas concernentes ao campo, para conquistar a terra de que são e estão privados. Tais reivindicações também estão expressas nas inúmeras bandeiras forjadas nesse processo de luta. Mais recentemente o MST tem usado como bandeira as palavras “Ocupar, Resistir e Produzir” ao invés das tradicionais palavras “Terra não se ganha, terra se conquista” que marcaram o início do movimento. Segundo João Pedro Stedile, líder nacional do MST, “(...) as ocupações devem servir para corrigir a injustiça presente e para mudar a legislação vigente (...) ocupar é um direito de legítima defesa de quem já foi ultrajado e expropriado de seus direitos fundamentais. Pois a terra e os bens da terra destinam-se a todos os homens, e não a apenas a alguns privilegiados”. (Gorgen e Stedile, 1991:47) A exploração do capital se dá socialmente e é nessa relação social que se constrói as relações de exploração, expropriação e de exclusão/inclusão social. Face a essa injusta realidade é que os trabalhadores rurais têm-se organizado e buscado formas de resistência via o engendramento de ações coletivas frente ao Estado, aos latifundiários e empresas rurais que formam a face do capitalismo no campo. Essa luta é a própria história do homem do campo. E ela não é apenas uma luta por um quinhão de terra. É a luta contra o privilégio que um único

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tipo de propriedade tem nesse modelo de desenvolvimento econômico preconizado pelo neoliberalismo. As tentativas de desmobilização dos movimentos sociais agrários por parte do Estado e de seus aliados tem sua explicação para além da tese do boicote à reforma agrária. Essa atitude se explica quando entendemos a terra como um instrumento de mediação política capaz de alterar o pacto de sustentação do Estado. Por isso as ações fulminantes do Estado contra o movimento dos sem terra através da mídia, de boicotes a negociação com seus lideres, etc. Tornar os movimentos sociais ilegítimos perante a opinião pública é uma das estratégias que o Estado e as oligarquias utilizam para garantir a manutenção de seu poder.

2.4 - MST: Princípios e proposta

Analisando os objetivos gerais do MST elaborados durante o I Encontro Nacional (1984) encontramos os subsídios ideológicos da manutenção da luta, o motor que impulsiona a caminhada de cada sujeito que nele se engaja. Eis alguns desses objetivos: 1)que a terra só esteja nas mãos de quem trabalha; 2)lutar por uma sociedade sem exploradores e explorados; 3)organizar os trabalhadores rurais na base; 4)dedicar-se à formação de lideranças e construir uma direção política dos trabalhadores. Tais objetivos representam as lutas históricas dos agricultores sem terra e apresentam as novas características dessa nova luta. E vale recordar que nesses anos de luta constante, elas se dimensionaram para a conquista das condições básicas de desenvolvimento social e econômico: educação, política agrícola, saúde; combatendo sempre a má vontade de governos não implicados com a justiça social no campo e prisioneiros de grupos que lhes garantem sua manutenção no poder. Os escritos do movimento e os discursos de seus lideres apontam para a real condição do MST: um movimento que não está lutando apenas para que os excluídos, expropriados etc. tenham acesso a terra. Sua proposta vai bem mais além do que garantir o simples acesso à terra. É “(...) seu objetivo principal atingir através de suas lutas, uma ampla reforma nas relações sociais de produção. Estando esta reforma diretamente vinculada a estratégia fundamental do MST, a implantação na terra conquistada de um sistema cooperativista de produção”. (Freitas, 1994:12) A cooperação agrícola é a estratégia adotada pelo MST para aprimorar a produção e o

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desenvolvimento social dos agricultores. Adotou-se esta estratégia porque melhorando a qualidade e as escalas produtivas que se alcançava nas terras conquistadas, industrializando os produtos nos assentamentos lhes permitiria comercializá-los a preços menores e mais competitivos e ao mesmo tempo combater a propaganda disseminada pelos que resistiam, agora organizadamente, à reforma agrária e que anunciavam a incapacidade de os sem terra lidarem efetivamente com a terra; que propagavam na sociedade a idéia de que os assentamentos seriam a versão rural das favelas da zona urbana. Está claro para o MST que se não houver a modernização das relações sociais e produtivas nos assentamentos eles não resistirão ao capitalismo rural e o movimento será desmobilizado já que não conseguiu fazer das terras arrecadadas ou desapropriadas para a reforma agrária terras produtivas. A cooperação entre os pequenos produtores ou assentados além de ser sinônimo de desenvolvimento econômico e social da comunidade e instrumento de resistência e enfrentamento à exploração dos grandes proprietários e empresas rurais, contém as bases para o desenvolvimento de formas superiores de produção socialista. Portanto, as associações, cooperativas de pequenos agricultores e assentados não se baseiam em trabalho assalariado e na espera da intervenção do Estado na gestão empresarial. Elas além de objetivos econômicos trazem objetivos sociais e políticos de longo prazo visando fortalecerem suas lutas através da conscientização dos trabalhadores rurais. Quer-se com isso obter a transformação da sociedade e a obtenção do controle absoluto dos meios produtivos. A proposta (política) de organização agrícola dos assentamentos é fruto do amadurecimento político e doutrinário do movimento e de cada grupo particular de agricultores. Contudo há um déficit entre a proposta do movimento e a ação dos agricultores assentados. A proposta de trabalho coletivo (e até mesmo de propriedade coletiva) não está internalizada pela base do movimento na mesma medida que está pela liderança. Por isso os assentados comuns ao receberem a terra a pensam de modo particular, tendo presente a experiência passada onde a terra era cultivada apenas pelos membros da família. Assim, a memória passada os impele a querer trabalhar a terra de maneira artesanal e individualizada. Parece-me que está posto um confronto, senão uma contradição, entre a experiência passada atualizada pela memória e o projeto político daqueles que orientam o Movimento. Pesquisas como as de Amado (1990) e de Freitas (1994) apontam claramente para essa questão. Para Freitas a comum situação de expropriados e marginalizados exercem um duplo papel sobre os assentados. As experiências individuais os aglutina e garante a sua coesão enquanto grupo na mesma medida em que se tornam fator dispersivo. Isso porque após terem

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vivido experiências em que o individualismo impera, resta-lhes uma representação da terra como sendo um instrumento particular de trabalho(cf. Freitas, 1994: 15). Trabalhar essa contradição parece-me um dos maiores desafios que o movimento tem pela frente. Sem a aproximação do pensamento da liderança ao pensamento da base, dificilmente se logrará sucesso nas ações que o movimento buscar implementar após o assentamento legal.

3 - O MST EM SÃO PAULO

“Pela não realização da reforma agrária, a ocupação tem se tornado uma importante forma de acesso à terra.” (Bernardo Mançano Fernandes, 2000:281)

Como vimos a modernização do campo era um objetivo claro para os governos militares. Com o avanço da industrialização e do crescimento urbano a partir da década de 50, a agricultura paulista tem sua estrutura produtiva remodelada. Com o aumento do crédito agrícola fornecido pelo Sistema Nacional de Crédito Rural, observa-se na década de 60 a modernização de certos setores agrícolas. Com a modernização tecnológica, esses setores da agricultura paulista passaram a depender menos das variáveis naturais e cada vez mais dos insumos produzidos pelas agroindústrias. Essa transformação da agricultura paulista resultou no crescimento das relações de trabalho assalariado no campo. Um exemplo cristalino da evolução desse processo é a expansão da cultura canavieira para a produção de açúcar e álcool combustível. Os subsídios fornecidos pela esfera federal aos usineiros e a seus grandes fornecedores não permitia aos pequenos produtores que se utilizavam do crédito rural geral competir com eles e muito menos modernizarem-se para garantir sua permanência no campo. Graças a essa política agrícola e ao desenvolvimento econômico implantado entre os anos 70 e 80 pelos regimes militares, grande parte dos pequenos estabelecimentos rurais acabaram sendo ‘adquiridos’ pelos usineiros de cana-de-açúcar ou pelos grandes fornecedores, o que gerou o aumento da concentração fundiária em São Paulo, o êxodo rural e o aumento dos índices de trabalho assalariado. Os trabalhadores rurais que se mantiveram no campo ou acabaram como pequenos fornecedores das usinas e com isso totalmente dependentes delas ou tornaram-se parceiros ou até mesmo arrendaram suas terras aos

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usineiros ou a seus fornecedores. (cf. Thomaz Jr., 1988:213-14) Na década de 80 começa uma onda de ocupações de terras públicas por bóia-frias, posseiros, rendeiros, parceiros e arrendatários meeiros. Enfim, por uma gama de "semterras". Com as eleições diretas para governadores em 1982 é conduzido o candidato do Partido da Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) ao Palácio dos Bandeirantes. Em campanha havia se comprometido a instalar em terras públicas assentamentos. Em verdade assentamentos planejados foram poucos. A maioria dos assentamentos implantados entre 1980 e 1985 foram devidos as ocupações que forçaram o governo estadual a regularizar a situação de seus ocupantes. Entre os anos de 80 e 85 são efetivados 15 assentamentos. Na Segunda metade dos anos 80 a maior parte dos assentamentos se deram em terras devolutas, de terceiros ou ainda em terras griladas. Nesse período as conquistas foram feitas por trabalhadores expropriados, expulsos de suas terras e que migraram à cidade mas continuaram a trabalhar na terra como cortadores de cana ou na colheita da laranja. Ainda que como assalariados mantiveram seu vínculo com a terra. Contudo, houveram aqueles que indo para a cidade tiveram de trabalhar onde encontrassem emprego. As experiências vivida no mundo da urbe proporcionou-lhes o capital político-cultural para lutarem pelo direito de regressarem ao campo. Em São Paulo, o MST segue o trilho das lutas iniciadas a sete de setembro de 1979 nas glebas Macali e Brilhante no município de Ronda Alta - RS. O marco inicial da luta dos trabalhadores rurais no estado de São Paulo e que ocasionou a organização do movimento no estado foi a luta dos posseiros da fazenda Primavera nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência para garantir sua permanência na terra. A luta dos posseiros da Primavera tem início na década de 20 quando chegam a região como migrantes do Nordeste e das Minas Gerais ou como imigrantes da Itália. Como comenta Fernandes, "(...) chegaram a região pelo processo de expropriação em seus lugares de origem e ali se fixaram com a esperança de adquirir a posse da terra". (Fernandes, 1996:89) Todavia essa população acabou tendo suas esperanças roubadas, acabam vítimas das grilagens de terras devolutas do Oeste paulista. A fazenda Primavera é uma das tantas que se constituíram na região mediante a grilagem. O grileiro além de tomar-lhes as terras mediante a apresentação de documentação falsificada, os explorava cobrando altos percentuais dos colonos para que pudessem permanecer na terra12. A situação exclusão e expropriação dos posseiros da Primavera agravou-se muito. Mais que pagar altas taxa para obterem o "direito" de permanecer na terra 12

A esse respeito consultar as obras de Fernandes, M. E. - A Reforma Agrária no Discurso dos Lavradores da Fazenda "Primavera". Tese de doutorado em Comunicação na USP (1985:27-62).

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começaram a sofrer os mais diversos tipos de violência a saber: tiveram suas plantações invadidas e destruídas pelo gado, suas casas queimadas, suas vidas controladas e ameaçadas por jagunços contratados pelo grileiro. Dessa últimas tática resultou a morte de um trabalhador. Cansados dessa situação de quase escravidão os posseiros da Primavera ajuntaram na justiça um processo contra a manutenção das mais de 5.000 cabeças de gado que destruía suas lavouras. Com o apoio da Igreja de Andradina através da Comissão de Justiça e Paz e da posterior criação da Comissão Pastoral da Terra a nível local, e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (FETAESP), os posseiros da Primavera começaram a se organizar até que progressivamente todos estavam na luta pela terra. A vitória desses trabalhadores rurais se deu a 8 de julho de 1980, quando o então Presidente João Baptista Figueiredo assinou o decreto de desapropriação declarando os 9.385 hectares da fazenda desapropriados para fins de reforma agrária. Em 1981 foram emitidos os primeiros títulos de propriedade e entregues às 264 famílias de posseiros da Primavera. Requerendo os 1.200 hectares de terra que sobraram depois de feito o loteamento da Primavera porque não foram usados no assentamento das famílias de posseiros, aparece um grupo de 13 famílias de trabalhadores bóia-frias que se denominavam Trabalhadores SemTerra. Apoiados pela CPT eles acabaram sendo integrados ao assentamento em 1982. Assim, as lutas dos posseiros da Primavera e dos trabalhadores bóia-frias abrem caminho para que comece a se formar em Andradina e região o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra do Oeste do Estado de São Paulo. A ampliação desse movimento proporcionou a geração de espaços de formação política para os trabalhadores rurais. Um bom exemplo da relevância e da abrangência de tais espaços de socialização política proporcionados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Oeste do Estado de São Paulo em parceria com a CPT foi o encontro realizado em 1980 no salão paroquial de Andradina e que reuniu mais de 1200 trabalhadores rurais de 34 municípios. Com o campo passando por mudanças coordenadas pelo regime militar e guiado pela lógica capitalista, observaram-se momentos e movimentos de resistência no campo paulista. Estão registrados, no período que vai de 1964 até 1981, 128 conflitos pela terra no Estado de São Paulo. (cf. Fernandes, 1996:87) As lutas dos trabalhadores rurais paulistas estão concentradas nas lutas empreendidas pelos posseiros contra a grilagem13, a luta por reassentamento feita pelos atingidos por 13

É interessante registrarmos aqui o exemplo que Monbeig nos dá sobre como se processa o ato da grilagem: "Os falsários deram provas de imaginação e habilidades diabólicas:: buscaram folhas de papel timbrado com

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inundações no processo de construção de barragens, as lutas dos trabalhadores assalariados (em especial os que trabalhavam nas indústrias canavieiras) e das lutas os trabalhadores semterra. Como podemos notar a luta do MST em São Paulo está fragmentada em diversos eixos, em distintas situações de privação relativa vividas pelo homem rural, fato que a torna mais complexa. A experiência da luta dos posseiros da fazenda Primavera motivou outras ações coletivas no estado de São Paulo. Assim, muitos são os movimentos regionais que comporão o MST. Além dos posseiros da Fazenda Primavera que já estavam na terra e lutavam pelo direito de nela permanecer e do Movimento dos Sem Terra do Oeste do Estado de São Paulo, temos também a luta de meeiros e arrendatários pela fazenda Pirituba no município de Itapeva; o Movimento dos Sem Terra de Sumaré composto por trabalhadores que já haviam sido expropriados e espoliados e acabaram migrando para a cidade em busca de condições de sobrevivência e as lutas que eram (e ainda são)travadas no Pontal do Paranapanema pelos posseiros, bóia-frias e desempregados das construções das barragens contra os grileiros da região14.

4 - O MST NO PONTAL DO PARANAPANEMA

“Os Trabalhadores tinham que gastar mais energia para se defender do terrorismo desencadeado pelos grileiros desapropriados do que no trabalho de seus lotes. O ódio do grupinho de espertalhões que foi atingido pelas desapropriações era tão grande que eles chegara a envenenar a água dos assentados” (José Eli da Veiga, 1990:43)

Para que possamos compreender em que circunstâncias geopolíticas esta pesquisa se desenvolveu, entendemos que seja fundamental efetuar o resgate da história da região bem as armas imperiais, imitaram escritas fora de uso, descolaram velhos selos, amarelaram propositadamente os seus documentos, arrancaram páginas dos registros dos tabeliães. Implantavam-se à pressa cafeeiros de vinte ou trinta anos nas clareiras das florestas. Transportaram-se partes destacadas de casa velhas, que eram guarnecidas com móveis antigos, para criar um ambiente adequado e simular uma antiga ocupação do solo. Era preciso também presumir-se contra os adversários, por vezes dois ou três indivíduos moviam demandas em relação ao mesmo território, com algumas variações na delimitação. Nesse caso, era cair nas boas graças do juiz de direito e dos agrimensores. E, por fim, era o assassinato uma solução levada em conta" (Monbeig, 1984:144-45).

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como estabelecer um espaço de discussão a respeito dos movimentos sociais no campo presentes no Pontal do Paranapanema. Com esse intuito é que passamos a apresentar a região e a realidade sócio-histórica dos sujeitos que a construíram e constróem e que são objeto de nossa pesquisa.

4.1 - A Ocupação do Pontal do Paranapanema: Uma história de grilos e violência

O início da ocupação da Alta Sorocabana, região geográfica onde localiza-se o Pontal do Paranapanema, e a posterior formação das fazendas na região, se deu pela presença de frentes pioneiras15 advindas das Minas Gerais em fins do século XIX. Durante o século XX, o processo de ocupação e formação das fazendas foi incrementado pela chegada de migrantes vindos do nordeste brasileiro e das regiões fronteiriças como o Paraná, Mato Grosso do sul. Em obra de 1923, Amador Cobra ressaltou que até a chegada das frentes pioneiras, as tribos indígenas16 “(...) estiveram senhoras de toda a extensão da bacia do rio do peixe até ao fim do século dezenove e princípio do século vinte, quando desapareceram, exterminadas” (Cobra, 1923:135) .

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A respeito dessas lutas consultar as obras de Andrade (1998), Fernandes (1985), Fernandes (1996), Leite (1981), Souza (1994), Tarelho (1988), Thomaz Jr. (1988) etc. Não nos aprofundaremos na análise das lutas que compuseram o MST no Estado de São Paulo por não ser objeto dessa dissertação. 15 José de Souza Martins analisou essa questão em um texto intitulado Frente Pioneira: Contribuição para uma caracterização sociológica. In. Cadernos do CERU, nº 5, 1972. 16 Segundo Borges (1996), o engenheiro Theodoro Fernandes Sampaio, coordenador da Comissão Geográfica e Geológica da Província de São Paulo que realizou em 1886 uma incursão de reconhecimento geológico no Vale do Paranapanema, “(...) referindo-se ao indígena assinalou que não o via diretamente mas a sua presença era sentida pelas canoas encontradas às margens dos rios, amarradas a varas fincadas. Outra evidência da presença do indígena estava nas veredas estreitas que o levava para dentro da mata e, também nos movimentos à distância d um remador ao se esconder ou ao fugir apressadamente. O confronto entre as populações indígenas do Vale do Paranapanema e os homens brancos foram uma constante no histórico da ocupação da grande região do Paranapanema”. (pp. 55-6) Segundo Leite (1981), a populações indígenas ficaram comprimidas entre as frentes pioneiras vindas do leste e oeste do Paraná. Ao verem suas terras invadidas e ao serem atacados pelos pioneiros que lhes comprimiam, eles reagiram. Leite escreve que não havia outra opção a não ser “(...) atacar, vez por outra, ao pôr-do-sol, ou ao amanhecer, as palhoças instaladas fortuitamente no seio da floresta. Matavam os homens, as mulheres, as crianças, as mulas, os bois e outra criação que houvesse. Depois roubavam ferramentas, destruíam plantações e, finalmente, ateavam fogo às casas”. (p. 44) Todavia, para COBRA, A. N. (1923) Em um recanto do sertão paulista,, a reação do colonizador branco ao ataque das populações indígenas era extremamente violenta e brutal. Cobra relata que os brancos “(...) encontrando-se com as índias, a umas aprisionam, a outras matam, bem como aos indiozinhos, aos quaes conta-se que chegavam a levantar do chão ou da cama, atirá-los para o ar e espetá-los em pontas de faca; outras vezes, tomá-los pelos pés e dar com as cabecinhas nos paus, partindo-as. As índias grávidas, rasgavam-lhes o ventre e depois de finda a carnificina , amontoavam os cadáveres sobre os quaes lançavam fogo bem como aos ranchos”(p. 91) .O autor ainda destaca que “(...) a lucta é desegual. O branco usa armas de fogo inimigo não possue. O combate não dura mais de meia hora; as balas dizimam os que vêm de arco e flecha para a lucta. Cada índio que cahe é socorrido por outro que o toma para o retirar, vivo ou morto, da refrega e assim são dois que deixam a linha de combate”. (p.141)

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A respeito do processo de ocupação e formação das fazendas na região da Alta Sorocabana, o geógrafo Armando Antonio, em sua tese de doutoramento, afirma que foram utilizados por quem estivesse interessado em apossar-se de terras na região, diversos meios para garantir a legitimidade do grilo:

“Nas apropriações indevidas, os grileiros para legitimarem as suas posses tiveram que derrubar a mata e cultivar as terras, tornando-as produtivas, e o fizeram trazendo pessoas, no primeiro momento da ocupação, tais como: familiares, amigos e interessados. Num segundo momento, já com muitos casos de grilagem, trouxeram migrantes, geralmente do nordeste brasileiro, contratados como arrendatários”. (Antonio, 1990:12)

Desse modo, parece-me que falar de terras na região do Pontal do Paranapanema e não falar de grilagem17 constituiria uma grande lacuna da parte de qualquer pesquisador que viesse a estudar a questão fundiária nessa região. Fernandes (1996) escreve, com propriedade, que: “A grilagem das terras no Pontal é de conhecimento geral e faz parte da história e do imaginário social de toda a população da região” (p. 183). Desde que se tem registro já são quase 150 anos de grilagem no Pontal. A Lei de Terras de 1850 - Lei n.º 601 de 1850 - ao possibilitar que a legitimação das terras ocupadas antes de 1850 fosse efetuada até o ano de 1856; ao proibir que a partir do ano da publicação da Lei não se poderia mais ocupar as terras devolutas e, por fim, ao determinar que as terras não tivessem sido registradas e legitimadas seriam consideradas devolutas, pertencentes ao patrimônio público, ela acaba por incentivar a grilagem de vastas extensões de terra por aqueles que fossem dados à maracutaias. Dois casos típicos de grilagem que remontam ao período da Lei de Terras e que se estenderam até nossos dias são os casos das fazendas Pirapó - Santo Anastácio e Rio do Peixe (ou Boa Esperança do Aguapeí). No ano de 1856, mês de maio, Antônio José Gouveia registra na paróquia de São João Batista do Rio Verde (Hoje município de Itaporanga - SP)a gleba de Pirapó-Santo Anastácio, na qual afirma residir desde 1848. A gleba registrada conta com 583.100 ha. Concomitante a isso se dá o registro da gleba do Rio do Peixe (ou Boa Esperança do Aguapeí) na paróquia da vila de Botucatu (atual município de Botucatu -SP). O registro é feito por José Teodoro de Sousa que alega habitar aquelas terras desde 1847. A Gleba do Rio do peixe é registrada com uma área de 872.200 ha. Contudo os referidos grileiros efetuaram apenas o registro e nunca providenciaram o título de legitimação como 17

Ainda que estejamos falando neste momento acerca da grilagem de terras no Pontal, recomendamos, para uma visão mais detalhada desse assunto, a leitura da tese de livre-docência de J. F. Leite intitulada A Ocupação do Pontal do Paranapanema. Presidente Prudente: UNESP, 1981.

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rezava a Lei n.º 601 de 1850. Durante as tentativas de legitimação (posteriores ao 1856) prazo limite imposto na Lei de Terras) feitas por esses grileiros e por aqueles que lhes sucederam no comando das terras, ficou claramente evidenciado que as terras das fazendas Pirapó - Santo Anastácio e Rio do Peixe tinham sua origem no grilo e por isso os pedidos de legitimação foram todos negados total ou parcialmente18. Contudo, como as terras permaneceram por longa data devolutas, imenso foi o número de novos grileiros a se apresentarem como "legítimos proprietários" da terras da região. De acordo com Fernandes

"(...) na década de 40 o governador Fernando Costa cria as reservas florestais do Pontal: Reserva Lagoa São Paulo, Reserva do Pontal do Paranapanema e Reserva Morro do Diabo, com o objetivo de retomar as terras e proteger a floresta. A área das três Reservas correspondia a 297.400 hectares. Contudo este ato não teve efeito. Somente a Reserva Morro do Diabo não foi devastada pelos grileiros do pontal" (Fernandes, 1996:108) 19

Conforme Leite, a situação que imperava naquele canto sem dono do país, ou de onde os legítimos donos já haviam sido expulsos ou trucidados, era de constantes disputas entre os grileiros e entre estes e os pequenos posseiros. Se antes as vítimas eram os indígenas, agora era a vez dos pequenos posseiros. Leite escreve que “Houve conflitos entre os próprios grileiros, em contenda pelas mesmas terras, e não eram raros os grandes posseiros terem a seu soldo grupos de jagunços armados visando a expulsão de pequenos ocupantes. Houve época que ‘cada sitiante tornar-se-ia, com carabina em punho, o defensor externo da (sua) cobiçada gleba’” (Leite, 1981:46). 18

Tentou-se efetuar a legitimação da fazenda Pirapó-Santo Anastácio em 1886(indeferida em 1890) e da fazenda Rio do Peixe em 1902 (Deferida parcialmente). Sobre a fazenda Rio do Peixe ainda consta uma outra tentativa de legitimação feita por Manoel Pereira Goulart em 1886. Ele também alegava que obtivera sua posse em 1850. Sua tentativa também foi indeferida. Manoel Pereira Goulart tentou em 1890, sem sucesso, garantir a posse das terra através de permuta com o grileiro que detinha a posse da fazenda Pirapó-Santo Anastácio. Ainda em 1891ele envia uma carta ao ministro da Agricultura solicitando colonos estrangeiros para trabalharem a sua terra. Como o despacho favorável do ministro contivesse a expressão "sua fazenda" o grileiro utilizou o documento para comercializar as terras. Foram negociadas cerca de 12.000 áreas. Para mais detalhes a esse respeito veja-se Fernandes (1996:104-113), Leite (1981:35-60). 19 Mas os latifundiários opuseram-se ao decreto do governador e aos laudos da Procuradoria do Patrimônio imobiliário de São Paulo que criavam as reserva e que declaravam ...) nula e falsa a documentação do imóvel conhecido por Fazenda Pirapó-Santo Anastácio, constituindo um grande ‘grilo’ da Alta Sorocabana, irmão xenófago do ‘grilo’ Boa Esperança do Aguapeí, existente na Alta Paulista” (Laudo da PPISP apud Borges, 1996:60) Como observa Borges (1996) os latigrileiros fizeram-se ‘donos da lei’, tomaram mão do machado e e do fogo e colocaram abaixo cerca de 8 alqueires por dia. Entre os idos de 1950 e 1978 as reservas florestais do Pontal do Paranapanema já haviam sido devastadas em grande quantidade, restando apenas uma pequena área da reserva Morro do Diabo. Para garantir a segurança de seus latigrilos importava apenas derrubar as árvores pois elas poderiam posteriormente ser comercializadas sem preocupação graças as inexistência de restrições legais a esse respeito.

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E num trecho seguinte continua dizendo que “(...) não eram raros os cadáveres vistos boiando em águas de riachos e rios do sertão sorocabano, vítimas de tocaias em picadões recém abertos” (Leite, 1981:56). Na década de 50 do século XX Hernani Donato escreveu um romance intitulado Chão Bruto. A conquista do Estremo Sudoeste Paulista, no qual narra o processo de ocupação do Pontal do Paranapanema, a corrida pela posse dessas terras. O autor ainda observa as estratégias adotadas pelos fazendeiros para lograr a expulsão de índios e posseiros, dos antigos moradores da região. Vejamos:

“A gente subia procurando boi e a que descia em arribada às boiadas começou a falar daquelas terras. E havia também a geografia, os mapas mostrando ao gôverno e aos olhos dos homens de negócios, aos ambiciosos e aos preocupados, que a terra não havia sido partilhada no papel. Essa gente alicerçou a sua cobiça com os papéis da lei, tapou os rasgões da consciência com os carimbos e os selos da lei, encheu as carteiras com as notas, as cartucheiras com balas. E correu para o Pontal. Isso foi fins de 1906 e princípios de 1907”20. (Donato, p. 11)

Hernani Donato ressalta em diversos momentos que os fazendeiros portavam-se como verdadeiros ‘donos da lei’; denuncia a violência e a brutalidade dos fazendeiros que era ‘verbalizada’ através das ‘palavras’ da carabina, das balas e do fogo utilizados pelos fazendeiros nas ações de despejo. Lê-se no romance trechos como os que seguem, trechos que muitas vezes vemos encarnados na vida do campo brasileiro. Donato escreve assim: “Num dia qualquer blandiciosa dos que tinham a lei no bôlso do casaco e os tiros dos que tinham a truculência na mira das carabinas, expulsaram o sossêgo antigo para a outra banda do Rio Paraná.” (p. 21) Podemos apontar como marco das mobilizações dos trabalhadores rurais no pontal a desapropriação da Fazenda Rebojo, durante o governo de João Goulart na década de 60. Contudo o movimento ali ocorrido não era por reforma agrária e sim por terras; era uma luta local de famílias contra um grileiro. A vida de desterrados vivida por aquela gente que a cada dois ou três anos era obrigada a abandonar as terras que ou desmataram ou limparam, que tornaram produtivas a duríssimas penas e buscar outras paragens, era marcada pela escola da dor. Muitas vezes deixavam aquelas terras prontas para a boiada dos senhores do grilo, deixavam para trás seus sonhos e sua esperança. Iam-se ainda mais depauperados do que quando chegaram (cf. Vasques, 1973:16-19; Borges, 1996:64-66). Mas a dor e a angústia que roubava a esperança de muitos não era vitoriosa com todos. 20

A obra em questão não costava a data de sua publicação.

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Entre ele houve quem não apenas estivesse insatisfeitos com aquela vida, mas que estive indignado a ponto de reagir, de dizer um basta e de iniciar o processo de mobilização e resistência. Ainda que os pequenos posseiros fossem expulsos pelos latigrileiros, eles regressavam para continuar a luta, num primeiro movimento como trabalhadores da fazenda e num segundo como posseiros outra vez. Para a pesquisadora Maria Célia Borges (1996) a situação “(...) inverteu-se, tornaram-se novamente posseiros, constituindo as glebas e dando um novo teor ao processo de lutas. Resistiram e se acomodaram – velhos sujeitos sob uma nova condição.” (p. 66) Um exemplo desse ‘novo teor’, da ‘resistência e acomodação’ desses ‘velhos sujeitos sob uma nova condição’ são a luta iniciada em fins da década de 60 na gleba Santa Rita e os movimentos que se seguiram-se ao movimento da gleba Santa Rita e que se estendem durante as duas décadas seguintes. São eles os movimentos das glebas, Ribeirão Bonito, XV de Novembro e São Bento, entre outros21. Ao realizarmos nossas pesquisas bibliográfica e de campo percebemos claramente que o quadro de concentração fundiária e as gritantes desigualdades sociais, decorrentes do próprio processo de ocupação do Pontal do Paranapanema, são as principais causas para a manutenção dos conflitos existentes na região. Como pode-se notar, a história do Pontal confunde-se com a história da opressão e exploração do trabalhador22. Durante as décadas de 70 e 80 tem-se um progressivo movimento reivindicatório por terra no Pontal. Posseiros e sem-terras são os atores sociais dessa cena. Borges (1996) assinala a esse respeito que: “As grandes propriedades foram sendo ocupadas evidenciando um processo histórico que não se deu linearmente, pelo contrário, apresentou conflitos constantes que tiveram a sua fundamentação no próprio processo desencadeado pela ocupação das terras na região”. (p. 66)

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Para maiores detalhes destes movimentos ver Barbosa (1990); Borges (1996); Fernandes (1996); Leite (1981); Souza (1994) e Vasquez (1973) . 22 Ao discutir a questão da exploração do trabalhador, Borges também faz uma breve discussão a respeito do direito a propriedade. Por ser esse um tema importante e que tem espaço permanente na pauta do MST, passamos a transcrever aqui o fato que gerou dessa discussão seguido do posicionamento da autora que ora compartilhamos: “Em relação às três famílias que sofreram o despejo, assinalava-se: “Na foto, as crianças, sacos com produtos de suas roças, especialmente o algodão e o barraco de lona e plástico de uma das famílias despejadas, que se encontram hoje em apuros em beira de cidade”. Numa crítica a esse despejo o artigo ainda acentuou: “Pela foto do rancho pode-se imaginar os apuros desses pais de família que querem dar a seus filhos o pão ganho com o suor de seu rosto e um futuro decente. Mas como é que pode conseguir ser honesto, num país onde um pedaço de papel vale mais do que uma enxada? Num país onde que o direito de propriedade vale mais que o trabalho?” (Realidade Rural, mar/83) As indagações levantadas por esse artigo sugerem uma reflexão do que significa o direito de propriedade e o de trabalho para os diferentes sujeitos. Na acepção desse artigo, o direito de propriedade é mantido pelos grandes fazendeiros contrapunha-se ao trabalho, reivindicação dos posseiros, porque ele era resultado não do trabalho, mas de sua negação na medida em que impedia as condições para que este se efetivasse.” (Borges, 1996:73-4).

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4.2 - O Poder da Mídia

A pesquisa de Borges mostra-se muito rica e valiosa para ampliar a compreensão dos processos de ocupação do Pontal do Paranapanema, de resistência do Trabalhador rural que em muitos casos lutou por mais de 20 anos23 contra os donos do capital e pretensos donos da lei e de manipulação da informação a respeito da luta do trabalhador e da trabalhadora rural e das investidas dos grandes empresários rurais contra estes. Em seu trabalho, Maria Celma Borges faz uma ampla análise de como a mídia regional e nacional manipulam as informações em prol dos latifundiários. Entre os inúmeros exemplos que a autora nos trás acerca da atuação sistemática da mídia, há um trecho em que ela analisa o periódico O Estado de São Paulo que nos chamou muito a atenção24. Passamos a apresentá-lo:

“No artigo Posseiros ou Invasores, publicado no ano de 1981, percebemos uma reação do Jornal O Estado de São Paulo, contrária às articulações dos movimentos sociais de luta pela terra do país. Nesse artigo discute-se o proselitismo ideológico que: “consiste em dar nomes novos a coisas velhas, conotar positivamente um conceito antes considerado de forma pejorativa ou pelo senso comum (ou fazer o inverso, ou definir pessoas, coisas e situações) a partir de uma linguagem que, por si, já desvela o juízo de valor (ideológico) que se pretende transmitir.” (O Estado de São Paulo, 20/09/1981) Este artigo aos criticar a inversão de determinadas terminologias, no caso a dos posseiros que, antes, segundo ele, eram considerados meros invasores, e hoje tornaram-se os posseiros reais do direito à terra fundamentava a sua crítica à forma como os movimentos de luta pela terra começaram a ser impedidos a partir de fins da década de 70. Ao conquistar um determinado espaço na mídia estes movimentos começaram a demonstrar um outro lado das lutas no campo, isto é, a existência de posseiros e de semterra, dentre outras categorias, que reivindicavam além da propriedade da terra, o reconhecimento de sua cidadania. Isto começou a assustar os defensores da concepção de invasor, comumente dada aos trabalhadores rurais que ocupam determinadas áresas” (Borges, 1996:71-2)

De modo sistemático a imprensa tem dado aos movimentos sociais o caráter de badernairos, perturbadores da ordem e do direito e outros qualitativos descabidos. Ao defenderem o modelo e propriedade e abrirem espaço para os detentores do capital, a imprensa tem buscados formar a opinião pública de modo a garantir que esta não posicione-se a favor dos movimentos sociais. A estratégia de qualificar as ações coletivas dos trabalhadores rurais como invasões ao invés de ocupações é um bom exemplo de como a imprensa alia-se ao grande capital, defende a manutenção do conceito de propriedade da forma atual e deforma a luta ao omitir informações importantes ao público.

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Observe-se que a luta dos posseiros das glebas Ribeirão bonito e Santa Rita, por exemplo remontam ao início dos anos 70 do século XX. 24 Ver também Capelato, M. H. R., (1980) O Bravo Matutino: imprensa e ideologia no Jornal “o Estado de São Paulo.

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Em artigo publicado no dia de natal de 1983, o correspondente do Estadão, Valdir dos Santos, fez os seguintes comentários: “Quais são, na verdade, os proprietários de algumas terras do Pontal do Paranapanema? Esta pergunta deve ficar sem resposta por mais algum tempo: a própria justiça mostra-se indecisa, mas, de qualquer forma, os fazendeiros levaram vantagem, após os casos de invasão de terras em que os agitadores, mais uma vez, tiveram influência” Fica mais do que evidente que correspondente e periódico entendem que os grileiros são os legítimos donos das terras e os movimentos sociais não passam de um bando de agitadores, baderneiros de plantão. Também fica claro nesse texto que a justiça indecisa tendia a decidi-se pelos fazendeiros. Nos anos 80 o Estado de São Paulo mostrou-se um importante aliado dos grileiros do Pontal na luta destes com os movimentos sociais e o Estado, tanto na esfera estadual – Montoro (1982-5) – quanto federal – Sarney (1985-9) -, que buscavam garantir a implementação da reforma agrária. Durante o período inicial do governo Sarney, quando se buscava a implementação do Plano Nacional de Reforma Agrária, foi um dos importantes momentos em que a imprensa esteve alinhada aos grileiros. A Imprensa e os latifundiários ainda buscavam desqualificar as tentativas de implementar a reforma agrária na região. Em diversos momentos eles referiam-se aos assentamentos populares dirigidos pelo Estado como sendo experiências mau sucedidas, que resultaram em fracasso. Outras vezes buscavam desqualificar os órgãos que estavam a frente destas iniciativas. Para os fazendeiros o governo era um dos agitadores da ordem estabelecida. Em um dado momento Borges (1996) referindo-se a essas situações escreve acerca da reação contrária da mídia quando da desapropriação de certas áreas na região para fins de reforma agrária, de utilidade pública:

“A imprensa regional e a grande imprensa que, aparentemente, abriram espaço à discussão dos conflitos de terra no Pontal, reagiram contra a medida sancionada pelo governo Montoro. (...) E, visando a negação da importância dos assentamentos da alta Sorocabana, promovidos pelo Estado, o artigo, fez, ainda, um breve relato da Agrovila Lagoa São Paulo, Localizada em Presidente Epitácio e criada em 1980, a partir de um projeto de reassentamento promovido pela Cesp que: ‘não é o órgão capaz de desenvolver um projeto agrícola, eis que não é sua função’ (Periódico O Imparcial, 28/03/1984) Segundo o artigo, tal como a gleba Rebojo, O Projeto Lagoa São Paulo também resultou em um grande fracasso.” (Borges, 1996:84)

Parece haver uma espécie de conluio entre a oligarquia e a imprensa para garantir o fracasso das ações coletivas empreendidas pelos trabalhadores rurais que até então viviam sob a tutela dos grileiros e dos esforços do Estado para diminuir a tensão existentes na região ao promover algumas desapropriações de terras.

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Mas de acordo com Antonio (1990) os latifundiários do Pontal, na tentativa de garantir que a população ficasse a seu favor e de pressionar o Estado para que retrocedesse nas suas ações pró reforma agrária, lançaram mão de panfletos anônimos. Num deles podemos ler o modo como os acampados e assentados eram qualificados pelos latifundiários que viam suas terras sob a mira dos movimentos sociais e do Estado. Para eles os acampados e assentados constituíam “(...) um grupo de marginais, homicidas, maconheiros e até ladrões de gado”25. Para eles era esse tipo de gente quem assumira a liderança e era beneficiária “(...) da chamada implementação agrícola, na qual uma enorme fortuna drenada dos cofres públicos, está sendo consumida sem a menor esperança de sucesso ou retorno”26. Quanto ao Estado as afirmações que eram disseminadas pelos latigrileiro através de seus panfletos anônimos procuravam caracterizar a ação do Estado como sendo puramente eleitoreira e ilegal e que apenas vinha vitimar a eles, latifundiários, bons cumpridores da ordem e verdadeiros defensores da real finalidade rural. A esse respeito há um trecho que pensamos ser significativo:

“Para demonstrar a infidelidade inicial, de uma atitude atabalhoada e resolvida no afogadilho da ambição política, em busca de propósitos incompatíveis com a grande finalidade rural, tomamos como exemplo, o descalabro e a precipitação ILEGAL feita pelko governo do Estado de São Paulo no Pontal do Paranapanema (município de Teodoro Sampaio na já famigerada Gleba XV de novembro” 27.

Na mídia local encontra-se afirmaçõe como as veiculadas no panfleto. Em trecho de artigo publicado em 15/06/1984 no jornal O Imparcial lê-se que “(...) as razões que levaram ao decreto de Montoro não são reais, mas apenas de cunho político, pressionado pelas lideranças de esquerda radicais que dão apoio ao atual governo do Estado”. Quando faz-se uma atenta análise dos discursos dos fazendeiros veiculados pela mídia nos anos 80 e 90 ou através de seus panfletos, e de documentações das entidades que os representam, como, por exemplo, o sindicato patronal rural, nota-se claramente que há um continuum entre eles e os discursos anti-comunistas comuns nas décadas de 60 e 70 do século XX. A permanência de discursos desse tipo na pauta social do Pontal pode ser explicada graças a identificação feita pelos fazendeiros entre os comunistas e os membros dos movimentos sociais que emergiam naquele momento. Para Borges a permanência de tais discursos explica-se pelo fato de que eles centravam-se “(...) na crítica estabelecida aos movimentos sociais no campo e às pessoas envolvidas direta ou indiretamente, consideradas 25 26

Trecho do panfleto A aventura do Pontal, s/d, s/f, encontra-se anexado à tese de doutorado de Antônio, 1990. Ibidem.

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como as esquerdas radicais, os extremistas, subversivos e agressores da propriedade privada”. (Borges, 1996:87) O poder judiciário também é denunciado como aliado dos fazendeiros da região. A pesquisa de Borges (1996), por exemplo, demonstra em diversos momentos como que a ação da justiça auxiliou para manutenção das tensões na região28. Ainda que tenham havido algumas decisões favoráveis aos agricultores sem terra, em sua grande e absoluta maioria as decisões da justiça vieram em socorro aos fazendeiros locais. Pertas e Weltmeyer (2001), por sua vez afirmam que a ação do sistema judiciário contribuiu para que as açõs do MST que até os primeiros anos dos anos 90 não era de caráter massivo viesse a assumir essa característica. Para eles o poder judiciário colaborou para a redefinição das políticas do movimento no instante em que em diversas ocasiões fez auxiliar as oligarquias com interpretações visivelmente tendenciosas. Novamente o trágico episódio do massacre de Eldorado de Carajás é o melhor exemplo da atuação do judiciário. Petras e Weltmeyer escrebem:

“Vários fatores contribuíram bastante para dar forma à nova direção da política do MST. Em primeiro lugar, a natureza politizada do sistema judicial evidenciada na violação crassa do processo judicial normal pelos juízes no julgamento dos oficiais militares acusados de assassinarem 19 trabalhadores sem terra no Pará. Sem levar em conta as claras evidências apresentadas e a posição inicial do juri de considerar culpados, a intervenção do juiz alegando que era suficiente a evidência apresentada e rejeitando testemunhas oculares, ficou claro que, sem influência política direta, era impossível garantir justiça nos tribunais contra os latifundiários politicamente influentes e organizados” (Petras e Weltmeyer, 2001:151).

Em nível nacional a atuação do judiciário entre 1989 e 1999 é desalentadora. Nesse período foram assassinados cerca de 1.158 trabalhadores rurais e aliados do movimento. Porem, apenas 56 pistoleiros foram a julgamento e somente 10 foram condenados por seus crimes. Para Petras e Weltmeyer esse quadro retrata “os poderosos vínculos” existentes entre latifundiários e judiciário. (cf. Petras e Weltmeyer, 2001:150)

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Ibidem. E ao nosso ver continua auxiliando. Temos essa impressão corroborada pelo modo com que o Juiz de Teodoro Sampaio atua em relação aos conflitos de terra na região. Acompanhamos os julgamentos de algumas lideranças na região e o que percebemos é que o juiz atuava não como tal mas como um outro advogado de acusação. Um caso que merece nota é o da ordem dada pelo juiz ao capitão comandante da PM de Botucatu de despejar imediatamente e a qualquer custo as famílias acampadas em áreas na região. O caso é suigeneris porque, além da intransigência do Juiz, o Capitão negou-se a cumprir a ordem sem antes efetuar todas as negociações possíveis. O então governador Covas apoiou formalmente a decisão do Capitão. Todavia o juiz abriu uma ação contra o capitão que, contra as expectativas existentes em relação a atuação da corporação militar, queria contribuir para a diminuição da violência no campo. Até esse episódio o histórico da ação da PM na região revela disposição à truculência. Essa afirmação se ampara no uso ostensivo do aparato militar a sua disposição. Habitualmente o 28

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4.3 - O Nascimento do MST

Ainda nos anos 80 vemos posseiros e trabalhadores assalariados, que servem de reserva de mão-de-obra barata a disposição do sistema capitalista, implicados na construção do Movimento Sem Terra – MST - no Pontal. A situação de marginalidade vivida por esses sujeitos contribuiu para que eles também se sentissem e se identificassem29 como sem terra e assim se associassem à luta do Movimento nascente. A ocupação das fazendas Tucano e Rosanela a 15 de novembro de 1983 foi resultado desse processo. Todavia a ocupação resultou em fracasso judicial e no conseguinte despejo dos trabalhadores e na reintegração de posse dos 'latigrileiros' como se refere Veiga (1990) aos latifundiários da região. Cerca de 350 famílias30 estavam engajadas nessa ação. Acaso esse fracasso não estaria ligado ao desenvolvimento de um consciência política incipiente por parte daqueles que se comprometeram com o Movimento? Ainda que essa consciência política tenha possibilitado a grande ocupação de terras na região, parece-nos não ter sido suficiente para garantir a manutenção daquela ação coletiva.

Através de transferências,

negociatas e outros artifícios essas fazendas estavam sobre o controle da construtora Camargo Corrêa e da empresa VICAR S/A Comercial e agropastoril. E com a derrocada do movimento permaneceram com elas. Uma das razões que apontamos para que a construção e desenvolvimento da consciência política dos trabalhadores rurais do Pontal que estiveram envolvidos na grande ocupação e em outras ações que se arrastam ou que não frutificaram como o esperado, é o fato de as experiências vividas pelos sujeitos na esfera política foram superficiais e pouco determinantes. Por isso, a ressignificação pela qual as experiências vividas na esfera política passaram na estrutura do self e a análise critica produzida por essa consciência política, foram fragmentárias e incapazes de produzirem nos sujeitos a necessária ruptura com as figuras

contingente utilizado é desproporcional e demonstra a intenção de coersão por parte da PM. Para mais detalhes a respeito da ação da polícia, ver Borgs, 1996, Fernandes 1996. 29 Ao se identificarem como iguais, como vítimas de um mesmo contexto expropriatório, esses agricultores passam a reelaborar suas experiências vividas; eles apropriam-se, internalizam, o outro generalizado que exerce a mediação interna e externa da relação sujeito-sociedade. A posterior objetivação, exteriorização da ressignificação desse outro generalizado e das experiências vividas por cada sujeito (e num segundo pelo grupo), resultam na autoconsciência, a qual possibilita o desenvolvimento da consciência Política de cada sujeito (e do grupo): consciência de quem são e de que são capazes de juntos promoverem mudanças sociais. 30 Os trabalhadores envolvidos na ocupação eram 46,5% de desempregados das obras hidrelétricas, 37,5 eram bóia-frias demitidos da destilaria de álcool Alcídia e 16% eram posseiros, ilhéus e ribeirinhos atingidos pelas barragens. (cf. Fernandes, 1996:109)

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populistas31 que apoiaram a luta. A ruptura era necessária para que assim eles pudessem conquistar o seu espaço político, fruto dessa consciência política integral. Pensamos que a própria consciência de si desses sujeitos não fosse uma das mais completas. Outro fator que contribuiu para a não elaboração de uma consciência política integral foi a ausência de espaços de socialização política efetivos (Como aqueles fornecidos pela Igreja através da CEB's e da CPT aos colonos de Ronda Alta - RS - ou aos posseiros da fazenda Primavera em Andradina - SP.) A atuação de instituições que habitualmente vinham apoiando as lutas do movimento sem-terra país a fora foi ou inexpressiva - como a Igreja de Presidente Prudente que tem uma diretriz tradicionalista -, ou ambígua - com no caso da atividade do PMDB -, ou de omissão - como no caso do sindicato dos trabalhadores rurais da região que negou a ajuda jurídica solicitada pelos assentados para que pudessem contestar as decisões da justiça a eles desfavoráveis porque os ocupantes das fazendas Tucano e Rosanela não eram em sua maioria sindicalizados. Com o despejo essas 350 famílias acamparam na beira da Rodovia SP-613. Como houvesse boatos de que o governo do estado fosse assentá-las, o acampamento cresceu. Em 1984 o governador Franco Montoro assinou os primeiros decretos de desapropriação de uma área de 15.110 hectares para assentar as cerca de 466 famílias acampadas as margens da SP613. As lutas empreendidas no Pontal e em outras regiões do país e as desapropriações ocorridas provocaram a reação dos latifundiários que fundaram a União Democrática Ruralista - UDR - com vista a defender seus interesses e a estarem melhor instrumentalizados para fazer pressão ao Estado em suas diversas esferas e a resistir as mudanças que eram iniciadas na estrutura fundiária local e nacional. Claus Germer entende que a UDR, fundada, segundo Veiga (1990), pelos “(...) griloterroristas do Pontal” (p. 43), não apenas era a organização representativa dos proprietários rurais, atingidos ou não pelas desapropriações realizadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual. Para ele a UDR “Unificou e deu legitimidade ao velho discurso conservador e reacionário do grande proprietário brasileiro, ‘modernizando-o’ com o auxilio da ideologia neoliberal ressuscitada em todo o mundo” (Germer 1994:274). Com este discurso plasticamente renovado foi possível à União Democrática Ruralista reestruturar e fortalecer a oligarquia rural conservadora. Segundo Germer “(...) a UDR deu expressão verbal renovada a uma visão e a um discurso reacionários envelhecidos, dando-lhes uma

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Refiro-me, por exemplo, aos correligionários do PMDB que encontravam-se divididos: parte comprometida com seus próprios interesses e com os interesses dos latigrileiros e outra com os trabalhadores (cf. Veiga, 1990:45)

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nova embalagem, com a qual reaglutinou os velhos e os novos conservadores da agricultura” (Germer, 1994:274). Ainda que já houvesse muitos conflitos de terra na região, a primeira ocupação oficialmente organizada pelo MST no Pontal se deu em 14 de julho de 1990. Setecentas famílias ocuparam a Fazenda Nova Pontal no distrito de Rosana no município de Teodoro Sampaio. Atualmente esse distrito está emancipado. Maria Celma Borges afirma que o ano de 1990 “(...) sinalizou para uma nova forma de luta nos campos do Pontal. (...) O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (...) acenava para uma nova conotação ao processo de lutas na região”. (Borges, 1995:101) Contudo, a pesquisadora observa que tal conotação é uma “(...) conotação não tão nova, na medida na medida em que protagonistas de movimentos como os das glebas XV de Novembro, Santa Rita e Ribeirão Bonito, foram e são personagens constantes das ocupações realizadas por este movimento”. (Borges, 1996:101) A organização da ocupação da Fazenda Nova Pontal levou aproximadamente seis meses e reuniu arrendatários, bóias-frias, desempregados, etc. No dia 21 de julho ocorreu o despejo das famílias que acamparam as margens da SP-613 onde permaneceram até o inicio de 1991. A partir dessa data os trabalhadores ocuparam a Fazenda São Bento. Até a obtenção da posse da terra esses colonos tiveram que participar de mais de 22 ocupações dessa área. A área da Fazenda São Bento só vai ser conquistada pelos acampados a 12 de fevereiro de 1994 depois de quase quatro anos de lutas incansáveis. Hoje a Fazenda São Bento tem outro nome: Assentamento União da Vitória.

4.4 - Igreja Católica no Pontal: Uma Igreja particular com uma atuação particular

Estruturalmente a Igreja Católica é constituída por Igrejas Particulares sob a administração autônoma de um bispo. Os bispos comungam da doutrina e atuam em suas dioceses em comunhão com a Sé Romana. Contudo a questão da autonomia é um dado importante. È graças a Ela que podemos notar que em uma mesma Igreja há diversidade de posições sobre um mesmo tema, que é possível encontrar Igrejas Particulares mais progressistas como a Arquidiocese de São Paulo durante o período que o Cardeal Arns foi seu pastor e outras mais conservadoras como a Arquidiocese do Rio de Janeiro Sob o comando pastoral do Cardeal Salles. E no Pontal do Paranapanema não é diferente. A região do Pontal do Paranapanema

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pertence a circunscrição eclesial da diocese de Presidente Prudente cujo o pastor é o bispo Agostinho. Tradicionalmente a diocese de Presidente Prudente atua pastoralmente de modo conservador. A atuação da Igreja Católica junto as questões fundiárias do Pontal nunca teve o apoio de d. Agostinho. A intervenção que grande parte do clero da Igreja de Prudente se propunha a fazer era de caráter estritamente religioso. Fazer mais do que a celebração dos sacramentos ou a arrecadação de mantimentos para auxiliar as famílias acampadas a beira das estradas ou em situação de litígio com os latigrileiros da região significava estar em desobediência ao pastor. Por vezes, alguns poucos padres participaram de uma ou outra negociação como os fazendeiros. Durante a década de 80 houve dois padres no município de Teodoro Sampaio que tiveram posições bastante distintas. Estas posições e o desfecho de suas intervenções são exemplos da particularidade da ação da Igreja Católica em Presidente Prudente; ação esta que se diferencia em muito daquela que pode ser vista em outras paragens do país. Os padres em questão eram Jesuos e José Antônio. A Igreja Católica se mostrou mais participativa entre os anos de 1982 e 1984 quando o padre José Antônio assumiu a paróquia de Teodoro Sampaio em caráter provisório, visto que o seu antecessor afastara-se para tratamento de saúde. Nesse período o Pontal enfrentava os conflitos entre posseiros e grileiros nas Glebas XV de Novembro e Ribeirão Bonito e a ocupação do trevo de Porto Euclides na SP – 613 no município de Teodoro Sampaio por centenas de famílias de sem terras e desempregados da Cesp que foram despejados das fazendas Rosanela e Tucano. Padre José Antônio fora um dos poucos clérigos que na ocasião optou por não apenas dar apoio religioso a essas famílias mas em certo aspecto político. Seu apoio político se materializava em negativas para celebrar missa nas sedes de fazendas ocupadas nas quais já celebrava entre os acampados32. A CPT diocesana tentou atuar na região em 1983 devido ao acirramento dos conflitos agrário na região. Todavia sua atuação não se pode comparar à atuação da CPT na região de Andrelândia. No Pontal sua atuação ficou aquém do que a CPT protagonizou em outros lugares. Segundo Borges, o “(...) apoio da CPT aos movimentos de luta pela terra no município de Teodoro Sampaio (...) não teve um papel decisivo. Isto se deu (na medida em que O bispo de Presidente Prudente, D. Agostinho, autoridade máxima da Igreja Católica na região, não apoiava a postura desta Comissão” (Borges, 1996:125). Padre José Antônio foi identificado pela imprensa local e pelos latifundiários como 32

Ver: Borges, 1996:118-28. A pesquisadora traz os relatos dos dois padres que durante a década de 80 do século XX estiveram a frente da paróquia de Teodoro Sampaio.

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sendo um dos principais agitadores da região. Muitas vezes o clérigo fora pressionado pela mídia, fazendeiros e Igreja que, cada qual por seus motivos, não o apoiara na empreitada de assessorar os movimentos sociais e discordava das posturas adotadas nacionalmente pela CPT. Em 1984 padre José Antônio deixou Teodoro Sampaio pois o pároco anterior regressara as suas funções porque terminara seu tratamento de saúde. Como o retorno de Padre Jesuos a Igreja Católica deixou de participar mais efetivamente da realidade de luta dos trabalhadores rurais sem terra. Mais do que isso: a Igreja Católica por um tempo limitou-se ao serviço espiritual, a ministrar o sacramentos e com o tempo nem esses serviços eram oferecidos mais àquela parcela do povo de Deus. Aquele católico que quisesse continuar na vida da comunidade deveria deslocar-se à paróquia. Provavelmente as pressões da Igreja de Prudente e dos próprios fazendeiros são algumas das motivações que nos permitem entender outro fato: o afastamento dos poucos clérigos que mantinham algum vinculo com o MST como padre José Antônio. Também ele que bravamente se fizera uma voz para aquele que não tinham voz se afastara dos movimentos sociais no campo. Com a saída da Igreja de entre os sem terra, as Igrejas Evangélicas foram ocupando o espaço e se acomodando entre aquele povo. Contudo é preciso fazer notar que o serviço dos evangélicos também limitava-se as questões espirituais. Como a Igreja Católica também os evangélicos anunciaram um Deus desencarnado, longe da realidade daquele povo que luta a cada segundo para obter o direito de obter uma vida digna. Parece-nos que a Igreja Católica no Pontal sob a condução pastoral de d. Agostinho, não foi capaz de escutar os gritos de tanto excluído oprimidos por quem dizia que a terra era sua sem ser capaz de provar; não foi capaz de perceber que “(...) um clamor surdo brota de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte”. (Libânio, 1986:87) No Pontal do Paranapanema a atuação da Igreja não favoreceu, de modo geral, à socialização política dos trabalhadores rurais. Muito antes o contrário, corroborou o discurso de defesa à propriedade da forma como era desejada pelos fazendeiros. Ao por-se a margem dessas discussões ela acabou por consolidar-se como uma importante aliada regional dos grileiros de plantão. Atualmente os padres de Teodoro Sampaio e Euclides Cunha Paulista mantém-se a distância do movimento e por vezes mostram-se opositores do MST. A pastoral exercida por eles restringe-se às cercanias da casa paroquial, está cada vez mais distante das beira de

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estrada onde vivem os “pobres da terra” 33(Sf. 2,3).

4.5 - O retrato do Pontal do Paranapanema nos Últimos anos do século XX e princípio da primeira década do século XXI Desde 1995 até 1998 estabeleceram-se no Pontal 67 projetos de arrecadação de terras em 10 municípios da região, assentando 3.135 famílias numa área de 79.453 hectares, o equivalente a quase 7% da área em questão. Segundo o ITESP, no Estado de São Paulo foram assentadas 8.050 famílias como mostra o mapa abaixo:

Fonte: ITESP

Mais recentemente, verificando os dados fornecidos pelo ITESP (lnstituto de Terras do Estado de São Paulo), sabemos que:

"l...) em outubro de 1998, 4109 famílial de trabalhadores rurais sent terra, envolvendo aproxrimadarmente 20 mil pessoas, estavam distribuídas em 48 acampamentos, dos quais cerca de 36% a beira de estradas e rodoovias”. (CADERNOS ITESP N." 6. 1998).

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A expressão pode ser encontrada no Livro do Profeta Sofonias 2,3. O autor sagrado escreve: "Procurai a Iahweh, vós todos pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a pobreza: talvez sejas protegidos no dia da ira de Iahweh" (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985:1796) . A nota de rodapé acerca deste trecho, assinala que o termo hebraico anawin pose significar "pobres" ou "humildes". Assim, diz a nota, "os pobres ocupam um lugar especial na Bíblia.(...) Os profetas sabem que os pobres são antes de tudo oprimidos, aniyym, e reclamam justiça para os frracos e os pequenos, dallim, e para os indigentes, ebyônim.

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Como sugere o gráfico abaixo, os acampamentos em São Paulo estão divididos em diferentes grupos, constituem diversos movimentos sociais no campo da seguinte forma:

Fonte: ITESP

Outro dado importante para que se possa entender melhor a questao fundiária na região do Pontal pode ser observado na origem das terras utilizadas para os assentamentos. lnicialmente as terras que foram utilizadas para a implantação de assentamentos, durante o período mais crítico dos conflitos de terras no Pontal do Paranapanema, eram terras devolutas e terras não discriminadas e que em grande parte haviam sido griladas a muito tempo e não as terras de propriedade do Estado ou as terras de particulares. No gráfico abaixo podemos constatar essa realiddade. Com o avanço dos processos de discriminação das terras, as terras que passam a ser mais utilizadas são as terras de particulares que não cumprem a sua função social e acabam sendo alvo do Movimento e dos orgãos oficiais que estão implicados no processo. Vejamos o grático:

Fonte: ITESP

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É importante salientar que no processo de construção e consolidação do MST no Pontaldo Paranapanema não estiveram presenter (pelo menos com a mesma intensidade e interesse com com que participaram desse processo em outras partes do país e do Estado) aliados tradicionais como a Igreja (através da CPT), os sindicatos rurais, a Fetaesp, a Contag, etc. A ausência desses tradicionais aliados dos trabalhadores acarretou a formação de uma parcela do movimento em que os espaços de socialização política, de formação e de organização, propiciados pelas CEB's por exemplo, não existiram ou, se existiram, existiram de forma muito incipiente através da presença de uns poucos agentes de pastoral, membros da hierarquia, políticos de esquerda e outros. O Pontal ainda foi palco de uma mudança estratégica do Movimento. Se antes os grupos que participariam das ocupações eram fruto da discussão das histórias de vida, da partilha de todos nos espaços de socialização a que tinham acesso, da organização na qual todos tinham vez, da orientação dos agentes de pastoral, etc., agora o movimento passa a ser centralizado na pessoa do líder, passam a se formar grupos relâmpagos para ocuparem as terras e pressionar o Estado. Essa estratégia surge porque é preciso dar visibilidade ao movimento. Oitenta, cem familias não mais impactam a mídia. É necessario que movimentos de massa apareçam para que o movimento não naufrague pelo esquecimento. A mobilização é feita a partir da divulgação da luta e das perspectivas de se conquistar terras na regiao. Esse tipo de estratégia faz da trajetória do MST no Pontal uma trajetória muito diferente daquela trilhada, por exemplo, pelos sem-terra de Sumaré. Todavia, esse tipo de estratégia acarretou problemas. Em não se construindo o espaço de socialização política, em não havendo espaço para o amadurecimento da consciência política de cada indivíduo e do grupo, não houve o necessário fortalecimento da representação e da organização do Movimento. Sem que se tenha propiciado a identificação entre militância e base, o movimento ficou fragilizado e passível da ação de pessoas que sejam opositoras a ele. Pelo fato de não haver ocorrido a necessária identificação entre base e militância é que ocorrera situações como as seguintes: membros não-militantes identificarem como membros do MST apenas os sujeitos militantes; identificarem a militância como as únicas pessoas aptas a decidir e, por fim, provocar uma situação de divisão interna entre os grupos dos pró e dos contra a militância. "A ma.ssificação da luta, por meio da mobilização dos trahalhdores, possibililou a reunião de um número maior de famílias, em um período de tempo menor, e trouxe inúmeros problemas decorrente o de.sermoloimerrlo da luta" (Fernandes, 1996:174). Ainda assim, graças a inexistência de um projeto político agrário em que a reforma

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agrária realmente fizesse parte da pauta organizativa do Estado, abriu espaço para que os trabalhadores se organizassem e se tornassem um uma força política importante no cenário nacional. A falta de um programa de reforma agrária e de uma poltica clara para a imensa extensão de terras devolutas e não discriminadas no Estado de Sao Paulo foi um dos grandes motivadores da manutenção dos conflitos fundiários no Pontal. Essa situação fez das ocupações um instrumento legítimo, ainda que ilegal, dos trabalhadores rurais sem-terra para que pudessem fazer valer os direitos que lhes são garantidos na constituição e negados no dia a dia. Ocupar, Resistir e Produzir é a estrategia daqueles que querem apenas ter acesso ao direito à terra, ao direito ao trabalho e ao direito à cidadania. "Diante da inoperância do Estado, que por mais de um século, não conseguiu dar solução a situação fundiária da região, o MST aparecer como uma , força política capaz de fazer avançar os processos de regularização fundiária" (Fernandes, 1996:189) .

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CAPÍTULO II

OS ESTUDOS PSICOSSOCIAIS SOBRE O MST: UMA REVISÃO BLIBLIOGÁFICA

"Quem já experimentou os cacetes democráticos do governo Montoro, como a gente, sabe qual é a democracia do governo..." (João Calixto em depoimento concedido a Tarelho. Tarelho, 1988:150)

Neste capítulo nos propomos a comentar algumas pesquisas que consideramos relevantes e que de alguma forma apontam para a elucidação do objeto a que estamos nos atendo na presente pesquisa. Faremos também uma avaliação destes resultados e a conseqüente justificativa da relevância da pesquisa proposta por nós. Antes de iniciarmos efetivamente essa revisão, observe-se a possibilidade de haverem estudos tão ou até mais importantes do que estes; contudo nossas pesquisas bibliográficas não foram suficientes para, caso existam realmente, localizá-los. No que se refere ao movimento sem terra existem um grande número de estudos nas áreas da Historia, Geografia, Antropologia, sociologia, Ciências Políticas, Direito, Psicologia, Educação entre outras. Em função de quantidade e diversidade de estudos e objetos, restringimo-nos aqui analisar as pesquisas que pautaram-se no estudo de seus objetos pelos referenciais da Psicologia Social, ainda que não tenham sido feitas em Programas de PósGraduação em Psicologia Social especificamente1. No presente ensaio, estaremos revisando os trabalhos de Luis Carlos Tarelho (1988); Sandra Freitas (1994); Maria Antonia de Sousa (1996); Márcia Regina de Oliveira Andrade (1998) e Wilka Coronado Antunes Dias (1999). Em nossa revisão estaremos centrando a

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1) Da consciência dos Direitos à identidade social: Os sem-terra de Sumaré. Dissertação de mestrado realizada por Luis Carlos Tarelho, orientada pelo Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval e defendida em 1988 na UNICAMP. 2) Análise psicossocial da capacidade de mobilização e das contradições internas do MST em termos de representações e identidades sociais. Dissertação de mestrado realizada por Sandra Maria de Freitas, orientada pelo Dr. Leoncio Camino R. Larrain e defendida em 1994 na UFPB. 3) A formação da identidade coletiva: um estudo das lideranças de assentamentos rurais no Pontal do Paranapanema. Dissertação de mestrado realizada por Maria Antonia de Souza, orientada pela Drª. Maria da Glória Gohn e defendida em 1994 na UNICAMP 4) A formação da consciência política dos jovens no contexto dos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Tese de doutorado realizada por Márcia Regina de Oliveira Andrade, orientada pelo Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval e defendida em 1998 na UNICAMP. 5) Vidas Construídas na Terra: o Ir e Vir dos Trabalhadores Rurais. Tese de Doutorado desenvolvida por Wilka Coronado Antunes Dias e orientada pela Drª Silvia Leser de Mello em 1999 na USP.

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atenção em trabalhos referentes ao MST no Estado de São Paulo2. Iniciamos nosso trabalho com a pesquisa de Luis Carlos Tarelho. Em sua pesquisa entitulada Da consciência dos Direitos à identidade social: Os semterra de Sumaré Tarelho se propôs a responder as questões relativas a decisão política de lutar pela posse da terra, ao motivos subjetivos que conduzem essa atitude do sujeito. Ingressar nessa luta indicaria um ato de consciência. Partindo dessa hipótese o autor investigou quais seriam e como se desenvolvem as estruturas de consciência que possibilitam as ações políticas orientadas para a posse da terra. (cf. Tarelho, 1988:8-9) Para construir as respostas as suas questões, Tarelho articula as teorias habermasiana da Ação Comunicativa e a teoria Psicanalítica de Freud. Essa articulação está mediada pelos escritos de Paulo Sérgio Rouanet3 que estabelece um diálogo entre Habermas e Freud. De Habermas, Tarelho busca a idéia de que a evolução social não pode ser explicada com base apenas no desenvolvimento das estruturas produtivas, sem se considerar os processos de aprendizagem que ocorrem no nível do desenvolvimento das estruturas normativas, os quais ao apontarem novos parâmetros para a solução dos conflitos, tornam possíveis novas relações de produção (cf. Habermas, 1985:14) e de Freud ele toma a categoria das defesas psíquicas. Partindo da premissa habermasiana o autor entende o MST como sendo a "(...) síntese produzida pela combinação desses elementos [questões econômicas e políticas agrárias] com os elementos "Subjetivos", relacionados â vontade, ao saber prático-político, às imagens de Mundo, etc." (Tarelho, 1988: 3) Outra postura habermasiana adotada foi a idéia da falsificação da consciência. A falsa consciência é a face interna de práticas autoritárias. Ela é gerada pela exclusão ou deformação do processo de diálogo, isto é,

"(...) ela é produzida sempre que, em nome da preservação da civilização ou em nome da preservação de alguns privilégios, as interpretações lingüísticas, ligados a motivações indesejadas, forem excluídas da comunicação pública, pela ação das defesas repressoras, ou deformadas, pela ação das defesas projetivas. (...) Enfim, excluído do espaço público e condenado, pela inibição do processo comunicativo, a viver no espaço privado das consciências monólogas, o sujeito se torna apolítico, e a capacidade de se perceber que se está sendo vítima de práticas autoritárias, fica cada vez menor.” (Tarelho, 1988: 81-82)

Utilizando a psicanálise o autor procura demonstrar como a realidade falsifica a consciência, destrói a autonomia do eu e faz o sujeito submeter-se ao senso comum

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Somente a pesquisa de Sandra Freitas realiza estudos com os sem terra da paraíba. Porém, seu trabalho é particularmente importante por tratar das contradições internas do MST. 3 Paulo Sério Ruanet é autor dos livros A razão Cativa - as ilusões da consciência de Platão à Freud (1985) ed. Bresiliense e Teoria Crítica e Psicanálise (1986) ed. Tempo Brasileiro. Para mais detalhes consultar Tarelho (1988).

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dominante. Para Tarelho, essa articulação "permite construir uma teoria materialista da falsa consciência sem dissolver a Psicologia na Sociologia". (Tarelho, 1988:82) Enquanto Habermas propõe um teoria da comunicação pura, Freud estaria propondo uma teoria da comunicação deformada. Portanto, a falsificação da consciência se dá no nível da linguagem e é provocado por práticas autoritárias. Tais prática acabam por obrigar o sujeito a viver à custas de renúncias, visto que houveram supressões das interpretações nocivas ao sistema dominante e o inculcar de outras práticas de caráter despolitizador. Nesse contexto é imposto à estrutura pulsional limites a sua satisfação, o que gera, mediante as defesas, interferências no trabalho da percepção, do pensamento e do imaginário, impedindo que os sujeitos identifiquem as razões de suas privações. E não só, impede que eles encontrem coragem para admitir e assumir seus desejos e tomem consciência de seus direitos e adquiram a capacidade de defendê-los. Para que se possa superar essa condição vivida pelo sujeito que possui uma falsa consciência, Tarelho propõe que apenas pelo exercício da liberdade, pela reinserção no espaço comunicativo, pelas práticas da confrontação política seja possível fazê-lo. Nas palavras do autor:

"Acreditamos que essas concepções a respeito do modo como se dá o processo de falsificação da consciência, e de como ela pode ser superada, são muito importantes para podermos compreender como foi que surgiu o movimento de luta pela posse da terra em questão. Elas autorizam a principal hipótese desse trabalho de que um dos principais fatores que contribuíram para a formação do movimento foi a existência de um espaço interativo, no interior do qual foi possível estabelecer um processo comunicativo/pedagógico e práticas políticas que permitiram o desenvolvimento de uma consciência social crítica e a transformação dos trabalhadores em sujeitos coletivos, com uma identidade política comum, aptos para lutarem por seus direitos".(Tarelho, 1988:94)

O autor identifica como sendo um fator relevante para a constituição de sujeitos coletivos, de grupos de sem-terra e para a superação da falsa consciência, a percepção da condição de excluídos, expropriados como uma condição comum. A apropriação dessa condição de forma positiva desemboca na estruturação do grupo, na identidade social do grupo. Assim, o desenvolvimento de uma consciência política entre os trabalhadores rurais sem-terra (e em contraposição a falsa consciência) se daria em três momentos identificados da seguinte forma por um dos sujeitos da pesquisa:

"Para Ângelo, essa consciência começa a ganhar consistência desde as primeiras reuniões na medida em que os sujeitos vão se conhecendo e se percebendo como iguais. "As primeiras reuniões - diz ele - são organizadas com esse objetivo: para o pessoal se conhecer e constatar que possuem as mesmas necessidades. Ao se conhecerem, eles percebem que os seus problemas são semelhantes e, o que é mais importante, eles percebem que possuem a

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mesma origem camponesa e que os problemas comuns que eles enfrentam hoje estão diretamente ligados ao fato deles não terem acesso à terra." Isto é, essa consciência se desenvolve no jogo interativo que ocorre no interior do movimento, especialmente durante as reuniões." (Tarelho, 1988:104)

Além desse primeiro momento da socialização política existiriam outros dois que estariam na seqüência. Após a formação do grupo e conscientização das privações comuns vivenciadas por eles e da conseqüente recriação da identidade camponesa possibilitada pela rememoração do passado de cada um durante a formação do grupo, viria a fase da conscientização política dos membros do grupo nascente, o que implicaria em fazê-los compreender a estrutura classista da sociedade e o caráter político das leis e instituições vigentes. Por fim, viria a fase de preparação para a luta, a fase das ações coletivas desenvolvidas por estes trabalhadores agora conscientizados de sua condição de excluídos e expropriados, conscientizados das estruturas sociais que propiciaram a situação de marginalidade vivida por eles. Esta fase está alicerçada na crença na mudança social e não na crença na mobilidade social. O autor ainda analisa o papel que a Igreja, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Estado teriam tido na construção da consciência Política desse trabalhadores Rurais ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Sumaré. A Igreja ao apresentar espaços de socialização política e reflexão, ao propor um ambiente em que as decisões são tomadas na e pela base, ao utilizar os textos bíblicos relacionados a vida destes trabalhadores acaba por estabelecer um molde de ação do movimento, acaba por propor um tipo de liderança e de compreensão político-religiosa da realidade. O Partido dos Trabalhadores tem uma influência velada no movimento. Isso se dá pelo fato de o movimento querer enfatizar seu caráter apartidário. Mas com o passar do tempo, com a defesa aberta que o partido fazia da reforma agrária e com a candidatura de lideranças do MST nas eleições de 1982, a sua participação na construção do movimento ficou mais clara. Quanto ao Estado, sua participação mais efetiva se dá no momento em que o trabalhador vê cair por terra suas ilusões a respeito do real interesse de o Estado realizar a reforma agrária. Quando o trabalhador descobre a dificuldade de se contactar o Estado, percebe que o Estado usa seu aparato de forma opressora, reprimindo veementemente as ações empreendidas por eles, eles dão passos largos à tomada real de consciência a respeito das relações sociais e das atividades do Estado frente a essas relações. Quanto a Igreja e ao Estado, pensamos ser relevante comentarmos a sua ação após a conquista das terras pelos grupos de Sumaré. A Igreja que até aquele instante havia sido um dos pilares da formação da consciência política daqueles trabalhadores, defensora da atuação

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democrática entre eles, agora vê-se numa conduta autoritária para "garantir" a democracia. Tarelho vai nos mostrar que ao tentar implementar um projeto comunitarista cristão em que a coletividade se inspirava nos testemunhos que ela guarda acerca da vida dos primeiros cristãos que "repartiam tudo segundo a necessidade de cada um", que "tinham tudo em comum" e que "não consideravam como propriedade sua algum bem seu" (cf. At 2,4445;4,32), acaba tomando uma postura autoritária levada pelo zelo de implementar o projeto cristão. Junto com a preocupação de reconstruir o programa cristão de vida, a Igreja trazia a preocupação de manter os trabalhadores mobilizados para a nova fase da luta que iniciava. (cf. Tarelho, 1988:204-210) O problema da proposta da Igreja estava no fato de para implementá-la ela acaba que desapercebidamente rompendo com a ação democrática que concedia às bases o poder decisório. Para alcançar seu intento ela verticaliza a decisão: impõe seu programa de cima para baixo, autoritariamente. Isso promove entre os assentados uma divisão, traz as claras os desejos pessoais de realização até este momento postos de lado em função de um bem maior: a posse da terra. A tentativa da Igreja acaba por ser reveladora. Forma-se dois grupos: os crentes na mobilidade social e que querem implementar seu projeto camponês/familiar de um lado e os crentes na mudança social e que querem ver implementado o projeto comunitário/coletivo apregoado pela Igreja. Individual e coletivo determinam a divisão do grupo e criam um mal estar generalizado. Todavia para a Igreja e para as lideranças dos trabalhadores não era suficiente reunir os adeptos de sua proposta. Fazê-lo era considerado "uma ameaça não só a capacidade de resistência do grupo, mas também aos ideais pregados pela Igreja". (Tarelho, 1988:206) Ao invés de abrir espaços comunicativos para promover o amadurecimento político e para o entendimento dos trabalhadores, a Igreja acabou bloqueando a comunicação e contribuindo para que o projeto individual de cada trabalhador fosse sufocado. Nesse sentido pensamos que o trabalho de Tarelho aponta para o diálogo como uma das condições básicas para a manutenção da Vontade de Agir coletivamente. A vontade de agir coletivamente é entendida por nós como uma das dimensões da Consciência Política nos moldes propostos por Sandoval (2001) e já discutidas por nós em outras ocasiões4. A ação do Estado não foi muito diferente. A diferença está na ênfase dada por cada um. Enquanto a Igreja enfatiza a proposta de Cristo, a solidariedade cristã; o Estado quer que haja solidariedade entre os trabalhadores para garantir a implementação entre eles de um

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Para mais detalhes dessa discusão, ver Silva, A. S. (2001 a, b, c).

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projeto empresarial camponês. (cf. Tarelho, 1988:210-222) Segundo o Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento

"(...) só o associativismo garante o sucesso do empreendimento em termos de rentabilidade, por ser melhor e mais intensivo o aproveitamento dos fatores tecnológicos colocados a disposição da assistência técnica, o efeito de escala na produtividade do trabalho e na melhoria da produção, o poder de competitividade na comercialização dos produtos obtidos" (Ribeiro, 1987:139, apud Tarelho, 1988:211)

Como podemos notar a maior preocupação do Estado está na dimensão econômica. Espera-se que em associando-se que os trabalhadores rurais assentados utilizem de modo mais eficaz seus recursos tecnológicos e financeiros, tornando-se, assim, mais competitivos e viáveis. "No fundo espera-se que os trabalhadores substituam a mentalidade camponesa, do trabalho familiar e da produção da subsistência pela mentalidade empresarial". (Tarelho, 1988:213). Do mesmo jeito que a Igreja impôs seu modelo cristão de assentamento, o Estado impôs seu modelo empresarial. Não se abriu espaço para se discutir a possibilidade de desenvolvimento via modelo familiar. A única alternativa dada ao grupo era a coletiva. Estabeleceu-se uma relação automática - segundo o autor - entre coletivo e consciência política e entre individualismo e falsa consciência. Todavia as iniciativas individuais não seriam necessariamente um sinal de falsa consciência. Da mesma forma as iniciativas coletivas não significam a existência de uma consciência política desenvolvida. Esse tipo de olhar constituiria uma visão reificada da realidade e apresenta-se como um forte empecilho à superação da falsa consciência. No decorrer desse processo de superação da falsa consciência e de construção da consciência política mediante a recuperação do espaço público de comunicação, os trabalhadores rurais sem terra de Sumaré, que inicialmente viam sua situação de privação como o resultado descontextualizado de suas próprias vidas, como resultado de um destino preestabelecido, agora compreendem que em grande parte as suas situações de privação são as resultantes de um sistema distributivo injusto que os forçou a esta triste condição humana de espoliados, expropriados e excluídos. Fica evidente no trabalho de Tarelho que as experiências com a Igreja, que lhes mostrou a face política de seu próprio êxodo ao proporlhes refletir o êxodo hebraico e a terra como bem comum, dádiva de Deus; com o PT, que através da defesa da reforma agrária e da participação de membros do movimento entre os candidatos do partido nas eleições de 1982 acabou ampliando a concepção classista da sociedade e, por fim, com a experiência que os trabalhadores tiveram com o Estado, que só os

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reconheceu e atendeu suas reivindicações a duras penas, foram imprescindíveis para a reelaboração dessa situação. Tarelho não desenvolve o conceito de consciência política em seu trabalho mas lança pontos de reflexão importantes para a compreensão do processo de formação da consciência política que será estudado com mais afinco no trabalho de Andrade (1998) e no nosso. Ao discutir o papel da comunicação durante esse processo, Tarelho abriu-nos caminho para entendermos melhor o lugar do diálogo na participação política resultante da conscientização política dos sujeitos. As dificuldades encontradas por Tarelho nas relações estabelecidas pelos assentados de Sumaré I que os dividiu em 'coletivistas' e 'individualistas' é tratado com mais detalhes na pesquisa de Sandra Freitas (1994). Em Análise Psicossocial da capacidade de mobilização e das contradições internas do MST em termos de Representações e Identidades Sociais Freitas nos oferece um estudo pautado nas teorias de Henri Tajfel (Identidade Social) e Serge Moscovici (Representação Social). A autora está preocupada em compreender o hiato existente entre as lideranças dos movimentos sociais e as suas bases. Os posicionamentos adotados pela base muitas vezes são opostos aos defendidos pelos líderes dos Movimentos a que estão filiados. Tal controvérsia é um grave problema vivido pelo MST e que necessita ser equacionado sob pena de trazer efeitos nefastos ao movimento. Essa situação desestabilizadora pode ser vista quando o MST propõe as cooperativas de trabalho como "um estágio superior de conquista da terra". (Freitas, 1994:1) Através desse sistema o MST espera transformar as relações sociais de produção vigentes. Contudo esse projeto coletivo do MST enfrenta resistências porque há entre os membros do movimento aqueles que possuem um outro projeto: o projeto camponês-familiar, um projeto individual. Assim o objetivo central da pesquisa desenvolvida por Freitas é compreender, utilizando uma abordagem psicossocial, "os diversos fenômenos que estão envolvidos nos processos de adesão e ruptura dos trabalhadores rurais sem terra no momento da efetivação da proposta do MST de implementar na terra a concepção de trabalho solidário" (Freitas, 1994:2). Através da realização de entrevistas semi-abertas Freitas localiza três níveis de participação no MST, ao quais denominou participantes simples, ativistas informais e ativista formais. A análise dos dados coletados apontou uma clara polaridade e divergência entre os grupos participante simples e ativistas formais, polaridade essa já indicada por Tarelho. Dados semelhantes também foram encontrados em nossa pesquisa. Nela também estão presentes essas categorias porém sob a nomeclatura de Líderes, Militantes e base. O grupo dos participantes simples é formado por agricultores de meia idade, sem

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instrução, nascidos e criados na terra. A terra para eles é bem mais do que um instrumental de trabalho , de sobrevivência. A terra é dadiva preciosa recebida por eles das mãos de Deus. Encontramos arraigadas neles a idéia de que a terra deva ser trabalhada com a família, artesanalmente e, portanto, de forma individual e não coletiva. Freitas ressalta que a única possibilidade de se abrir mão dessa idéia se dá quando isso significa uma estratégia de ação para conquistar um pedaço de terra e/ou dos meios de produção. O momento da ocupação ou o da compra de sementes e equipamentos ou o instante da comercialização da produção são exemplares típicos dessa postura. Note-se que nesses momentos o diálogo é necessário para a manutenção da vontade de agir coletivamente e para a superação de interesses antagônicos e de adversários. Neles notamos que há uma significativa superação do hiato existente entre base e liderança ou como chama Freitas, entre participantes simples e participantes formais. Em relação aos interesses antagônicos e aos adversários a serem enfrentados e superados pelo sujeito coletivo, importa dizer que eles constituem uma das dimensões da consciência política presente no modelo analítico proposto por Sandoval.(1994; 2001; Silva, 2001 a, b, c). Em nosso entender, o surgimento de potenciais dificuldades são ocasiões preciosas de resignificação das pautas internalizadas pelo grupo e de superação de disputas que nem sempre estão presentes de modo claro no cotidiano das pessoas. As dificuldades enfrentadas por eles acabam por romper a rotina cotidiana e trazer luz sobre as contradições vividas pelo grupo e que poderiam estar até então ocultas. O grupo dos ativistas formais é caracterizado por Freitas como sendo um grupo possuidor de "(...) uma forma peculiar de vinculação com a terra que se dá, seja através da experiência familiar, seja através da própria luta" (Freitas, 1994:54). Os ativistas formais são os organizadores da ação, possuem certo nível de instrução e, sobretudo, são jovens. Para eles a terra não se restringe a um instrumento de sobrevivência imediata, é vista como um instrumento de transformação social, um instrumento a ser usado para que se possa alcançar uma reforma social abrangente. Essa perspectiva dos ativistas formais se concretiza na organização dos trabalhadores, na pressão do inimigo e na cooperação entre os iguais. Eles trazem consigo um projeto coletivo em oposição aos anseios dos participantes simples. Ao grupo ativistas informais a autora atribui um caráter de transitoriedade entre os dois grupos. Tal caráter tem sua origem na experiência de vida desses sujeitos que se encontra diluída entre o campo e a cidade. São jovens e já participaram de algum tipo de organização. Tendo essa realidade presente, normalmente os líderes acabam por "recrutá-los", atribuindolhes funções específicas na estrutura do Movimento (acampamento, assentamento, etc.). E em razão de suas experiências pessoais desse recrutamento feito pelas lideranças, os ativistas

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informais acabam por, de maneira crescente, aproximar-se dos ativistas formais até o ponto de compartilharem completamente de suas representações. (cf. Freitas, 1994:53-54) Apesar de ser patente a existência de uma hierarquia, os dados de nossa pesquisa nos levaram a notar um fato contraditório no discurso dos acampados no Pontal. Segundo os entrevistados líder é uma posição que não existe no movimento. Para eles, dentro do MST todos são iguais e possuem a mesma capacidade decisória e interventiva. A existência de figuras como o Zé Rainha5 é explicada a partir da questão da escolaridade. Ter estudo é condição necessária para que os anseios da base sejam traduzidos e transmitidos a todos os membros do grupo e para aqueles que se relacionam com o grupo, sejam eles aliados ou adversários. Parece-nos, então, que a suposta escolaridade de figuras com o Zé Rainha é uma das formas com que se deforma a realidade, não observando-se fato de que há na realidade uma organização hierarquizada no movimento da qual ele faz parte. Assim, é claro para nós a presença de uma visão de mundo um tanto quanto utópica, uma falsificação da realidade e até mesmo da consciência política como propõe Tarelho. Em dado momento da pesquisa de Freitas, verificas-se que a identidade existente entre os três grupos se dá devido a fatores eminentemente sociais. Ao adquirirem a consciência de que é apenas mediante a ação coletiva proposta pelo movimento - a ocupação da terra - é que se conseguirá transformar a injusta condição de privação, de sem terra, vivida por eles. A situação social vigente só pode ser mudada se eles estiverem unidos. Constitui-se uma identidade social baseada na crença da mudança social. Admite-se a impossibilidade de se tornar membro do grupo dos outros. Este outros são os latifundiários, é a UDR, são os aliados da concentração de terras que os afasta da terra perseguida. Individualmente essa situação não pode ser superada. Freitas conclui que "(...) os fatores sociais moldam as ações coletivas e portanto o contexto social em que elas ocorrem é fundamental, pois é nesse contexto que as representações sociais são geradas e modificadas". (Freitas, 1994:56) Essa afirmação nos leva a observar que toda a vez que o contexto for desfavorável a realização dos anseios do sujeito ele aderirá a mudança social. Do contrário ele tentará construir de maneira individual a realidade; ele se filiará a mobilidade social. Esse é o caso do grupo dos participantes simples. Em relação aos ativistas informais e formais observa-se um peso ideológico relevante em suas postura e a conseqüente adesão a tese da mudança social, do coletivo.

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Zé Rainha é uma importante liderança regional e nacional do MST. Sob a orientação de figuras como Zé Rainha, Bil, Cledison e Diolinda é que o MST do Pontal do Paranapanema - SP - atingiu importância reconhecida no cenário nacional da luta pela reforma agrária e o fim do latifúndio.

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A pesquisadora observa também que apesar de o MST considerar em seu planejamento estratégico os interesses comuns existentes cotidianamente nas condições imediatas da vida e a identidade formada em torno a tais interesses, o movimento não tem logrado um resultado positivo suficiente. Mais especificamente a autora se refere ao fato de o MST não conseguir manter a adesão conquistada no momento da ocupação quando tenta implementar seu projeto de trabalho coletivo. Nesse instante o que se observa é uma diminuição da adesão ao movimento e um conseqüente aumento de conflitos no interior do grupo, da dispersão do grupo e até mesmo da deserção a ele. A esse respeito conclui Freitas:

"Assumindo pois, que a identidade grupal se dá através do reconhecimento da partilha de valores, costumes e crenças; e que tal reconhecimento leva a um sentimento de pertença grupal. E ainda que é através da vivência grupal que se dá a construção e a partilha de representações sociais, dificilmente afirmaríamos, a partir de nossos dados, que o MST contará com a adesão total de sua base à sua proposta de trabalho coletivo. Verificamos que o estabelecimento das divergências representacionais é resultante das diferentes identidades sociais assumidas pelos atores do movimento no decorrer da luta pela terra". (Freitas, 1994:55)

Assim parece que se estabelece uma permanente situação dicotômica no interior do movimento. Há um conflito permanente entre anseios de cunho individual e coletivo que acaba por gerar sérias limitações a implementação do programa do MST e ao alcance efetivo de seu ideal de transformação social. Mais do que uma problemática sociológica a autora nos aponta para uma série de empecilhos psicossociais relevantes e que, sem superá-los, o programa do MST será sempre implementado de forma parcial e insatisfatória na medida em que não será capaz de garantir a coesão efetiva e afetiva do grupo. Na tentativa de superar os empecilhos apontados por Tarelho e Freitas, nós propusemos a utilização de espaços grupais privilegiados existentes no interior do movimento e que no nosso entender encontram-se subutilizados. A frente de massa e o acampamento são identificados por nós como espaços privilegiados para serem trabalhadas as diferenças, os hiatos existentes entre o sujeito desejante e o movimento (Tarelho, 1988); entre os participantes simples e os participantes formais (Freitas, 1994); entre os líderes e a base (Silva, 2001 c). Apontamos esses momentos (e aqueles que se desdobram deles como reuniões de grupo por exemplo) por que neles o reconhecimento mútuo; a identificação das privações comuns a todos e o sentimento de solidariedade estão particularmente aflorados e impelem aos sujeitos de modo geral a participarem de ações coletivas. Outro trabalho relevante para a compreensão desses empecilhos psicossociais apontados por Tarelho e Freitas, é a pesquisa de Maria Antonia de Sousa. Em A formação da

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identidade coletiva: um estudo das lideranças de assentamentos rurais no Pontal do Paranapanema Souza busca "(...) compreender quais são os acontecimentos que perpassam a vida cotidiana de alguns indivíduos e que os faz tornarem-se lideranças de movimentos sociais". (Souza, 1994:17) Sua tentativa de compreensão desse fenômeno se dá a partir da análise da formação da identidade do sujeito coletivo. Em outras palavras a autora pretende entender o processo de formação da "(...) identidade coletiva nos indivíduos reconhecidos como lideranças; captar as diferentes aprendizagens cotidianas vividas pelos líderes de assentamentos6 rurais e perceber a relação sujeito particular - sujeito genérico que, usualmente, consistem nas lideranças".(Souza, 1994:12) Nesse sentido, Sousa contribui de maneira ímpar para a compreensão das relações intra-grupo no MST. Entendemos que ao buscar entender "(...) quais são os acontecimentos que perpassam a vida cotidiana de alguns indivíduos e que os faz tornarem-se lideranças de movimentos sociais", a autora abre caminho para a elucidação os hiatos existentes nas relações entre os grupos constituintes do MST e que já foram apontados por Tarelho, Freitas e por nós. Mas de modo particular Maria Antonia desvenda-nos o processo de transição existente entre os participantes informais e formais; entre militantes e líderes, visto que, segundo Freitas, os ativistas informais constituem um grupo transitório e que tende tornar-se um participante formal. Como a própria autora nos faz notar, para desvendar as questões que a inquietam, ela enfatiza justamente as relações entre as lideranças e o demais trabalhadores dos assentamentos Gleba XV de Novembro, Santa Clara e União da Vitória. É seu interesse analisar as lideranças enquanto motivadora/condutora dos trabalhadores sem terra. Concomitante a isso, ela pensa "os movimentos do indivíduo enquanto ser particular/ser genérico e vice-versa" (Souza, 1994:25) Assim, Souza busca construir um referencial teórico capaz de auxiliá-la a compreender de que maneira acontecimentos cotidianos podem originar em cada sujeito novos valores, novas visões de mundo e novas atitudes: se antes esses sujeitos assumiam posicionamentos individualistas, agora suas posições adquirem um caráter coletivo. Com o intuito de compreender o processo formador de lideranças a autora utiliza como conceitos fundamentais Identidade, Espaço Comunicativo7 e Participação Política. A hipótese básica que motivou a autora a escolher esses conceitos é a de que o 6

Nas palavras de Souza "(...) o assentamento é um dos resultados concretos da organização e resistência dos trabalhadores na luta pela terra". (Souza, 1994:20).

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"(...) indivíduo, através da participação política em diferentes espaços comunicativos e o enfrentamento com diversas condições objetivas muito difíceis, consolida um tipo de identidade onde há maior espaço para a dimensão coletiva. A partir de então, o agir no coletivo passa a ser a característica principal desses indivíduos que constróem espaços de agir coletivo". (Souza, 1994: 32)

Voltamos a enfatizar que o contexto em que essa hipótese lançada por Sousa é mais evidente e passível de materialização, é, no nosso ver, o espaço do acampamento e não os assentamentos como entendem alguns. Ainda que o acampamento tenha a dificuldade da transitoriedade, vemos nele o espaço em que se lança os fundamentos futuro, vemos o acampamento como uma sementeira, um canteiro de mudas que alimentarão as futuras plantações e por isso necessitam de um cuidado todo especial para que as mudas nasçam fortes e vinguem ao serem transplantadas. Quanto as categorias adotadas por Souza, pontuamos que a autora se utiliza das categorias de Movimento Social e Liderança porque quer compreender a formação de líderes em assentamentos rurais resultantes de movimentos sociais populares. Já a categoria liderança é importante porque a figura do líder é central dentro de um movimento social. É o líder que cuida da organização do movimento, das tratativas políticas e da formação de novos quadros para o movimento. A categoria Identidade é construída partindo das teses habermasianas (1985) e tendo como trabalho base a dissertação de Tarelho (1988). Tendo essas questões presentes podemos entender melhor o que seja Identidade para a autora. Souza considera a Identidade como sendo a "(...) identificação da própria pessoa no grupo, bem como a identificação feita pelo outro no mesmo grupo. Alter e ego se reconhecem". (Souza, 1994:34). Assim, Identidade Coletiva para a autora são as normas do grupo. Para embasar esse entendimento, Souza se utiliza da afirmação habermasiana de que a "(...) identidade coletiva regula a participação do indivíduo na sociedade, ou a sua exclusão da mesma" (Habermas, 1985:26) Nessa perspectiva, a identidade é constituída em dois momentos: a formação da identidade do Eu no grupo familiar e a posterior formação da identidade num grupo de iguais. Essa posição resulta em admitir diversas identidades forjadas no decorrer do processo histórico. Para que se possa pensar a concretização da identidade coletiva, Souza propõe a categoria Participação Política como "elemento auxiliador", visto que o termo não deve designar apenas a militância mas em seu sentido mais amplo, no sentido daquilo que seja a participação em si produz no sujeito coletivo como tal. Segundo a autora a "(...) simples 7

Quanto ao conceito de espaço comunicativo não iremos explicitá-lo nesse momento pelo simples fato de o já termos feito quando da apresentação da obra de Tarelho (1988)

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participação em manifestações pode levar o indivíduo a repensar sua situação concreta realidade - na sociedade em que vive, assim como a sua prática social" (Souza, 1994:41)8. Ao discutir participação política e cultura política, Souza destaca três formas/níveis de participação política, a saber: presença; ativação e participação. Tais formas/níveis são tomadas do Dicionário de Política elaborado por Bobbio, Matteucci e Pasquino. Para ela essas conceituações apontam para o fato de que o importante é participar, independente de qual seja o nível dessa participação. Importa participar porque somente participando é que os indivíduos adquirem um grande aprendizado político. Tal aprendizado está relacionado à cultura política, sendo que resulta dessa relação o fato de que "(...) a participação política se concretiza à luz de uma cultura política" (Souza, 1994:44). Essa última afirmação da autora nos faz pensar que se a cultura política vigente for , autoritária teremos uma participação política autoritária e assim por diante. Isso aponta para uma contradição vivida nos movimentos sociais e em especial no MST, objeto de estudos da autora e nosso, qual seja o fato de os movimentos buscarem construir uma cultura política libertadora ainda que tenham certos posicionamentos autoritários. Outra questão referente a participação política e aos movimentos sociais, é o fato deste incentivarem aos sujeitos a exercerem práticas de participação. Inicialmente temos uma participação presencial, a qual vai se ampliando de acordo com as estratégias de ação político-pedagogicas utilizadas pelas lideranças e de acordo com a capacidade de internalização de cada um dos sujeitos alvos dessas ações. Assim um sujeito que inicialmente tinha a sua participação política no nível presencial pode chegar a um nível mais profundo, o da participação ativa, indicando uma configuração mais complexa da consciência política, mais consolidada. Com relação a isso, Souza destaca a contribuição de Sandoval (1989) no que se refere a análise de quais fatores poderiam motivar o indivíduo a participar ou não de um movimento social. Para Souza

"A Participação política não surge do nada, e é nesse sentido que enfatizamos os espaços grupais de discussão, pois acreditamos que grande parte dos participantes políticos/sociais passaram por espaços comunicativos, seja na Igreja, no partido político, no sindicato, nas fábricas, nos bares, etc. (...) Os espaços comunicativos (...) são decisivos no sentido de levar o indivíduo à participação efetiva nos movimentos sociais, e no sentido de contribuir para a formação da identidade coletiva, a partir do momento que, nesses espaços, há possibilidade de reconhecimento recíproco". (Souza,1994:46)

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Vale destacar que a questão da identidade coletiva é um importante vínculo que une os trabalhos nosso trabalho com aqueles desenvolvidos por Tarelho, Freitas, Sousa e Andrade (que discutiremos a seguir). Mas, como veremos mais adiante, a identidade coletiva também é o marco que separa esses trabalhos daquele proposto por Dias.

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Ao iniciar a discussão do conceito de liderança a autora apresenta o trabalho de Eyerman & Jamison (1991). Esses autores entendem que:

"(...) atores chaves em práticas cognitivas são aqueles que nós identificamos como intelectuais do movimento. Intelectuais do movimento são atores que articulam a identidade coletiva que é fundamental para a criação do movimento social. (...) Assim, nós usamos o termo intelectuais do movimento para referir àqueles indivíduos que durante suas atividades o conhecimento científico e identidade cognitiva do movimento social. Eles são intelectuais do movimento porque criaram seus caminhos individuais ao mesmo tempo que criaram o movimento, como novas identidades individuais e novas identidades coletivas formando um mesmo processo interativo." (Eyerman & Jamison, 1991, apud, Souza, 1994: 51-52)

Para Souza tais intelectuais são as lideranças dos movimentos sociais que, "com o objetivo de impulsionar o processo de organização do movimento, normalmente comprometem-se com a luta e com as pessoas que participam da mesma. As lideranças são, portanto, as pessoas que possuem maior clareza dos acontecimentos políticos e do processo histórico das lutas no campo." (Souza, 1994:54) Em outras palavras, para a autora liderança é o indivíduo ou o conjunto de indivíduos comprometidos com um luta, e que se dedicam a organizar e desenvolver um movimento social. Líderes são pessoas que possuem uma consciência política desenvolvida, complexa, que os torna aptos a formular e analisar estratégias e conseqüências da luta. Para analisar o conceito de Movimento social, Souza faz menção as posições de Scherer-Warren (1993), Touraine (1989), Camacho (1987), Karner (1987), Ammann (1991) e Gohn (1993). A partir da análise dessas diferentes construções teóricas acerca do que seja Movimento Social, a autora propõe a sua concepção. Para ela Movimento Social é

“(...) sinônimo de Ação Coletiva, essas ações podem ou não, terem uma organização formal; ou a organização construirá apenas uma mediação do movimento social. (...) Portanto Movimento Social é uma ação coletiva de determinado segmento social pertencente a uma classe, que possui continuidade, devido o caráter educativo do mesmo”. (Souza, 19894:58-59)

A autora entende Movimentos Sociais como sendo um movimento de pessoas que se organiza em torno de algum tipo de carência e utopia. Esse grupamento se articula internamente desenvolvendo espaços comunicativos nos quais se dará o reconhecimento recíproco desses sujeitos. Movimentos Sociais são ações coletivas de classe que encontram sua gênese na dinâmica da sociedade. Eles visam a transformação das relações sociais existentes. Discordamos desse tipo de conceituação proposta por Maria Antonia. Nós entendemos que Movimentos Sociais não seja simplesmente o sinônimo de ações coletivas.

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Para nós, as ações coletivas são a resultante da atividade do movimento social, sendo ele organizado ou não. Assim, as ações coletivas são a materialização das ações dos sujeitos coletivos reunidos em torno de suas demandas. Maria Antonia de Souza analisa, ao longo de sua obra, o processo histórico de formação dos assentamentos Gleba XV de novembro, Santa Clara e União da Vitória. Esses assentamentos surgem na região do Pontal do Paranapanema e refletem o processo de distribuição de terra naquela região do Estado de São Paulo. As análises construídas por Souza são resultantes da metodologia por ela adotada: a História de Vida. É a partir daí que a autora buscou “(re)construir as categorias teóricas” por ela adotadas. (cf. Souza, 1994:230) Como resultado de seu trabalho de pesquisa a autora considera que na formação da identidade coletiva das lideranças, alguns aspectos são pontuais tanto para a formação destas com para que se possa determinar o tipo de liderança desenvolvida. Um primeiro aspecto são as condições nas quais o assentamento se originou. As lideranças dos assentamentos União da Vitória e Santa Clara são muito parecidas. Um aspecto que as aproxima é o fato de terem sido formadas num mesmo espaço político, elas surgem, assim como os acampamentos, mediante as discussões promovidas pelo MST. Esses assentamentos surgem da pressão que o MST fazia ao Estado no sentido de desapropriar áreas com posse ilegal ou improdutivas. O caso da Gleba XV de novembro é diferente. Ela surge da necessidade de se apaziguar a região, surge com a clara intenção do governo de diminuir a tensão na região. Muitas das liderança da Gleba participam da organização do MST. Contudo as que não participam tem uma postura distinta daquelas que estão engajadas. Sua postura têm um caráter tradicional. Entendem as ocupações (visão do MST) como invasões; de conquista (visão do MST) com ganho da terra e ao invés de enfatizar a coletividade como faz o MST, elas dão ênfase a posições individuais. Como nos demais trabalhos até aqui relatados, o de Souza também acaba por demonstrar que a relação Coletividade X Individualidade; Objetividade X Subjetividade constituem contradições do Movimento e, portanto, os desafios a serem enfrentados por este. As lideranças do MST que vivem na Gleba XV de Novembro têm dificuldade de articular questões coletivas em função de originalmente esse assentamento ter nascido da necessidade de se resolver questões como o desemprego, o problema dos desabrigados por enchentes e inundações, etc. As lideranças que efetivamente construíram as matrizes políticoideológicas da Gleba foram políticos do PMDB e não membros do MST. Isso explica porque muitas lideranças e a base desse assentamento vêem com gratidão a figura de políticos da região e do então governador do Estado de São Paulo Franco Montoro. Para esses o

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assentamento é resultante da ação desses políticos e não das ações coletivas do movimento. Enquanto os dois primeiros assentamentos exercem atividades com o fim de alcançar conquistas para a coletividade, os assentados da Gleba XV de novembro estão habituados a geralmente receber as coisas prontas. Para a autora o processo formativo da identidade coletiva das lideranças do MST começa das mobilizações deflagradas pelo Movimento. É mediante o reconhecimento recíproco que se estabelece a identidade do grupo. Reconhecer-se reciprocamente é reconhecer-se como iguais, como detentores das mesmas carências. É entorno dessas carências que se reúne o grupo, que se mobiliza para a luta e para a permanência na mesma. Além disso ela aponta para o fato de que junto com as carências objetivas – não ter terra, por exemplo – há o papel da imaginação: imagina-se soluções para a superação das carências. A atividade imaginativa pode apresentar as características de um projeto político. Assim, as carências agregam os indivíduos que se reconhecem uns aos outros como iguais e ainda impelem ao indivíduo a buscar, imaginar, soluções para a superação das condições objetivas a que ele está submetido. “Nesse sentido, a autonomia dos indivíduos deve ser preservada num Movimento Social, caso contrário teremos objetivos racionais fixados, em detrimento do emocional, das opiniões individuais dos participantes. Garante-se as condições objetivas e as subjetivas são massacradas”. (Souza, 1994:242) O trabalho de Souza deixa claro que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se articula em torno de uma carência Coletiva. O fato de os indivíduos sofrerem as mesmas carências é que os faz iguais. Contudo “(...) é face a um ideal, a uma utopia, que no caso do MST retoma os pressupostos da utopia revolucionária socialmente, em sua vertente radical, pouco aberta à liberdade individual, e muito centrado na ordem do coletivo, definido de cima para baixo”. (Souza, 1994:235) Por fim, a autora aponta para algumas alterações que as lideranças sofreram em decorrência do processo de luta pela terra. Algumas dessas alterações apontadas por ela são a percepção da complexidade da luta pela terra; a necessidade de agir em defesa de uma coletividade e em grupo; a incorporação de discursos políticos e do próprio Movimento; a militância ativa no movimento. Um dos problemas que a internalização do discurso, a militância abnegada ao movimento pode causar é o fato de assimilarem certas posturas ideais a ponto de “(...) não perceber problemas cotidianos, práticos que deveriam ser discutidos nos assentamentos. (...) Inclusive alguns trabalhadores não-líderanças comentam que “as lideranças têm muito discurso, mas na prática tudo vira em nada””. (Souza, 1994:239) Lideranças que se dedicam com afinco tendem a sacrificar sua individualidade em nome do

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coletivo, em nome do Movimento. Os dois trabalhos que se seguem são particularmente importantes para nossa pesquisa porque tratam diretamente de duas questões abordades nos demais trabalhos mas que aqui encontram-se bem mais aprofundadas. O primeiro dedica-se ao estudo da formação da consciência política na mesma linha que nos propusemos trabalhar, utilizando um referencial teórico bastante semelhante àquele utilizado em nossas pesquisas. As considerações e observações feitas pela autora foram e são altamente elucidativas frente as dúvidas com as quais nos deparamos no decorrer da analise de nossos dados acerca da formação da consciência política. O Modelo de análise da consciência utilizado nesse trabalho é o proposto por Alain Touraine (1966) e que serviu de base para o modelo de Sandoval (1989; 1994; 2001) utilizado por nós nesse trabalho. O segundo trabalho dedica-se a estudar as transformações na identidade do trabalhador rural bóia fria acampado na região paulista do Pontal do Paranapanema. Ele é importante por ser o primeiro trabalho de nosso conhecimento a voltar seu olhar para trabalhadores rurais acampados e não para trabalhadores rurais assentados. Além disso, ele pretende-se um trabalho psicossocial. Contudo entendemos que essa pretensão não se realiza. Para nós, a autora ensaia uma leitura psicossocial mas acaba fazendo uma espécie de 'clinica do social' ou no máximo um leitura psicossocial altamente psicologisante. Além disso, as evidência por nós encontradas no campo durante o verão de 2000, apontaram para considerações opostas àquelas obtidas pela pesquisadora. Um último dado importante é o fato de que nossos trabalhos observam acampados da mesma região, sendo que alguns de nossos sujeitos conviveram juntos visto o tempo de acampados que eles tinham na ocasião. A pesquisa realizada por Márcia Regina de Oliveira Andrade (1998) por ocasião de seu doutoramento na UNICAMP é o primeiro desses dois trabalhos e teve como objeto de estudo a "Formação da Consciência Política dos Jovens no Contexto dos Assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra". Ao se propor pensar o jovem no campo, Andrade levanta duas questões importantes, a saber: "(...) a presença do jovem nos espaços e canais de participação política e a permanência do jovem no campo" (Andrade, 1998:1). Partindo de dados de um levantamento de trabalhos em Programas de Pós-Graduação em Educação que tem o jovem como objeto e que mostra que apenas 4,9% deles dedicam-se ao estudo da participação política de jovens, Márcia constata a necessidade de se ampliar o espectro de estudos sobre jovens e questões políticas. A autora observa que a participação política de jovens em sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais tem sido tênue, o que indicaria pouca sensibilidade às questões sociais por parte da juventude.

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Ao que tange a permanência do jovem no campo, Andrade observa que é algo relevante a ser observado, pois isso implica diretamente na formação de uma nova geração de agricultores. Apesar da importância do tema, ela verifica que ele não tem sido objeto de estudos com a devida e necessária freqüência na academia brasileira. Apoiando-se em trabalhos como os desenvolvidos por Abramovat (1997), a pesquisadora nos alerta para a gravidade do quadro. Segundo Márcia, estão ocorrendo mudanças significativas no meio rural "(...) não só com o envelhecimento, mas também com a "masculinização" decorrente do êxodo juvenil feminino da população de agricultores" (Andrade,1998:1). Assim, a autora aponta para os efeitos desagregadores provocados pelo êxodo rural que, ao atingir principalmente o jovem, ele põe em risco a integridade do tecido social do campo brasileiro. Para Andrade, entender quem são os agricultores e agricultoras do futuro, como propões Abramovay, é essencial para que se possa pensar o jovem em assentamentos rurais. Além disso, a autora pontua que para que o MST possa implementar seu projeto políticoeconômico, a participação do seguimento juvenil é fundamental. Para que essas questões possam ser discutidas com propriedade, a autora propões o uso dos determinantes psicossociais por entender que eles encontram-se na base desses processos sociais. Para tratar do desenvolvimento da consciência políticas em jovens assentados, Márcia realizou estudos de caso sem preocupar-se com generalizações. Para ela, esse tipo de estudos contribui para o melhor entendimento de um dos grandes desafios dos movimentos sociais, a saber: o processo de conscientização. Márcia destaca que compreender esse processo é importante dentro da dinâmica do movimento "(...) uma vez que este encontra-se essencialmente vinculado à capacidade de mobilização para ações coletivas" (Andrade, 1998:5). Durante os anos em que pesquisou entre os sem terra de Sumaré, Andrade quis apreender o processo de construção e as maneiras diferenciadas da configuração da consciência política. Para tanto, ela adotou como pressupostos teóricos os trabalhos de Vigotsky, Leontiev, Moscovici, Doise, Berger & Luckmann, Touraine, Heller, Jodelet, Sandoval, Ciampa, Lane e Sawaia. A diversidade de autores foi aproximada pela autora a partir do estudo das categorias fundamentais do psiquismo humano, a saber: consciência Identidade e atividade. Em seu trabalho, Márcia desenvolveu um estudo longitudinal com jovens assentados em Sumaré I no qual realizou atividades que tinham como objetivo apreender a dinâmica existente entre as representações individuais e coletivas desses jovens. A noção de juventude adotada por Andrade conduz sua pesquisa a uma perspectiva relacional, na qual os jovens

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"(...) são caracterizados pela transitoriedade na passagem de uma condição infantil para a vida adulta, passagem marcada pela aquisição da habilidade plena para o desempenho do trabalho, pela busca de autonomia e de responsabilidade" (Andrade,1998:4). A autora contextualiza o assentamento onde vivem seus sujeitos como sendo "(...) espaços privilegiados para a ocorrência de práticas coletivas, nas quais os indivíduos, através da relações interpessoais, compartilham conhecimento e experiências" (Andrade, 1998:42). Essa colocação da autora é importante porque mostra o assentamento como sendo propício à aquisição de práticas políticas. Para ela, os assentados possuem uma especificidade que os diferenciam dos demais trabalhadores no campo visto possuírem "(...) um saber social elaborado a partir das práticas políticas vividas no movimento de luta pela terra" (Andrade,1998:2). É nesse espaço que os jovens estudados pela autora vem "formando suas consciências políticas" (Andrade,1998:42). Note-se que o assentamento estuda por Andrade é o mesmo que fora objeto de pesquisa de L. C. Tarelho dez anos antes. Levando em consideração o contexto em que esses jovens são socializados, a autora considera ser pertinente supor que os jovens portariam uma consciência política relativamente homogênea sem, com isso, cair no equivoco de supor que a consciência política tem um desenvolvimento linear e ou que seja a somatória das consciências individuais. Tendo esses pontos claros, a autora lança mão de procedimentos metodológicos que dêem conta de "(...) revelar, através da imagem fotográfica, as representações individuais e coletivas dos jovens sobre sua história de luta pela terra" (Andrade,1998:42). Num primeiro momento, a utilização do recurso fotográfico como mediador do processo de obtenção de seus dados possibilitou-lhe analisar as diversas versões da história da população assentada de Sumaré I. Andrade dividiu seus sujeitos de pesquisa em duplas e deu a eles uma máquina fotográfica com a qual foram capazes de construir histórias contadas em dupla. A essas histórias contadas em dupla através dos referentes fotográficos, Márcia chamou de "pequenas visões coletivas". E foi a partir dessas pequenas visões coletivas baseadas nos referentes fotográficos escolhidos pela dupla, que a autora pôde analisar o processo de formação do consenso egendrado pelo trabalho grupal, o qual culminou na elaboração de um caderno de fotografias apresentado por ela em anexo ao trabalho. Márcia pontua que "As fotografias, cuja característica é a estaticidade espacial e temporal, são aqui tomadas em interação com a linguagem textual, no sentido da complementaridade entre as linguagens que narram a história" (Andrade, 1998:73). O caderno de fotografias foi analisado pela autora sob duas perspectivas. Na primeira delas, Márcia analisa o material como "(...) produto de uma ação grupal que deu visibilidade

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a uma representação coletiva da história" (Andrade, 1998:73). Na Segunda, ela observou o processo de formação da consciência política coletiva evidenciado a partir do processo de montagem do caderno de fotografias pelas duplas. O caderno é elaborado pelos jovens a partir de suas "pequenas visões coletivas". Nesse processo, é visível a centralidade do processo de luta e conquista da terra vivenciado por suas famílias. Para contarem a sua história, esses jovens utilizam como roteiro a cronologia histórica do movimento dos sem terra de Sumaré I evidenciado em dois momentos distintos da luta: a luta pela terras em outras áreas e a luta pela terra já na região de Sumaré I. Num segundo momento da pesquisa, Márcia passou a observar seus sujeitos pelo período de três anos, tendo por base de sua observação o primeiro trabalho feito a partir de referentes fotográficos e que lhe forneceu uma série de relatos orais. No centro de suas observações durante esses três anos estava o desenvolvimento político de suas consciências. Nessa fase o interesse de Márcia era "(...) verificar como o momento captado no trabalho fotográfico se alterava em termos políticos, se as mudanças ocorriam na direção de uma superação ou de uma reposição dos conteúdos da consciência, ou seja, no sentido de ampliar a visão de mundo ou de manter o já compreendido" (Andrade, 1998:110). Para tanto, Andrade lançou mão do recurso das entrevistas realizadas individualmente e a cada ano, dos apontamentos etnográficos e da observação participante. Mediante a análise dos referentes fotográficos e dos discursos que acompanhavam aquela história retratada, a autora pôde constatar a importância que os grupos de reflexão que os pais desses jovens freqüentavam tiveram na reelaboração da noção de direitos. Essa reelaboração fez com que seus pais abandonassem as periferias onde viviam em situação de extrema carência e se lançassem na "(...) captura de uma vida digna, através da luta pela terra" (Andrade, 1998:73). Era o início da construção de sujeitos coletivos. Márcia observa que os jovens têm presente e compreendem a relação existente entre o capitalismo e as desigualdades sociais. Para ela, o grupo identifica claramente nas atitudes dos pais uma "(...) 'predisposição para a intervenção', através de seus engajamentos no movimento, organizando-se para defender o direito do cidadão ao acesso à terra" (Andrade, 1998:74). O percurso das fotografias do caderno move-se das desigualdades retratadas ao espaço das reuniões que são de fundamental importãncia para a compreensão do processo narrativo presente na história retratada no caderno. Retratar as reuniões é marcante porque permite-lhes aproximar-se de seu passado, da história da luta de seus pais e, hoje, sua também. Nesse sentido Andrade pontua que as reuniões retratadas por esses jovens

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"(...) representa um espaço de comunicação e interação, no qual as pessoas voltam-se para si mesmas, comparam-se umas as outras, interiorizam e exteriorizam seus valores, crenças e, nesse movimento dialético, transformam a realidade e a si mesmas. Os grupos de reflexão mencionados pelos jovens, constituíram espaços em que seus pais puderam se identificar, tomar consciência da injustiça, das privações coletivas e constituírem uma identidade coletiva, exigindo o atendimento de seus direitos. Os jovens trazem a representação de um tempo passado, vivido pelos seus pais, através da representação do tempo presente, vivido por eles mesmos" (Andrade, 1998:74).

Márcia observa que tais representações trazidas por esses jovens parece legitimar a idéia de que a luta pela terra traz em seu fundamento a crença de que as ações coletivas são formas eficazes de se promover a reestruturação fundiária no Brasil. Assim, a questão da prática social e política da luta aparece concretamente na participação organizada de suas famílias nas atividade de luta, nas ações coletivas propostas pelo movimento dos sem terra. Segundo a análise de Andrade, o tomar a estrada deixando a miséria da periferia para lutar por um pedaço de terra de forma organizada, ilustra a ruptura da vida cotidiana e dá concretude às palavras "ocupar, resistir e produzir". Nesse contexto, os jovens identificam as grandes extensões de terra que não cumprem a sua função social e os seu proprietários como os grandes opositores, que impedem a justiça social e exploram o trabalhador rural. Tendo isso presente, os jovens trazem a sua identificação com o universo ideológico, com as crenças e valores societais dos sem terra e entendem que a ocupação das terras que não cumprem sua função social "(...) coloca-se como uma ação "inevitável, necessária" para se contrapor à estrutura fundiária, concentradora da propriedade e da riqueza" (Andrade, 1998:75). Andrade vai realizando suas análises da consciência de forma a, na nossa opinião informalmente, observar as sete dimensões da consciência que Sandoval viria propor em artigo publicado em 2001. Durante a análise tanto dos referentes fotográficos quanto das transformações ocorridas, durante os três anos de observação desses jovens, em suas consciências políticas, Márcia observa tantos a mudança dos conteúdos de cada dimensão quanto as possibilidades com que elas podem se articular durante as diversas configurações da consciência política costadas por ela. Em seu trabalho pode-se observar o dinamismo com que as diversas dimensões da consciência política se interrelacionam conduzindo o sujeito a participar de ações coletivas. Todavia, a dimensão que é mais evidente é a dimensão da Identidade Coletiva. Mas mesmo sem serem nominadas explicitamente (ou melhor: sem que elas sejam identificadas enquanto dimensões constituintes da consciência política), as outras seis dimensões estão presentes. Quando Márcia discute ideologia no discurso dos jovens, é visível a dimensão das

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Crenças e Valores Societais ou quando se fala dos opositores dos sem terra na luta pela terra é clara a dimensão Adversários e Sentimentos Antagônicos por exemplo. Na pesquisa de Andrade é possível ainda encontrar alguns indicativos, ainda que parcos, a respeito da vida dos acampados e de suas famílias. Esses dados são obtidos a partir das reuniões que os jovens acampados fazem com a pesquisadora; durante os processos de confecção do caderno de fotografias e de confecção dos textos que dão suporte à história contadas mediante os referentes fotográficos. Os dados resultantes desse processo são analisados pela autora e refletem a memória coletiva9 desses sujeitos. Os jovens organizam seus referentes fotográficos nos quais aparece claramente a história das

"(...) terras que devem ser ocupadas: terras improdutivas delimitadas por cercas e terras abandonadas (...) Os referentes fotográficos são do acampamento, mostrando um barraco amplo da cozinha comunitária construída pelos homens, e de pessoas num primeiro plano e ônibus ao fundo ilustrando a articulação das famílias com os grupos de apoio. Esses laços de solidariedade conquistados e acalentados pelas famílias, revelam para os jovens, além do apoio, a necessária articulação campo-cidade, através de vários setores da sociedade, para a realização da reforma agrária" (Andrade, 1998:77) (Grifos nossos)

A observação de Márcia aponta para uma espécie de parceria que passa pela partilha no processo de formação da consciência. Essa partilha não se restringe apenas à partilha que os indivíduos estabelecem entre si, mas também àquela que os sujeitos coletivos estabelecem, a saber: família e família; família e MST; família e sociedade civil e MST e Sociedade civil. É mediante a essa partilha que os laços identitários são construídos e fortalecidos. É também mediante a essa partilha, que implica na ressignificação da história para qual cada sujeito tem uma versão, que se constrói a memória coletiva. Em nosso entender, Andrade ao utilizar-se das reuniões grupais e da construção dos textos e do caderno de fotografia feitos coletivamente, acaba por desencadear, durante o resgate da história feito pelos sujeitos da pesquisa, uma reelaboração coletiva da história dos sem terra de Sumaré. Em outras palavras, ela propicia aos jovens um contato com a memória coletiva da história da luta da população de Sumaré I. Sendo assim, podemos inferir que ela acaba encontrando um importante subsídio para o estudo da consciência política dos jovens 9

Para Ansara (2001) Memória coletiva "(...) não é a somatória das memórias individuais. Um mesmo evento ou um fato comum a um determinado grupo permite diferentes reconstituições, diferentes lembranças, pois a memória é reconstituição psíquica que leva a uma representação seletiva do passado, que não é só do indivíduo, mas de um indivíduo inserido num grupo e num contexto social e político. (...) Do ponto de vista psicossocial, a memória coletiva aparece como um 'mosaico', onde o significado que cada um atribui ao mesmo evento tem uma relação íntima com a identificação social". A esse respeito ver os trabalhos de Soraia Ansara, Repressão e Lutas Operárias na Memória Coletiva da Classe Trabalhadora em São Paulo 2000 - Dissertação de Mestrado; Memória Coletiva: Um Estudo Psicopolítico de uma Luta Operária em São Paulo, Revista Psicologia Política vol. 1, Nº 2, 2001.

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assentados em Sumaré I na memória coletiva que emerge da leitura das fotografias e textos que produzem a ressignificação dessa história. É a partir da leitura dessa memória coletiva materializada nos textos e caderno de fotografia que Andrade compreende parte do processo que é objeto de seu estudo. Nesse sentido entendemos que, ainda que Andrade não faça esse tipo de leitura, ela abre espaço para uma releitura desse tipo. Um exemplo dessa possibilidade pode ser percebido quando a autora diz que:

"A história coletiva vai emergindo sob dois aspectos. De um lado, a história vivida norteia a escolha das fotografias como roteiro. Por outro lado, as imagens provocam, a partir da sua leitura, novas representações: "Olha, esse trabalho é que devia mostrar o trabalho braçal..." Na trama de significações, diferentes níveis de compreensão e de sentido vão se explicitando através da linguagem, nas interpretações dos jovens. Em vista disso, a própria situação coletiva impõe ao grupo a necessidade de reconhecimento comum da história vivida. (...) Retomam os fatos vividos na luta pela terra, organizam as seqüências fotográficas, verbalizam as suas opiniões, discutem sobre seus significados" (Andrade, 1998:80)

Quando Márcia passa a avaliar a produção coletiva que resultou na ressignificação das pequenas visões coletivas, ela nos dá indicativos de que o processo de luta no qual as famílias se engajam é determinante na formação de sujeitos coletivos e no desenvolvimento de práticas sócio-políticas. As experiências vividas em cada família e as formas com que cada jovem se apropria delas, com que cada um desses jovens "(...) viveram, guardando as especificidades das experiências" (Andrade, 1998:108) confere a subjetividade o papel diferenciador das configurações da consciência de cada um deles. Nas palavras da pesquisadora "O que temos em questão são as subjetividades nas representações de cada jovem que os diferenciam, conferindo-lhes diferentes níveis de consciência" (Andrade, 1998:108). A autora conclui que a construção coletiva da história dos sem terra de Sumaré I além de propiciar aos jovens uma melhor compreensão do que significa lutar pela terra e da importância de sua inserção nessa luta contínua, gerando neles um comprometimento maior com as questões coletivas do assentamento, possibilitou a ocorrência de um processo de conscientização mediado pela apreensão das subjetividades através do processo grupal e da reflexão da realidade social deles. Assim, o processo de conscientização é entendido pela autora como sendo um "(...) processo em que os sujeitos se transformam, apropriando-se da nova história. (...) As representações sociais se modificam através das interações sociais, quando se tem a possibilidade de compartilhar conhecimentos, saberes, valores, atitudes e, na dialética da relação indivíduo-grupo e grupo-indivíduo, a consciência configura-se em um processo contínuo de transformação." (Andrade, 1998:108-09).

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Durante os três anos que se seguiram a elaboração do caderno de fotografias e dos textos escritos pelos jovens, Márcia dedicou-se, como já pontuamos, a desvelar os conteúdos da consciência desses sujeitos, estando eles inseridos em seus contextos singulares. Resultou desse trabalho a identificação por parte da autora de três modalidades de consciência, a saber: 1) Consciência Fragmentada; 2) Consciência Possível e 3) Consciência Transformadora. A consciência fragmentada é entendida pela autora como sendo aquela em que a reposição de conteúdos ocorre de maneira a manter a realidade vivida, isto é, trata-se da "(...) consciência apreendida no dia-a-dia, nas relações vividas" (Andrade, 1998:132). Nesse contexto da consciência, Márcia observou que os sujeitos que nele se encontram "(...) pouco ou nada fazem para mudar a realidade na qual transcorrem suas vidas cotidianas (...) Os desejos e os sonhos, a despeito das limitações objetivas, parecem estar completamente dissociados da realidade em que vivem, como se a consciência desses jovens fosse de que nada podem fazer para melhorar suas vidas, para influir no destino que vem se configurando, cotidianamente, como realidade posta, dada." " (Andrade, 1998:132). Assim, a consciência fragmentada caracteriza-see pelas percepções orientadas e configuradas pelo universo social, reduzidos à rotina cotidiana, a qual é tomada como evidente por si só, natural. Entretanto, isso não constitui a perda da autonomia por parte desses sujeitos Ainda que a interação como o outro esteja restrita, para esses sujeitos que possuem essa configuração, à família, ao ambiente familiar, esses jovens vão atribuindo significados a si mesmos e ao mundo, vão elaborando projetos de vida. Para Márcia isso se dá a partir "de seu desempenho, refletido pelo outro" (Andrade, 1998:133) . Portanto, a autora afirma que a análise das dimensões sociais "permite-nos configurar um estado psíquico de consciência, que se apresenta fragmentado, na apropriação do mundo" (Andrade, 1998:133). Esse tipo de consciência apresenta, de acordo com Andrade, uma espécie de 'falha na racionalidade' que faz com que os jovens que possuem uma configuração da consciência desse naipe dissociem os elementos da realidade das questões mais mediatas e gerais da sociedade. Em outras palavras, isso significa dizer que esses jovens estão " (...) desprovidos de senso crítico, e quando o há, em algum nível, não avançam numa elaboração mais argumentativa ou analítica, permanecendo num relato superficial e fragmentado. (...) Não conseguem (...) estabelecer uma relação entre seus interesses enquanto classe social, e os interesses antagônicos. (...) Quando encontram adversários, estes são localizados no próprio grupo" (Andrade, 1998:134). Desse modo, a vida cotidiana desses jovens é marcada pela alienação advinda da aceitação não refletida, advinda do não questionamento do determinismo através do qual a

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rotina diária é entendida. Dessa visão marcada pelo determinismo emerge a naturalização das desigualdades e da dominação nas relações de poder da sociedade, configurando, assim, uma consciência fragmentada. A consciência Possível diferencia-se da consciência fragmentada por ter seu espectro de relações ampliado. Nesta configuração da consciência o sujeito busca referências em um outro que encontra-se para além das fronteiras familiares. Além disso, há por parte dos sujeitos um

certo nível de atividade crítica, de questionamento. Os caminhos a serem

seguidos por eles não encontram-se traçados a priori. Esse tracejar pode ser fruto de suas escolhas. Aqui os sujeitos percebem que as demandas a serem supridas tanto no seu cotidiano quanto no cotidiano da coletividade em que encontram-se inseridos podem ser questionadas e modificadas por suas intervenções. No caso dos jovens estudados por Andrade, escola é o espaço de socialização que permite transcender a fragmetação e adquirir a capacidade crítica. Questões como "(...) a adequação curricular nos cursos fundamental e médio, para os jovens do campo; a defasagem entre as aspirações dos jovens (o curso escolhido ou a ocupação profissional desejada) e sua real possibilidade de concretização" (Andrade, 1998:140) permeiam as interrogações desses jovens. Na configuração da consciência possível os sonhos estão presentes. Os jovens que possuem esse tipo de configuração da consciência política proposta por Andrade traçam, sem pressa, seus planos para o futuro. A universidade é o objetivo maior a ser alcançado. Suas escolhas encontram-se marcadas por uma visão pragmática, de utilidade na sua vida cotidiana, sem, no entanto, deixar de ter presente as dificuldades implicadas na luta por esses sonhos. Segundo Andrade, "Os jovens julgam que o acesso à universidade pública é praticamente impossível, pela exclusão do processo educacional a que são submetidos na questão da aquisição do saber e da profissionalização. O ensino público não oferece condições de prepará-los para a universidade pública. Ainda assim, arriscam sonhar com os curso de Engenharia Agrícola, Direito, Administração e Engenharia Civil" (Andrade, 1998:142-43). Andrade adota os conceitos de espaço comunicativo e espaço interativo da teoria de Habermas (1985) para entender melhor os processos de conscientização social e política da Segunda geração dos sem terra de Sumaré I. Tais conceituações também foram trabalhados por Tarelho (1988) e Fernandes (1996) em suas pesquisa. Para a análise da consciência possível eles se revelam fundamentais, pois a aquisição de posturas críticas e o aumento da participação política desses jovens foi potencializada mediante a criação de espaços de interação e comunicação. Nesses espaços os jovens tinham claro a questão do custo -

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benefício para eles mesmos durante a mobilização dos recursos disponíveis entre eles. Assim, os encontros semanais dos jovens e atividades como a elaboração do caderno de fotografias se mostraram importantes para abrir espaços de reflexão a respeito de suas próprias privações. A pesquisadora observa que nessa configuração da consciência existem noções de estratificação social sem que, no entanto, esses sujeitos consigam conceituar a dinâmica e a estrutural societal. Adversário ou não são reconhecido ou, quando o são, o são sem que a relação existente entre o seu grupo e os adversários seja compreendida em sua real dimensão. Apesar disso, seus sujeitos buscam romper com as visões naturalizadas em função de um certo desconforto com esse tipo de visão de mundo. Assim, Andrade aponta para o fato de que as consciências de seus sujeitos "(...) cada uma em seu nível, expressam a incorporação de conteúdos críticos, com indícios político ideológicos, revelando um processo de transformação no sentido da superação" (Andrade, 1998:172). Porém, mesmo que a tendência seja de ampliação da consciência política a partir da superação de certas visões de mundo naturalizada, ainda há a possibilidade de haver uma reposição desse tipo de visão o que significaria uma não-politização. Nesse sentido a autora aponta para o fato de que a intervenção de um mediador poderia auxiliar nesse processo de ampliação da consciência política de sujeitos que tenham esse tipo de configuração. Segundo Andrade, "A percepção da realidade imediata talvez precisasse ser interpretada por algum mediador, que desse um sentido corrente às suas ações ainda sem direção" (Andrade, 1998:174). A consciência transformadora proposta por Andrade está marcada, no nosso entender, por uma delimitação clara dos conteúdos que compõe cada uma das dimensões da consciência política segundo o modelo de Sandoval (2001). Na consciência transformadora está presente a construção, por parte desses jovens, de projetos de vida permeados de uma visão de mundo desnaturalizada e com senso crítico. Tais projetos surgem sem que projetos pessoais se diluam nos projetos da coletividade. Antes o contrário: "É na confluência do projeto pessoal com o projeto coletivo do assentamento que estes jovens traçam seus projetos de vida" (Andrade, 1998: 197). Os jovens que apresentam a configuração da consciência (política) transformadora são capazes de compreender a dimensão histórica de suas vidas, da luta e do mundo no qual estão inseridos. Eles trazem consigo a crença de que "a luta nunca pára", eles sabem que o caráter histórico da luta pela terra "(...) ultrapassa o seu tempo histórico determinado" (Andrade, 1998: 198). Andrade aponta para a transformação da realidade dos jovens que possuem essa

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configuração da consciência política. Essa transformação se dá a partir da mediação do MST que tem um caráter formativo. Segundo eles, o movimento não deve medir esforços para propiciar essa formação a outros jovens. Tal formação que foi capaz de potencializar a consciência política nesses jovens aconteceu através dos cursos técnicos oferecidos pelo Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária ITERRA10. A experiência vivida pelos jovens longe da família e de seu assentamento provoca uma ruptura em seu cotidiano, um rompimento com a territorialidade na qual estavam inscritos e com a qual estavam habituados. E é nessa condição que eles identificam-se de maneira concreta com o ser sem terra, o ser assentado, o ser parte da luta contra o latifúndio e pela reforma agrária. Se antes essa questões tangenciávam suas vidas mediante a rememoração da luta feita pelos pais; a participação política dos pais; a insistência dos pais para que se engajassem na luta; agora ela se faz cotidiana e eles se constituem os atores dessa luta através dos trabalhos e estudos realizados por eles no ITERRA. Para Andrade "Não bastou seus pais insistirem para que participassem das ações políticas organizadas pelo MST. Foi a experiência na escola do sul que possibilitou conciliar o significado do movimento e os anseios da juventude" (Andrade, 1998: 205). A autora ainda aponta para o fato de que a experiência na escola do sul, "(...) através da mediação de seus pares, professores e o pessoal do MST, propiciou uma re-significação do MST, da luta pela terra, do assentamento, das famílias assentadas, de seus pais e de si mesmo. Nesse processo de socialização, emergiu uma outra identidade, através do personagem militante" (Andrade, 1998: 208). De outro modo pensamos que seja correto analisar que há por parte dos jovens uma apropriação do 'nós' que se materializa no coletivo do MST. Assim, é patente a observação por parte da pesquisadora de que esses jovens se reconhecem pertencentes a uma classe social "(...) à classe trabalhadora do campo. Ambos falam na primeira pessoa do plural: a gente, nós" (Andrade, 1998: 201). Os jovens que apresentam a consciência transformadora, diferentemente daqueles que apresentam a consciência fragmentada e não demonstram serem capazes de sonhar ou identificar seus 10

ITERRA é o nome do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária sediado no Estado do Rio Grande do Sul, no município de Veranópolis. O ITERRA foi criado em 1995 pela Associação Nacional de Cooperação Agrícola - ANCA e pela Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil CONCRAB com o objetivo de desenvolver atividades de formação e pesquisa relacionadas à reforma agrária. O ITERRA realiza essas atividades através de cursos de formação e de escolarização baseados na pedagogia da alternância, o que resulta em uma proposta alternativa de escolarização disponível à juventude rural. Andrade avalia que "(...) a escola do sul rompe com o aspecto manipulativo em que se reproduz o pragmatismo rotineiro. Contribui, dessa forma, para uma formação onilateral do ser humano, como uma proposta que se baseia na profissionalização (formação técnica) vinculada a um contexto histórico, social, comprometido com um "horizonte político", pautado em novos valores com a cultura da cooperação solidariedade, dignidade, cidadania e o "cultivo da capacidade de sonhar", ter esperanças" (Andrade, 1998: 231).

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adversários ou ainda daqueles que apresentam uma consciência possível e sonham de acordo com aquilo que lhes parece razoável possível e identificam de maneira confusa seus adversários; apresentam clareza em relação a questões político-ideológicas, a classe social e em relação aos adversários a serem enfrentados por eles durante a luta. Portanto, falar históricamente da luta pela terra travada pela classe trabalhadora do campo significa para esses jovens "(...) dizer das injustiças, da violência, da impunidade e da conivência do governo" (Andrade, 1998: 201). Isso se faz mais claro quando eles explicitam suas posições em relação aos seus adversários. Para esses sujeitos existe uma nefasta aliança do governo com os latifundiários. E através dessa aliança , " (...) nessa luta ideológica, farão o possível para manipular as opiniões e crenças da sociedade civil, visando manter a atual estrutura agrária" (Andrade, 1998: 203). Para contrapor-se a essas artimanhas dos latigrileiros amigos do Estado, esses jovens vem na mídia o meio de dar visibilidade à realidade bem sucedida que é o assentamento de Sumaré I e demais assentamentos frutos da luta pela terra travada pelos companheiros do MST entre os quais eles se inscrevem. Questões como a reforma agrária é vista por eles de modo crítico. Não a reduzem ao acesso a terra mas sabem que para que ela seja implementada com sucesso é necessário que o Estado disponibilize recursos para a produção dos assentados. Quando do seu ingresso no ITERRA o dado motivador passava pela idéia de aventura. Ao retornarem ao seu assentamento três anos depois, esses jovens inscrevem-se nessa realidade como membros comprometidos com o coletivo assentamento. De aventureiros à lideranças que querem implementar democraticamente uma cooperativa para dar novo impulso ao assentamento. Ainda que muitas vezes o movimento viva a dicotomia posta mediante atitudes ora democráticas ora autoritárias e tuteladoras que acabam por garantir a negação do sujeito em prol do coletivo e, por isso, atue de forma opressiva sobre esses jovens, eles lutam para garantir a concretização de seus sonhos pessoais e atender as necessidades da coletividade. A experiência da cooperativa pareceu-nos o lugar onde a experiência militante desses jovens luta pela emancipação das tutelas por vezes opressivas do MST e baseia-se concretizar-se mediante a construção democrática Apreendida do movimento. Essa realidade marcada por antagonismos vivida no interior do MST é muito semelhante àquela vivida por esses assentados no início de sua história quando a Igreja atuou num primeiro momento como insentivadora de atitudes democráticas e num segundo momento como tutora autoritária do futuro os neoo-assentados de então. Conforme Tarelho (1988) essa tentativa de tutelar as decisões desses assentados fez com que a desmobilização desses sujeitos ocorresse. A

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cooperativa vem, treze anos depois, acabou por constituir-se em uma espécie de promotora de novos espaços interativos visto que os anteriores haviam se perdido ao longo desses anos de assentamento. Assim, o momento de concretização dessa cooperativa suscitou uma "(...) renovação, onde as pessoas foram convidadas , convocadas a agirem por meio de ações voltadas para o coletivo, reavivando os laços de solidariedade e união que, ao que parece, o tempo havia apagado" (Andrade, 1998: 218). Dessa forma, pode-se dizer que a interiorização por parte desses jovens de novos valores e atitudes decorrentes da matriz ideológica do movimento possibilitou a identificação dos jovens com o coletivo MST "(...) engendrando consciências em processo de transformação, mais críticas, mais politizadas ideologicamente" (Andrade, 1998: 232). Durante o processo de construção dessa consciência esses jovens necessitaram romper com crenças e valores societais cristalizados, naturalizados; foi necessário que romper com um cotidiano que não lhes oferecia qualquer perspectiva positiva de melhoria de vida. Esse romper com a alienação cotidiana possibilitou-lhes constituírem-se militantes do MST. Ao romperem com esse cotidiano esses jovens passam a compartir com seus pais os ideais da luta, complementando e dando asas a novos sonhos. Como observou muito bem Andrade, essa complementaridade se dá na medida em que enquanto seus pais lutaram pela terra, os jovens "(...) lutam pela continuidade e permanência na terra. Seus pais tornaram-se agricultores assentados. Os jovens querem sua concretização enquanto empreendedores rurais. Na esfera da militância, ao se tornarem sujeitos de suas próprias histórias, as duas gerações se cruzam na luta pela terra, pela reforma agrária e por mudanças sociais" (Andrade, 1998: 236) Assim, quando lançamos um olhar na totalidade dos trabalhos até aqui analisados e o nosso, vemos que caminham por trilhas semelhantes. Todos eles apontam para antagonismos vividos no interior do MST; apontam para a existência de dois grupos distintos que estão intermediados por um grupo de transição e apontam para a necessidade de se tratar das questões referentes ao coletivo sem que a dimensão individual acabe por ser negligenciada. Caminho teórico e constatações distintas dos trabalhos anteriores é encontrada na pesquisa que segue. Wilka Coronado Antunes Dias (1999) em sua tese de doutoramento em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e intitulada "Vidas construídas na terra: O ir e vir dos trabalhadores rurais" realiza, como já apontamos, o primeiro estudo que temos conhecimento acerca dos trabalhadores rurais acampados e integrantes do MST e é o segundo dos trabalhos anteriormente citados por nós. Os sujeitos de sua pesquisa não são devidamente apresentados. Deles nada sabemos além de que eram trabalhadores volantes acampados da

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região do Pontal do Paranapanema. Os entrevistados de Dias encontravam-se no acampamento Santa Rita localizado no trevo do município paulista de Teodoro Sampaio no ano de 1996 quando foram entrevistados pela pesquisadora. Vale dizer aqui, que grande parte das famílias acampada na região do Pontal até o ano de 2001, também tiveram seu barraco no acampamento Santa Rita. Dias retoma o trabalho de Maria Conceição D'Incao (1975) por considerá-lo relevante e atual ainda que já se tenham passados 20 anos. Para a autora, a realidade do trabalhador rural volante, mais conhecido como bóia-fria, continua inalterada. Em seu trabalho ela revisa a obra Bóia-fria: Acumulação e Miséria de autoria de D'Incao. Ao retomar o trabalho de D'Incao, Dias lança mão dos depoimentos colhidos pela autora realizando uma nova análise dos dados por ela coletados a duas décadas. Para WliKa, "(...) realizar uma retomada da pesquisa de D'Incao (1975) pode trazer um enriquecimento dos resultados apresentados pela autora e ser uma contribuição da Psicologia para a compreensão de aspectos pouco valorizados em pesquisas sobre o seguimento dos trabalhadores rurais" (Dias, 1999:6). A autora ainda considera que o trabalho de M. C. D'Incao desenvolve uma análise marxiana a partir da idéia de acumulação do capital, o que coloca as contribuições de D'Incao no campo da sociologia. Esse fato é que faz com que retomar D'Incao seja importante já que as questões da subjetividade ocupam o segundo plano. Assim, para Wilka

"(...) pode ser acoplada uma outra análise: a do olhar para a

problemática incluindo o aspecto subjetivo que envolve esse tipo de trabalhador" (Dias, 1999:6). Entendendo que tanto o trabalhador rural pesquisado por D'Incao como aqueles que Dias entrevista no Pontal do Paranapanema, permanecem movidos pelo desejo de possuir "(...) algo que lhe restitua a identidade". Este algo é a posse da terra. Adquirir um pedaço de chão é, para a autora, uma oportunidade de evitar a dispersão familiar, de obter uma espectativa de futuro que, no caso daqueles que são mais velhos, concretiza-se na realização dos filhos. WliKa em sua análise lança mão de conceitos psicanalíticos. Dejours e Freud serão seus referenciais no diálogo estabelecido entre o seu trabalho e o trabalho de D'Incao que sutenta-se nas concepções marxianas. Um traço que o trabalho realizado por Wilka tem em comum com os outros que apresentamos nesta revisão bibliográficas é a certeza de que os objetivos gerais do MST e os objetivos de cada trabalhador rural muitas vezes ocupam faces opostas de uma mesma moeda. Segundo Dias, "A luta por uma mudança na estrutura agrária, uma transformação nas relações de produção na agricultura, através de ações de resistência e ocupação de terras,

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objetivo maior do MST, pode não estar no âmago do que os trabalhadores individualmente sentem, percebem e estabelecem como seus próprios objetivos" (Dias, 1999:7). Como em seu trabalho há uma releitura da obra de D'Incao, Dias busca encontrar entre as famílias reunidas em acampamentos do MST trabalhadores rurais volantes que vivenciaram os processos de transformação no meio rural, promovidos pelo avanço do capitalismo no campo. Para a autora, esses sujeitos poderiam ser os participantes de hoje do MST. D'Incao e Dias realizaram seus trabalhos com a mesma classe de sujeitos e na mesma região. Na busca de produzir uma análise dos aspectos psicossociais referentes ao trabalhador rural volante, Wilka recorre as seguintes categorias: Sofrimento Psiquico no trabalho; Identidade; Precariedade no Mundo da Vida e Desenraizamento. A categoria Sofrimento Psíquico no trabalho proposta por Dias tem como base teórica o trabalho de Dejours acerca do sofrimento psíquico em trabalhadores da indústria. Para ela, ainda que não hajam estudos acerca do sofrimento psíquico no campo ele existe e se revela a partir da impossibilidade de alcançar uma vida mais estável. Na realidade dos trabalhadores volante essa dificuldade é mais constante, constata a autora. Wilka defende que “(...) o trabalho rural (...) também se revela como uma atividade onde a relação homem-trabalho é atingida, é afrontada pelo sofrimento psíquico; que é percebido na necessidade de deixar o passado para retomar um outro trabalho ou enfrentar a falta dele e dar início a uma longa e enigmática trajetória para o futuro” (Dias, 1999:79). Em nosso entender a questão do sofrimento psíquico é tratada por Dias como algo que rouba a capacidade de reorganização do sujeito. É como se ele não fosse capaz de superar suas privações por não ter mais um sonho para viver. Daí a perspectiva sombria retratada pela autora. Todavia não nos pareceram suficientes os relatos por ela apresentados para justificar tal posicionamento. Além do mais, os estudos aqui apresentados e discutidos e os dados que nós coletamos de acampados que são oriundos da mesma região e que também passaram pelo acampamento Santa Rita, mostram que o sofrimento psíquico no trabalho11 não os impediu de sonhar, antes o contrário, eles trabalham duro na expectativa de verem alguns de seus sonhos e dos sonhos dos filhos concretizados. A filiação ao movimento social possibilita aos trabalhadores rurais um resgate de uma identidade de trabalhador permeada por um sentimento de dignidade. Dias afirma que “Compreender os processos psíquicos, especialmente os relativos ao

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Ainda que essa não seja uma das categorias por nós analisadas, entendemos que os relatos presentes nesse trabalho podem subsidiar essa nossa impressão. Os sujeitos e os dados desta pesquisa aos quais nos referimos neste capítulo serão apresentados nos capítulos IV e V.

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sofrimento no trabalho, que para Dejours é ‘inevitável e ubíquo’, é preciso considerar que este sofrimento tem raízes na história singular de todo o sujeito sem exceção” (Dias, 1999:90). A compreensão da autora do que seja identidade está muito próxima de uma idéia de personalidade. Identidade e subjetividade parecem, em diversas ocasiões, ser sinônimas. Dias propõe que “(...) a identidade é a própria criação que a pessoa faz de si” (Dias, 1999:96). O indivíduo é entendido pela autora “ (...) como um conjunto de relações dentro de um contexto histórico. Na construção de sua identidade, o passado é referência de sua história” (Dias, 1999:96). Ao identificar na fala de um sujeito de pesquisa de D’Incao que a “(...) tentativa de manter sua identidade contrapõe-se à necessidade de sobrevivência” (Dias, 1999:99) revela que o entendimento da autora está distante de observar o sujeito coletivo e a identidade coletiva dos trabalhadores volantes. Desse modo, nossa compreensão do que seja identidade social é significativamente diversa daquela apresentada por Dias. Vale lembrar que as inferências feitas pela autora acerca do seja a categoria identidade, estão ancoradas no trabalho de Antonio da costa Ciampa (1987), encontrando-se pouco desenvolvidas no corpo do trabalho e por isso é, para nós, bastante frágil. Precariedade no mundo da vida é a categoria utilizada pela autora para localizar o sujeito sofredor no cotidiano. Ainda que o termo recorde a teoria habermasiana, a autora não o cita em momento algum. A base teórica dessa categoria está no pensamento de Pièrre Bourdieu. Dias relaciona a precariedade da vida “(...) a um conjunto de representações e práticas geradas historicamente, como a divisão social do trabalho na categoria sócioprofissional focalizada: a do trabalhador rural” (Dias, 1999:107). Ao discutir essa questão, Wilka C. A. Dias, aproveita para analisar a precariedade da vida do acampado. Seus dados indicam para um sujeito sem expectativa de vida. As expectativas de vida desses sujeitos teriam ficado para trás e estariam sublimadas no sofrimento psíquico positivado através da entrega ao trabalho para tentar melhorar o futuro da prole. Contudo, para a autora tal tentativa provavelmente não vai resultar em melhoria real e os filho desses sujeitos irão repetir as histórias de pais e avós. A precariedade vivida por esses sujeitos já é parte de seu cotidiano e por isso romper com ela e buscar ascender é pura ilusão. Dias identifica na impossibilidade de manter a regularidade da vida escolar um dos principais retratos da precariedade de vida experimentada pelos bóias-frias. É no modo precário de vida e na permanente transição entre o campo e a cidade que se dá a

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impossibilidade de estudar. Outro motivo atribuído pelos sujeitos pesqisados para que isso ocorra, é a necessidade de auxiliar a família no trabalho volante. Vilka observa que “os discursos se repetem – a vida no trabalho sendo priorizada em relação à na escola. Primeiro é preciso trabalhar, produzir, sustentar a si e ajudar a sustentar a família, e depois pensar no seu preparo profissional ou no investimento na instrução escolarizada” (Dias, 1999:112). Na tentativa de mostrar o continuum existente entre a realidade agrícola vividas pelos trabalhadores rurais volantes, Dias recorre a uma pesquisa desenvolvida por Martins (1991) com crianças filhas de trabalhadores rurais que migraram em busca de uma vida melhor. Segundo a autora, as constatações obtidas por ela e Martins já encontravam-se de algum modo na obra de D'Incao (1975). A leitura feita pela autora dos trabalhos de D’Incao (1975), Martins (1991) e dos dados por ela mesma recolhidos no campo, tende a compreender os determinantes sociais como imutáveis, intransponíveis. Para essa pesquisadora,

“Não é preciso muito para perceber que suas determinações estão presentes de forma restrita aos padrões de escassez, de precariedade a que já se acostumaram, se adaptaram. No cotidiano, condições precárias de vida fazem parte de seu espaço psicológico, com origens na sua história pessoal e familiar e acabam determinando as expectativas para o futuro que não se distanciam daquela já vividas por seus pais, por eles próprios e provavelmente por seus filhos” (Dias, 1999:114)

Outra vez estamos em desacordo com Dias. Entendemos que a crença na mudança social observada entre os sem terra esteja sustentada também na expectativa de transformar a realidade social radicalmente. Em outras palavras a perspectiva de um futuro melhor é um dos componentes que os mantém firmes na luta a despeito de toda a precariedade vivida por seus pais, por eles ou por seus filhos. A luta pela terra prometida é a tentativa de dar concretude ao sonho de uma vida melhor, é a possibilidade de romper esse ciclo, que no trabalho de Dias significa, ao nosso ver, compulsão à repetição e renegação. Em nosso entender as vidas construídas na terra são vidas construías na luta e cheias de esperança e de perspectivas melhores do que aquelas vividas no passado. Não negamos que a vida de privações deixe marcas profundas que muitas vezes são repetidas em suas vidas. Porém, elas não são impeditivo à mudança. Terem ingressado nessa luta é um sinal significativo dessa acertiva. Nesse aspecto Dias caminha em sentido oposto ao demais trabalho aqui apresentados e ao nosso. Como Sousa, nós entendemos que a "(...) simples participação em manifestações pode levar o indivíduo a repensar sua situação concreta - realidade - na sociedade em que vive, assim como a sua prática social". Portanto,

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caso as expectativas para o futuro desses sujeitos “(...) não se distanciam daquela já vividas por seus pais, por eles próprios e provavelmente por seus filhos” (Dias, 1999:114), seu ingresso na luta e a sua possível participação de empreitadas coletivas não teria sentido. Baseando-se em Simone Weil (1996), Wlka busca na categoria desenraizamento, discutir a vida dos acampados bóias-frias a partir da idéia de que seu trabalho volante impede o enraizamento e mantém o desenraizamento iniciado com a migração desses sujeitos de suas terras natal. Dois são os aspectos apontados por Weil e que Dias entende serem relativo ao caso dos trabalhadores rurais. Dias refere-se ao desemprego e a instrução. Para a autora, a expulsão do campo

“(...) provoca a desvinculação com o trabalho da terra, um dos caminhos para o desemprego, que funciona como: “um desenraizamento de segundo grau. Eles não estão em suas casas nem nas fábricas, nem em seus alojamentos, nem nos partidos e sindicatos – que se dizem feitos para eles, nem nos lugares de prazer, nem na cultura intelectual, se tentarem assimilá-la” (Weil, 1996:413)”. Desta maneira, afastados dos vínculos com o cenário urbano, não consegue encontrar um espaço que lhe permita sentir-se como trabalhador desse meio, um cidadão reconhecido como tal”. (Dias, 1999:118)

Buscando apoio em Weil e D'Incao, Dias relaciona a ida do trabalhador rural para a cidade em busca da estabilidade do emprego fixo ao afastamento das possibilidades de enraizamento e, por conseguinte, considera a questão como desenraizamento. Assim, bóiasfrias e acampados que não conseguem adaptar-se a 'urbe', encontrar o emprego fixo que lhe permita tornar-se 'cidadão urbano' e por isso encontram-se distanciados de suas raízes, "(...) buscam apoio nos movimentos sociais organizados, numa tentativa se sentirem escorados, sustentados emocionalmente pelo grupo" (Dias, 1999: 119). Mas Dias, apesar de entender que os movimentos sociais atuam como uma escora psíquica, não faculta a possibilidade desses movimentos sociais organizados atuarem na reorganização das complexidades das configurações das consciências políticas. Entendemos que o trabalho de Wilka, graças a defesa que a pesquisadora faz da impossibilidade do trabalhador transformar os determinantes sociais, comete o equívoco de congelar a dinâmica do processo social, tornando esses sujeitos imutáveis. Essa incapacidade de transformar a própria história aparece, por exemplo, no trabalho de Dias quando ela lê no discurso desses sujeitos a crença de que o fato de serem pobres é um impeditivo sine qua non no processo de superação da condição humana a que esses indivíduos encontram-se presos. Desse modo, ela propõe em nota de rodapé que quando o sujeito de pesquisa diz que "trabalhador é gente fraco", essa referência "(...) significa gente pobre, sem nenhum recurso financeiro ou preparação para avançar de um estágio de determinismo social claramente

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definido para outro" (Dias,1999: 120). Seguindo esse mesmo raciocínio, ela articula as falas dos sujeitos propondo que elas mostram "(...) uma expectativa em relação ao futuro que continua presa ao seu universo, porque apesar de buscar essas raízes, não possui recursos suficientes para trilhar um caminho mais promissor. Assim, como não há outro meio, outra forma de trabalhar, sua história determina essa trajetória" (Dias, 1999:120). Para nós, esse tipo de inferência implica na compreensão cíclica da existência humana, onde tudo acaba no mesmo ponto em que começou. Nisto está nossa oposição: pobreza não é condição suficiente para justificar o imobilismo social presente no texto. Dias encerra a discussão dessa categoria de análise questionando, sem dar respostas, se realmente ouve desenraizamento em algum momento. Para ela certo é apenas o fato de que esses sujeitos estão em busca de raízes pessoais, familiares, geográficas e psicológicas mediante as quais "possam ser percebidos mais concretamente" (Dias, 1999:123). Segundo a autora, aparece nas entrevistas realizadas no acampamento Santa Rita "A preocupação em manter a família no mesmo espaço (...), de manter o espaço familiar e de trabalho; ter um pedaço de terra que lhe pertença e que lhe dê certa autonomia" (Dias, 1999:53). A visão da autora acerca da realidade dos acampados que tem na origem

a

experiência no trabalho volante se revela um tanto quanto pessimista. Ela vê em seus dados a presença de um "sentimento de impotência de não conseguir agir e de não saber para onde ir" (Dias, 1999:54). Para a autora pais lutam em função do futuro dos filhos, vivem para lutar por um futuro melhor para eles. Assim, a realização de sonhos pessoais são sublimados na expectativa de realização através das conquistas da prole. Não estamos de acordo com essa visão, pois, ao contrário do que verificou Dias, encontramos entre os acampados do Carlos Mariguela que têm a mesma origem daqueles que colaboraram com Dias, um enorme desejo de acabar com o sofrimento de toda uma vida e de, mediante seu trabalho, ascender socialmente. A autora que vê esse sentimento de impotência nesses sujeitos, vê na projeção do desejo a resposta para o aparecimento da vontade de lutar, para a metamorfose que há aí: da impotência à vontade de lutar. Outra constatação feita pela pesquisadora, diz respeito a "(...) necessidade de resgatar uma identidade de homem da terra" (Dias, 1999:56) Wilka pouco desenvolve suas constatações e traz poucas provas das evidências verificadas por ela. Ainda que Dias não tenha apresentado nem dito quantos foram os sujeitos, ela conclui que o vínculo emocional deste trabalhadores com a terra mantém-se fortalecido "Mesmo depois de décadas vivendo na cidade ou fora do meio rural" (Dias, 1999: 126).

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Ao concluir a apresentação do trabalho de Dias, pensamos por bem trazer um trecho da pesquisa de Andrade que, ao nosso ver, retrata com exatidão as divergências que temos com o trabalho da autora:

"A vitória que emerge nas imagens também possibilita o registro de que não há sucesso sem resistência, sem conflito. Assim, a seqüência evidencia uma trajetória de resistência diante da inúmeras dificuldades que vão se impondo ao longo do tempo. Viabilizar economicamente significa a permanência na terra. E permanecer na terra signuifica dialogar com as exigências do mercado, requer políticas governamentais que amparem o pequeno produtor. (...) As fotografias registram um tempo de avanços e conquistas, complementado pelo texto escrito, tradutor de um tempo histórico que ultrapassa as imagens e revela a continuidade da luta pela terra, através da emancipação econômica das famílias. Assim, é história que continua. A fotografia da agrovila é a constatação da melhoria de vida das famílias. A história que se iniciou com a imagem de casebres de madeira, termina com as casas de alvenaria. É o resultado da reconstrução de vida dos sem terra (...) Do lugar da miséria, da precariedade e da desesperanças, ao "lugar gostoso de viver, cheio de vida ". (Andrade, 1998:79) (Grifos nossos)

A citação que apresentamos e as considerações tecidas anteriormente explicitam as diferenças existentes entre nossas posturas. Com isso não queremos dizer que Wilka não tenha trazido contribuições. Apenas nos colocamos em um outro lugar que nos propicia um olhar bastante diverso sobre essas questões e esses sujeitos. Por fim, os trabalhos até aqui apresentados nos mostram como é que os aspectos contraditórios existentes no interior do MST, impacta na construção das consciências Políticas entre os trabalhadores rurais separadamente (sejam eles jovens, lideranças, etc.)Ao lançarmos um olhar sobre o processo de formação da identidade coletiva que se dá entre lideranças, entre os assentados, entre os jovens, vamos entendendo melhor a dinâmica interna desse movimento social e enfrentando os perigos de se estabelecer idéias acerca da consciências políticas que sejam falazes. Resta-nos agora pontuar que a família enquanto unidade base do movimento não é tomada em nenhum dos trabalhos aqui estudados. Essa é uma das mais importantes diferenças entre estes trabalhos e nossa pesquisa. Enquanto não aparece em nenhum deles a família como recorte da pesquisa, é esse o recorte dado por nós para o estudo da consciência política. Estudando cada uma dessas dissertações e teses, pudemos confirmar a importância do tema que nos propomos estudar: A formação da consciência política entre famílias acampadas. Nesse sentido uma das questões que nos afligia era saber o impacto da família na formação da consciência política dos sem terra, visto que o MST que não se organiza como se organizam os sindicatos, como por exemplo a CONTAG, que se estruturam a partir de indivíduos que se associam.

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Para respondermos a essas e a outras perguntas nós recorremos à bibliografia que discute o MST na tentativa de descobrimos sinais acerca disso. Contudo o que descobrimos foi que nada foi feito que tivesse a família como objeto de estudo dentro da temática MST. Jovens, lideranças, a mulher, a mística, a história, a consciência política, o processo pedagógico, etc., já foram aspectos sobre os quais diversos pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento e dedicados ao estudo do MST se debruçaram. Contudo, a família, ainda que sendo ela de crucial importância no processo de mobilização do movimento, até onde pudemos observar, não foi alvo de um estudo mais acurado. Partindo das obras estudadas durante o levantamento bibliográfico, e em especial das obras que dão corpo a revisão bibliográfica; das anotações dos cursos sobre “Dinâmica dos Movimentos Sociais” e “Pesquisa em Comportamento Político” e dos estudos desenvolvidos durante as reuniões do Núcleo de Pesquisa em Psicologia política e Movimentos Sociais12 nós propomos algumas hipóteses às questões levantadas anteriormente. Para que possamos entender o por quê de o MST se sustentar organicamente em uma base familiar e não numa base individual como fazem os sindicatos (por exemplo a CONTAG) é preciso que entendamos as bases da construção e consolidação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Durante o processo de construção e consolidação do MST a presença da Igreja fora marcante e fundamental. Através da ação de agentes de pastoral e de membros da hierarquia da Igreja que apoiaram o movimento desde o seu início, foram criados espaços importantes de socialização (através das CEB’s, da CPT e de outras linhas pastorais) mediante os quais foi introduzido como valor a família. Entendemos que a ação dos agentes de pastoral e dos membros da hierarquia Católica se dava através do contato e da mobilização familiar. Podemos observar em diversos documentos da Igreja que a família ocupa um lugar relevante no pensamento e na estrutura religiosa. Exemplos disso são documentos como o Concilio Ecumênico Vaticano II; as conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellin e Puebla e documentos da CNBB como o nº. 54 “Família: Igreja Doméstica”. Neles podemos notar que o Povo de Deus é a Família de Deus. Portanto é nesse contexto que muitas das lideranças que participarão do MST irão adquirir um uma formação político-religiosa. Ainda que isso possa não ser claro para essas lideranças, a importância da família está associadas à postura mística e política que elas internalizam durante o período de formação e organização do movimento que se deu sob o signo da Igreja. Acompanhar famílias parece-nos constituir uma estratégia de manutenção e 12

O cursos e o Núcleo de Pesquisa em Psicologia Política e Movimentos Sociais foram ministrados e coordenados pelo Prof. Dr. Salvador Sandoval durante o ano 2000.

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mobilização utilizada amplamente pela Igreja e assimilada pelos quadros do MST. Outro fator importante para que as famílias fossem constituídas como o dado organizativo do MST pode ser identificado no processo histórico do MST. Se observarmos o Movimento nascente em 1977 no Rio Grande do Sul, o que veremos é que um grupo de famílias arrendatárias de uma área indígena e que são retiradas daquela reserva. É toda uma comunidade que necessitava ser realocada, eram “as famílias dos Colonos de Nonoai”. Organizadas como grupo elas marcham rumo à conquista das áreas da madeireira Carazinhense em Ronda Alta – RS. Da mesma forma ocorre com outras mobilizações de dados grupos familiares vítimas de enchentes e de inundações de áreas para a construção de barragens; de famílias de posseiros e bóias-frias; etc. Por último apontamos como fator importante para a entendermos a família como a unidade básica do movimento, o fato de ela conter em seu meio dois grupos significativos: mulheres e crianças. Durante os momentos críticos de enfrentamento com a polícia, jagunços, e outras fontes de pressão contrária às ações coletivas deflagradas pelo movimento, são as mulheres e as crianças que tomam a frente e não os homens, numa atitude estratégica de fragilização dos agentes de coerção. A descoberta dessa estratégia pode ser vista por exemplo nos relatos colhidos por Tarelho e Andrade. Assim, entendemos que o papel da família é central na estrutura e na vida do movimento. Por esse motivo e por não termos encontrado trabalhos que se dedicassem a esse aspecto é que nos propomos estudar mais detalhadamente como se dá o processo de construção da consciência Política entre famílias acampadas no Pontal e arregimentadas pelo MST.

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CAPÍTULO III

DISCUTINDO AS BASES TEÓRICAS DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA

Quando fala-se da qualidade de alguma obra, uma das primeiras, se não a primeira, coisa a que se faz referência é ao fundamento. Se construímos um edifício, pouco importará seu design caso não possua um alicerce capaz de suportar o peso da beleza. Não é diferente no caso da construção deste trabalho: perguntamo-nos primeiramente a respeito da solidez das bases teórica e conceitual escolhidas por nós para sustentar nossa pesquisa. Pensamos que na construção de nosso alicerce, quatro pontos são fundantes, a saber: a) as questões do Eu, b) da Identidade Coletiva, c) da consciência Política, d) da Contextualização do Processo Político Grupal. E para que logremos construir bases sólidas, propomo-nos assumir como referenciais teóricos para a reflexão de cada um dos pontos acima propostos, as reflexões teóricas de Mead (1936); de Tajfel (1981), Melucci (1995) e Sandoval (2001). Escolhemos estes quatro pontos como elementos base porque pensamos

que os

processos grupais, e de modo especial o que passo a denominar processos políticoidentitários, estejam fundados na relação dialética entre Eu e Sociedade. É dentro de certos contextos sociais que são engendrados os processos político-identitários nos quais e pelos quais o sujeito é produzido e este, por sua vez, produz tais contextos sociais e, em última análise, a sociedade. Ambos, eu e sociedade, interferem permanentemente naquilo que são, promovendo, assim, mudanças continuas. Ainda vale assinalar nesse momento que apesar de querermos conduzir este trabalho lançando mão tanto da metodologia quantitativa quanto da qualitativa por compreendermos que cada um desses procedimentos atingem flancos distintos em uma pesquisa, sabemos da impossibilidade de fazê-lo durante o período do mestrado em função do tempo exíguo que nos é dado para implementarmos nossos trabalhos. Assim, optamos pela metodologia qualitativa por entendermos que ela seja mais apropriada para a melhor apreensão de nosso objeto de pesquisa. Entendemos por metodologia qualitativo o processo de produção de conhecimento que se propõe investigar o objeto ‘subjetividade’. Importa esclarecer que a subjetividade para nós é a própria realidade que se mostra simbolicamente mediante processos significativos e sentidos subjetivos sejam eles vividos pelo sujeito ou pela coletividade. Desse modo

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pensamos que o método qualitativo se aplica à investigação da subjetividade social individual e/ou da subjetividade social coletiva1. Para desenvolvermos esta estrutura processual da pesquisa, nos fundamentamos na obra de González Rey (1997). O autor propõe que a investigação qualitativa se desenvolva sobre os marcos do que chama epistemologia qualitativa. Ela se sustenta a partir de um conjunto de princípios gerais entre os quais o autor enfatiza três por sua relevância à Psicologia Social e também por ocuparem lugar privilegiado na compreensão e forma de utilização da investigação qualitativa, a saber: O caráter construtivo-interpretativo do conhecimento; o papel do singular neste processo e o caráter interativo da produção de conhecimento.(cf. González Rey, 1997; 1998) Tendo em conta as considerações a cima, as quais nos serviram de guia durante a implementação desta pesquisa, passamos agora a descrição do referencial teórico escolhido.

1. A Psicologia Social de George Herbert Mead

A teoria meadiana está inscrita entre o final do século XIX e o princípio do século XX. Mead é influenciado pelo processo de mudanças pelas quais passava a sociedade norteamericana, a saber: de uma sociedade eminentemente agrária, rural e religiosa a uma sociedade urbana, industrial e laica. Esta passagem da antiga mentalidade agrícola a uma nova, moderna, mentalidade industrial se deu via guerra civil americana. Para nós o que importa analisar em Mead são as suas conceituações acerca da Consciência, Self, Ato Social e Outro Generalizado. Na perspectiva da teoria meadiana o objeto de estudos da Psicologia não é a consciência compreendida nos moldes da filosofia. Para ele, o campo de estudo da Psicologia é mais extenso e a categoria `consciência' assume, nesse contexto mais amplo, um caráter psicológico, sendo ele essencialmente social. Para Mead é a experiência humana o objeto privilegiado da ciência psicológica, levando em consideração o fato de que a experiência humana possui duas dimensões distintas, a pública e a privada, sendo uma passível de observação por parte de um outro (Externa) e a outra oculta a outros que não o próprio sujeito dessas experiências (Interna); é necessário se encontrar um ponto de intersecção entre essa realidade exterior ao sujeito e a internalização dessa realidade exterior pelo sujeito para que se possa falar de consciência em Mead2. 1 2

Com isso não pretendemos dizer que isso seja inacessível aos métodos quantitativos. Ver Sass, 1992:124.

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Para especificar claramente o que é interno e externo na experiência humana individual, Mead propõe o conceito de `ato completo' que vem a ser "(...) a manifestação exteriorizada da ação (comportamento) e a sua intenção ou propósito, ou finalidade. (...) O ato não é simplesmente o estímulo mais a reação a ele, é um todo dinâmico do qual faz parte a experiência interna que, por sua vez, é constituída socialmente " (Sass, 1992: 125-26). A esse respeito lemos em Mind, Self and Society: "O ato, pois, e não o trajeto é o dado fundamental da Psicologia Social e individual, quando elas são concebidas na forma behaviorista3 e ela tem uma fase interna e outra externa, um aspecto interior e outro exterior". (Mead, 1972: 7-8). Ainda é mister ressaltar que a noção de ato social deve estar, segundo o autor, restrita

"(...) a classe de atos que implicam a cooperação de mais de um individuo, e cujo objeto, tal como é definido pelo ato, é, no sentido de Bergson, um objeto social. Por objeto social entendo aquele que responde a todas as partes de ato complexo, ainda que tais partes se encontrem no comportamento de distintos indivíduos. O objetivo dos atos se encontra, pois, no processo vital do grupo, e não somente no processo vital dos distintos indivíduos". (Mead, 1972: 7, nota 7)

Assim podemos notar que a ação exterior do sujeito é precedida de uma ação interior, mesmo que esta tenha sido formada por determinação exterior, durante a história do sujeito. Há intencionalidade presente no comportamento humano no instante em que o sujeito atribui valor a um objeto. Atribuir valor a objetos, é estabelecer finalidade para este, e singrar as águas dos pressupostos de caráter teleológico. Então, ao atribuirmos valores a um objeto, estamos determinando a ação do sujeito em relação a esse mesmo objeto. Nesse sentido podemos dizer que um ato social é uma conversação envolvendo gestos. Desse modo, a linguagem, funciona como meio de comunicação entre individuos da mesma espécie; constitui a base socialmente genética da organização dos atos sociais e atua como mecanismo de controle que o sujeito tem disponível para controlar sua ação em relação ao mundo, constituindo-se em componente fundamental da individuação (cf. Sass,1992: 138). Tais gestos para Mead podem ser significantes (conscientes) ou não significantes (inconscientes). A esse respeito Mead escreveu que

3

Behaviorismo: O behaviorismo a que Mead se refere aqui não se trata daquele proposto por Watson. Mead define o behaviorismo como Behaviorismo Social. Nas palavras de Mead: "a Psicologia Social é behaviorista, na medida em que parte de uma atividade observável - o processo social dinâmico em devir ã os atos sociais, que são seus elementos integrantes -, que há de ser estudada e analisada cientificamente. Mas não é a conduta, no sentido de passar por alto a experiência interna do individuo, a fase anterior desse processo ou atividade." (Mead 1934, apud Shellenberg, 1985). A expressão foi empregada no prefácio de Mind, Self and Society escrito por Charles Morris, ex-aluno de Mead.0

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"(..) o gesto significante ou símbolo significante proporciona facilidades muito maiores a adaptação a readaptação do que os gestos não significantes, porque provoca no indivíoduo que o manifesta a mesma atitude que provoca nos individuos que, corn o primeiro, participam do ato social dodo, e assim tornando-the consciente da atitude em relaqao ao gesto e the permite adaptar o seu comportamento ao dos outros participante, a luz da referida atitude" (Mead, 1972:89)

Para Mead, a natureza da significação se encontra impliícita na estrutura do ato social. Esse fato implica, para o autor, na necessidade de a Psicologia Social partir "(...) da suposição inicial de um processo de experiência social e de comportamento em execução, processo em que está envolvido qualquer grupo dado de indivíduos humanos e do qual depende a existência e desenvolvimento de suas mentes, selves e da consciMcia de si.” (Mead, 1972:82) O self surge e se estrutura a partir de interações sociais, ou, em outras palavras, mediante a experiência singular de cada sujeito realizada no processo social. O self, entao, ocupa um papel relevante no cenário da organização social, visto que integra a subjetividade (expenência singular de cada sujeito) e a objetividade (esparço de interação social, da coletividade). Assim, o self a organizado no interior do processo social. O sujeito existe, ativamente, no interior desse processo social. As atividades ocorrem nas diversas e cada vez mais complexas formas de relacionar-se com o outro e com o mundo. Partindo dessas considerações, observamos que a origem social do self proposta por Mead, está no fato de que "(...) o meio social humano pertence ao indivíduo em decorrêcia do caráter peculiar da atividade social humana. " (Sass, 1992: 202). A frase anterior nos leva a perceber que, para Mead, não se trata de qualquer tipo de atividade. Ainda que atividades como carregar uma geladeira ou desatolar um automóvel pressuponha uma ação cooperada entre os homens implicados da ação, que exija "(...) graus complexos de inleligêcia e de comportamento, neles não estão implicados o self de cada indivíduo ". (Sass, 1992:203) Em quase nada certas atividades humanas se diferenciam das atividades cooperativas executadas por animais, tais como as abelhas e as formigas. As atividades que importam aqui destacar são aquelas exclusivamente humanas, que são realizadas socialmente e que implicam na adoção da atitude do outro. Interessam-nos as "(...) atividades que afetam o organismo do mesmo modo que afetam os outros organismos e portanto provocam, naquele, reações do mesmo caráter que provocam nestes. " (Sass, 1992: 204). Mead identifica três formas de atividades que progridem em nível de complexidade na construção do self. A primeira forma são as brincadeiras (play). Ele propicia à criança a

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primeira organização do seu self e da consciência de si mesma. Nessa categoria de jogos, a criança brinca de algo sem que existam fins e meios que a direcionem. "Numa primeira fase, as brincadeiras infantis são acompanhadas pela alternância rápida de papeis e, com a aquisição da linguagem, de solilóquios. "(Sass, 1992: 210) Ela pode brincar só ou em companhia de amigos imaginários (dublês). Ao experimentarem essas brincadeiras as crianqas vão progressivamente concebendo como compreensiveis os papéis dos outros. Nessa fase, a apropriação da atitude do outro ainda não consiste na apropriação de um Outro Generalizados4. Aqui a criança organiza de forma particular as atitudes particulares do(s) outro(s) voltando-as para si própria. Tal organização particular é regida por regras ocultas nas brincadeiras de papéis com as quais as crianças costumam brincar. Ressaltamos que a imaginação da criança lhe permite organizar e controlar suas proprias experiencias. Assim, a imaginação ocupa papel importante na elaboração do self. A segunda fase de estruturação do self se encontra no período dos jogos (games). Eles estão alicercados nas experiências vividas nos jogos infantis. Neles há a admissão de regras prévias e claras que determinam o comportamento do sujeito no jogo, o qual também a jogado por outro(s). Quando o jogo é coletivo, também não se pode determinar unilateralmente a mudanças das regras. É necessário o assentimento de quem mais brinque para que se efetue as mudanqas. Em outras palavras, é preciso que haja a apropriação da atitude dos outros que brincam de forma organizada. Esta apropriação não pode ser parcial, dever ser total, estar organizada numa totalidade, articulados como um outro generalizado. Há, ainda, a reciprocidade entre os participantes do jogo que admitem as regras e vivem uma situaçã\o de inter-relação. E nesse contexto se dá a individuação do sujeito. "Em termos gerais, a individuação somente pode ser inteligível como processo em que a experiêcia do individuo implica a organização ideal e comportamental da pauta geral de conduta do grupo social a que pertence. "(Sass, 1992: 219). . As atividades lingiiísticas, em especial as atividades simbólicas que articulacm os gestos vocais com o pensamento, constituem a terceira a decisiva fase de desenvolvimento do self. Esta última fase engloba as duas primeiras e "(...) permite ao homem internalizar conscientemente o mundo exterior, e suplantar a si mesmo, convertendo a si mesmo, como consciêcia de si, no seu outro. " (Sass, 1992: 204) A isto Mead chama de diálogo 4

A afirmação de que a apropriação da atitude do outro ainda não consiste na apropriação de um Outro Generalizado merece a seguinte ressalva: caso haja a apropriação do Outro Generalizado, esta não se dá no nível da consciência, a criança não teria consciência de que o faz.

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interiorizado. Tendo em conta as ideias até aqui expostas, podemos concluir que "(...) o self é a internalização das experiêcias sociais que são incorporadas ao comportamento da formaindividuo e adstrito à consciência, o seu caráter é essencialmente cognitivo” (Sass, 1992:224)5. O self é social: possui em seu fundamento aspectos internos a externos, os quais localizamos didaticamente no que Mead denomina de ‘eu’ - parte do sujeito que reage às atitudes dos outros - e de ‘mim’ - parte que processa e internaliza (antes da assimilação por parte do eu, ou então antes de tornar-se disponível ao sujeito) os eventos externos ao sujeito. Assim, "(...) o eu é fuse do self que se exterioriza, reagindo à atitude dos outros, o mim é a face do self que internaliza aguelas atitudes ". (Sass, 1992: 230) "As atitudes dos outros constituem um mim organizado e então o indivíduo reage a elas como um eu". (Mead, 1972: 175) Eu e mim sao dois momentos estruturados de um mesmo processo, são como que fases componentes do self, sem as quais não se pode elaborar um self. O eu não tem como objeto a experiência direta. Seu objeto está nas experiências processadas pelo mim, o que faz do mim o objeto do eu6. As relações que o eu tem com as expêriencias são mediatizadas pelas memórias do mim: "Do confronlo entre a ação do eu e a refleção da experiência em mim é tecida a autoconsciência ou consciência de si ". (Sass, 1992: 229) Mediante o diálogo interiorizado, que caracteriza a terceira fase da elaboração do self, o sujeito conversa consigo mesmo e retruca a si próprio como se o fizesse com o outro. Portanto, o self tem por caracteriística ser um objeto para si próprio.

"A consciência de si implica que o indivíduo se converta em um objeto para si ao adotar as atitudes dos outros indivíduos para ele, dentro de um marco organizado de relações sociais: a menos que o indivíduo se converta em objeto para si, ele não desenvolveria a consciência de si nem teria um self completo. " (Mead, 1972: 225)

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Ainda a respeito do que seja internalizar e interiorizar é esclarecedor distingui-los como sendo o primeiro termo o que trata do processo estruturante da experiêrncia individual e o seguedo o que traz consigo o sentido de conduzir ao interior do sujeito as estruturas extemas já ordenadas (cf. Habermas, 1987: 34). 6 Afirmar o contrario (que o eu é objeto do mim) implicaria em fazer com que a ação característica do eu fosse deslocada para o mim, tornando o eu prisioneiro da memória, do conjunto organizado das atitudes dos outros que o indivíduo adota para si mesmo e da ação isolada do mim. Fazer do eu objeto do mim significa, ao nosso ver, fazer com que a capacidade de reação que o indivíduo tem frente às atitudes do outro internalizadas pelo mim findem, pois não seria possível fazer com que as atitudes dos outros reelaboracem nossas própria atitudes. Tal proposição acarretaria o fim do diaáogo interior estabelecido pelo eu e o mim e conseqüentemente a impossibilidade da consciência de si proposta por Mead.

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Enquanto podemos dizer que o mim está voltado ao passado visto que ele organiza as experiências objetivas percebidas pelo sujeito e que mais tarde são assumidas pelo eu, o eu está voltado para o presente e para as expectativas de futuro vividas pelo sujeito. Esta relação se dá numa perspectiva dialética a qual coloca a ação do sujeito num devir continuo. O self completo é formado unitariamente mediante uma relação de reciprocidade existente entre o eu e o mim, a qual possibilita ao sujeito tornar a si um objeto para si mesmo. Importa a essa altura dizer que para Mead a reflexão a resultante da intemalização pelo sujeito de um reflexo generalizado da atitude do outro. A realidade é refletida generalizadamente pelo individuo. Em termos filosoficos, o particular (o sujeito) eduz sua capacidade reflexiva do reconhecimento do universal (o ato social). Fica estabelecido então que há uma relação entre sujeito e sociedade que, por sua vez, é mediatizada por algo. Esse algo é o Outro Generalizado7. Segundo Sass, Mead entende que "(...) a cada experiência nos defrontamos com um outroi sempre particular mas sempre generalizadamente. (..) Apenas como reflexo generalizado da relação particular é que podemos compreender, da perspectiva social, a relação das formas pai e filho". (Sass, 1992: 244-45) E então podemos compreender o outro como "(...) uma atitude organizada e generalizada do real, ou como um outro generalizado e é o outro generalizado que proporciona a unidade do self, ou a luta racional entre o eu e o mim". (Sass, 1992: 245) Na perspectiva de Mead "(...) a comunidade organizada ou o grupo social que proporciona ao indivíduo sua unidade de self podem ser chamados de outro generalizado. A atitude do outro generalizado é a atitude de toda a comunidade ". (Mead, 1972: 154) Disso podemos concluir que o outro generalizado não pertence imediatamente ao sujeito a mas à comunidade; o outro generalizado é a interiorização da atitude de toda a comunidade. No que refere-se às relações entre o sujeito e a sociedade podemos observar que elas se estabelecem mediante à formação e evolução da autoconsciência ou consciência de si adquirida pela formação do self. Em outras palavras, quanto mais o eu e o mim estiverem integrados mais complexa poderá ser a consciência do sujeito. Em nosso entender esta consciência é eminentemente política, é consciência política e se constrói em relação a si próprio, ao outro generalizado e a sociedade. Quanto mais 7

Um exemplo apropriado para entendermos essa questão é a relaqao pai-filho. A esse respeito ver Sass, 1992:243-44.

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articulados estiverem o eu e o mim, formando um self completo, mais política poderá ser esta consciência desenvolvida pelo sujeito. Dizemos isso porque um individuo que nao possua um self completo, nunca virá a ter uma consciência política com uma configuração complexa. Contudo ter um self completo não significa o mesmo que ter consciência política complexa. Ter um self completo é a base para se obter uma consciência política complexa. Quanto mais articulado estiverem eu e mim na formação do self, quanto mais desenvolvida estiver a consciência de si no sujeito, mais condições o sujeito terá para elaborar sua consciência política de maneira com que se torne mais complexa. Portanto, podemos pensar em graus, configurações de consciencia que se formam de modo dialético ou segundo o processo dialético vivido pelo eu-mim na construção do self. Podemos dizer que paralelamente a estruturação do self completo podemos encontrar a formaqao da consciencia politica visto que a estrutura do self está na base dessa última. Em nenhum momento o autor nos permite pensar um sujeito dissociado da sociedade. É na indissociabilidade (e por conseguinte na ausência de qualquer dualismo a esse respeito) de sujeito-sociedade que podemos pensar essa dialética. O autor afirma que "(...) qualquer tratamento psicológico ou filosófico da natureza humana implica a suposição de que o indivíduo humano pertence a uma comunidade social organizada e obtem sua natureza de suas interações e de relações sociais com essa comunidade como um todo e com os membros individuais dela”. (Mead, 1972: 251) Registramos ainda que, segundo a concepção meadiana, a sociedade é anterior ao indivíduo e por isso a individuação é resultante dos processos socializantes e depende da evolução histórica de nossa sociedade. Nas palavras de Mead verifica-se que "(...) se o indivíduo obtém seu self apenas através da comunicação com os outros, somente graças à elaboração dos processos sociais mediante à comunicação significante, então o self não poderia preceder o organismo social. Este deve existir previamente”. (Mead, 1972: 233) Vale frisar que essa existência prévia da sociedade em relação ao sujeito não consiste na completa determinação deste pela sua relação com esta. Com essa postura, Mead caminha com K. Marx que estabelece uma relaqao reciproca entre sociedade a individuo ao afirmar que "(...) assim como a sociedade produz ela mesma ao homem enquanto homem, é produzida por ele" ( Marx, 1977: 380). Essa relação pode ser observada no fenômeno das instituições. Elas são o reflexo da própria complexidade do ser humano. Elas não são necessariamente formas determinantes,

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castradoras do sujeito. Elas existem na sociedade porque antes de tudo são e estão internalizadas pelo sujeito. As instituições podem ser (e muitas vezes o são), além de formas organizadoras dos comportamentos inter-sujeitos e dos sujeitos que as compõe, promotoras da individuação do sujeito. A esse respeito lemos em Sass:

"É claro que a vida social organizada, entre outras formas, em normas (direitos e deveres) e valores (morais e éticos), é internalizada pelo indivíduo em distintos graus. Da mesma maneira, em cada momento históricoum indivíduo ou um grupo de indivíduos podem traduzir melhor que outros indivíduos tanto a atitude do conjunto de pessoas que compõe a sociedade, reforçando as posiqoes institucionais que sustentam, ou mesmo antecipando profundas modificações nas instituições vigentes. Esse entendimento vincula diretamente o papel da psicologia social à ação política dos indivíduos. " (Sass, 1992: 78)

Observemos um trecho em que Mead aplica seu conceito de self ao comportamento Político:

"Considere que um político ou um estadista ao apresentar um projeto tem nele mesmo a atitude da comunidade. Ele sabe como a comunidade reage em sua experiência a essa expressão da comunidade - ele sente como tal experiência possui uma série de atividades organizada que são aquelas da comunidade. Sua contribuição própria, nesse caso o ‘eu’ , é um projeto de reorganização, um projelo que ele apresenta à comunidade tal como esta reflete nele. Também ele se modifica, por suposto, na medida em que apresenta esse projeto e faz dele uma questão política... Todo o procedimento é realizado na experiência do estadista bem como na experiência geral da comunidade. Quero apontar que os acontecimentos não ocorrem de forma simples em sua mente, em vez disso, ela é a expressão de sua própria conduta dessa situaço social, desse grande processo cooperativo da comunidade, que é executado ". (Mead, 1972: 187-88)

Nesse trecho Mead quer mostrar que, normalmente, não se pode pensar que liderança seja sinônimo de isolamento, de dominação e controle. Isso equivaleria a dizer que uma liderança ou qualquer sujeito que assim estivesse estruturado estaria possivelmente desprovido de um mim e, por isso, incapaz de internalizar a experiência vivida. Estariamos falando de alguém com um self fragmentado, não completo, possuidor apenas de um eu e, assim, de uma consciência política fragmentária, se não patológica. Mead enfatiza no texto que o eu deve reagir partindo das atitudes organizadas dos outros pelo mim. E isso inclui o outro na ação política de qualquer sujeito. Subtrair por quaisquer motivos que sejam o outro da analise do comportamento político, social, é inconcebivel. Assim, ainda que o político não articule as expectativas dos outros durante a atividade, a construção de seu projeto (que em nossos tempos é orientada por estratégias de marketing politico), não nos autoriza a pensarmos que ele as desconheça. Certamente ele as conhece, pois só assim ele pode capitalizá-la a seu favor, convertê-las em

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expectativas de outra ordem e que estejam de acordo com seu projeto. Dessa forma, mesmo que ele não esteja articulando a demanda popular a seu projeto, o político está inserindo o outro em sue atividade política. Todavia é necessário que se diga que a análise meadiana é por demais idealista e funcional. Isso fica claro quando observe-se que o autor supõe de maneira implícita que a conduta do sujeito é eivada por uma conduta moral. A respeito dessa conduta moral suposta por Mead na vida do sujeito, Sass afirma que "(...) na medida em que implicitamente supõe uma moral na conduta das pessoas que está longe de ser um produto natural das relações sociais; em conseqüência, supõe que o projeto político é a expressão da expectativa dos outros "(Sass, 1992:232). É ingenua a compreensão de Mead de que projeto político de um estadista seja o reflexo, a expressão dos anseios da sociedade que se encontra sob a batuta do capitalismo. Estamos de acordo com a proposição de Sass que entende que a visão meadiana acerca da questão só faz sentido se pensarmos que "(...) um projeto politico que vincula organicamente os seus membros e seus sintetizadores e executores com as atitudes e expectativas dos membros da sociedade (...) faz sentido com os princípios que organizam as sociedades socialistas e não com aqueles que organizam a sociedade capitalista" (Sass, 1992:233)

2. A Teoria da Identidade Social Recordamos aqui o fato de que a noção de Identidade8 em Psicossociologia tem sua 8

Ainda que não possamos tratar aqui de todos os autores que contribuem para a compreensão da chamada questão identidade, podemos dizer que entre aqueles que seguem o caminho de G. H. Mead (1972) e I. Goffman (1973; 1988) está Antônio da Costa Ciampa (1998 {1987}). O autor desenvolve detalhadamente suas posições em “A estória de Severino e História do Severina”. Analisando a estória de Severino, personagem central da obra “Morte e Vida Severina” do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, e a história de vida de um sujeito cognominado ‘Severina’ o autor desenvolve a noção de identidade enquanto uma categoria psicológica. Segundo o autor, identidade é um processo de metamorfose, é “(...) o processo permanente de formação e transformação do sujeito humano, que se dá dentro de condições materiais e históricas dadas” (Ciampa, 1998: 1). Para Ciampa a identidade como um processo (metamorfose) se dá em contraposição a uma estrutura estática do indivíduo e subordinado ao interesse da razão. O autor se utiliza da literatura como chave de leitura (universal) para lograr a compreensão da vida pessoal do seu sujeito (particular). Desse modo ele busca os fundamentos para sua afirmação de que o universal se materializa no particular. Ciampa propõe-nos uma teoria de identidade tendo como referenciais a dialética materialista, o interacionismo simbólico e a teoria dos papéis. Entendendo que o indivíduo subjetiva as relações sociais, podemos concluir que o processo de formação e transformação do sujeito é o processo de construção de identidade pessoal, o qual implica na sua articulação com a cultura e a sociedade, dadas como a priori em relação ao sujeito, o que resulta numa síntese final que podemos chamar de identidade social. Ainda segundo Sass a equivalência entre self e identidade feita por autores como Ciampa não é satisfatória (Cf. Sass, 1992: 197-99). Ao entender a identidade como metamorfose, Ciampa assume o percurso sugerido por Habermas (cf. Habermas, 1983; especificamente cap. II). Para Sass “(...) a noção de metamorfose é a retrospectiva da individualidade, do que foi posto, enquanto que o self meadiano está voltado, pela ação do

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origem nos estudos realizados acerca de categorização social e relações intergrupais. Entre os estudos deste tipo, destacamos os realizados por Henri Tajfel. A discussão que faremos a respeito da obra de Tajfel será com base em seu livro Grupos Humanos e Categorias Sociais: Um estudo psicossocial (1982 e 1983). Para Tajfel a diferenciação entre grupos sociais não podem ser entendidos apenas em termos econômicos, são necessárias outras formas de análise para que se alcance um entendimento adequado dessa problemática. Para o autor articular a estrutura das relações objetivas entre grupos com alguns processos psicossociais específicos constitui um caminho para que se logre sucesso nessa empreitada. Nessa linha, Tajfel propõe que as condições sócio-econômicas que levam grupos a se rivalizarem para conquistar os mais diversos benefícios objetivos podem estar vinculados a certas idéias depreciativas difundidas a respeito do grupo rival e internalizadas pelo grupo que se rivaliza. Assim, podemos lançar mão da noção de estereótipos sociais proposta pelo autor. A existência desses estereótipos sociais são a prova concreta de que os processos psicossociológicos contribuem para a construção e entendimento de situações intergrupos objetivas. Convém agora distinguirmos as situações individuais da situações intergrupais. Em determinados contextos sociais observamos que o sujeito não exerce sua ação de modo individual mas sim baseado em seu grupo de pertença, que ele não se relaciona com o outro como sujeito que é mas como agregado a dada categoria social, a qual se encontra deslindada e definida. Tal diferenciação é fundamental para que tenhamos claro com que tipo de identidade estamos trabalhando. Mas como surgem os comportamentos intergrupos? Para Tajfel uma das condições objetivas se caracteriza pelo fato de o sujeito crer que as fronteiras entre o seu grupo e o grupo do outro são intransponíveis e até mesmo imutáveis. Uma segunda condição seria o fato de o sujeito não admitir em hipótese alguma a possibilidade de deslocamento de um grupo para outro. Caso o sujeito admitisse a possibilidade de realização das premissas anteriores, já não mais estaríamos frente a um comportamento intergrupo e sim frente a um comportamento interpessoal. Esse tipo de postura indica a crença na mobilidade social, na compreensão de eu, prospectivamente; ou, para usar uma imagem sartreana, a ação que ainda mão foi consumada e que está voltada a morder o futuro” (Sass, 1992: 199). A contribuição fundamental de Ciampa está no fato de demostrar empiricamente a importância que o conceito de metamorfose tem na compreensão do que seja identidade. Assim, a identidade é um processo inacabado que tem seu início no nascimento do sujeito e só finda em sua morte. Analisar a identidade como algo dado, que possa ser determinado por alguns fatores, momentos da história de vida do sujeito, é fazer da identidade um processo desprovido do movimento, estático e, portanto, a partir dessa perspectiva defendida pelo autor constitui um grave equívoco conceptual e metodológico.

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que é de modo individual que se estabelece as transformações sociais. Quem assim age, age de forma isolada, leva em consideração apenas as suas características pessoais. Em oposição a crença da mobilidade social, encontramos a crença na mudança social. O sujeito que admite as premissas anteriores, ou seja, a impossibilidade de se superar as fronteiras entre o seu grupo de pertença e o grupo do outro e, portanto, a impossibilidade de se migrar para o grupo do outro, vê como única forma possível para se superar o insuperável, o movimento grupal, a ação coletiva. Toda e qualquer ação isolada do sujeito é rejeitada por compreendê-la como ineficaz e infrutífera. Tajfel conceitua identidade social como sendo uma “(...) parcela do auto-conceito dum indivíduo que deriva do seu reconhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos) social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença”. (Tajfel, 1983: 290) Em outras palavras, essa definição demonstra a força que as categorias sociais ou os grupos a que os sujeitos encontram-se vinculados são/estão capazes de exercer sobre esses sujeito, refletindo, assim, na sua própria consciência de si (em termos meadianos) ou na identidade pessoal (como propõe Ciampa)construída continuamente por esse sujeito. Essa força e forma da influência exercida por categorias sociais ou grupos de pertença está necessariamente vinculada ao contexto ou situação social vivido pelo sujeito. Essa vinculação nos explica porque certos grupos de pertença ou certas categorias sociais destacam-se mais do que outras na construção dessa identidade social. Acresça-se a isso o fato de que a participação do sujeito em diversos grupos ou categorias sociais contribui de modo positivo ou negativo à percepção que o sujeito vem a fazer a respeito de si mesmo. Assim, encontramos na base da identidade social a noção de comparação social (cf. Festinger, 1954). Em função da participação do sujeito no tecido social não se dar de maneira exclusiva – num único grupamento ou categoria social – mas sim de modo eclético – de muitos grupos ou categorias sociais que nem sempre são convergentes -, podemos dizer que cada grupamento ou categoria social a que o sujeito encontra-se ligado, funciona como uma espécie de lente social que permite ao sujeito compreender si próprio e a realidade social, e então inserir-se nela. A combinação desse conjunto de lentes sociais é que determinarão com qual matiz cada sujeito enxerga o contexto social em que vive. Para compreendermos com qual matiz cada sujeito (e grupo) percebe a si e ao contexto social em que se encontra inserido, é preciso que analisemos a combinação das lentes sociais utilizadas por eles (sujeito e grupo). E isso só é possível se admitirmos que cada sujeito se identifica mais ou menos com certos grupos ou categorias sociais. De acordo com o

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nível de identificação e, por conseguinte, de comprometimento que esse sujeito tem com dado grupo ou categoria social é que se determinará o peso de um grupo a ou de uma categoria na construção de sua visão social, da identidade social assumida por ele. Isso significa dizer que esse sujeito atribui aos grupos ou categorias a que pertence significado emocional e de valor. Essa atribuição de significado emocional e valorativo aos grupos ou categorias sociais de pertença do sujeito tem suas raízes nos processos socializantes e no contexto social vividos pelo sujeito. Outrossim, o sentimento de pertença a um grupo ou categoria social dependem de um conjunto de condições que facilitam a percepção de aspectos comuns, que diferenciam um grupo ou categoria de outro grupo ou categoria. Por sentimento de pertença compreendemos o resultado da relação existente entre o nível de identificação que o sujeito tem com certo grupo ou categoria e o nível de comprometimento com tal grupo ou categoria produzida por esta identificação do sujeito com este grupo ou categoria. Para Tajfel tanto o sentimento de pertença vividos pelo sujeito quanto a atribuição de significado emocional e de valor feitas pelo sujeito aos seus grupos ou categorias de pertença contribuem efetivamente para a elaboração da visão que o sujeito tem de si e do mundo em que vive. Contudo não se pode deixar passar desapercebido o fato de que certos grupos ou categorias sociais são previamente atribuídos ao sujeito fazendo com que ele se encontre neles inserido de antemão. Por isso grupos ou categorias sociais como religião, raça, família... poderão variar positiva ou negativamente na atribuição de significado emocional e de valor feitas a eles pelo sujeito. Tais variações são decisivas para a compreensão dos movimentos de filiação e deserção do sujeito a certos grupos ou categoria sociais a que pertence. Ao que se refere à deserção de um grupo ou categoria social, podemos dizer que ela se dá a partir do estabelecimento da comparação entre os grupos ou categorias sociais de pertença do sujeito e outros grupos ou categorias sociais. Aqueles grupos ou categorias sociais que não obtiverem um significado emocional e de valor positivo ou que não forem capazes de mante-lo positivos sofrerão um processo de esvaziamento ou psicológico ou objetivo ou ainda a ambos os processos. Para que um sujeito filie-se ou se mantenha filiado é mister que o grupo ou categoria social seja capaz de preservar adequadamente a sua identidade social, motivo da filiação do sujeito a ele. Conclui-se, assim, que filiação e deserção estão diretamente relacionados à direção que tomará o significado emocional e de valor atribuídos pelo sujeito ao grupo e categoria em questão durante o processo de comparação. Para que os membros de um grupo ou categoria social tenham sua identidade social preservada em dadas situações sociais, é fundamental que o grupo ou categoria social

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mantenha-se distinto dos outros grupos ou categorias sociais. Essa distinguibilidade necessita ser positiva para que não ocorra a deserção. Do contrário, será necessário que o grupo ou categoria recorra a atividades sociais (ações coletivas) relevantes. Tajfel constata que as características do grupo social de pertença do sujeito são os fundamentos da categorização social. Características como cor da pele, cultura, nível econômico, poder, status, etc. são significadas emocionalmente e valoradas ou não frente a comparação dos grupos de pertença do sujeito com os grupos dos outros. Essa análise nos leva a compreender a construção da identidade social como um processo cognitivo. A esse respeito Freitas (1994) afirma que “(...) é esse processo cognitivo que instiga a integração e a ação coletivas e, nesse sentido, determina a emergência de processos

sociais”.(Freitas,

1994:36)

Assim

podemos

dizer

que

quando



o

compartilhamento de uma mesma identidade social por diversos sujeitos que pautam suas ações por meio dela, temos então a formação de um grupo psicológico concreto. Quando um grupo percebe que tem características comuns, que possui um fim comum e que tais características e tal fim é que o faz ser um grupo enquanto tal e em contraposição aos demais grupos existentes, e que temos um grupo objetivo. Segundo Tajfel

“(...) a identidade social dum indivíduo concebida como conhecimento que ele tem de que pertence a determinados grupos sociais, juntamente com o significado emocional e de valor que ele atribui a essa pertença só podem ser definidos através dos efeitos das categorizações sociais que dividem o meio social do indivíduo no seu próprio grupo e em outros” (Tajfel, 1983: 294)

Mas como já apontamos acima, há momentos em que o grupo ou categoria social necessita lançar mão de ações coletivas para garantir a integridade da identidade social de seus membros e evitar que a deserção se manifeste em seu meio. Para Tajfel este aspecto da identidade social encontra-se muito próximo do conceito de privação relativa proposto por Gürr e das ações coletivas dele decorrentes, o que faz desse conceito uma importante chave de compreensão das ações coletivas (ainda que se possa aplicá-lo à compreensão de ações individuais). Privação relativa para Gürr é

“(...) a percepção pelo ator da discrepância entre as suas expectativas de valor e as suas capacidades de valor. Expectativas de valor são os bens e as condições de vida a que as pessoas se consideram legitimamente habilitadas. Capacidades de valor são os bens e as condições de vida que elas pensam poder obter e manter... A ênfase ... está na percepção da privação, as pessoas podem ser subjetivamente privadas ao nível das sua expectativas, mesmo que um observador não as considere em estado de necessidade. De igual modo, a expectativa do que o observador considera uma pobreza absoluta, ou "privação absoluta" não é necessariamente considerado incorreto nem irremediável por aqueles que a vivem”. (Gurr, 1954: 24 apud Tajfel, 1983:298)

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Tajfel afirma que do ponto de vista psicológico a privação relativa é o mesmo que uma “expectativa falhada” e opera como uma variável dependente do comportamento social. Sua ação pode ser identificada em dois níveis do comportamento social. O primeiro nível é o pessoal e o segundo o interpessoal. A respeito do nível interpessoal, se faz relevante dizer que ele é a dimensão que “(...) diz respeito às comparações com os outros; e é evidente também que também ela pode abarcar uma dimensão temporal; de fato é muito provável que o faça quase sem exceção”. (Tajfel, 1983: 297) Sua relevância está no fato de ela estar mais diretamente relacionada com os processos de comportamento intergrupo. Para que existam realmente para o sujeito, para o grupo ou categoria social privações relativas, é necessário que essas sejam percepcionadas por esse sujeito, por esse gruo ou categoria social via comparação interpessoal ou intergrupal. Como já parece estar claro, é o processo comparativo o instrumento denunciatório da existência de privações relativas. As privações relativas vividas por um grupo ou categoria social podem chegar a originar ações e movimentos por mudanças sociais que lhes respondam às necessidades. Contudo, caso as privações expostas pelo processo de comparação forem consideradas ilegítimas pelo grupo ou categoria social, estabelecer-se-á no interior do sujeito, do grupo ou categoria social um conflito ocasionado pela tomada de consciência gerada pelo atrito entre ideal e real produzindo uma sensação de ‘empobrecimento’ do sujeito, grupo ou categoria social. Tal situação traz a tona a dialética da contradição vividas pelo ser humano e seus grupamentos e categorias sociais. A contradição gerada pelo processo comparativo só poderá ser superado caso sujeito, grupo ou categoria social tiverem e puderem manter uma imagem positiva de si mesmos. Por essa razão (de não poder manter a imagem positiva a seu próprio respeito) é que muitos daqueles que pensamos serem mais frágeis, estarem nessa ‘condição de empobrecidos’ não reagem às contradições internar e externa vividas por eles, buscando na mobilização coletiva, nas ações coletivas ou nos movimentos sociais uma forma de superarem suas privações. Com isso podemos dizer que há um hiato entre a teoria e a realidade: nem sempre aquele sujeito, grupo ou categoria social que teoricamente está mais propício à ações coletivas ou movimentos sociais9 acaba por vincular-se a eles.

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Entendemos que nesse momento seja importante comentar que, segundo as conclusões a que Reicher (1984) chegou em sua pesquisa a respeito de “A Rebelião de St. Paul" utilizando o conceito de identidade social de Tajfel, nas ações coletivas o sujeito age como um sujeito histórico e não a partir de concepções pessoais. Com isso podemos concluir que há uma internalização pelo sujeito das concepções ideológicas acerca do mundo social. As ações coletivas são a expressão de uma compreensão ideológica do mundo em que esse sujeito se encontra inserido. Tanto o comportamento coletivo pode moldar a identidade social quanto esta pode moldar o

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Então é nesse contexto que a identidade social proposta por Tajfel pode ser compreendida como sendo “(...) um mecanismo causal interveniente em situações de mudança social "objetiva" observada, antecipada, temida, desejada ou preparada pelos indivíduos envolvidos”. (Tajfel, 1983: 314) Tajfel vê três tipos situacionais distintos e relevantes e relativas às mudanças sociais, a saber: 1) A situação marginal. O grupo tem dificuldades em definir o seu lugar social em função das contradições vividas pelos sujeitos em questão. 2) Os grupos socialmente e consensualmente aceitos como superiores a determinados níveis sentem sua posição privilegiada ameaçada. 3) Os grupos socialmente e consensualmente aceitos como inferiores a determinados níveis vivem situações ou em que os membros do grupo se apercebem da ilegitimidade da condição inferior a que são e estão relegados; ou dão-se conta de que é possível reverter a condição inferior a que são e estão relegados caso implementem ações que lhes propiciem alternativas a seu atual lugar social. Mas o mais comum é que porque os membros do grupo se apercebem da ilegitimidade da condição inferior a que são e estão relegados e dão-se conta de que é possível reverter a condição inferior a que são e estão relegados caso implementem ações que lhes propiciem alternativas a seu atual lugar social e vice-versa. Observa-se assim, que a construção de estratégias de luta, de ações coletivas e de movimentos sociais são precedidas de processos psicossociais que como que determinam a viabilidade, a qualidade e força das ações coletivas e movimentos sociais adotados por um sujeito, grupo ou categoria social. A construção da identidade grupal se dá a partir de elementos identificatórios reconhecidos pelos sujeitos que comporão o grupamento. Tais elemento terão sua maior ou menor relevância no cenário grupal dependendo de qual seja a sua capacidade aglutinatória. É a percepção desses elementos que possibilitam a construção da identidade grupal. O mecanismo que possibilita a efetivação desses momentos que assinalamos anteriormente, é o da categorização social. Através da categorização social efetua-se a checagem de características compartilhadas pelos membros de um grupo. Esse compartilhar de características acontece num movimento de mão dupla. Em uma das mãos está o modo como o sujeito percepciona e categoriza aos outros. Temos aqui um movimento que se dá de fora para dentro. O movimento que ocorre na outra mão é o movimento da auto-atribuição. Quando o grupo estiver

construído, deverá manter positivamente sua distinguibilidade

comportamento coletivo. Por isso o comportamento coletivo tem um lugar importante durante o processo de elaboração e ideologias sociais.

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segundo a valoração que recebe de seus membros e contrapondo-se a valoração atribuída pelo grupo dos outros. Nesse contexto podemos concluir que é a partir da significação e percepção da imagem de si que um sujeito, um grupo ou uma categoria social possui e da forma como essa imagem se relaciona com a imagem do outro, do grupo dos outros ou da de outras categorias, que veremos o desenrolar e a posterior conclusão do jogo que acontece entre os movimentos de deserção e adesão e protesto.

3. A Teoria da Identidade Coletiva

Quando falamos em Teoria de Identidade Coletiva não estamos pensando em um bloco monolítico, como que em uma escola única, hegemônica. Sob esse título queremos apenas reunir alguns posicionamentos teóricos que possam contribuir para se pensar o que seja Identidade Coletiva10. Seguindo essa linha de leitura queremos apontar os trabalhos de 10

Apesar de não estarmos trabalhando com esse enfoque, parece-nos importante fazermos aqui um registro cuidadoso sobre a recuperação do conceito Durkheimiano de Representação Coletiva proposta por Moscovici (1988). Moscovici parte do conceito Durkheimiano de Representação Coletiva para construir o seu conceito de Representação Social, começamos por verificar o que seja Representação Coletiva para Durkheim. Quando Durkheim (1898) estuda a origem das religiões em sociedades primitivas australianas ele acaba por desvelar quão importantes e especificas podem ser estas Representações Coletivas. Para o autor, representações coletivas são manifestações psicológicas e sociais globais. Nesse contexto, enquadram-se as opiniões, saberes partilhados, os sistemas de pensamento que caracterizam um modus operandi através do qual dada sociedade pensa e se perpetua. Mediante as representações coletivas Durkheim busca demonstrar que o pensamento social se impõe ao pensamento individual e conseqüentemente a condição transcendente da sociedade frente ao indivíduo particular: a sociedade é instituída a partir do ideal da coletividade e, portanto, o pensamento organizado só é viável se admitirmos como fundamento para este a vida social. Sendo assim, as representações coletivas se impõem aos indivíduos e são estáveis e objetivas na medida em que são assimiladas as evidências sociais. Elas, ainda, detém um caráter autônomo por não serem passíveis de homogeneização e nem de redução ao real pelo fato de serem compartidas socialmente. Segundo Moscovici, Durkheim contrapõe individual e coletivo, sujeito e sociedade criando uma estrutura dicotômica para seu conceito de representação coletiva. Nesse modelo no plano particular Durkheim pensa uma Psicologia e no plano universal uma Sociologia, impossibilitando a existência de uma Psicologia Social que volte seu olhar e fazer para a relação entre sujeito e sociedade e seus respectivos lugares comuns. Com isso a representação coletiva assume um caráter de unicidade, relacionando-se a um grupo no qual nenhuma outra representação pode prevalecer. É essa condição que garante a estabilidade das representações coletivas, sendo possíveis mudanças de caráter excepcional e em condições extraordinárias. Moscovici reformula a representação coletiva Durkhemiana estável e imóvel e propõe o conceito de representação social. Esta é transformada no contexto social em que se origina num processo continuo. Para Moscovici a representação social acontece dentro do grupo e traz em si um caráter de diversidade e pluralidade. Ao elaborar o conceito de representações sociais, o autor tinha em mente: "(...) representações que estavam sempre se fabricando no contexto da interrrelações e ações que, por sua vez, estavam se processando. Esse era um pré-requisito para vinculá-las a importantes fenômenos do mundo moderno. (...) Não é bem a contribuição individual ou do grupo para estas representações que permite-nos chamá-las de representações sociaios; é o fato de que elas foram moldadas por um processo de troca e interação" (Moscovici, 1988:219). A teoria das representações sociais é uma teoria que trata da produção de saberes sociais, especialmente os saberes cotidianos e pertencentes ao mundo vivido; que se propõe analisar a construção e transformação do conhecimento social. Segundo a compreensão de Sandra Jovchelovitch, ao adaptar o conceito de representações coletivas Moscovici

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Tajfel (1981) quando ele discute as identificações grupais, , as discussões propostas por Prado (2000; 2001) acerca das teorias de ação coletiva e, finalmente, o trabalho de Melucci que propõe uma teoria propriamente dita sobre o que seja a Identidade Coletiva (1995). Ainda que já tenhamos pontuado anteriormente o pensamento de Tajfel, entendemos que seja importante recapitulá-lo, porém, dando ênfase à questão coletiva presente em sua teoria de identidade social. Em Tajfel encontramos as relações sociais constituídas a partir do reconhecimento das privações de cada sujeito e posterior reconhecimento destas no outro, o que resulta no estabelecimento de uma identidade social calcada em um sentimento de reciprocidade. Privação, reconhecimento do outro e reciprocidade são como que condições determinantes para a mobilização e manutenção de grupos sociais. Contudo, isso não nos permite entender satisfatoriamente a construção de ações coletivas de caráter político. A teoria da identidade social não traz, ao nosso ver, um componente político ou politizador que nos permita compreender estudar os processos políticos existentes nos grupos sociais e nas relações intergrupos sem estarmos dependentes do sentimento de privação. Assim diferentemente de outros atores, pensamos a obra de Tajfel como sendo pautada muito mais em pressuposto psicológicos do que psicossociológicos. Diferentemente de Tajfel, Melucci (1995), ao dedicar-se ao estudos das ações coletivas e da identidade coletiva, introduz o dado político que carecia a teoria de Tajfel. Prado (2001), a partir da leitura da obra de Alberto Melucci, afirma que

“(...) existem nas sociedades da informação, lugares de poder difusos que podem se entendidos como a ‘capacidade de dar formas’ aos códigos comunicativos no sistema social. O real é tido, portanto, como um jogo complexo e intenso de disputas por formas de significação. Isto se torna relevante pois nos permite pensar que as ações coletivas não emergem somente pela exclusão do mundo político institucional ou mesmo do mercado, mas também por intencionar a criação de uma realidade múltipla, ou a constituição de novos elementos culturais, que podem exigir novos movimentos de institucionalização. Nesse sentido, duas questões se fazem fundamentais: a identidade coletiva como um processo de criação de significados coletivos, de ‘dar forma’ à ação social (Melucci, 1996), e de referências e pertencimentos que favorecem a participação dos sujeitos em ações coletivas; e entendeu que,"(...) em sociedade sociedades como as nossas, perdem o poder aglutinador que detinham quando Durkheim as identificou. As representações coletivas de Durkheim têm estatuto de "fato social" no sentido hard da palavra; ainda que produzidas por sujeitos sociais, adquirem um caráter exterior à ação humana e condicionam todos os indivíduos das sociedades em que estão presentes a pensar a partir de suas categorias. Ao contrário de sociedades tradicionais, que mantém seus saberes firmemente enclausurados nas mãos de sujeitos, rituais e objetos sagrados, as sociedades modernas se caracterizam pela reflexividade dos saberes. Nada mais é "naturalmente" aceito, tudo está em questão, ou como Marx diria, tudo que é sólido se desmancha no ar. Assim, Moscovici põe o conceito em movimento e o muda para representações sociais, já que sua preocupação principal era justamente dar conta de como uma mentalidade coletiva se modifica na fluidez e maleabilidade das formas sociais contemporâneas" (Jovchelovitch, 1998:56). Para elaborar seu conceito, o autor procurou fundamentos outros que não estavam presentes no pensamento de Durkheim. Autores como Lévy-Bhrud (antropólogo e psicólogo), Freud, Piaget e Vigotsky são alguns dos quais Moscovici lançou mão para pensar sua teoria da Representação Social.

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o político como um espaço não institucional definido a partir das disputas por significar o real bem como as identidades, elas mesmas.” (p.167)

Ainda que, como apontou acima Prado, Melucci fale sobre a identidade como sendo uma ‘capacidade de dar forma’11 aos significados, de significar a realidade e Moscovici veja na sua Teoria das Representações Sociais função semelhante, é apenas até aí que as semelhanças chegam: na simbolização que os sujeitos são capazes de fazer da realidade. De resto qualquer semelhança é mera coincidência. Para Melucci o que existe é um processo de identização na construção desse Nós, dessa identidade coletiva, a um permanente processo de regulação e emancipação. Em outras palavras, o que queremos dizer é que a identidade coletiva é um processo permanente que regula as relações entre os sujeitos (o que nos leva a pensar na regulação das redes sociais, na solidariedade construída entre os sujeitos); entre eles e a realidade social na qual encontram-se inseridos. A capacidade emancipadora desse processo identidade coletiva advém dos conflitos, os quais são vistos de modo positivo, como sendo um importante componente no processo de construção identitária e para o equilíbrio social. Na medida em que os sujeitos constituintes desse discurso 'Nós' reconhecem o ‘Eles’ (que também possuem o seu próprio discurso Nós) e são capazes de negociar as diferenças percebidas no instante do mútuo reconhecimento, o conflito se torna positivo e emancipador. Como o reconhecimento do outro, do ‘Eles’ é constante, a emancipação também se torna permanente nesse processo identidade coletiva. É importante saliente que a emancipação não é um fim no processo identidade coletiva mas um dos componentes que o tornam dinâmico. Assim, entendemos que a identidade coletiva é, para Melucci, um processo de construção de significados, de constituição do discurso Nós. Tal processo se estabelece mediante as relações que os sujeitos detentores desse discurso Nós estabelecem com a realidade externa a eles próprios e pela qual são capazes de se diferenciar. A essa realidade externa Tajfel chama ‘grupo–do-outro’. No contexto melucciano podemos denominá-la ‘Eles’. Portanto, compreendemos que o ponto que estabelece a real diferença entre as Teorias de Tajfel e Melucci é a característica mais psicológica de Tajfel e mais sociológica de Melucci, o que confere um distinto lugar à arena política em cada uma das teorias: em Tajfel as questões políticas são circunstancias enquanto para Melucci o processo identidade coletiva não se poderia consumar satisfatoriamente. 11

Para contextualizar as questões levantadas por Prado acerca da visão de Melucci sobre a sociedade como sociedade da informação, sugerimos a leitura do artigo Individualização e Globalização: Novas Fronteiras para a Ação Coletiva e Idntidade Pessoal. Publicado no Hitotsubshi Journal of Social Studies 27 special Issue.

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Nesse sentido, se faz necessário um comentário crítico das teorias de Tajfel (Identidade Social) e de Melucci (identidade Coletiva). Como a Identidade Social de Tajfel propõe os aspectos aglutinantes e de manutenção da identidade de um grupo sem que tais condicionantes tenham o caráter político em si, ela se mostra insuficiente para se compreender adequadamente as razões que produzem ações coletivas com caráter político como é o caso das propostas pelos movimentos sociais. Um exemplo concreto disso é a formação de grupo de adolescentes. A identificação entre esses jovens se dá mediante a percepção de aspectos identificatórios como vestuário, práticas esportivas comuns, referenciais afetivos (namorados, namoradas, relações familiares...). O fato de alguns de seus parceiros terem idéias semelhantes as suas e distintas das idéias dos adultos (grupo dos outros) é suficiente para desautorizar aos adultos e conseqüentemente autorizá-los. Mas esse tipo de análise não contém nenhum tipo de condicionante político. As condicionantes ali presentes são de cunho social, cultural e psicológico. As ações promovidas por adolescentes estão muito mais ligadas à conquista psicológica de um espaço pessoal no mundo dos adultos do que propriamente à conquista de um espaço político. A política assume nesse universo um papel secundário. Assim podemos dizer que a identidade social é constituída e mantida através de um conjunto de lentes sociais que se sobrepõe umas as outras e pelas quais o indivíduo observa e se integra socialmente. A Identidade Coletiva proposta por Alberto Melucci inscreve-se na construção de grupos que aglutinam-se e se mantém por razões eminentemente políticas. Enquanto na identidade social a política ocupa um papel secundário na vida do grupo, na identidade coletiva o papel da política é primário, é fundante. No instante em que o sujeito encontra aspectos identitários que o faz ingressar num universo não apenas social, econômico, cultural e psicológico, mas num universo onde os aspectos anteriores são observados pela ótica da política estamos ingressando propriamente no mundo concernente à identidade coletiva. E é exatamente porque o dado político entra em cena que o autor pressupõe como necessária inserção do sujeito em movimentos sociais, em ações coletivas. No contexto da identidade coletiva temos a predominância da lente política ou politizada sobre as demais lentes sociais com as quais o sujeito olha o mundo da vida. Nesse sentido Melucci acaba tornando obrigatória a mobilização política que conduz ou às atividades sindicais, ou partidárias, ou ainda aos movimentos sociais, não deixando espaço para que se compreenda as ações coletivas realizadas mediante o consenso.

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4. Consciência e Identidade: Uma outra Perspectiva Salvado A. M. Sandoval12 vem em sua trajetória acadêmica preocupando-se com o fenômeno das Ações Coletivas. Tal preocupação conduziu o autor a dedicar seus esforços em trabalhos ligados à Psicologia Política e à Psicologia dos Movimentos Sociais. Exemplo disso é a sua tese de doutorado intitulada Os trabalhadores param: Greves e mudança social no Brasil. Todavia, o que nos importa no pensamento de Sandoval é o modo como ele entende e relaciona Consciência e Identidade. Tendo claro os limites propostos pelas Teorias da Identidade, Sandoval propõe um modelo analítico para o estudo da Consciência Política. Inicialmente importa registrar que influenciaram de modo considerável no processo de construção do modelo de estudo da consciência política proposto por Sandoval Charles Tilly (1978) e Allan Touraine (1966). Contudo é a partir da análise do esquema de Consciência Operária proposto por Touraine (1966) que Sandoval inicia a construção do modelo que na seqüência estaremos analisando. Segundo a visão de Sandoval(1994), o esquema de Touraine constituía-se , na ocasião, “(...) na proposta mais coerente do ponto de vista teórico e a mais viável operacionalmente para o estudo empírico da consciência” (Sandoval, 1994:66) Ainda segundo o autor, a grande preocupação de Touraine na ocasião era “(...) chegar a uma definição possível que não fosse nem divorciada da realidade da sociedade de classes (...) nem tampouco inferida apenas de ações coletiva” (Sandoval, 1994:67). Touraine propõe em seu esquema três dimensões básicas da consciência operária13, sendo elas Identidade, Oposição e Totalidade. Sandoval reconhece que a classificação elaborada pelo francês aprecia a ampla literatura sobre o tema ao englobar os aspectos fundamentais da consciência nela indicados. Contudo, a crítica que Salvador Sandoval reserva ao esquema da consciência operária proposto por Touraine reside no fato de o autor ignorar no seu modelo

“(...) a percepção que o indivíduo tem de sua capacidade de intervenção para alcançar seus interesses, um fator estreitamente associado ao conceito de consciência no sentido voluntarista, e certamente implícito nas explicações causais da ação coletiva. (...) Essa dimensão (...) representa o componente de conduta da consciêcia, no sentido de focalizar o rapport dos indivíduos com formas de ação sancionadas pelo mesmo na defesa de seus interesses.” (Sandoval, 1994:67-68)

A essa dimensão chamada por Sandoval de predisposição para intervenção seria 12

norte-americano radicado no Brasil desde 1976 e que atualmente é Professor na Universidade Estadual de Campinas e na Pontifícia Universidade católica de São Paulo. 13 Para maiores etalhes do esquema tourainiano, consultar La conscience Ouvrière. Paris: Seuil, 1966.

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acrescida ao esquema de Alain Touraine em função de o propositor entende que o conceito de consciência estaria “(...) intimamente relacionado ao engajamento do comportamento social m busca de auto-interesse e de interesse de classe” (Sandoval, 1994:68), sendo que para o autor

“(...) consciência é um conceito psicossocial referente aos significados que os indivíduos atribuem às interações diárias e acontecimentos em suas vidas (...) A consciência não é um mero espelhamento do mundo material, mas antes a atribuição de significados pelo indivíduo ao seu ambiente social, que servem como guia de conduta e só podem ser compreendidos dento do contexto em que é exercido aquele padrão de conduta.” (Sandoval, 1994:59).

Ainda relacionado a essa Quarta dimensão da consciência lemo o seguinte:

“Além disso, a compreensão de como certas ações individuais ou coletivas ocorrem ou deixam de ocorrer não é apenas uma questão de circunstância histórica ou da percepção do indivíduo de sua realidade social, mas também do repertório disponível de ações possíveis e da legitimidade atribuída as mesmas por seus atores. É nessa terceira acepção que sentimos a necessidade de agregar a ’predisposição para a ação’ às outra dimensões de consciência política. “ (Sandoval, 1994:68)

Na proposta de Sandoval, a identidade não ocupa o lugar de categoria analítica; aqui a identidade é entendida como que sendo um componente, uma dimensão da consciência, da mesma forma com que Touraine propôs. Juntamente com o conjunto de crenças, com a cultura, com as experiências vividas, estão a identidade social e a identidade coletiva constituindo as dimensões da consciência política (e no nosso entender podemos introduzir nessa construção teórica o outro generalizado que funciona como mediador externo, entre sujeito e sociedade, e interno, entre os diversos níveis psicológicos do sujeito). Sandoval não entende como sendo identidades distintas as propostas de Tajfel e Melucci, mas como sendo a identidade coletiva uma especificação da identidade social tajfeliana ocorrida pela politização do sujeito e ambas um componente da Consciência Política. Nesse sentido nós entendemos a modelo de estudos da Consciência Política como sendo uma inversão da teoria meadiana da seguinte forma: enquanto Mead não atribui a sua teoria do Self um caráter crítico (e se o faz ele provavelmente tem essa condição a priori e por isso não a clarifica) abrindo a possibilidade de se alcançar uma consciência de si acrítica, Sandoval parte exatamente dessa carência da teoria meadiana ao introduzir como condição objetiva para o seu modelo analítico da consciência política a capacidade crítica que o indivíduo deve adquirir mediantes suas experiências com o Estado e na construção da identidade coletiva com o grupo de pertença.

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Nós observamos na obra do autor uma aproximação significativa com a obra de Mead no que se refere a consciência de si, já que toda a consciência de si é social e por ser social pode vir-a-ser política. Assim, em tese toda a consciência de si é política. A aproximação que fazemos dessas duas concepções teóricas se justifica pelo fato de partirem de algumas premissas comuns: a reciprocidade existente entre sujeito e sociedade, a mediação desse processo pela identificação e apropriação da atitude do grupo de pertença e a possibilidade de se aprofundar progressivamente esta consciência política. Quando dizemos que toda a consciência de si é política estamos nos referindo ao fato de no processo de interiorização das estruturas sociais, das instituições, durante a apropriação do outro generalizado, é mister que o eu faça a sua leitura das estruturas, instituições e do outro generalizado com o qual o mim teve contato e 'propõe' ao eu interiorizar. Essa leitura e conseqüente releitura feita pelo eu (a qual implica na relação de mão dupla entre o sujeito e a sociedade), estaria impregnada de posturas políticas advindas do processo de estruturação do self (ou autoconsciência ou ainda consciência de si). Mas enquanto Mead não destaca a especificidade da ação e consciência política14, o aspecto político, na estrutura geral da consciência de si fazendo com que esse caráter político do self seja como que uma condicionante implícita à existência do próprio self; Sandoval procura discriminar, enfatizar, na consciência seu caráter político. Ainda que o processo de estruturação da consciência traga em si um caráter político, isso não implica na necessidade de que o sujeito seja um sujeito politizado. Assim, a consciência política refere-se a politização do sujeito, às ações politizadas do sujeito e, em ultima análise, ao desenvolvimento consciente do seu caráter político. Segundo o autor consciência Política é:

“(...) a composite of interelated social psychological dimensions of meanings and information that allow individuals to make decisions as to the best course of action within political contexts and specific situations.” (p. 185)

Para Sandoval a consciência política é formada por aspectos identitários (identidade social na perspectiva de Tajfel), pela cultura construída socialmente e expressa na sociedade, por um conjunto de crenças internalizadas pelo indivíduo e pela percepção politizada do contexto social em que se localiza o sujeito (identidade Coletiva na perspectiva de Melucci). Esses aspectos que informam a consciência apresentam-se no modelo proposto por Sandoval 14

Importa fazer notar que no instante em que Mead faz da democracia uma condição necessária para o desenvolvimento do self, ele está abrindo espaço para que pensemos o próprio self não apenas socialmente mas também políticamente. Contudo o possível aspecto político do self não chega a ser mencionado pelo autor no decorrer de sua obra.

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com sendo 7 dimensões psicossociológicas que se articulam. São elas a Identidade Coletiva; as Expectativas e Convicções Societais; os Sentimentos de interesses Coletivos e a Identificação de Adversários; a Eficácia Política; os Sentimentos de Justiça e Injustiça; a Vontade de Agir Coletivamente e, por fim, as Metas e Propostas de Ação Coletiva. Nas palavras de Sandoval (2001)o modelo descreve as várias dimensões psicossociais que constituem a consciência política de um indivíduo:

“This model of political consciousness depicts the various social psychological dimensions that constitute na individual’s political awarenessof society and himself/herself as a member of that society and consequntly represents him/her dispositions to action in acordance with that awareness.” (p. 185)

Abaixo apresentamos o esquema do modelo de Sandoval (2001):

Identidade Coletiva Crenças e Valores Societais

Identificação de Adversários e de Interesses Antagônicos Eficácia Política

Sentimento de Justiça e Injustiça Metas de Ação Coletiva

MODELO DE SANDOVAL PARA O ESTUDO DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA

}

Formas de Ação Individual e Coletiva

Vontade de Agir Coletivamente

Fonte:: Sandoval, S. (?001) in. Revista Psicologia Politica llno 1; N° I (1), p. (tradução nossa)

Sandoval oferece um modelo conceitual da noção de consciência política entendida como "(...) processo contínuo de elaboração de visões de mundo em seus sentidos normativos, pragmático-situacionais e cognitivo-informativos" (Sandoval, 1999☺ Antes de apresentarmos o modelo, é importante salientar que os estudos desenvolvidos por Sandoval durante o desenvolvimento de seu modelo indicam que “(...) a consciência política não é uma mera escala aleatória de elementos, mas antes organizada em modalidades de percepção da realidade social as quais são passíveis de análise sistemática.” (Sandoval, 1994:61) Pelo fato de já termos feito anteriormente uma análise a respeito do item Identidade Coletiva, passamos a analisar os demais itens que compõe o modelo. Crenças e Valores Societais estão na base da construção das identidades nas quais os

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sujeitos estão inseridos. A partir do processo de internalização das instituições, das crenças, da cultura e dos valores construídos socialmente; mediante o diálogo interior vivido por cada sujeito e que é pautado pelo que é internalizado, é que se dá a individuação do sujeito. Baseado nesse diálogo que o sujeito faz consigo mesmo é que ele responde à dinâmica social da qual faz parte e constrói conhecimentos, simboliza o conhecido e experienciado. Assim, podemos afirmar que o universo simbólico construído socialmente pelo sujeito “(...) tem suas raízes em suas experiências históricas de vida e da sociedade a que pertence (...)” (Sandoval, 1994:61). Agnes Heller (1972) discute em sua obra Cotidiano e História questões ligadas à rotina da vida. Ao nascermos imediatamente somos inscritos no “mundo da vida” (Habermas, ), nas atividades quotidianas. Como diz Heller (1972) e Sandoval retoma (1994), “(...) os grandes eventos não-quotidianos da história emergem da vida quotidiana e eventualmente retornam para transformá-la. A vida rotineira é a vida do indivíduo integral, o que equivale a dizer que dela participa com todas as facetas de sua individualidade. Nela são empregados todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades para manipular o mundo objetivo, sentimentos, paixões, idéias e crenças” (Heller, 1972: 71) A vida cotidiana é segmentada e heterogênea. A segmentação do cotidiano manifestase na conduta e nos níveis de consciência desenvolvidos por cada sujeito. O mundo da vida cotidiana aparece naturalizado, como um mundo do imediato que é orientado pelo senso comum. O cotidiano é o lugar da continuidade ininterrupta, da estabilidade, onde a reflexão não se faz necessária, no qual a redefinição do simbólico não pode acontecer pelo fato de significar o rompimento desse contínuo. E é exatamente porque o cotidiano assim se configura que ele acaba por se tornar um espaço onde crenças e valores societais tendem à cristalização e a única possibilidade de consciência possível é a consciência do Senso Comum (cf. Sandoval, 1994:70). Em relação a isso Sandoval observa que: “A característica dominante da vida quotidiana é a sua espontaneidade. Isso equivale a dizer que a assimilação de padrões de comportamento, crenças sociais, pontos de vista políticos, modismos etc. é feita geralmente de maneira não-racional (não refletida)”

(Sandoval,

1994:65). Espontaneidade é, no pensamento de Agnes Heller (1972,) uma tendência em todas as formas de atividade quotidianas. De fato a manutenção da vida diária se tornaria insustentável caso todas as ações do sujeito exigissem algum tipo de reflexão. Contudo, ações refletida colocam e xeque a rotina da vida diária. Podemos dizer então que o quotidiano impões ao

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sujeito formas de pensar imediatista, utilitarista e, porque não dizer, pragmaticista15, o que “(...) favorece o desenvolvimento do pensamento superficial” (Sandoval, 1994:64). O fato de o cotidiano estar marcado pelo pragmaticismo, pelo utilitarismo, pela visão de mundo naturalizada e pelo pensamento superficial, nos remete a pensá-lo como um espaço alienante. Nele o sujeito tende a viver conformado e alienado visto que o exercício da reflexão, o questionamento da rotina não faz parte deste modo de vida pelo simples motivo de que ao questionarmos o continuum da vida estamos causando nele uma ruptura, uma perturbação à ordem vigente. A esse respeito Sandoval afirma que

“(...) a rotina quotidiana é aquele aspecto da realidade social que que mais se presta à alienação, a qual se manifesta na co-existência silenciosa entre as tarefas envolventes do viver diário e da ordem social maior que o determina. Alienação é tipicamente expressada em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o ‘natural’ das desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se encontram estruturadas. A acitação espontânea de normas sociais e em última instância da estruturação de classes, desigualdades sociais, e submissão política disfarçada de ‘requisito’ do viver rotineiro, podem Ter o efeito de tornar o indivíduo um conformista na medida em que carece da instrumentação intelectual para um raciocínio sistemático e crítico, e das práticas diárias do exercício democrático de direitos e obrigações de cidadania. Essa alienação, evidenciada no fragmento da consciência das pessoas, é melhor ilustrado na dificuldade que tem de conceitualizar a estrutura social, a estratificação social e o regime democrático.” (Sandoval, 1994:64-5)

A estabilidade da sociedade capitalista está fundada na segmentação e insulação da economia da comunidade política. Há uma aparente compartimentação do político e do industrial, sendo esse último privado do caráter político. Entretanto quando a ordem do sistema industrial é afetada, afetada também é a esfera política. Essa ordenação falaz e segmentada, naturalizada, da sociedade capitalista tem sua estabilidade garantida pelo dissenso e pelo estreitamento da visão social. O controle social exercido sobre o trabalhador em sociedades industriais procura focalizar os descontentamentos na concretude da rotina da vida quotidiana ou em aspectos da arena política eivados pelo populismo, evitando, assim, a ”(...) discussão da natureza e do exercício do poder político”. (Sandoval, 1994:66) 15

Sandoval escreve que “o imediatismo do pensar e do comportamento quatidiano obscurece a diferença entre o ‘possível’ e o ‘correto’, tanto quanto no comportamento diário tende a reduzir o correto ao possível e, em decorrência, a encobrir as questões de direito de cidadania e moralidade política. Assim, a atitude quotidiana é tipicamente pragmática. Essa falha na racionalidade e a ênfase no pragmaticismo se refletem no caráter fragmentário do pensamento das pessoas combinando a mescla não-sistemática de material cognitivo e juízos superficiais de valores, convertendo a pressa bo ‘desejável’ a eficiência no ‘natural’, na medida em que as opções de comportamento delas lhe permite continuar no ritmo do dia-a-a-dia com um mínimo de perturbação.”(1994:64) Ao utilizar o termo pragmaticista queremos guardar que aqui ela está utilizada segundo o senso comum e não na acepção da filosofia pragmática norte-americana da qual George Herbert Mead foi um dos sistemaizadores. Para clarificar melhor o que dizemos recomendamos a leitura do capitulo I da tese de doutorado de Odair Sass. (1992) intitulada Crítica da Razão Solitária: a psicologia social de George Herbert Mead no qual o autor trata sobre Pragmatismo e Pragmatismos.

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Portanto ao discutirmos a dimensão das crenças e valores societais percebemos que essa dimensão encontra-se comumente ligada à espontaneidade da vida quotidiana. Quando essa ligação se estabelece, ela permite uma cristalização dessas crenças e dos valores societais; uma condição propícia à alienação e ao comodismo do sujeito em função da nãoracionalidade das práticas diárias e da segmentação a que estas estão subordinadas. Essa conjuntura nos leva a reconheer que a sociedade capitalista tem a tendência de fragmentar a consciência do indivíduo a partir de interpretações segmentadas de visões de mundo impossibilitando a formação da consciência política. A única consciência política possível nesse quadro é, como já dissemos, a ‘consciência de senso comum’. Para que outras modalidades possam emergir é impreterível que ocorra o rompimento da rotina, a introdução da reflexibilidade na vida do sujeito. Concordamos com a afirmativa de Sandoval na qual o autor diz que “(...) é precisamente esse tipo de interrupção da estabilidade da vida rotineira no trabalho, na vizinhança e nas instituições (...) que aciona a mudança da consciência individual.” (Sandoval, 1994:63) A dimensão em que se os interesses antagônicos e os adversários são identificados, se refere aos sentimentos do indivíduo em relação aos seus interesses simbólicos e materiais em oposição aos interesses de outros grupos. Pensar em

interesses antagônicos nos leva a

questionarmos até que ponto tais interesses antagônicos conduzem à concepção de adversários coletivos na sociedade. Para Sandoval (2001), a identificação desses interesses antagônicos e de adversários ocupa um importante lugar no estudo da consciência política apoiada na ação coletiva. Sem a noção de um adversário visível é impossível mobilizar os indivíduos a agir e coordenar ações contra um objetivo específico, seja este um indivíduo, um grupo ou uma instituição. Nessa linha identificamos a influência de Tajfel que propõe como requiosito à mobilização do grupo a identificação dos interesses comum ao próprio grupo; de interesses contrários a manutenção desse grupo e a identificação de grupos que tenham por interesses aqueles que o grupo a que se pertence repudia. Dessa maneira se estabelece a relação ‘meu grupo de pertença’ e ‘grupo dos outros’. O estabelecimento dessa dimensão pressupõe o rompimento com a rotina quotidiana; a introdução da racionalidade frente as práticas diárias. Como ressalta Sandoval “(...) esferas não problemáticas de realidade rotineira podem perdurar até serem interrompidas pelo surgimento de problemas, conflitos ou fatos não-explicáveis.” (Sandoval, 1994, 63) Isso nos remete a pensar que qualquer que seja a análise da consciência deve-se considerar sempre o parâmetros da reflexividade e da escolha.

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A segmentação do cotidiano e o comodismo utilitarista e pragmaticista é substituído por um estado de permanente reflexibilidade em função dos perigos que os interesses antagônicos e os adversários representam. Nessa dimensão o pensamento utilitarista e superficial bem como o comodismo podem trazer efeitos nefastos ao indivíduo e a seus grupos de pertencimento. Essa dimensão nos remete também ao esquema de Alain Touraine, o qual já comentamos anteriormente. Em seu esquema encontramos a dimensão da oposição. As dimensões da oposição, proposta por Touraine, e da identificação de adversários e de interesses antagônicos, proposta por Sandoval, são similares no que diz respeito a focalizar a percepção que o sujeito tem da classe a que pertence e das outras classes e da relação que estas estabelecem. Nesse sentido, a percepção que o sujeito tem das classes classes dominantes é de especial importância. Segundo Sandoval, a ênfase dessa dimensão está no “(...) caráter antagonístico das relações de classe (na medida em que esses são conflitos de interesse) e no significado que o indivíduo atribui ao antagonismo em termos de obstáculos para lograr benefícios materiais e políticos.” (Sandoval, 1994:67) Eficácia Política é a dimensão que trata dos “(...) sentimentos de uma pessoa acerca de sua capacidade de intervir em uma situação política.” (Sandoval, 2001:188) Para explicar melhor esta categoria, Sandoval (2001) apoia-se na teoria da atribuição (cf. Hewstone, 1989), segundo a qual a interpretação das causas e as próprias causas dos acontecimentos em que as pessoas estão envolvidas podem ser de três tipos. No primeiro deles encontramos eventos resultantes de forças transcendentes como tendências históricas, desastres naturais e intervenções divinas. Sujeitos que atribuem a origem social a ações dessa ordem, possuem sentimentos de baixa eficácia política. Tanto mais acreditem que os eventos têm como causas forças transcendentes, mais baixo será o sentimento de eficácia política frente à ações que possa empreender a fim de transcender as forças da natureza, gerando o conformismo e reações submissas à situações de angústia social. Um segundo locus de origem social é o individual. Neste locus encontramos eventos resultantes da própria determinação da pessoa e de sua capacidade de lidar com uma situação específica. Neste caso, o sujeito busca soluções individuais para situações sociais. Nos casos de conflitos sociais, o sujeito atribui as causas às ações ou a capacidade individuais na tentativa insólita de administrá-las ou resolve-las. Caso não possuam as capacidades para lidar com a angústia social, recorrem à auto-culpabilização. O terceiro e último locus proposto pela teoria da atribuição de está na interpretação da origem social a partir de eventos resultantes das ações de outros grupos ou indivíduos, cuja

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convicção em situações de angústia social são resultantes das ações de certos grupos ou indivíduos. tal convicção permite aos sujeitos acreditar

na potencialidade das ações

individuais ou coletivas contra os autores da situação de angústia social como instrumentos eficazes na promoção da mudança social e conseqüente superação da angústia social. Nesta terceira possibilidade de atribuição da origem social encontramos os motivos que permitem ao sujeito tornar-se ator social mudando sua própria vida e a vida dos outros. Sentimentos de justiça e injustiça constituem a dimensão da consciência política na qual estão compreendidas as formas como o sujeito percebe os arranjos sociais em termos de sentimentos de reciprocidade social entre os atores considerados pelo sujeito. Baseando-se no conceito de justiça social de Moore (1978), Sandoval afirma que ela é “a expressão de sentimentos de reciprocidade entre obrigações e recompensas. (...) Sempre que os indivíduos acreditarem que foram contrariados no equilíbrio das relações de reciprocidade, ele entenderão esta ruptura da reciprocidade em termos de injustiça.” (Sandoval, 2001:189) O que constitui uma relação equilibrada de reciprocidade e o modo como o sujeito percebe a violação dessa relação são processos sócio-históricos complexos. Certamente uma grande parte dos critérios para medir noções de reciprocidade são histórica e contextualmente determinados. Não obstante a isso, quando estes sentimentos de reciprocidade deixam de existir por alguma razão ou foram violados, constituindo, assim, uma situação injusta, provocam o descontentamento coletivo e o subseqüente protesto. É comum notar que toda a reivindicação dos movimentos sociais se dá contra uma situação de injustiça. Por conseguinte, observamos que quando as pessoas sempre se referem a sua participação em movimentos sociais encontram-se embutidas nestas alguma referência à noções de injustiça que são utilizadas para legitimar suas reivindicações e responsabilizar os adversários. A vontade agir coletivamente, é uma dimensão mais instrumental correspondendo à predisposição de um indivíduo de empreender o jogo das ações coletivas como um modo de buscar corrigir injustiças. Essa dimensão encontra como base teórica os estudos de Bert Klandermans (1992). O autor propõe três aspectos que condicionam a participação coletiva. O primeiro aspecto enfoca a relação custo/benefício da manutenção ou não da lealdade. Essa escolha tem caráter determinante na tomada de decisão por parte do sujeito quanto a participar ou não de movimentos sociais, de ações coletivas. Lemos em artigo publicado em 1989 por Sandoval: “(...) Considerar aspectos lógicos do não participar, é dizer pensando racionalmente em termos de custos e benefícios relacionados ao ato de

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participar politicamente, podese dizer que as pessoas seriam mais predispostas a não participar do que o contrário” (p. 62) Para exemplificar os fatores psicossociológicos que levam o sujeito a participar em mobilizações coletivas a despeite de existirem pressões contrárias, o autor recorre a raciocínios desenvolvidos pela Teoria dos Jogos, sendo o chamado ‘Dilema do Prisioneiro’16 um exemplo dessa primeira situação. Segundo Sandoval, ele exemplifica didaticamente um dos aspectos que desaconselha a participação em esforços coletivos: quais são os custos e os benefícios dessa participação. O segundo aspecto se refere especificamente aos gastos percebidos ou à perda de benefícios materiais que resultam no envolvimento do sujeito em movimentos sociais. Partindo da mesma lógica do ‘Dilema do Prisioneiro’ encontramos o chamado ‘Dilema da Participação Coletiva’17. Esse outro dilema ilustra “(...) a problemática da participação dos indivíduos nos movimentos sociais da ótica de custos e benefícios que uma pessoa de camada popular possa ter como resultado de participar ou não participar de um movimento social”. (Sandoval, 1989:64) O terceiro aspecto diz respeito aos riscos físicos percebidos ao ocupar-se de movimentos sociais e ações coletivas dadas as condições em que se dá tal ocupação. Essa avaliação do sujeito servira para que ele possa pesar as possibilidades que o movimento social, no qual está engajado, tem de implementar as ações coletivas a que se propõe. Tanto esta como a próxima dimensão da consciência política encontram subsídios em trabalhos de teóricos racionais (Olson, 1965) que estudam os determinantes da participação coletiva. Sandoval ressalta que, em ambas as dimensões, as decisões que sujeitos tomam, seja individualmente como coletivamente, relativas a sua participação em um movimento social, são fruto de escolhas informadas e significadas que influenciam na participação e no compromisso dos sujeitos com o movimento social. Segundo o autor, estas escolhas são informadas e significadas pelo sujeito a partir de suas identidades coletivas; de suas convicções, valores societais e expectativas em relação à

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Recomendamos com vista a uma compreensão mais aprofundada da Teoria dos Jogos e dilemas a que o autor refere-se, as seguintes leituras: Shubik, Martin. Game Theory, behevior and the paradox of the prisoner’s dilema, in Jounal of Conflict Resolution, 14, 1970; Sandoval, Salvador A. M. Considerações sobre aspectos micro-sociais na análise dos movimentos sociais. in Revista Psicologia e Sociedade nº 7, Set./1989. Minimamente podemos dizer que esses dilemas são jgos em que os sujeitos neles envolvidos tem a opção de cooperar ou não com os demais ujeitos envolvidos em algum tipo de ação coletiva. Essa decisão estará vinculaa a avaliação que o sujeito fará do custo e do benefício dessa participação. Recomendamos também a leitura de Przeworski, Adam. Marxismo e Escolha Racional. in Revista Brasileira de Ciências Sociais, 6, fev./1988. Esse último texto analisa os pontos teoricamente críticos no Dilema do Prisioneiro. 17 Hardin, Roussell. (s/d) Collective action pp. 25-30.

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sociedade; de seus sentimentos de eficácia política; de suas percepções acerca de adversários e sentimentos egoístas enfrentados por eles e, por fim, dos seus sentimentos de justiça e injustiça (cf. Sandoval, 2001:190). Metas e ações do movimento social é a dimensão que refere-se ao grau com que os participantes percebem a correspondência entre as metas do movimento, as estratégias de ação do movimento e seus sentimentos de eficácia política, de injustiça e interesses. Ela enfoca a análise do grau identificação existente entre as das metas e ações empreendidas pelo movimento e suas lideranças em relação ao adversário em um determinado momento e os interesses materiais e simbólicos, os sentimentos de injustiças despertos nos sujeitos por esse adversário percebido. Importa nessa dimensão que as ações coletivas propostas pelo movimento social esteja dentro das expectativas do sentimento de eficácia política dos sujeitos. O trabalho de promover o emparelhamento entre as metas do movimento e as aspirações e capacidades de seus membros propiciam sérios desafios às lideranças e aos demais participantes do movimento. Esta dimensão diz respeito a forma com que os outros componentes da consciência política interagem com características de organização do movimento. Essa interação proporciona um ambiente psicossocialmente predisposto à ação coletiva. Apresentadas as dimensões da consciência política proposto por Sandoval pensamos que seja mister ressaltar que, segundo o autor, ”O estudo da consciência política sem um exame cuidadoso da percepção de ações coletivas seria incompleto na medida em que falha em ligar visões societais a alternativas comportamentais possíveis e implícitas em situações específicas de relações de poder” (Sandoval, 1994:68). O autor afirma que seus esforços para a construção de um modelo analítico que possibilite o estudo de ações coletivas, da consciência política resultam num ”(...) enfoque integrado que analisa os fatores e os processos que determinam as formas e os motivos individuais das pessoas agirem em situações de mobilização coletiva” (Sandoval, 1989:68) Ainda nesse sentido, pensamos que o modelo analítico proposto por Sandoval para o estudo da Consciência Política, enfoca determinantes internos e externos da dinâmica dos movimentos sociais que se referem às formas com as quais os sujeitos aderem às ações coletivas e aos movimentos sociais. Assim, o modelo integra análises macro e micro sociológicas bem como psicossociológicas sem cair no sociologismo ou no psicologismo. Uma compreensão global acerca do comportamento político de sujeitos só poderá ser alcançado de modo eficaz caso se efetua o cruzamento de determinantes biológicos, psicológicos e sociológicos. Separar aspectos sociológicos de aspectos psicológicos só

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poderia ser feito de maneira artificial e consistiria na fragmentação da análise desses fenômenos. Para Salvador Sandoval

“Privilegiar um aspecto sobre o outro seria distorcer a realidade e e truncar o esforço de conhecimento científico, uma vez que o fenômeno se dá na interação entre fatores estruturais, as relações sociais interativas, as visões de mundo com seus pré-conceitos de fundo cultural e as reflexões conscientes de custos e benefícios de participar” (Sandoval, 1989:68)

Parece-nos, enfim, que o modelo analítico de estudo da consciência política proposto por Sandoval oferece um referencial teórico consistente para a pesquisa da participação política, da participação coletiva, e serve como ferramenta conceitual para os trabalhos de socialização política desenvolvidos pelos dirigentes e militantes de movimentos sociais, bem como para a atuação daqueles que se dedicam a esse tipo de estudo.

CAPÍTULO IV

CAMINHANDO RUMO AO ACAMPAMENTO CARLOS MARIGHELLA

"O futuro do Brasil pertence ao socialismo. Então as fontes de riquezas serão estatizadas e novas relações de produção entrarão em harmonia com as forças produtivas. E será eliminada a farsa de uma liberdade que para as elites tem plena expansão e para as massas apenas o significado de um mito". (Carlos Marighella, * 05/12/1911 -✝ 04/11/1969)

1. O RETRATO DO CARLOS MARIGHELLA O acampamento Carlos Marighellalocalizava-se1 no trevo de Euclides da Cunha Paulista, município mais conhecido como Porto Euclides. Em outras ocasiões esse mesmo trevo foi palco de lutas de sem terra. Durante o governo Montoro estiveram acampadas nesse local cerca de 1500 famílias que lutavam pela fazenda XV de Novembro. Hoje as cerca de 280 famílias ali acampadas são provenientes de cidades da região do Pontal, do norte do Paraná e do Paraguai. Esses últimos são os chamados brasiguaios, ou seja, famílias de brasileiros que movidos pela crise econômica brasileira imigraram para terras paraguaias e lá tentaram a sorte.

1

A mobilidade é uma importante característica dos acampamentos de sem terras. O tempo que as famílias ficam acampadas em um mesmo lugar depende de inúmeros fatores. No caso do acampamento Carlos Marighella, muitas das famílias que lá estavam, já haviam acampado no Santa Rita (trevo de Teodoro Sampaio - SP), por exemplo. Em 2000 o MST regional desfez o acampamento Santa Rita e organizou acampamentos menores entre os quais estavam o Dorcelina I e o Carlos Marighella. A criação desses novos acampamentos fora motivada em função de áreas escolhidas pelo movimento para ocupação e que poderiam ou não estar em negociação com o governo estadual. As famílias foram reunidas nos acampamentos segundo a região em que prefeririam viver quando assentadas. A medida em que a negociação das áreas eram confirmadas, saíam grupos de famílias desses acampamentos, originando outros acampamentos, para ocupálas, pressionar o governo e evitar que outros movimentos saíssem à frente ou que o governo assentassem outras famílias que não estivessem participando da luta. Como já mostramos no capítulo I, através do gráfico organizado pelo ITESP, são muitos os movimentos sociais agrários presentes em São Paulo.Enquanto estivemos no Pontal, pudemos acompanhar o nascimento de dois novos acampámentos, sendo um oriundo do Dorcelina e outro do Carlos Marighella. Referimo-nos aos acampamentos Dorcelina II que saiu do Dorcelina e ocupou a fazenda Santa Maria no município de Marabá Paulista e Porto X oriundo do Carlos Marighella e que ocupou a fazenda Porto X, da qual tirou o nome, localizada no município de Euclides da Cunha Paulista. Em abril de 2001, os acampamentos que estavam localizados fora de alguma fazenda em litígio foram reunidos no trevo do município de Teodoro Sampaio, frmando um grande acampamento com crca de 1200 famílias, segundo dados fornecidos pela coordenação regional do MST no Pontal. Os Acampamentos Dorcelina I e Carlos Marighella surgiram em maio de 2000 e dissolvidos em abril de 2001 para dar origem ao grande acampamento de Teodoro sampaio.

Muitas delas não tiveram a sorte de obter o sucesso esperado naquelas bandas. Acabaram trabalhando de bóia-fria ou meiando algum pedaço de terra. A terra de sua propriedade muitas vezes não chegou ou quando chegou ou era muito pouca ou longe de escolas, hospitais e de difícil escoamento da produção. Sob essas condições algumas delas acabaram regressando ao Brasil depois de terem ouvido falar do sucesso alcançado por famílias de sem terra que participavam do MST. Amigos, parentes e conhecidos já haviam sido assentados e isso era um indicativo positivo para que eles resolvessem voltar e enfrentar a dureza da vida de acampado na esperança de, desta vez, também ser agraciado com um pedaço de terra e as condições mínimas para produzir nela. O acampamento Carlos Marighella surgiu depois que o acampamento Santa Rita, localizava-se no trevo de Teodoro Sampaio, foi desfeito em virtude de muitas famílias já terem sido assentadas ou porque muitas delas já haviam ocupado novas áreas no intuito de pressionarem os governos estadual e federal no sentido de agilizarem os processos de desapropriação de terras dando uma solução para seu problema. As famílias que não tiveram essa sorte foram transferidas ou para uma área de reserva florestal cedida pelos assentados do Água Sumida, município de Teodoro Sampaio, ou para o trevo de Euclides da Cunha Paulista. As famílias escolheram seu novo destino levando em conta as áreas em que gostariam de ser assentadas. Aquelas famílias que ficaram em Teodoro Sampaio batizaram seu acampamento de Dorcelina, homenagem feita à Prefeita sul-matogrossense assassinada e que apoiava abertamente o MST em sua região. As famílias do Dorcelina eram quase todas oriundas de São Paulo. Apenas 15 de 272 famílias eram paranaenses. Já no acampamento de Porto Euclides2 a grande maioria, cerca de 200 famílias eram do Paraná, sendo que um considerável número já havia tido a experiência de brasiguaio. Não poucas vezes tivemos a oportunidade de ver alguns dos acampados falando es guarani ou em espanhol.

2.

CHEGANDO

AO

PONTAL:

A

REALIDADE

E

ESTRUTURA

DOS

ACAMPAMENTOS

Na ocasião de nossa chega a região do Pontal buscamos o auxílio da secretaria regional do MST e da COOCAMP3. Ao chegar à secretaria fomos recebidos por Serginho Pantaleão, membro das Coordenações Regional e Estadual do MST. Ele nos apresentou um 2

Nome pelo qual a população da região chama o município de Euclides da cunha Paulista.

apanhado geral acerca da situação dos acampados e posteriormente nos acompanhou ao acampamento Dorcelina4. Juntamente com ele e Cledison5 pudemos acompanhar no Dorcelina o processo de escolha das famílias daquele acampamento que iriam ocupar novas áreas já em negociação com o ITESP. As lideranças remetem às famílias agrupadas a responsabilidade da decisão dos critérios e daqueles que irão e que ficarão no acampamento. O procedimento de escolha6 das famílias é relativamente simples do ponto de vista operacional. Todavia importa que façamos uma breve descrição da estrutura organizacional da regional do MST localizada no Pontal do Paranapanema. O MST no Pontal do Paranapanema possui uma Coordenação Regional que, por sua vez,

está

dividida em 4 micro-regiões. Cada micro-região está sob o comando de lideranças que compõem a coordenação regional. Algumas delas ainda não foram assentadas mas em sua grande maioria já passaram pelo processo de acampados e já receberam o seu lote. Aqueles que ainda não receberam o seu lote não encontram-se acampados e sim a disposição do MST. Cada micro-região determina algum militante para a coordenação geral do acampamento. A coordenação geral do Dorcelina estava a cargo de Sérgio Pantaleão – que ainda não havia sido assentado – e do Carlos Marighellapelo Militante conhecido pelo apelido de Musgão. Este último já havia sido assentado recentemente no município de Euclides da Cunha Paulista. Internamente o acampamento é dividido em grupos de cerca de 35 famílias7 cada um. Cada grupo elege um coordenador e um vice-coordenador que depois tem seu nome habitualmente corroborado pela Coordenação geral do acampamento e pela coordenação regional do MST. A função desse coordenadores é acompanhar a assiduidade dos acampados sob sua orientação durante as atividades desenvolvidas pelo movimento como, por exemplo, as

3

A COOCAMP é a cooperativa organizada pelas famílias do MST já assentadas. Na ocasião em que estive lá pela primeira vez em fevereiro de 2001, existiam na região do Pontal do Paranapanema 8 acampamento a saber: Fusquinha (5 anos); Pe. Josimo ( mais de 2 anos); Dorcelina (10 meses); Carlos Marighella(10 meses); Che Guevara (6 meses). Desmembraram-se do Dorcelina os seguintes acampamentos: Dorcelina II e Pe. Josimo II. Do acampamento Carlos Marighellasurgiu o Porto X . Esses novos acampamentos estão localizados em áreas que estão em negociação com o ITESP. 5 Membro da Coordenação Regional e uma das principais lideranças da região do Pontal junto com Zé Rainha e Bil. Ainda que os trabalhos desenvolvidos pelo movimento sejam feitos de forma colegiada, a mídia costuma apontar Cledison como sendo o “segundo em comando” no Pontal. Cledison já foi assentado no Assentamento São Bento. 6 O processo de seleção de famílias que nós acompanhamos no acampamento Dorcelina também ocorreu no Carlos Marighella. Nós acompanhamos esse momento apenas no Dorcelina mas nossas informações indicam que o procedimento costuma ser mais ou menos homogêneo. 7 Esse número é a média de famílias por grupo. Contudo encontramos grupos com 15 famílias e outros com bem mais de quarenta. 4

marchas ou as ocupações de Órgãos públicos. Tal participação nestes eventos se dá de maneira voluntária. Todavia participar nas atividades desenvolvidas pelo movimento é um dos critérios que o movimento utiliza e que é naturalmente apontado pelas famílias quando são consultadas a respeito de quais serão os critérios norteados da definição de quais famílias irão para as novas áreas de ocupação e quais ficarão no acampamento. Outra atividade do coordenador é a ‘chamada diária’. Essa se dá entre outras razões em função de existirem no acampamento os chamados “andorinhas”. Andorinhas podem ser aqueles acampados que: 1) ficam durante o dia no acampamento e dormem na cidade; 2) passam apenas os finais de semana passando o restante do tempo na cidade; 3) comparecem ao acampamento apenas nos dias de reunião de grupo ou de assembléia geral do acampamento. Estar acampado e permanecer no acampamento é um critério antigo do movimento e que as famílias prezam pelo fato de ajudar a estabelecer uma certa igualdade entre os acampados. Os andorinhas normalmente mantém algum tipo de vinculo maior com a cidade. Habitualmente trabalham e dormem fora do acampamento. Costumam muitas vezes pagar para outro acampado que não esteja com o nome cadastrado para dormir em seu barraco, responder a chamada e participar das atividades quando necessário. Os andorinhas são um ponto de discórdia entre as famílias na hora da seleção porque apesar de terem contratado outrem para cumprir suas obrigações, as famílias acampadas sentem-se de algum modo lesadas porque elas estiveram sob as agruras da lona enquanto os andorinhas estavam no conforto da cidade. Cabe também aos coordenadores relatar informações ao coordenador geral sobre a vida do grupo e do acampamento e transmitir as notícias e decisões da coordenação geral. Pesamos que esse detalhe seja importante porque o coordenador visita sistematicamente o acampamento mas não vive entre os acampados. Daí a necessidade de ser informado acerca da vida do acampamento pelos coordenadores de grupo. Por fim, ao coordenador cabe a difícil e espinhosa tarefa de administrar as tensões do grupo. Mas vale. Nesse sentido, salientar especialmente uma: a seleção das famílias.

3. O EXERCÍCIO DA ESCOLHA

Decidida as áreas de ocupação e calculado o número de famílias que cada uma delas comporta, a coordenação regional através das micros e a coordenação do acampamento

passam grupo a grupo no acampamento explanando a situação das áreas, quantas famílias cabem em cada uma; expondo as dificuldades de se mudar de acampamento e a possibilidade de haver resistência por parte do latifundiário; de haver ações de reintegração de posse e, sobretudo, a possibilidade de nem todos serem assentados naquela área devido aos critérios do Estado e a presença de outros movimentos sociais8 que costumam acompanhar o MST e acampar próximos ao movimento para, depois, reivindicarem parte da área para suas famílias. Vale salientar aqui que nesse momento a atitude dos coordenadores regionais é a de ir a base para construir as estratégias de ação antes de iniciar o processo de ocupação de terras já negociadas. Após esses esclarecimentos a liderança solicita ao grupo que se defina por uma das áreas disponíveis e que indiquem os critérios para nortear a escolha de famílias do grupo caso não seja possível a manutenção do grupo como um todo nessa empreitada. Esses critérios são anotados pelo coordenador do acampamento e depois discutidos com a coordenação geral do MST regional. Definidos os critérios entra o coordenador de grupo que irá administrar, muitas vezes sem preparo, tensões emocionais de toda ordem9. De modo geral caber-lhe-á administrar problemas tais como os “andorinhas” que ainda que não estivessem todo o tempo, pagaram alguém para cumprir suas obrigações. Como por vezes esse alguém é membro de alguma família acampada, isso deixa o ambiente mais tenso. A participação de atividades nem sempre é feita por todos. Como muitas vezes o governo não envia qualquer espécie de mantimentos e falta trabalho no campo, é permitido sair para trabalhar na cidade. Por se estar na cidade não se pode participar de certas atividades. Isso descompensa a balança reguladora que como que ‘ranqueia’ os membros do grupo. Algumas vezes essas tensões podem gerar até mesmo agressões físicas. A seleção é feita nesse clima de angustia. Deixar o acampamento rumo a ocupação significa estar mais próximo de sonhos de toda uma vida. Entrar na terra ocupada é o

8

Tais movimentos muitas vezes agem como hospedeiros junto ao MST. Esse parece-nos o caso, por exemplo, do MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra. No acampamento Carlos Marighellativemos a oportunidade de conhecer um de seus líderes estaduais que é assentado na área que ficava em frente ao acampamento e que é conhecido como Tico. Diariamente Tico visitava ao acampamento passando por todos os barracos. Contudo as vezes que o vimos conversando com os acampados do Carlos Marighella nos levou a pensarmos que tais incursões não passavam de estratégia de arrecadação de famílias já vinculadas ao MST. Ainda vale dizer que a água consumida pelos acampados do Carlos Marighellatinha três procedências: 1) Os caminhões-pipa da prefeitura de Porto Euclides; 2) as minas d’água que os acampados descobriram nas redondezas e 3) a água que era vendida pelo Tico e que os acampados retiravam de seu poço. 9 Importa lembrar que é o coordenador de grupo que primeiro tenta administrar os problemas cotidianos que vão desde comer a galinha do vizinho até cantar o marido ou a esposa do outro(a). Para tanto, o coordenador de grupo tem para seu auxílio o regimento do acampamento e a intervenção do coordenador geral.

mesmo que entrar na terra prometida. Entra-se nela como que entra na sua terra. Por isso ir é fundamental. É um novo alento para essas vidas tão sofridas. É como uma injeção de ânimo. Mas o fato de parte de um grupo ir e de outra ficar não é entendido por nós com sendo um alento para quem vai e um dado desanimador para quem fica. Quem fica certamente sente-se abatido por não ter ido mas também apega-se a certeza de que será o próximo a ir. Os critério utilizados no acampamento Dorcelina foram os seguintes: 1) tempo de acampado; 2) participação nas tarefas que são solicitadas ao grupo pela coordenação geral; 3) permanência no acampamento10 e 4) disponibilidade para o serviço no acampamento. Na maioria da vezes esses são os critérios válidos em grande número de acampamentos. Outro dado interessante e importante é que as lideranças costumam preservar unidos os grupos que já vem de outras empreitadas e que, por isso, já caminham juntos a um tempo considerável11 ou então grupos que sejam muito pequenos.

4. DESMONTANDO O BARRACO E SUBINDO NO CAMINHÃO

Acompanhar o desmanchar dos barracos é uma experiência ímpar. O acampamento é tomado por um misto de alegria e tristeza, por um clima de festa por um nascimento e de frustração que costumeiramente acomete no velório de alguém que se ama. Essa era a impressão que tínhamos naquele 24 de fevereiro ao olharmos os semblantes daqueles que partiam e daqueles que ficavam. Contudo, muitos, ainda que pesarosos, deixavam seus barracos para ajudar no desmonte dos barracos dos companheiros que partiam. Os que partiam estavam ansiosos, alegres, muitos rejuvenescidos como dona Florinalva que em plenos 72 anos estava acampada e agora ia para a área de Marabá Paulista. Aquelas imagens remetiam-nos às escrituras. Era como se estivéssemos entendendo o que foi a alegria dos Judeus que saíram do Egito rumo a terra prometida ou quando regressaram do exílio babilônico. Na verdade não só entendendo mas presenciando aquele momento. Era a mística do movimento sem terra encarnada naquelas vidas. Crianças, adolescentes e adultos desmontam seus barracos com muita alegria, cheios

10

O que implica não ser uma “andorinha”. O grupo que é chamado “Fusquinha” – apelido de um militante assinado durante a luta por um Brasil sem latifúndios – é um caso típico. Ele estiveram acampados, foram assentados, os lotes estavam para ser cotados quando foram despejados da terra devido a uma decisão judicial favorável ao latifundiário. O grupo do “Fusquinha” já persevera nessa luta a cerca de 5 anos. Em fevereiro de 2001 morreu um desses companheiros acampado na terra que poderia ter sido a sua terra definitiva. 11

de esperança. Contudo nem todos terão lona para cobrir os novos barracos, nem todos terão dinheiro para comprar outra. Para aqueles que não tem como comprar o movimento tenta angariar alguma doação. Todavia, o que se arrecada não é o suficiente. Eles torcem pára que não chova. Parece que apesar desses problemas o que importa-lhes é o fato de estarem de muda para aquele que poderá ser o seu chão. Das 272 famílias cadastradas no acampamento Dorcelina 105 estavam de partida rumo ao município de Marabá paulista12. A fazenda em questão é a fazenda Santa Maria. Enquanto os caminhões se aprontam uma comissão vai a frente para ‘avisar’ ao latifundiário que os caminhões já estão a caminho e que vão entrar na área. O intuito da comissão é garantir um espaço próximo a água para que as famílias acampem. A comissão leva o compromisso de não atrapalhar as atividades da fazenda que produz gado de corte. Esse compromisso se deve ao fato de a área já estar negociada com o ITESP. Enquanto isso acontece na sede da fazenda, nós subimos com todos os pertences nos caminhões. Adultos, Crianças, jovens e animais rumo a ‘nova terra prometida’; a fazenda Santa Maria. No caminhão o pai de um dos acampados, que ora chamamos de seu João13 e que já está assentado no Água Sumida, nos mostra, segurando o seu chapéu de palha e abrindo um sorriso sem dentes, a área onde se encontra o seu lote e diz; “Só por Deus, professô, só por Deus e Nossa Senhora!!! Tá vendo lá?! Aquele é o meu lote, professô, lá onde se pode vê aquelas arvre, lá! (...) Agora chego a veiz do meu minino se ajudado por Deus que nem que eu fui. (...) Deus Ajuda àqueles que são fiel a ele pra deixa de sofrê.”. A fala de seu João é representativa dessa expectativa mística, messiânica, em que Deus é o autor da libertação desses oprimidos. Durante a viaje de translado desse grupo Vera grita do caminhão para um grupo de pessoas do distrito de Planalto - Teodoro Sampaio, que olham a movimentação rumo à Santa Maria: “Ô sem terra, vamos lá que a terra é nossa, é de todos nós!!! Tem terra pra todos nesse Brasilzão!!! Vamos lá!”. A sensação de liberdade experienciada por Vera faz com que ela busque conscientizar aos outros trabalhadores rurais de que eles também são explorados, que eles, como ela, também devem lutar por uma vida mais digna, pelo seu pedaço de chão, de liberdade. Para Vera alcançar essa terra é mais do que realizar um sonho: é “(...) alcançar minha liberdade”.

12

Frisamos que esse momento é tão intenso e envolvente que nos sentíamos como se nós mesmos fizéssemos parte daquele grupo de famílias. Acompanharmos aquele momento e experienciá-lo junto com cada uma daquelas 105 famílias foi-nos muito marcante. 13 Não temos registrado o nome do autor do comentário feito em cima do caminhão rumo a ocupação e em meio a incessantes manifestações de alegria.

5. ENTRANDO NA TERRA PROMETIDA

A entrada nessa terra nova emanava um ar de triunfo. Os caminhões que levavam as 105 famílias entraram na propriedade e dirigiram-se direto à sede. Lá já estavam as lideranças a negociar o espaço e a água para o uso as famílias. Acompanhamos parte das negociações entre o latifundiário e a comissão do MST regional. Os funcionários do fazendeiro acompanhavam atentos nossos passos. Depois de o latifundiário ter buscado de todas as formas demover as liderança de acampar na propriedade - visto que a medida provisória que regulamenta a negociação da terra para fins de reforma agrária impede a negociação de terras ocupadas -, ele nos convidou para irmos à sede para ligarmos para Tânia, presidente do ITESP com que o latifundiário negociava a propriedade. A intransigência do ITESP era clara. A instrução do órgão governamental era para que o latifundiário entrasse imediatamente com uma ação de reintegração de posse. Nervoso, ele pede que Cledison fale ao telefone com um funcionário do setor de negociação de conflitos do ITESP. O movimento comunica ao ITESP e ao proprietário que eles irão ficar. Entendem que é seu direito ajuizar a ação contudo “não entendem” porque não podem ficar se a terra já está em processo de arrecadação. Terminada a ligação, o movimento coloca claramente ao latifundiário que estão lá porque se não estiverem o governo poderá deixar famílias que já estão nessa luta a pelo menos dois anos e isso não é justo. Não seria justa assentar aqueles que nunca lutaram para transformar a realidade do campo brasileiro ainda que eles precisem também de terra. “Quem quer terra que venha lutar!” concluiu Cledison com o apoio de todos que ali se encontravam para a negociação. Feita essa conversa Cledison convidou o latifundiário para juntos escolherem um lugar próximo a água que provocasse o menor estorvo possível aos trabalhos do fazendeiro. Durante o caminho as tentativas de dissuadir aos membro o MST de permanecer no interior da fazenda persistiam inutilmente. Por fim o fazendeiro concordou em ceder a águia e a mangueira para puxá-la. As famílias que estavam acompanhando de longe, acompanhando dos caminhões, as negociações celebravam com descrição a partida rumo a área escolhida. A descrição se dava para que a euforia não fosse interpretada com provocação. Todavia a moderação durou apenas até a hora de baixar a cerca sem cortá-la. Não cortar a cerca era um gesto de boa vontade, de desejo de negociação expresso pelos sem terra ao latifundiário. Fazer esse gesto não significou em momento algum abrir mão da decisão de ocupar a área. Significou apenas que as famílias ligadas ao MST não são baderneiros ou

criminosos com é largamente apregoado por latifundiários, parte considerável da mídia e pelos governos de centro-direita representados por Fernando Henrique Cardoso e os demais aliados da base governista que compõe a base política do governo federal. Durante toda a tarde pelo menos 3 caminhões fizeram o translado das famílias da reserva florestal do assentamento Água Sumida para a fazenda Santa Maria. As famílias foram orientadas a não armarem suas barracas muito longe da cerca para que, em caso de deferimento de liminar de despejo favorável ao latifundiário, não fosse difícil a organização do realocamento dos barracos. Ao final da tarde, quando todas as famílias já haviam chegado a área do acampamento e começavam a reorganizar suas vidas, caiu uma forte chuva. Mesmo assim, continuavam os trabalhos de construção dos barracos. A medida em que algumas famílias iam concluindo o seu barraco elas iam ajudando as outras a terminarem o seu. A solidariedade era algo marcante entre as famílias acampadas. Ao anoitecer pairava no ar um clima de paz e alegria por estarem aparentemente mais perto daquilo que é seu anseio e de tensão por medos provindos ou de experiências traumáticas anteriores em outras tentativas de ocupação ou por já terem ouvido histórias de companheiros que viveram na carne a dolorosa experiência de se enfrentar aos Jagunços que servem aos latigrileiros. Contudo amanhece e tudo corre bem. A esperança floresce entre os barracos, está estampada no olhar de crianças, adultos, jovens e velhos.

6. RESTRINGINDO O CAMPO DE PESQUISA

Passada essa experiência que nos possibilitou verificar como se dava a organização dos acampamentos, o processo de escolha das famílias que sairiam para as ocupações e a própria ocupação, tivemos a grata oportunidade de conhecer outros acampamentos firmados no Pontal, a saber: Fusquinha e Che Guevara e Carlos Marighella. No Fusquinha fomos acompanhando alguns companheiros que trabalhavam na preparação da marcha das mulheres que deveria acontecer em março de 2001 não fosse o falecimento do então governador de São Paulo, o engenheiro Mário Covas (PSDB/SP). Já nos acampamentos Che Guevara e Carlos Marighella o nosso contato primeiro se deu por ocasião da entrega de cestas básicas que o governo federal, através do Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Fundiário, forneceu aos acampados do pontal depois de cerca de 8 meses de ausência e omissão.

As cestas básicas foram buscadas no município paulista de Bauru e posteriormente distribuídas pela COOCAMP, cooperativa agro-industrial que agrega as famílias do MST já assentadas na região do Pontal do Paranapanema. Acompanhar essas entregas foi muito importante para nós, pois ela abriu-nos as portas para convivermos e recolhermos nosso material de pesquisa. A distribuição das cestas básicas era coordenada pelo militante designado pelo acampamento. Esse por sua vez, ou centralizava a distribuição ou distribuía o trabalho entre os coordenadores de grupo que posteriormente prestava contas das cestas distribuídas. Inicialmente quando chegamos ao Pontal buscávamos um acampamento novo, com ‘acampados de primeira viagem’. Todavia depois e termos feito esse giro pelos acampamentos do MST da regional do Pontal, descobrimos que esse acampamento não existia. O que encontramos foi acampamentos relativamente jovens mas acampados que em sua maioria já estavam nessa vida a um tempo considerável. Assim, acabamos descartando o acampamentos Dorcelina I e II por que passariam por reestruturações a curto prazo em função de ter havido a divisão dos grupos do Dorcelina I que deu origem ao Dorcelina II. Tal reestruturação implicaria em um novo processo de organização e ressocialização dos grupos visto que uma nova estruturação da forças se daria dentro dos dois grupos de acampados. O Fusquinha foi descartado por ser um grupo já antigo e que já havia passado por um processo de assentamento que fracassou. Esse grupo pareceu-nos estar com muitos de seus conteúdos da consciência já cristalizados depois de 5 anos de luta conjunta. Outro motivo é o fato de não haver mais ingressos de novas famílias no grupo em função do seu tempo de luta. O acampamento Che Guevara foi descartado pelo fato de estar muito desarticulado e estar passando por problemas com drogadictos e pelo alto número de andorinhas. Importa dizer que o critério principal para a escolha do acampamento foi o número de famílias presentes no acampamento. Por família estamos nos referindo de modo geral ao casal14. Nesse sentido o acampamento que mais se enquadrava era o Carlos Marighella. Ele apresentava o maior número de famílias participando da vida do acampamento e menor número de andorinhas. Esse dado nos conduziu a escolhê-lo como campo de pesquisa e a passarmos acampados nele 20 dias. No total, passamos 35 dias no Pontal conhecendo mais 14

A composição social da família não foi adotada como critério para a escolha das famílias por pensarmos que a capacidade de crianças influenciarem na decisão dos pais seja muito pouca. O mesmo valeria para os adolescentes. Além disso já existem estudos que poderão nos apontar caminhos no que se refere a consciência política de adolescentes (ver Andrade, 1994). Outro fator que nos motiva a não considerá-los é o fato de que por mais que eles se rebelem contra os pais, os lotes serão dados a estes últimos, serão dados à família e não a indivíduos. Uma exceção possível aceita será em caso de a família ter em sua composição

atidamente à região. Outro fator que precisamos indicar é que para a escolha das famílias a serem entrevistadas estabelecemos como critérios a procedência e o grau de militância. Procuramos selecionar famílias acampadas que tivessem sua origem entre 1) Trabalhadores Rurais Assalariados (TRA); 2) Trabalhadores Rurais que tenham migrado para a cidade (TRU) e 3) que foram Pequenos Proprietários e perderam suas terras (TRPP). No que se refere ao critério militância, procuramos selecionar famílias que estivessem 1) na Base do Movimento (B); 2) na Militância do Movimento (M) e 3) na Liderança do Movimento (L). Esse dois critérios se complementam da segundo o quadro abaixo:

MILITÂNCIA

PROCEDÊNCIA

TRA

TRU

TRPP

Família L

FLTRA

FLTRU

FLTRPP

Família M

FMTRA

FMTRU

FMTRPP

Família B

FBTRA

FBTRU

FBTRPP

7. ACAMPADOS COM OS COMPANHEIROS DO CARLOS MARIGHELLA

Depois de termos passado pelos diversos acampamentos localizados na região do Pontal do Paranapanema, Estado de São Paulo, acabamos escolhendo o acampamento Carlos Marighellalocalizado no trevo do município de Euclides da Cunha Paulista. Chegamos nele no dia 25 de fevereiro de 2001. Logo nos aproximamos do barraco dos companheiros Sabino, conhecido como Paraguai, e Rosane que imediatamente se mostraram muito hospitaleiros. Paraguai coordenava um grupo no acampamento. Seu grupo era o mais novo e estava acampado no Carlos Marighellahavia 2 meses. Seu grupo constituiu-se inicialmente com 8 famílias vindas do Paraná, já militantes no MST havia mais ou menos 2 anos e que anteriormente estiveram vivendo no Paraguai e compondo o grupo dos ‘brasiguaios’. Na ocasião de nossa chegada participavam de seu grupo cerca de 37 famílias. Rosane, nascida em Matelândia – PR, em 26/01 de 1973, e Paraguai, nascido em Matelândia – PR, em 29/08 de 1969 e criado no Paraguai, tem 4 filhos sendo 3 meninas filhos adultos. Caso isso ocorra, estes também serão parte da amostra.

(Verônica com 3 anos, Mônica, com 5 anos e Angélica com 7 anos) e um menino (Carlos com 8 anos). Eles foram a primeira família por nós entrevistada. Paraguai estudou até a 4º série do primeiro grau (atual ensino fundamental) e Rosane não chegou a freqüentar a escola. Os pais de Rosane estão assentados no Paraná. A família de Paraguai e Rosane é católica e costuma ter uma vida religiosa ativa. O casal sempre trabalhou na roça como bóia-fria, ou em empregos temporários em alguns meses. Paraguai provinha o sustento da família e Rosane do cuidado das crianças. Segundo Rosane ela chegou a “(...) trabalhar por dia, né. Que a gente com essas quatro crianças é muito difícil pra... pra trabalhar direto, né. Fica mais é pra atendê as criança. Assim, quando podia eu trabaiava por dia, assim... na roça”. A família de Rosane e Paraguai já milita em movimentos agrários a 12 anos. Sua militância teve início no Paraguai no Movimiento Campesino Paraguayo – MCP. O MCP é como que a versão paraguaia do MST brasileiro. Sobre isso Paraguai disse o seguinte:

“Oia , a la no Paraguai donde eu tava a la no Movimento fiquei doze año como eu falei pra você, a la no tem, nada de diferencia de Movimento de MST, só nome é diferente. O resto é mima coisa. No tem diferencia ninhuma. Alguma veiz ocupa, alguma vai, né, pacífica, quando o governo no liga manda muito pistolero, tem pistolero também; qundo o governo no liga muito manda muita polícia, o turma recua um poco. Quando abaxa o pó ali o turma entra de novo, ocupa. Então no tem deferencia desse aí aqui. De Brasil, do Movimento MST de aqui do Brasil e do MCP do Paraguai no tem diferencia.”

Paraguai é o ‘cabeça’ da casa, porém assume as tarefas domésticas e a educação dos filhos junto com Rosane. Em outras palavras, a relação de Rosane e Paraguai pareceunos ser fundada na partilha dos trabalhos cotidianos e no diálogo entre os cônjuges. A casa de Paraguai e Rosane é um ponto permanente de discussão da realidade do acampamento e da conjuntura a que os acampados estão submetidos. Acorrem até lá muitas outras famílias para conversar com ele. Paraguai demonstra ter consciência de que é agente de formação no acampamento. Dentre as famílias que tivemos contato entre as 280 que lá se encontravam, a de Paraguai pareceu-nos a que mais estava em sintonia com a ideologia do MST. Os demais contatos feitos por nós tiveram a mediação de Paraguai. A segunda família que tivemos contato foi a família de Toninho e Juciane. Juciane, nascida em 11 de julho de 1984 na cidade de Jaraguá do Sul – SC e Toninho nascido em 04 de fevereiro de 1972 na cidade de Matelânda - PR. Eles já estavam acampados no Trevo de Euclides havia 6 meses e anteriormente estiveram acampados no Paraná por outros 12 meses. Toninho e Juciane não são casados legalmente ou no religioso e também não tem filhos. Na ocasião de nossa estadia entre os acampados do Carlos Marighella, fazia 2 anos

e 3 meses que eles viviam juntos. Juciane e Toninho são de tradição católicos e não praticam a religião. Juciane é filha de assentados15 em Itaúna do Sul – PR. Ela foi a primeira a conhecer o MST quando vivia com os pais no Paraguai. O MST realizava na ocasião alguns trabalhos de base entre os Brasiguaios. Entre os que vieram de volta para o Brasil depois de participar desses trabalhos, estão os pais de Juciane e um irmão de Toninho que logo foram assentados. Nessa época, Juciane acabara de iniciar sua vida com Toninho e por isso não participou da experiência de acampada junto com sua família e nem participou dos trabalhos de base realizados pelo MST no Paraguai16. Ela só veio ver os pais depois que estavam assentados no Paraná. Antes de ingressarem no MST, Juciane e Toninho trabalhavam como arrendatários no Paraguai produzindo soja. A partir de trabalhos de base feitos por integrantes do MST paranaense com os brasiguaios no Paraguai e depois de verificarem a realidade da vida de parentes e amigos que já haviam ingressado no movimento, Toninho e Juciane resolveram buscar uma vida melhor. Segundo Toninho, “(...) a gente veio prá conferi e achou que é uma realidade, onde que a gene tá integrado hoje”. Para Tonhinho, outro dado que contribuiu na tomada de decisão de deixar para trás a condição de arrendatário e filiar-se ao MST foi fato de que na vida de arrendatário

“teve muita exploração, né. Até mesmo pela situação financeira, onde fez a gene saí buscar uma vida melhor, né. (...) A exploração mesmo e a necessidade, né?! Um pedaço de terra pra sobreviver, pra ter uma vida mais digna; onde a gente construir uma vida melhor, né. Foi esse que fez a gente se integrar ao MST. Hoje, hoje em todos os lugar, apesar de a gente estar em outros país, em todos os países a exploração continua igual. Não tem dúvida nenhuma!”

Quando escutamos o casal falar do MST, sobretudo Toninho, a impressão que remos é a de que eles sempre foram militantes da causa. Contudo não é bem assim. Tanto um quanto o outro eram contrários ao MST. Juciane relata o seguinte: “Eu sempre fui conta o MST. Agora que eu vi que é... é bão, né. Ah, eu achava sufrido em baixo do barraco.”. Já Toninho explica, como que se justificando, que

“(...) não conheciam realidade, né Alexandre, não sabia como era a realidade. E você sabe que cada um em um objetivo, cada um tem... tem um direito, né. Então a gente começou a observar isso aí, sabe que a terra é para todos, o mundo inteiro sabe que terra é para todos. Então a gente achou que essa opção, participa do movimento para ter uma vida mais digna, ara ter uma sociedade mais justa, né; então foi isso que veio trazer nós até o MST. No começo a gente era contra porque a gente não conhecia a realidade. Eu 15 16

Os pais de Juciane estão assentados faz 2 anos. Contudo, Toninho participou de alguns dos trabalhos de base realizados pelo MST em terras paraguaias.

achava que podia ser um grupo de baderneiro memo, como hoje os próprios governo diz, que é um grupo de badernero. Mas não é isso não. É que a maioria dos governo hoje são latifundiários, são fazenderos. Então eles acham impossível fazer, é... dá um prosseguimento para a reforma agrária reforma agrária por causa deles mesmos que são latifundiários.”

Nessa fala Toninho deixa clara sua identificação com o discurso do MST e com o grupo a que pertence. Toninho é um dos muitos que freqüentam diariamente a casa de Paraguai para discutir a situação dos acampados e do país. Entretanto a relação entre ele e Juciane não é baseada no diálogo como é a de Rosane e Paraguai. Quando perguntamos a ela sobre quais os assuntos que eles conversam mais em casa, se em algum assunto importante ou não, a sua resposta é “Eu não converso não sobre isso (MST) não.” A essa resposta perguntamos se não conversam sobre nada e ela nos diz que “É muito difícil” conversarem. A esse respeito, as falas de Toninho são idênticas as de Juciane. Com a seguinte frase Toninho corrobora a fala de Juciane: “Bom, enfim, a gente já não... não tem muito a relação de conversar entre nós dois em casa.” E continua a fala explicando o porque da ausência de diálogo entre eles: “Sempre quando a gente tá... tá no barraco geralmente, quando a gente não tá, tá trabaiando, la no barraco e a gente fora, trabaiando; e quando tá (no barraco) sempre tem gente e a gente nunca consegue tá junto conversando”. Quando pergunto a ele se o diálogo faz falta ele responde que “(..) até o momento não (...) mas mais tarde, no futuro, faz falta.” Nossa terceira entrevista é com Marcos. Nascido em 14 de novembro de 1970 na cidade de Luanda – PR, estudou até a 7º série do ensino fundamental. Marcos é um dos militantes que acompanhava mais de perto o acampamento Carlos Marighella. Ele é solteiro17 e integra o MST desde outubro de 1999. Seu ingresso no MST do Paraná onde militou por 5 meses, sofreu dois despejos e, depois desse período, transferiu-se para o MST do Pontal do Paranapanema no qual já milita a pelo menos 11 meses. Antes de se filiar ao MST, Marcos trabalhava como “(...) vendedor autônomo, marreteiro em Curitiba.” Desde os 18 anos ele vive na cidade com esporádicos retornos ao campo como bóia-fria, trabalhando durante o período do corte da cana-de-açúcar. Sua família era meeira no norte do Paraná. Produziam café. O abando do campo e a conseqüente migração para a cidade se deu em função da crise do café vivida no final da década de 80 do século XX. A esse respeito Marcos relata o seguinte: 17

Apesar de Marcos não preencher os critérios estabelecidos para esta pesquisa, decidimos entrevistá-lo e inclui-lo em nossa mostra pelo fato dele ser uma liderança expressiva e de notório reconhecimento entre os acampados do Carlos Marighella.

“Nóis paramo de trabalar, porque meu pai era meiero, né, nóis tocava o café de a meia Qui no norte do Paraná. Nóis paramo de toca café porque naquela época caiu um poco o preço do café, né, e não compensava pros donos dde... de terra dá mais o café pá... pá toca. Não compensava pa gente toca mais já também, né. Em 1988... Daí nós paramos, como nós paramos de toca, eu comecei a trabalha cortando cana, trabalhar de bóia-fria, depois comecei a cortar cana pá usina... E meus irmãos foram embora, né, já tinham, já eram de maior, eles foram embora pá cidade a procura de emprego.”

Seu primeiro contato com o MST se deu pela televisão. Na época, a prisão de Diolinda, companheira de Zé Rainha, fora muito veiculada pela mídia e o fato chamou-lhe a atenção, visto que o comentário entre o povo era de que ela não era culpada. Na época ele já começava a pensar em ingressar no MST e o motivo maior era a falta de perspectivas de trabalho na região. Eis o seu relato:

“O MST, eu sempre ouvia falar em televisão, né. Há um tempo, acho que na época do... na época que a Diolinda foi presa aqui no Pontal, acho que foi o primeiro assim, a primera coisa que eu ouvi mais que daí foi presa a mulher do Zé Rainha, né, e eles falaram que ela não tinha muita coisa a vê. E daí eu tava até pensando, na veiz que eu vi ela presa, né... E depois desse contato, aí só na televisão fui vê as ações do movimento. Quando eu vim para a casa da minha mãe em (...) 99 tinha uns acampamento ali no município em que a minha mãe morava e eu como não tinha perspectiva nenhuma de conseguir emprego ou outra coisa... trabalha por diária pra mim não era interessante, fui a procura de pega um pedaço de chão e volta às minhas origens, né, pra vê se conseguia tê alguma coisa pra mim.”

Para ele, o que mobiliza as pessoas a ingressarem no MST, a participar de ocupações organizadas pelo movimento “(...) é o desejo de ter a terra. Você vai puma ocupação sonhando que aquele pedaço de chão que se tá entrando vai sê teu ou vai sê de alguns companheiros que vão tá, né.” É a expectativa de mudança da condição social, das privações a que cada acampado está submetido que faz com que eles se reconheçam e se associem. Assim, Marcos afirma que o

“(...) acampamento (...) significa a esperança das pessoas... das pessoas terem uma nova vida, né. Porque todas essas pessoas que vem... vem se acampa vem na esperança de não depende dos otros, não vive trabalhando igual a gente trabalhava... trabalhava por diária aí ou trabalhava pá usina que você trabalhava e a perspctiva não é boa. Você sempre trabalha, sempre trabalha... Chega no final você adquire nada, nunca tem nada prá você mesmo. A impressão que a gente têm é que as pessoas que vêm para o acampamento que sempre elas tão, e na verdade é, né, irricando os otros e vai ficando prá trás e Chega uma época que você não vai ter nada. Você olha prá trás na sua vida e você não tem nada”

No caso desse entrevistado a falta de perspectiva de vida é um importante dado na compreensão de sua historia de vida. Se um importante fator que o levou a engrossar as estatísticas do êxodo rural no Brasil foi a ausência de perspectiva de continuar trabalhando

e vivendo no campo, o que lhe faz retornar ao mesmo é o mesmo motivo: a falta de perspectiva de trabalho, de vida, só que agora na cidade. Marcos afirma que “O que faz as pessoas voltar da cidade, o que me fez voltar da cidade, foi que na época não tinha emprego, né. A violência e o meio onde eu vivia e as coisas que se tinha lá no convívio, não era bom. Era droga pá todo lado, a violência em si, falta de emprego, o custo de vida muito alto na cidade...”. No que se refere a religião, Marcos é católico e mantém uma relação próxima com a religião mas não é um católico praticante. Marcos costuma fazer verdadeira peregrinações no acampamento que se estende por quase um kilômetro de beira de estrada. Ele é visivelmente respeitado e amado pelos acampados do Carlos Marighella. Tê-lo entrevistado ajudou-nos na aproximação com outros do acampamento. Depois disso, o medo do gravador e do uso das entrevista foi sendo superado. Isso ajudou-nos a nos credenciar junto aos acampados como amigo dos sem terra. A quinta família ser entrevistada me fora apresentada por Marcos. Ele nos acompanhou até o barraco de Tereza e Osmar. Lá conversamos, jantamos, brincamos com as maritacas e conhecemos os quatro filhos do casal (Flávio, 17; Fagner, 16; Cleverson, 14 e Osmar, 11). Como estava anoitecendo, marcamos nossa entrevista para a tarde do dia dois de março, já que pela manhã eles iriam pela primeira vez “(...) colher milho em família”. Assim, nossa quarta família entrevistada outra, é a de Marcia e Barroso. Nós entrevistamos o casal no dia 28 de fevereiro, Quarta-feira de cinzas, ao cair da tarde no seu barraco. Seu barraco era localizável de qualquer ponto do acampamento graças a um enorme mastro com a bandeira, já desbotada, do MST que Barroso plantara em frente a ele. Márcia, filha de assentados da gleba XV de novembro, nasceu em 03 de junho de 1971 na cidade de Euclides da Cunha Paulista e Barroso, mecânico de profissão, nasceu no dia 11 de julho de 1974. Ela completou o ensino médio e ele não chegou a concluir a quarta série primária. A experiência de Barroso no campo foi como ‘tratorista’ e como diarista. Márcia é coordenadora de grupo e coordena o setor de saúde do acampamento. Ela também tem uma participação religiosa intensa. Márcia participa da Igreja Congregação Cristã do Brasil e busca durante a entrevista superar posssíveis contradições existentes emtre a fé professada e a condição de Sem Terra. Barroso já foi mais próximo dessa Igreja. Na ocasião fazia seis anos e meio que estavam casados. Apesar de Márcia ser filha de acampados, ela não chegou a acampar com a família. Durante a luta dos sem terra da gleba XV de novembro que ergueu o barraco foi sua mãe e seus irmãos mais novos. Ela, com 13 anos, ficou com o pai que continuava trabalhando em

um sítio para garantir o sustento da família acampada. Como ela era a filha mais velha, ela teve de assumir a casa e o cuidado do pai. Em 1996, já casada com Barroso, ela tivera uma experiência não muito significativa como acampada. Quem vivia mais no acampamento era o marido. “A gente era meio andorinhas”, avalia-se Márcia. Pensamos que seja importante salientar que, ainda que muitos reivindiquem a experiência da gleba XV de Novembro como sendo um marco do MST, os assentados da gleba e os filhos de assentados da gleba desvinculam a luta da gleba do MST. Com Márcia não é diferente. Assim, ainda que ela tenha conhecido a luta da mãe e dos irmãos, ela nos conta que conheceu o MST pela televisão e que não gostou muito daquilo que viu na TV: “Foi em Televisão mesmo que eu vi primeiro. (...) Eu achei que (...) pela primeira vez que eu vi, né, foi até manifestação deles, os pessoal quebrando tudo. Eu não fui muito com a cara. Mas depois a gente foi saber, e a gente veio pra cá e a gente vê que não tem nada haver, né, não é nada daquilo que você vê na televisão” . Barroso conheceu o MST, “(...) por intermédio de conhecimento dos otros (...) os amigos da gente que já foram acampados nos começo e que adquiriram tamém já as terra, né”, através de pessoas que já haviam ingressado na luta e logrado um quinhão de terra para si. O sucesso que tiveram essas pessoas foi fundamental para que ele se convencesse que o MST era uma saída viável para ele e a esposa que viviam com dificuldades na cidade de São Paulo. Barroso e Márcia já vinham como esse propósito a muito tempo “(...) só que, (...) tudo tem a hora certa, pra tudo tem a sua hora certa” afirma Barroso. E ele continua contanto que “(...) a gente resolvemo, inclusive a gente tava até na cidade, nóis tava em São Paulo, nóis morava lá. Aí resolvemo assim de uma hora pra outra. Ela falô ‘vamo’ e eu falei ‘vamo’”. O relato de Márcia esclarece a fala de Barroso e enfatiza o fato de que as dificuldades vividas em São Paulo e a boa situação vivida pelo pai na Gleba fora decisivo para deixar a cidade para trás e erguer seu barraco no trevo de Porto Euclides:

“A gente tava na cidade e voce sabe, né, na cidade é muito difícil, né. E sempre a gente vê meu pai, tá bem, tem o lote dele, tá bem. E aí a gente conversando, eu e ele (Barroso), eu dalei : “Aqui não dá! A gente tem que ir pra lá.” Aí a gente pensou de... porque eu tenho o cadastro pelo ITESP, no caso eu poderia comprar, né, que eles falam comprar, né. Aí eu achei que poderia comprar. ABí eu liguei pro meu pai e o meu pai falou assim: “Não minha filha tem um pessoal que tão aqui acampando aqui na beira do asfalto; tem bastante barraco aqui e se você quiser vem pra cá. Aí eu falei com ele e falei “vamo, vamo pra lá!””

Assim, o movimento vai se tornando como que ‘uma esperança de liberação’: “(...) ele representa tudo por causa que a gente vai pode amanhã estar na nossa terra. É uma

esperança, é uma esperança... Que a gente só espera a melhora, se Deus quiser. Todo o sonho da gente é só ter uma terrinha” (Márcia) Barroso afirma que eles “(...) foram vendo que realmente o MST foi uma única coisa pá dá uma mão po povo, foi o MST”. Márcia e Barroso demonstram consciência da necessidade da luta, vivem num ambiente de diálogo e de cumplicidade e ao ingressarem no MST, encontram-se dispostos a enfrentar as dificuldades da luta e as angústias da espera. Márcia demonstra isso de modo claro na seguinte fala:

“É um poquinho complicado (a luta) porque as vezes você espera espera e de repente a gente desanima, né. Vem aquele desânimo, depois vem nova esperança e é assim... Um dia você está com tanta esperança, no outro dia você já tá meio desanimado. É assim. Aí no outro dia já vem outras novidades e aí vai indo... Eu vim pra cá pra mim ficar. Em dezembro a gente ficou meio desanimado, né, (...) Daí o Zé Rainha vem e insentiva e você fica dois três ano... (...) Só assim, vindo acampar é que a gente vai conseguir um pedaço de terra.”

A família de Tereza e Osmar é católica não praticante e tem como origem a cidade. Como já apontamos, esta é a quinta família entrevistada18. No dia da entrevista Marcos nos acompanhou novamente até o barraco de Tereza e Osmar e, passado um tempo, deixou-nos a sós. Tereza logo se pôs a reunir a todos para nossa conversa. Começamos do lado de fora mas como o tempo desse sinais de chuva, logo voltamos para dentro do barraco. Estava quente, muito quente e abafado. Começamos a entrevista e logo o tempo melhorou e então fomos para fora onde estava mais agradável. Durante todo o tempo em que estivemos com eles as maritacas circulavam entre nos. Tereza, nascida em 1966 no município de Tambuara no estado do Paraná, estudou até a 5º série do ensino fundamental e é casada com Osmar há 19 anos. Osmar nasceu no dia 15 de agosto de 1961 em Paranavaí – PR, e, como a esposa, também estudou até a 5º série do ensino fundamental. Flávio, o filho mais velho, nasceu em Paranavaí, Paraná, no dia 23 de julho de 1983 e estudou até a oitava série do ensino fundamental. Fagner nasceu em 23 agosto de 1984 na cidade de Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Ele também concluiu o ensino fundamental e está cursando o 1º ano do ensino médio na cidade de Porto Euclides. Cleverton nasceu em Dourados no Mato Groso do Sul no ano de 1987 e está estudando na 5º série do ensino fundamental. Por fim, o caçula Osmarzinho. Ele nasceu no dia 01 de junho de 1989 e está estudando a quarta série do ensino fundamental. 18

Aqui também precisamos flexibilizar nossos critérios de seleção das famílias. No presente caso, o motivo foi o fato de que quem primeiro veio para o acampamento foi o filho mais velho do casal, Flávio.

Antes de ingressarem no MST, Osmar trabalhou de caminhoneiro por 14 anos e Tereza dedicou-se ao lar e a criação dos 4 filhos. A experiência que tiveram com a terra foi como bóias-frias e remonta aos períodos da infância e da adolescência do casal. Os filhos têm sua primeira experiência com a terra agora como acampados. Da mesma maneira que Marcos não encontrava na vida de bóia-fria perspectiva de futuro, Osmar e Tereza também não. Ele relata a dureza de sua juventude no campo e do seu desejo de uma vida melhor, menos sofrida. A vida na cidade, o profissionalizar-se foi que o orientou para deixar o campo. O trecho que segue é um bom exemplo dessa angustia social vivida por Osmar e Tereza:

“Eu trabalhava assim pros outros aí com meu pai e minha mãe arrancando mandioca, sacar café, bóia fria também Aí eu nunca mais quis... eu vi que não dava, não tinha futuro, sei lá. Eu peguei e segui a carreira de caminhão. Aí eu achei que mudar de idéia era melhor. (...) Não é que eu saí da terra. A gente é jovem, tem outra cabeça né? Eu achava que eu queria uma posição. E achava que naquela época, ser da roça não seria uma profissão. Então eu me apeguei a uma profissão, aí eu disse: "Bem, agora eu sou caminhoneiro. Que eu posso...". Porque se fosse para mim garantir na época tratar da mulher e do filho, eu achava difícil né .Quando chovia não tinha emprego, que é que você ia fazer. ”

A vida na cidade para Tereza era uma necessidade de sobrevivência já que a vida no campo tinha se mostrado mais difícil até então. Contudo ela continuava a cultivar a esperança de regresso ao campo, esperando uma oportunidade. Tereza tinha claro que “(...) trabalhar assim pros outros não dá futuro né, de bóia fria.” Ela casou-se com Osmar aos 15 anos e foram viver na cidade logo que “(...) ele arrumou emprego e nós foi levando a vida, empurrando, empurrando...” Osmar traduz esse ‘empurrar’ de Tereza da seguinte forma:

“Aí é a molecada crescendo.... Você vê, a situação na cidade começa a complicar. Porque você começa a trabalhar trabalhar trabalhar e eles são pequenos, tudo bem, dá para você ir levando. Agora, daqui a pouco começa. O estudo vai ficando mais caro, não é mesmo?" Cê não aguenta pagar. A comida: caro. Tudo que vê quer comprar. "Ah, eu quero um tênis. Um chinelo. Uma calça". A gente comprava a crediário pra os dois grandes. "Vamos acabar de pagar pros dois grandes para comprar pros dois pequenos". Quando a gente acabava de pagar pros grandes, que ia comprar pros pequenos, acabou de pagar já não tinha mais nada, acabou! Igual a doido! Não tem nem como.

O MST

foi essa oportunidade esperada. Com disse Tereza, eles foram

“empurrando” a vida na cidade “(...) até que surgiu a oportunidade. A gente conheceu umas pessoas que conversou com a gente sobre os sem terra e agora na hora que os filhos Entrevistamos a todos os filhos do casal, inclusive as crianças. Naquele momento era visível a expectativa dos mais novos de também serem entrevistados da mesma maneira que foram seus pais e irmãos mais velhos.

estão tudo grande a gente achou que seria bom vir para cá.” Osmar complementou essa fala de Tereza dizendo o seguinte:

“Eu mexia com negócio de compra e venda de carro, rolo, porque aí as vezes o caminhão não dava eu tinha que fazer um bico. Aí um colega meu falou assim "Vamos nos sem terra? A gente vai visitar lá, tem uns cara que é meio parente meu". Aí eu cheguei e perguntei para ele como é que a gente fazia para conseguir aquilo que ele tinha, aquele lote dele.Aí ele falou: "É muito fácil. Você tem que ficar embaixo da lona aí e encarar. Tu tem que ficar e encarar mesmo; que se tu não ficar não consegue. Aí eu perguntei: "Mas é só isso?" e ele me respondeu "Só". (...) Aí ele falou quanto tempo demorou para pegar, acho que foi nove ou dez meses, parece. Aí eu falei: "Então quando abrir o cadastro aí você chama eu?". Aí abriu, ele avisou e a gente tá dentro do barraco.”

Mas a decisão não foi tomada tão facilmente como pode parecer. Segundo Osmar “foi difícil!”. O casal não estava numa boa fase. A relação conjugal estava desgastada. Para que se tomasse a decisão foi preciso a mediação do filho mais velho, Flávio. O relato de Osmar nos ajuda a entender as razões pelas quais dissera que ‘empurravam’ a vida na cidade. Osmar conta que

”(...) na época, eu e minha mulher não tava tão legal. Dentro da cidade a dificuldade é imensa. Todo dinheiro que você pega ainda é pouco. Então, as vezes, através daquilo ali vem briga, discussão. Aí eu vim eu conversei com meu filho mais velho.” Aí ele falou: "Pai, vamos.". Era "vamos encarar" porque eu tinha que trabalhar para poder manter o resto da família né. Aí eu falei: "Então você vai, Flavio, e fica respondendo que eu tenho que tá trabalhando para poder tratar porque senão num vai ter jeito. Aí ele veio. Aí depois eu vim, trabalhar de caminhoneiro na barragem aqui para poder manter a família.”

Ainda que o relacionamento conjugal estivesse abalado e que as condições econômicas estivessem no limite, as negociações estabelecidas entre os membros da família permaneciam tensas devido a interferência da mídia. A veiculação de cenas de violência em ações coletivas do MST no Paraná contribuiu para que Tereza, a mãe, repudiasse a possibilidade de deixar a cidade para viver na precariedade de um acampamento em vista da realização de suas expectativas de um futuro melhor. Para ela, ingressar no MST significava o caminho da morte. Tereza nos relata que o clima em sua casa era tenso graças às representações que ela tinha do MST. Acompanhemos o relato de Tereza: “Ich, era só briga dentro de casa né, porque eu não aceitava. Eu via uma imagem dos sem terra só de violência, espancamento, morte, que a gente via na televisão. Aí ele vem, ficou uns dois meses...” Osmar e Flávio, tinham consciência de que para mudar a situação vivida pela família era preciso trabalho coletivo e sinal disso era as ‘novas vidas’ de outros que haviam

alcançado sucesso através de ações coletivas no MST paulista. Contudo, a mídia contribuiu em muito para que Tereza demorasse mais, resistisse às mudanças no cotidiano propostas pelo filho e pelo esposo. Flávio e Osmar participaram de uma reunião organizada pelo setor da frente de massas do MST. Esta participação aliada ao reconhecimento do espaço concreto – o acampamento – e a conjuntura vivida pelo MST no Pontal, contribuíram para fortalecer a decisão de se filiar ao movimento , bem como para desfazerem-se da imagem de violência veiculada pela mídia no Paraná e internaslizada por eles e, sobretudoo, por Tereza. Segundo Osmar, o que ele e a família viam e ouviam sobre o MST era `na televisão`. Graças à forçada mídia, segundo o relato de Osmar e família, falar em ingressar no MST é loucura, é ir para a morte. De acordo com ele, “(...) lá no Paraná, por exemplo, sem terra é bicho papão. Você vê, lá no Paraná falou em sem terra meu... "Deus do céu! Cê tá louco! Eu quero viver! Não quero morrer não!"” Osmar alega que isso se dá porque “o governo do Paraná é carrasco, judia. O cara lutando pela terra e sofre.” Como dissemos, a experiência pessoal do reconhecimento do campo paulista foi decisivo para que fizessem o opção de filiar-se ao MST e de fazê-lo em São Paulo e não no Paraná. Essa questão fica clara na seguinte fala de Osmar: “Então vi que aqui não era aquilo lá. É, eu vim, olhei e não... É bem diferente do Paraná. Aqui você luta. Tem o Zé Rainha com as caminhadas que ele faz, não tem nada de espancamento, não tem polícia, não tem nada. Parece que a política dá cobertura, dá apoio para a gente.” Como apenas pai e filho foram à reunião da frente de massa, apenas eles foram visitar o Pontal, apenas eles tiveram a oportunidade de ressignificar suas imagens acerca do MST. Tereza continuava a cultivar dentro de si a imagem de que ir para o movimento era estar se expondo a situações de violência. Osmar relata que Tereza não aceitava vir para o MST. E mais revoltada ficara quando soubera que quem viria na frente para ficar acampado era seu primogênito. Observemos o seguinte trecho relatado por Osmar acerca da reação de Tereza: “E sei lá, foi aí que ela não aceitou ele vir. Ela falou "O quê?! Eu vou aceitar você levar meu filho para morrer?". Eu falei "Não, aqui não tem esse negócio não. Ele vai". Até hoje nunca ninguém falaram nada com ele.” Para Tereza o ingresso de Flávio no MST “(...) foi a contra gosto no começo. Aí ficou um mês e meio, dois meses assim...” Flávio concordou com a idéia de se tornar um acampado. Para ele era uma oportunidade uma vida menos estressante e de tirar uma 'folga’ da escola:

“É. Aí era para vir meu irmão, o Fagner. Só que aí eu tava querendo vir né. Acampamento é sempre perto de rio, pescar, ia sair do colégio né. Aí eu vou. Aí eu falei pro meu pai que ia vir e ele decidiu. Minha mãe não queria que eu vinhesse para cá né. (...) Bom, eu falava "Não mãe, não é isso aí. A senhora não foi lá ver como é que é". Mas aí ela falava né "Mas você também não viu né". Mas eu falei "Olha, eu já assisti uma reunião e tal". Até que chegou uma hora que arrumou as coisas, eu entrei dentro do carro, falei tchau mãe, tô indo e fui embora. Até que ela falou assim né "Eu vou te buscar nem se for com juiz". E eu falei "Se o juiz for lá me buscar... eu não vou". Eu vim pra cá.”

As falas de Osmar, Tereza e Flávio apontam para diálogos familiares truncados, baseados no poder do patriarca. Como podemos verificar, as decisões familiares são tomadas por Osmar e não são fruto de uma ampla discussão entre os membros da família. Depois que Flávio instalou-se no acampamento, Tereza começou a visitar e mudar de opinião a respeito do MST. Também o clima familiar começa a mudar, o diálogo passou a ser mais freqüente. Observemos os trechos que seguem no quais Osmar e Flávio nos relatam as visitas da família ao acampamento:

“Aí passou mês e meio e ela apareceu lá. Ela, meu pai, ainda tava meio brigado. Aí minha mãe viu que não era nada daquilo tal, achou até legal. Aí gostou. Aí quando vinha, vinha direto.(...) - É. Aí ela foi lá também várias vezes, gostou também. Conversamos com o Zé Rainha, se tinha problema a gente vir para esse acampamento aqui, que era mais perto do Paraná e viemos para cá até hoje. Só que a gente veio de lá para cá e ela não tinha vindo de mudança. Tem sete meses que nós viemos. ” (Flávio) “Aí eu comecei a trazer ela quando eu vinha visitar o Flavio nos finais de semana, trazia as coisas para ele né. Aí ela começou a vim né. E começou a gostar. A gente ficava do sábado até o domingo, que aí domingo eu tinha que ir embora para trabalhar. Aí ela falava "Ah, mas já vamos embora?" "Vamos.".(Osmar)

Como até esse momento apenas Flávio estivesse acampado e os demais ainda permanecessem em Paranavai, a mudança do restante da família aconteceu em um contexto em que Tereza é a maior insentivadora. Enquanto Osmar relutasse a deixar tudo e assumir a vida de acampado, alegando que poderia não dar certo, Tereza pensava que a hora de fazê-lo já havia chegado fazia tempo. A experiência de Tereza entre os acampados do Pontal ajudou-lhe a ressignificar sua opinião sobre o MST e a decidir-se por ele. Osmar conta que Tereza “não via a hora de chegar sexta-feira pra gente vir de novo. Aí foi até que a gente acertou de vim de vez. Já tô indo embora, ela colocou tudo dentro do ônibus, um monte de caixa.” A explicação de Tereza é cheia de ímpeto e é decisiva. Seu relato mostra a sua firmeza de propósito. Lutar até o fim, até alcançar a terra prometida: “É que eu queria vir para cá mais antes. Ele é que não deixava. Ele falava "Não, agora não. Agora não é hora e tal". Até um dia que eu resolvi, vendi todos meus móveis, peguei o restinho que sobrou e vim para cá. Agora tô morando aqui de vez. Agora é a minha casa até sair o lote. Eu tinha aquela imagem que eu via na televisão. Mas é

completamente diferente. Aqui é um paraíso, um sossego, tranquilo. Aqui não tem nada disso que a gente via na televisão, de violência. Aqui a gente fica um ano, dois anos, até sair a terra.”

Edir e Liciel são a Sexta e última família por nós entrevistada. Contudo a primeira família do acampamento Carlos Marighellacom quem tivemos contato foi a deles. Esse contato se deu durante a entrega das cestas básica no início de fevereiro. O caminhão da COCAMP que auxiliava o MST na entrega das cestas encostou no em frente ao barrado de Edir e Liciel para recrutar alguns voluntários para ajudar a descarregar a cestas na sub-sede da COCAMP em Porto Euclides, de onde se faria distribuição para as famílias do Carlos Marighella, e no acampamento Che Guevara localizado no município de Primavera. Naquela ocasião tivemos a oportunidade de cevarmos um chimarrão juntos e conhecer um pouco da família que já estava acampada no Carlos Marighellaa um mês. Como as famílias de Paraguai e Rosane e de Juciane e Toninho, Liciel e Edir também são brasiguaios e estiveram acampados no Paraná antes de migrarem para o Pontal do Paranapanema. Liciel nasceu em 10 de abril de 1962 e está vivendo com Edir, sua Segunda mulher, a onze anos. Liciel tem duas filhas do primeiro casamento (Adriana,14 e Juliana, 13). Elas vivem com a avó no Paraguai. Com Edir teve outros quatro filhos (Claudemir, 10; Claudinéia, 9; Claudirene, 8 e Claudecir, 4). Liciel não freqüentou a escola e aprendeu na vida o pouco que sabe ler e escrever. Edir nasceu no dia 26 de outubro de 1970. Como Liciel, Edir também teve outro casamento e teve outros dois filhos. Apenas um continua vivo (Claudinei, 13) e mora com a avó. Ela estudou até a segunda série primária. Edir antes de se agregar ao MST não tinha uma boa impressão do movimento. Da mesma forma que os demais entrevistados a imagem de bagunça, miséria e desordem compunham seu imginário. É a experiência concreta que lhe possibilita a re-significação da imagem do MST.

”Eu comecei a conhecer agora que nós viemos pra cá porque antes, quando eu morava no Paraguai, eu falava "Ui, aquele pessoal do MST lá vai pra lá pra passar fome", vai outros ia e voltava porque dizia que não dava pra ficar no acampamento que era muita bagunça, muita baderna, essas coisa, que passava fome e voltava. Daí, foi um homem daqui pra lá que era assentado lá em Santo Angelo no Paraná, que falou "Ih, nossa! Vocês podem ir pra lá que eu garanto que daqui há três mês vocês vão tá com suas terras, sem conflito, sem ocupação. Cês vão lá pra cima do assentamento que onde nós tá, de lá o Incra pega vocês de lá e leva pra cima das terras. Tem mercado por aqui que fornece um ano o pessoa, tem muito serviço". O que arranca de mandioca lá pra nós é um absurdo porque nós não conhecia mandioca. Lá nós trabalha com café. Só café e boi.”

Segundo Liciel o que o que o fez acampar na região do estado do Paraná foi o fato de que, estando na região do Paraguai colhendo café, falaram-lhe “(...) que

no

acampamento era muito bom, principalmente no estado do Paraná.” As atrativas informações sobre os acampamentos e a promessa de receber rapidamente a terra mostraram-se convincentes. Observemos esse trecho em que ele conta a vinda e a expectativa de receber a terra em breve: “E daí a gente veio né. Até vir eu não conhecia nada. Eu porque eu nunca tive nessa vida, nunca conheci nada. Aí diz que no estado do Paraná a gente acampava, com três mês tinha terra.(...) Quem falou isso aí foi um rapaz que já era acampado. Inclusive diz que quando ele tava com dois mês pra três mês ele já teve terra.” Muitos foram os que desincentivaram-nos a não ingressar no MST mas a necessidade material e a expectativa de um futuro melhor levaram-nos a diante. A luta se faz necessária e o casal sabe disso; identifica adversários e interesses antagônicos. Observemos o trecho que segue em que Liciel nos mostra um pouco dessa realidade:

“Daí a gente veio. Inclusive quando eu falei pra minha mulher vai lá na casa da velha sogra, que meu sogro é morto, vai lá e fala pra minha sogra que nós vamos acampar. Nós vamos ver se consegue um pedaço de terra pra nós trabalhar, criar os filhos, e vamos lutar na vida. Aí a minha sogra, até meu cunhado falou,” vai lá e pergunta pro compadre se ele já perdeu a coragem de trabalhar.” Aí a minha sogra me mandou perguntar. Aí a mulher falou pra ele como se ele perdeu a coragem de trabalhar? "Não, é que aqui no Paraná, quem vai mexer com essa luta de terra, com certeza já perdeu a coragem de trabalhar porque diz que o governo trata." Aí eu falei pra mulher que o governo não trata. Pelo que eu tenho de vista, o governo não trata. A gente tem que lutar, aguardar, e trabalhar. Porque se não trabalhar, não vive. Aí nós viemos. Mas chegamo aqui e ele diz que em três mês nós tinha terra nós já sofremo foi dois anos. Até inclusive fui despejado. Sofremo dois despejo. Ocupemo duas áreas. Daí depois nós viemos pra cá, pro estado de São Paulo, porque já faz parte do estado né.”

Edir deixa clara a sua preocupação com a segurança da família e desilusão que a acometera no Paraná. O Paraná é a imagem da violência e das promessas não cumpridas. Mas como deixara tudo para trás, o jeito era continuar a luta e reencontrar forças para fazê-lo. O Pontal surge como uma nova chance de alcançar o sonho da terra prometida.

“Aqui tava o tal de Jacinto que ele era de lá, da Cobrinco. Tem o Marcão, tem o Valdemir, e tem esse o marido da Luzia, que eles fala Paraguai pra ela. Também era da lá da Cobrinco. E eles saíram de lá e vieram pra cá. E ele veio pra cá, ele saiu de lá da Cobrinco e veio pra cá. (...) Daí ele foi lá, nós tivemos conversando com ele e ele disse que aqui era melhor que pra cá não tem conflito e as crianças tem muito medo. O primeiro despejo deu muito tiro, saiu muita gente ferida. Nesse de agora não deu não mas no primeiro foi bem sacrificado. Daí o Liciel veio aqui ver, né, gostou do lugar, achou melhor. Porque não tem conflito. Daí nós viemos pra cá.” .”

Como os dois trechos acima nos mostram, muitas das primeiras expectativas de Liciel e Edir foram frustradas. Ao invés de Terra em três meses, eles passaram por diversos despejos e inúmeras ocupações e reocupações numa luta sem fim. Aparentemente a liderança local (no Paraná) buscava manter o grupo mobilizado utilizando-se de expedientes que não eram capazes de cumprir. Essa tática atuou diretamente na desmobilização do movimento no Paraná e na migração de parte das famílias para o Pontal. Motivos semelhantes podemos encontrar nos discursos das outras duas famílias de brasiguaios por nós entrevistadas (Juciane e Toninho, Paraguai e Rosane) e nas falas de Marcos, que antes de vir para o Pontal também militou por lá, chegando a ser coordenador de grupo, e de Osmar e Tereza que não ingressaram no MST – Paraná mas tinham uma visão que os afastava e propiciava resistência à idéia de filiar-se ao movimento. As disputas entre o MST e o governo Lerner eram marcadas pela violência e por promessas, de ambos os lados, que sempre eram quebradas. O MST no Pontal diferenciava-se do paranaense por não ter que enfrentar a truculência da polícia e por haver um jogo franco entre lideranças e famílias. As lideranças do MST no Pontal sempre deixaram claras as dificuldades a serem enfrentadas pelo movimento. Não se criava expectativas para que, mais tarde, não viessem a ser frustradas e acabassem por desmobilizar o movimento local. Liciel conta como se deu sua expedição ao Pontal:

“Nós viemos através de um amigo da gente, que teve junto com a gente acampado. Até inclusive ele tava acampado. Ele já tá colocado, tá tranquilo. Quando saiu a turma ele vai nos primeiros que vai. Ele falou o seguinte: "Malinha, é o seguinte. Eu não vou dizer pra você que vai ou que não vai. Ou que lá é bom ou é ruim. Nem que você vai trabalhar ou nem que não vai. Mas só que lá você trabalha também. Falei não, trabalhar por trabalhar é o seguinte. Eu sou do trabalho. Tanto faz serviço pesado, serviço lidiano, roçada, carpida, qualquer serviço pra mim vai embora. Motorista, ou tratorista, qualquer tipo de trabalho pra mi vale porque eu sei trabalhar e desenvolvo qualquer tipo de serviço. Aí ele falou, então vai pra lá. Só que não leva a família porque você vai primeiro pra vê. Vai ver primiero. Você veja o serviço, veja o lugar, goste primeiro pra despois você levar a família. Porque depois que você vim que você gostou, você pega um carro e vai. (...)Isso. Porque se você vai de uma vez agora, com família e tudo, você chega lá e não gosta do lugar vai dizer é, eu vim enganado. Chega lá é, lugar onde fica idoso, lugar feio, lugar que tem muita dificuldade. Então eu acho que se você vai ver e se você gosta, eu tenho certeza que sua família vai gostar também. Já sinto ali. E aí vai ser melhor pra você. Mas aí eu quero saber o dia que você vai porque eu não tenho dinheiro mas pra eu arrumar o dinheiro aí. Aí o Seu Pedro que também é acampado e tem uma parati falou pra mim assim, olha você não ter dinheiro é um problema porque você não tem dinheiro pra pagar o ônibus. Eu falei olha eu não tenho dinheiro nem pra comprar um cigarro sequer. Ele falou "mas não tem problema. Eu vou pra lá com Jacinto, eu tenho carro, eu te levo. Eu te dou uma carona. Agora pra ir nós damo um jeito e pra vir você faz igual". Eu tudo bem. No dia seguinte, nós viemos pra cá, eu olhei o lugar, gostei do lugar, do acampamento, comecei a conversar com um, com outro, e tal companheiro né. Achei que daria pra gente vir pra cá. Procurei saber como é que tava de serviço aqui, porque sem serviço ninguém vive. Porque se tem serviço, tem comida. Se não tem serviço, ninguém pode viver porque tem que sobreviver como pode. Aí eu arrumei tudo e voltei pra lá no dia seguinte. Cheguei lá e falei pra uns

povinho lá em cima. seu Dino, dona Maria, falei olha, o negócio é o seguinte. É assim assim e tal. Cês acha que dá pra nós de ir. Nós vai, porque eu vou. (...) Cês acha que dá pra ir, nós vai, eu vou. Se você gostou do lugar, eu vou também. Nós vamos também. Aí pegamos e viemos tudo pra cá. Paguemo o caminhão e viemo. Tamo aí. Eu tô contente, completamente contente.”

Como Tereza e Juciane, Edir também não queria vir para o MST. Os motivos delas se assemelham pela expectativa de sofrimento. Edir não queria passar por sofrimentos maiores que aqueles que já tivera que passar na vida como bóia-fria no Paraguai. Entretanto ela acompanhou o marido e com ele lutou durante os dois anos de desassossego por eles vividos no Paraná. O relato que segue mostra as dificuldades por eles vividas no período em que militaram no Paraná:

“Não, eu não. Eu, pra começar, não queria vim pros sem terra (...) Não. Não vou mentir. Porque uns falava que era sofrido né. Como de fato, nós passemo e é mesmo. Nós passemo quatro mês só comendo mandioca. Quatro mês, dentro desses sete mês depois da reocupação, nós ficou sete mês aí né. Quatro mês nós só comia mandioca com carne, porque ainda o fazendeiro tinha uns boi que tava na fazenda né. E a mandioca que a gente comia não era essas boa de comer não, era essa mandioca braba aí ó. E nós comia. Porque o fazendeiro arrendou um pedaço né por causa de Joãozinho lá do Paraná, e ele plantou essa mandioca aí pra venda. Daí como não tinha ele o movimento lá durante aqueles quatro mês medo de despejo de novo eles não liberava o pessoal pra ir trabalhar. Então eles mandava comer mandioca com carne. E eles falava né assim que pra poder a pessoa ser organizada aqui no MST, aqui não, lá né, ser organizada no MST, pra nós de ser... sei lá como é que eles fala.... não é organizado...” .(...) Pra nós o primeiro quando sai a terra e a pessoa já pegar e ir, ser obediente com o movimento. Então, o que eles mandar fazer tinha que fazer. Então a gente não queria desobedecer o movimento né. Eles falava assim "não pode ir lá em tal lugar" a gente não ia né. Não ia pra poder manter a lei do acampamento. Assim a gente ficou lá quatro mês sem sair um dia pra trabalhar lá pra fora. Daí vinha de vez em quando um pouquinho de mercadoria, um pouquinho de arroz, um pouquinho de açúcar. Mas isso era uma vez por mês e quando vinha também era um trequinho assim ó. (O Néia! Leva essa menino no mato pra cagar aí no mato) Daí durante quatro meses comendo mandioca, de dia, de noite, fazia mandioca cozida, frita, fazia bolinho, fazia de tudo, inventava. Mas em tudo tinha que ter a mandioca. É, e foi mesmo. Sei lá, aí eu já tava aqui mesmo e não podia mais voltar, me acostumei. Gostei do movimento.”

Como Liciel estivesse decidido a vir mesmo sem Edir e ela determinada a ficar no Paraguai, o dado desestabilizador da balança foi a pressão dos filhos. As crianças não queriam ficar longe do pai. Dada a insistência de Liciel, dos filhos e o apoio de outros vizinhos que também estavam deixando o ‘sonho paraguaio’ para trás para juntar-se ao MST, Edir cedeu e veio com Liciel. Eis o seu relato que começa com a negativa de tivesse sido forçada por Liciel a acompanhá-lo. Vejamos o que nos diz Edir:

“Não, ele falou assim ó "Eu vou". Eu falava "Eu não vou". Ele falava "Você não vai, você fica. Eu vou". Daí por conta das crianças "ah, mãe...vamo vamo vamo". (...) É, porque eles não queriam que o pai deles viesse sozinho. Queria que eu viesse junto pra eles vir também. O Brasil pra eles era um fim de mundo né, porque eles só nasceram no Paraguai vieram pra Brasil agora. O Brasil era um lugar muito bonito, distante sei lá.

Daí eles queriam vim. Aí eu falava "Se o Liciel quisesse vim, ele ia vim sozinho". Daí eu resolvi de vim. Daí as outras vizinhas que vinha também falava "Vamo pra lá oxa. Já que vem um que vem todo". Peguemo e se mandemo.”

Durante os dois anos em que estiveram no Paraná, Liciel foi segurança, vicecoordenador e coordenador de grupo no acampamento. Edir era coordenadora do setor de saúde no seu grupo. No Pontal eles chegaram no dia 24 de dezembro de 2000 e não desempenham nenhuma função. Para eles alguns dos motivos era o fato de estarem acampados em Porto Euclides a apenas dois meses e de não terem conseguido estabelecer uma nova rede de amizades no acampamento. A certa altura da entrevista Liciel e Edir fazem uma comparação entre o MST no Paraná e no Pontal. Para quem ouve, a impressão primeira é de que estejam falando de dois movimentos sociais distintos. Mas entendemos essa falas como sendo termômetros das contradições internas do movimento. Para Liciel

“Aqui foi muito mais melhor do que lá. Por uma parte, primeira parte que o movimento pra lá convive muito com a mentira e eu acho que aqui convive com a realidade. Porque o Roberto Baja que lá faz parte do movimento, você mesmo conhece o movimento, você mesmo sabe né. Roberto Baja lá ele convive muito com mentira. E aqui não. Zé Rainha não tem esse negócio de mentira não. Negócio dele é realidade. E ele mesmo chega e conversa com o pessoal. Vamos fazer uma assembléia hoje? O Roberto Baja não tá lá no meio, tá. Então vamos fazer aqui uma assembléia? Vamo. Mas vamos lá. O Rainha tá ali. Só não vai ver o Rainha quem não enxerga. Mas quem enxerga tá ali, todo mundo vai conhecer. Roberto Baja não é conhecido como o Rainha é aqui. Lá assembléia é feito com os coordenador. (...) Lá eu participava porque eu era coordenador. Mas aqui, se eu fosse nesse ponto aqui, então quer dizer que eu conhecia... Se o Rainha fosse igual o Baja, eu podia conhecer o Rainha e minha família, o povo, o povão nosso mesmo ninguém conhecia. Porque lá ninguém conhecia o Roberto Baja. Eu conheci. É, porque ele era de Curitiba. Lá em Curitiba que ele ficava. Eu conheci ele principalmente lá em Curitiba porque eu fui pra lá. Os dois despejos que nós sofremos eu fui pra lá em Curitiba.”

Liciel e Edir são católicos não praticantes mas guardam uma religiosidade popular a qual é invocada em momentos de dificuldade.

8. AS FAMÍLIAS NO CONTEXTO DA PESQUISA

Apresentadas as famílias por nós escolhidas para serem entrevistadas passamos a classificá-las dentro dos critérios já apresentados. Inicialmente nos haviamos proposta entrevistar famílias que atuassem no acampamento como lideres, militantes e de base e que tivem como procedência o meio Urbano e o meio rural, sendo que as que fossem dessa

Segunda origem, também fossem separadas em pequenos proprietários e trabalhadores assalariados (bóias-frias). Todavia, durante o trabalho de campo encontramos famílias para todos os campos de assalariados e urbanos e apenas uma família de pequenos proprietários com os quais convivemos intensamente mas que não quiseram gravar entrevista. Por essa razão reduzimos a grade de famílias a serem utilizadas na presente pesquisa. Consideramos de origem urbanas as famílias de Márcia e Barroso, Tereza e Osmar e o militante Marcos. consideramos de origem assalariada as famílias de Paraguai e Rosane, Liciel e Edir e Toninho e Juciane. Lideres foram consideradas as famílias de Paraguai e Rosane e Marcos; Militantes as famílias de Liciel e Edir e de Marcia e Barroso; Base as famílias de Toninho e Juciane e de Tereza e Osmar. Assim, as famílias ficaram assim distribuídas:

MILITÂNCIA

PROCEDÊNCIA

TRA

TRU

Família L

Paraguai e Rosane

Marcos

Família M

Liciel e Edir

Márcia e Barroso

Família B

Toninho e Juciane

Tereza e Osmar

Os motivos que nos levaram a identificar Paraguai e Rosane como sendo uma família de origem assalariada que no universo do acampamento é líder foram os seguintes: 1)

Seu barraco é um permanente espaço de formação e socialização política;

2)

Rosane e Paraguai exercem esse papel formativo;

3)

Paraguai tem penetração em todos os grupo e é admirado por todas as famílias. Volta e meia ele é citado como referência de responsabilidade e compromisso no acampamento.

4)

Participa permanentemente de atividades de militância (marchas, ocupações, protestos), cursos e formações do movimento. A sintonia do casal com o pensamento geral do MST explicitado nos documentos e publicações do MST e pronunciamentos de seus lideres é indubitável.

Liciel e Edir são identificados como militantes porque: 1)

Já exerceram atividades de coordenação no MST;

2)

Assimilaram grande parte do discurso da liderança do MST mas mantém posições que são comumente identificadas em membros da base;

3)

Participam expontaneamente de atividades militantes e exercem influência em seu grupo e entre outras famílias do acampamento;

4)

Seu barraco também é um ponto de formação e socialização política contudo não possui a mesma força da família de Paraguai e Rosane.

Já Toninho e Juciane foram identificados como base porque: 1)

Toninho tem um forte comportamento militante, porém Juciane é mais que dependente das posições do marido;

2)

Toninho costuma beber da formação dada por Paraguai e Marcos. Costuma ter uma demanda constante de formação e não se propõe a farmar.

3)

A participação do casal em atividades militantes costuma a se restringir a atuação do marido.

4)

O casal encontra-se em níveis distintos no que se refere a participação e formação. Poderíamos dizer que essa não é uma família base tradicional mas não chega a ser uma família de militantes.

No caso da famílias urbanas é bom apontar para o fato de que, no acampamento Carlos Marighellae no movimento Sem Terra, as famílias de origem urbana costumam ser cerca de 20%. Por terem uma menor presença, foi necessário um busca maior destas famílias no interior do acampamento. Por esse motivo, apesar de ser solteiro, Marcos acabou sendo um de nossos entrevistados, uma de nossas famílias. Assim sendo, Marcos foi identificado como uma família de origem urbana que exerce papel de liderança no interior do acampamento Carlos Marighellaporque: 1) É referência entre os acampados e coordenadores; 2) Atua como uma espécie de formador itinerante; 3) Participa ativamente das atividades militantes; 4) Participa da frente de massa; 5) Auxilia na coordenação geral do acampámento. Márcia e Barbosa foram identificados como uma família militante porque: 1)

Márcia é coordenadora de grupo e coordenadora geral da saúde no acampamento;

2)

Barroso e Márcia abrem seu barraco para um espaço de formação socialização mas seu compromisso é limitado ao grupo e, sobretudo, limitado por um direcionamento religioso, visto que Márcia é integrante da Igreja Congregação Cristã do Brasil;

3)

Assimilaram boa parte do discurso da liderança do MST mas mantém posições que são comumente identificadas em membros da base. Os conteúdos que são ou não assimilados são, de alguma forma, sansionados pelas crenças religiosas.

Consideramos que a família de Tereza e Omar é uma tipica família da base porque: 1) Não tem clareza de seu lugar no movimento; 2) Assimilaram pouco do discurso do movimento; 3) Não atuam como agentes formadores e ainda mantém-se numa perspectiva de cumprir a regra para garantir um lugar ao sol na luta por um pedaço de chão

9.

ESPAÇOS

DE

SOCIALIZAÇÃO

POLÍTICA:

O

POSSÍVEL

E

O

CONCRETIZADO

Uma questão que consideramos fundamental para o estudo da consciência política é a referente aos Espaços de Socialização Política. Durante nossa estadia no acampamento procuramos mapear os espaços de socialização política em que houvesse a predominância de gênero e aqueles onde a questão gênero não fosse fundamental. A observação dos espaços de socialização política nos quais há a predominância de gênero tem por razão averiguar se há mudanças de comportamento quando os parceiros estão ou não juntos e como as idéias do parceiro(a) influenciam o sujeito nos espaços onde não estão acompanhados. Observar o comportamento do grupo familiar em espaços em que estejam juntos entre a coletividade tem por razão averiguar até que ponto a vida particular da família influencia a construção dessa consciência política e como a compreensão dos fatos pelo grupo familiar interfere na construção dessa consciência pelo sujeito. Outro dado a ser observado é como se dá a relação entre a família e as lideranças. Até que ponto as posições trazidas da relação familiar são idênticas ou divergentes entre família e líderes. Os dados das observações feitas nos espaços de socialização foram registradas no diário de campo. A tabela a baixo nos dá uma idéia mais clara daquilo que acabamos de explicar. Importa registrar que durante nossa pesquisa de campo encontramos espaços de socialização política da seguinte ordem: 1)

Espaços reais que cumpriam cotidianamente seu papel de socialização;

2)

Espaços possíveis de atuarem cotidianamente na socialização dos acampados mas que não eram percebidos por eles e

3)

Espaços de socialização política internitentes mas que não pudemos observar porque não ocorreram durante nossa estadia Marighella.

no acampamento Carlos

Antes de começarmos a analisar cada um desses espaços, queremos apontar que alguns dos espaços que não observamos no acampamento que é nosso objeto de pesquisa, nós observamos nos acampamentos Dorcelina I e II.

10. OS ESPAÇOS DE SOCIALIZAÇÃO POLÍTICA MISTOS

Durante nossa pesquisa encontramos diversos momentos da vida do acampamento que serviam de espaços informais de socialização. O Barraco é um importante espaço de socialização política. Em especial o barraco dos coordenadores de grupo. Parece-nos que na vida do acampamento Carlos Marighellao barraco é o principal espaço de socialização e formação. Os barracos de Paraguai e Rosane, Dona Marilu, Evandro, Edir e Liciel, Márcia e Barroso são exemplos de barracos de coordenadores que dioturnamente acorrem pessoas para informar-se da situação do movimento, da possibilidade de novas terras para a ocupação, para discutir as mudanças conjunturais no xadrez da reforma agrária disputado pelos movimentos sociais e os governos, para resolver problemas de disputas dos mais diversos tipos que acontecem entre acampados e etc. Dos barracos de coordenadores que me chamaram a atenção nesse trabalho foram os de Paraguai e Malú. O Horário da Chamada é um espaço de socialização política cotidiano que não é percebido e é subestimado pelos coordenadores e acampados. Todos os dias os coordenadores reúnem suas famílias para verificar se estão no acampamento ou se alçaram vôo feito ‘andorinhas’. No entanto a reunião se resume no se fazer presente para não ficar com falta e acabar com menos pontos na hora de selecionar as famílias que irão para as novas áreas de ocupação/assentamento. Tal momento não é utilizado como um espaço de partilha de angústias, de discussão da realidade local e ou da conjuntura na qual o movimento está inserido; não serve se quer para aproximar o grupo e fazê-lo mais coeso ou então para tentar debater as incongruências do movimento como, por exemplo, a questão do Coletivo X Individual. Além das considerações que acabamos de fazer até aqui, vale dizer que, na nossa avaliação, um empecilho para a efetiva organização dos grupos e sua socialização e formação política é, entre outros fatores, o tamanho dos grupos de acampados no pontal. Cada grupo tem em média 30 famílias. Segundo Edir, apesar de todos os problemas que havia no Paraná, algo de bom era a organização dos grupos paranaenses. No Paraná, os

grupos facilitavam o trabalho coletivo e a participação de todos, além de serem bem menores do que os existentes no Pontal. Edir nos conta que “(...) lá cada grupo tem que ter um da saúde, um segurança, um da higiene, tem que ter um da infra, que tem que ter o vice e o coordenador. Quase cada um tem um encargo. E o grupo maior lá é doze. Daí você vai tirar um pra cada encargo desse né, quase todo mundo tá trabalhando”. E ela torna a frisar a importância de grupos pequenos e, sobretudo, de haver responsáveis por cada um dos setores do MST no grupo. No relato de Edir que passaremos a apresentar fica claro como a estrutura orgânica do grupo que descentraliza as atividades contribui para a formação e socialização política de cada sujeito. Para Edir a existência desses setores no grupo muda a dinâmica interna do grupo e faz com que o grupo caminhe melhor. Observemos o trecho que segue:

“Sim, muda sim. Se o grupo eu lido, se cada um vai cuidar do seu serviço sem ninguém tá perturbando, vai. Porque, uma comparação né, eu sou da saúde, você é coordenador ou seje da higiene. Da higiene porque vai ter que ver onde vai ser o banheiro. Você vai indo, ó. Outro chega "Esse banheiro aqui não tá funcionando. Vamo ter que fazer outro. Aí ele junta dois, três do grupo e faz outro banheiro. Que nem que sou da saúde. Que vem o povo doente, eu vou na farmácia pegar o remédio pra ele, ver se tem remédio pra aquele doente. Você vê que o remédio da farmácia não vai adiantar pra o que aquela pessoa tá sentindo, eu vou atrás de um carro. Vou pegar aquele paciente, vou levar num médico, vou ver o remédio, se tem o remédio eu levo, se não tem junta o grupo, faz uma reuniãozinha no grupo, faz uma coleta e vai e compra o remédio pra aquele paciente.”

No Pontal a realidade é bem diferente da paranaense no que tange a estrutura interna dos grupos. No Pontal as poucas atividades dos diversos setores do MST estão centralizadas na figura do coordenador gerando uma dependência extrema dos acampados da figura do coordenador. A estrutura adotada no Pontal não contribui para a formação de uma consciência política verdadeiramente revolucionária pois não incentiva ao sujeito tomar iniciativa de ações. Assim toda a ação, normalmente, acaba sendo coordenada por agentes externos ao acampamento. No caso do acampamento Carlos Marighellaeram Zé Rainha, que não vivia no acampamento pois se dedicava aos problemas da coordenação geral do MST Pontal, e Musgão que dividia-se entre o cuidado do acampamento a micro 4 e o cuidado de seu lote pois já era assentado. O Setor de Saúde do acampamento é o espaço de socialização política em que a mulher tem as rédeas mas que também tem seu potencial de ação subestimado. Márcia e um grupo de mulheres, através do setor de saúde, organizam a distrribuição do leite19 às famílias que tenham crianças ou velhos. O trabalho reduz-se ao controle do número de pessoas que tem direito a retirá-lo mediante a apresentação de um cartão por elas

fornecido. Entretanto não se utiliza esse espaço para se organizar debates das necessidades das famílias, organizar solicitações a municipalidade no que tange ao acesso ao sistema de saúde ou visitas de médicos que acompanhem a saúde dos acampados. Reflexo disso é o fato de que o setor não é conhecido por todos os acampados. Para alguns como Liciel não há um setor organizado no acampamento. Ele desconhece o fato de que ‘as mulheres do leite’ são também. Segundo Liciel “(...) faltaria uma da saúde geral, que nós não temos aqui. Se precisa de uma saúde, um problema de saúde aí, vamu ter que correr cada um por si”. Uma reclamação que é geral no acampamento é o atendimento do serviço público de saúde no município de Porto Euclides. A reclamação não é do mau serviço, mas das humilhações a que são submetidos quando são identificados ou se identificam como acampados, como sem terras. O setor de saúde não se organiza de modo a enfrentar coletivamente situações de preconceito como essa e outras mais que perpassam a vida dos acampados. Isso é um sério problema pois quando perguntamos aos acampados quais são as maiores dificuldades enfrentadas por eles no acampamento, muitas são as respostas, mas uma é unânime: saúde. Aos Sábados deveriam ocorrer as Assembléias Gerais do Acampamento. Dizemos que deveriam porque durante o tempo em que estive convivendo entre os acampados de Porto Euclides, não houve nenhuma assembléia. Como elas eram dirigidas pelos coordenadores das micros e como a situação na região estivesse tensa devido as novos ocupações promovidas em fevereiro de 2001, os lideres regionais estavam atentos às novas áreas ocupadas e as ações dos latifundiários, do ITESP, da justiça e da polícia. A justiça constituía-se em um caso especial. A ela estava sendo dada uma atenção maior porque nesses dias estavam sendo julgadas diversas ações contra as principais lideranças do pontal. Entre os julgados estava Zé Rainha que era coordenador da micro 4 a que o acampamento Carlos Marighellaestava submetido. Como era o próprio Zé Rainha quem comandasse os trabalhos do acampamento, o acampamento parecia um tanto quanto sem norte pois, como os relatos já apontaram, ele era o ponto de unicidade do acampamento e o principal mobilizador daquelas famílias. Esse fato nos leva a perceber a força da centralização existente no movimento dos sem terra. Alguns coordenadores pensam que a assembléia deveria ocorrer mesmo sem o Zé porque o simples fato de não haverem assembléia acabava desmobilizando e desagregando os grupos e os acampamentos. Todavia esses mesmos coordenadores não se 19

O leite é oferecido diariamente pelos laticínios Qatar aos acampados do Carlos Marighella.

sentiam ‘ungidos’ da autoridade necessária para fazê-lo. Havia também entre ele o medo de não estarem cumprindo a ‘cartilha’ do MST e estarem fugindo das normas. A norma é um dado ambíguo no movimento. Ao mesmo tempo que ela agrega e organiza as famílias, ela as coíbe, impede que tomem iniciativas em relação a vida cotidiana da família, do grupo e do próprio acampamento em que estão inseridas. A organização das Atividades Militantes como as marchas, as ocupações de espaços públicos, o mutirão na construção da Escola Nacional do MST e os cursos de formação poderiam servir como subsídio e ocasião para a socialização política. Mas isso passa desapercebido na realidade do acampamento. As pessoas que vão voluntariamente para trabalhar na construção da Escola Nacional do MST vivenciam por lá experiências das mais diversas: têm momentos de formação, de práticas da mística do movimento, de discussão da conjuntura nacional etc. Quando regressam ao acampamento e ao seu grupo continuam a vida como se não tivessem de lá saído. Nem eles nem os coordenadores captalizam as experiências dessas pessoas para o bem da coletividade. E o mesmo vale para quando os grupos enviam delegados para congressos, cursos e marchas promovidos pelo movimento. Não se aproveita para, na ocasião do regresso desses companheiros, organizar momentos de formação, de partilha para aqueles que ficaram. O conhecimento adquirido, a experiência vivida fica restrita àquele que a viveu.

11.

OUTROS

ESPAÇOS

DE

SOCIALIZAÇÃO

A

ESPERA

DE

UMA

OPORTUNIDADE DE SE MATERIALIZAR

Outros espaços que potencialmente poderiam contribuir no processo de socialização política do acampamento Carlos Marighella, seriam os seguintes: 1) A Escola: Não há no acampamento uma escola que atenda as inúmeras crianças e adolescentes do acampamento. Aqueles que querem freqüentam as escolas da rede pública que fica a cerca de 10 kilômetros do acampamento. Ainda assim, aqueles que conseguem chegar à escola em Porto Euclides freqüentam uma escola que põe-se à margem da situação dos acampados. Pensamos que diversos trabalhos já apontaram para a importância da presença da escola em acampamentos e assentamentos. Essas escolas seguem uma pedagogia própria, a chamada pedagogia da libertação. Com intervenções pedagógicas diferenciadas daquela implementadas na escola tradicional crianças como as de Edir e Liciel apreendem a

realidade de maneira a se tornarem atores e atrizes que assumem seu papel no palco da vida. Um belo exemplo disso pudemos observar quando Claudirene, 7 anos, ao responder "Qual o trabalho das crianças dentro do acampamento, dentro do movimento?" disse que era “Estudar pra aprender a ler e escrever; pra quando eu crescer saber o quê que fazer e depois é trabalhar na roça”. E quando perguntei-lhe O que era o MST para ela, com os olhos brilhando e com um sorriso nos lábios ela falou-nos: “Vida nova!!!” A escola também é esperada por inúmeros acampados que gostariam de aprender a ler e escrever. Eles ouvem história de acampamentos e assentamentos que tem escola e questionam os motivos que o seu acampamento não tem. 2) A Mística: O uso da mística enquanto instrumental não aparece no acampamento. Com isso não pretendemos dizer que ela não se faça presente no acampamento. Porém, ela se faz de maneira indireta e até mesmo inconsciente. Em nosso diário de campo temos o seguinte apontamento por ocasião de uma conversa com quatro (de dez) jovens que retornaram de um congresso de Jovens do MST realizado em fevereiro de 2001 na cidade de Campinas:

“Chama-me a atenção o fato de que depois de 15 dias entre os acampados de Dorcelina e uma entre os acampados do Carlos Marighella, esta é a primeira vez que se fala na mística. Mas o modo como se fala me causou estranheza porque é como se ela fosse uma atividade momentânea, quase teatral, viável apenas durante a atmosfera de encontros formativos. Pareceu-nos que os três jovens brasiguaios que lá estiveram não conseguem ou não sabem como materializar na vida cotidiana o intrumental da mística do movimento” (Diário de Campo, fita 2, em 23 de fevereiro de 2001)

O desenvolvimento de estratégias que tragam a mística para o interior da vida cotidiana do sem terra pode ser um importante aliado para a superação de contradições internas, para a reflexão da realidade social dos acampados e para a formação e socialização política dos mesmos. 3) Reuniões formativas de coordenadores e outras lideranças: Reuniões sistemáticas de coordenadores para se efetuar balanços do acampamento são demandas de algumas pessoas que compreendem que a atuação do coordenador de grupo não se restringem ao próprio grupo mas que seu trabalho é integrado e que é apenas na ação integrada, da coletividade que se logrará o fortalecimento da luta. Liciel, por exemplo ao falar sobre essa questão aponta para o caráter educativo e regulador da ação do coordenador e reclama da falta de reuniões de grupo também, sente falta da experiência vivida no Paraná:

“Pra ser um coordenador ele tem que..., porque eu já fui um coordenador, eu acho que tem que fazer reunião, que é pra ter. (...) Aqui nós nem reunião não é feito aqui. (...) Eu acho que muita coisa não é discutida e passada, porque tem vários tipos de coisa aí que não é passada, principalmente com as coisas de educação. Não é passada. Eu acho que a coisa da educação tem que ser tratado como o adolescente com o adulto também. tem que ser passado para as pessoas sabe que não pode errar. O passo tem que ser seguido exato o passo real. Não o passo como várias pessoas quer ter. (...) Eu acho as reuniões que tem que ser iniciativa dos coordenador".

Edir ao comparar os movimentos do Pontal e do Paraná aponta para a importância da organização do acampamento e do grupo na estruturação do cotidiano. Suas observações mostram como essa estrutura pode ser apropriada de modo a facilitar a socialização política:

“No Paraná tem assembléia todos os sábados, tem reunião de grupo todas terça-feira e tem a coordenação, que é todos os coordenador na segunda. É, terça... é, terça reunião, segunda-feira reunião de grupo e terça-feira assembléia. Daí o que passou dentro do grupo o coordenador passa para a coordenação. E o jeito do ritmo do povo trabalhar dentro do acampamento.(...) O coordenador reúne todo o pessoal do grupo dele. Daí fala o que tem o que falar, se não tem o que falar conversa com o pessoal ali, se entende, pelo menos uns 10, 15 minutos ali o pessoal tinha que sentar e conversar. (...) Aqui das vezes é que nem a D. Maria disse hoje, que tem grupo que não se conhece as pessoas do grupo mesmo. Porque eu mesmo não conheço as pessoas do meu grupo. Eu só sei de eu, a Ruth ali em cima, e agora foi domingo eu passei a conhecer o vice-coordenador, que é o Néio que já tá com dois mês. Mais, nós viemos em dezembro, janeiro, fevereiro, março, já é pra três mês. Reunião teve uma até agora.”

A setorização dos grupos e do acampamento é uma questão a ser pensada, sobretudo porque as lideranças do Pontal costumam reclamar da ausência de novas lideranças. A setorização pode vir a ser um espaço de formação de novos quadros para o movimento. 4) A Frente de Massas: Desde que chegamos ao Pontal tivemos contato com diversos integrantes da frente de massa. Quem me acolheu logo de minha chegada foi Serginho Pantaleão que integra esse setor; Marcos, nosso entrevistado, também integra a frente e outros tantos que contribuíram com nosso trabalho eram integrantes da frente. Pensamos que a frente seja um importante espaço de formação e socialização política subutilizado. Nos relatos que ouvimos daqueles que a compunham e nos trabalhos que tivemos a oportunidade de acompanhar, não percebemos uma ação formativa por parte daqueles militantes que estavam implicados nas atividades da frente de massas. É claro que a tônica das ações por eles desenvolvidas era tentar mostrar e convencer àqueles que lhes ouviam de que, entre tantas outras coisas, a realidade econômica brasileira que lhes coloca em contextos marginais é resultante das políticas neoliberais vigentes no país e por isso devem ser enfrendas por eles. Para que tal enfrentamento pudesse atingir o objetivo de

tornar o país socialmente mais justo a participação de cada um deles é fundamental. E o MST é apresentado como uma das fornmas que deu certo durante a luta vivida no campo e na cidade. Certos de que isso é real as pessoas aderem ao MST. Porém, parece-nos que seria muito importante que entre as questões levantadas e trabalhadas pela militância, deveria estar, por exemplo, a questão do individual e do coletivo que tantas dores de cabeça causam ao movimento. Entendemos que se essas e outras questões nevrálgicas para o MST já fossem trabalhadas desde os primeiros momentos em que os participantes entram em contato com o movimento, as divergências que surgem no decorrer do processo identidade coletiva poderiam ser superadas com maior facilidade. Ou ainda, as experiências coletivas nos assentamentos poderiam ser mais numerosas e frutíferas. 5) O período das ocupações: Chamamos de período das ocupações a quatro momentos distintos, a saber: a)

A seleção das famílias;

b) A preparação das famílias escolhidas para a ocupação; c)

A ocupação e instalação das famílias

d) e reorganização dos dois grupos (dos que ficam no acampamento e dos que chegam à terra nova) A seleção das famílias é um momento por demais delicado e que, como tal, pode fragilizar a dinâmica interna do movimento. Ao nosso ver, as famílias precisam tomar decisões muito difíceis de uma hora para outra, o momento de decidir quem vai e quem fica chega de maneira por demais abrupta podendo atuar como um agente desmobilizador de certas famílias que não foram escolhidas e/ou acabar cindindo o grupo em outros de acordo com os interesses em jogo. Como já é sabido, esse é um momento crítico em que as divergências entre grupos e entre grupos e os dirigentes do MST podem vir a tona desestabilizando o movimento como tal. Já àqueles que são escolhidos para rumarem para a terra nova, o fazem muitas vezes de maneira despreparada e desordenada. Não é pensado de forma adequada o melhor modo para que essas famílias se reoganizem. Não há formação de lideres para atuarem nesse momento e fortalecer as relações grupais. Isso ocorre muitas vezes por não haver tempo para faze-lo e também porque outras tantas vezes não há quem possa executar essas atividades formativas. Desse modo, o grande reordenador desse novo grupo será o próprio tempo. Como disse-no dona Vilma que estava rumando para a fazenda Santa Maria, “as coisa se ajeitam com o andar das carroça, ou no nosso caso aqui, do caminhão!”.

Vemos o momento da ocupação e da instalação das famílias como sendo um instante que poderia ajudar nesse período de rearranjo psicossocial pelo qual passa o grupo. Por ser um momento de intensa instabilidade emocional visto que o fazendeiro pode ter alguma reação mais agressiva, violenta, esse momento poder atuar como um facilitador da coesão do grupo, de estreitamento da relações, de reorganização das pautas do grupo de acordo com as novas situações vividas por cada um. Nessa hora muitos recursos são mobilizados e realocados. A ocasião da seleção de famílias para novas áreas e os momentos que seguem esse instante da vida dos acampados poderia, para não dizer, deveria, ser alvo de maior atenção, do ponto de vista psicossocial, por parte das lideranças do movimento. Entendemos que da mesma maneira que essa ocasião pode desagregar o movimento e ocasionar um aumento de ações de caráter individual e graças a uma possível intensificação de crenças da ordem da mobilidade social, ela pode tranformar-se em momento propício para o fortalecimento dos laços identitários do grupo, dos valores fundamentados na crença na mudança social em que o MST se ancora. Assim, a ação mais intensa dos lideres do MST nesses momentos poderiam colaborar para a superação de certos abismos existentes entre eles e a base do movimento e que pode ser observados nos antagonismos vividos no interior do MST Para exemplificarmos ocasiões mais específicas relacionadas à ocupação e instalação das famílias nas quais tais intervenções poderiam se dar, lembramos do instante em que os barracos são armados - a espacialização – e da hora em que o nome do novo acampamento/assentamento e tirado. No caso do assentamento Dorcelina II notamos que a espacialização se deu de maneira desordenada e capaz de propiciar ações voltadas a questões individuais. Um dos motivos que nos leva a inferir essa possível realidade é a desagregação famílias dos grupos. Cada umas delas se espalhou pelos quatro cantos da nova área. Tal distanciamento das famílias poderia ser um indicativo da fragilidade dos laços identificatórios, da identidade coletiva no nível dos pequenos que compõe os acampamentos. Dorcelina II é o nome dado ao novo acampamento estabelecido na Fazenda Santa Maria. Contudo esse nome não foi fruto da discussão entre os acampados, não é o reflexo da realidade e da história daquelas famílias. Esse nome foi dado pelos dirigentes do MST em função da procedência daquelas famílias: o acampamento Dorcelina I acolhido na reserva florestal do assentamento Água Sumida, município de Teodoro Sampaio. Mas havia famílias que tinham sugestões e queriam debater, propor um novo nome, um nome que expressasse a nova realidade vivida por eles. As famílias de Vilma, Maria José e dona

Florilsa foram pegas desprevenidas. Elas tinham as suas sugestões mas resignaram-se dizendo frases parecidas com essa: “Eu acha que Caminhos da Liberdade era melhor, mas esse também é bom. Afinal, a gente veio de lá, né?!” (Maria José). Discutir o nome do acampamento significaria, a nosso ver, uma importante oportunidade de se rever as antigas pautas e de se estabelecer novas; de se consolidar a identidade coletiva que já se dera início no Dorcelina I; de se superar sentimentos de injustiça anteriormente sofridos, estabelecer novas metas coletivas, de se dar conta de quais serão os novos obstáculos e adversários a serem enfrentados, de se estabelecer estratégias para que se alcance maior eficácia política nas ações por eles implementadas. Nominar-se a si próprios poderia significar, entre outras coisas, a construção de um sujeito coletivo, de um ‘nós’ melhor consolidado. Processo semelhante de escolha do nome foi tomado no acampamento Carlos Marighella. Vale ainda ser registrado o fato de que em função de não se haver discutido mais amplamente qual seria o nome do acampamento e menos ainda se ter clarificado quem eram Carlos Marighella e Dorcelina, os acampados sabem apenas que essas eram pessoas que lutaram para promover uma real mudança na estrutura social. Quando perguntávamos aos acampados de ambos os acampamentos, ouvíamos as seguintes respostas: "Carlos Marighella foi um companhero de Che Guevara que queria ajudar a fazer a reforma agrária no Brasil" (Rosane); "Marighella morrió com o Che Guevara. Foi muerto pelos latifundiários que non gosta dos sem terra" (Paraguai); "Calos Marighella deve ter sido um sem terra que foi morto por algum jagunço" (Osmar); "Não sei não quem foi esse home!" (Juciane); "Deve ter sido um sem terra que nem nois" (Tereza); "Ele foi um sem terra que nem o Zé Rainha" (Toninho); " Dorcelinafoi uma sem terra que morreu num conflito" (Vilma); "Ela foi alguém que lutou muito por causa da reforma agrária" (Vera). Como podemos perceber ninguém sabe quem são as pessoas homenageadas no acampamento; ninguém sabe que Marighella foi um líder guerrilheiro assassinado durante a ditadura militar e que Dorcelina uma prefeita assassinada pelos latifundiários no Mato Grosso do Sul e muito menos os valores que eles defendiam. Portanto, é visível a não utilização do momento da escolha do nome como um momento de formação de um capital cultural, de fortalecimento da identidade coletiva, de se trabalhar as contradições existentes entre os valores da base e da liderança.

12. ENTREVISTANDO A ‘FAMÍLIA MARIGHELLA’

As famílias foram selecionadas na medida em que nosso contato com os acampados iam possibilitando o reconhecimento das origens familiares e da atuação política de cada família no acampamento. As entrevistas foram sendo realizada na medida em que esse reconhecimento se fazia claro para nós através da análise da conjuntura na qual aquela família se inseria. Assim, realizamos com as famílias escolhidas uma entrevista coletiva, familiar, e outra individual. Concomitante às entrevistas, nós nos detivemos a acompanhar atidamente a sucessão de acontecimentos comunitários relevantes à vida do grupo e de cada família como, por exemplo, assembléias, negociações com o governo, liminares e despejo. Como nem todas es possibilidades e acontecimentos que observamos ocorreram no Marighella, nosso diário

de campo foi fundamental para clarear aspectos turvos das

entrevistas e o modo como os acontecimentos observados impactaram no sentimento de eficácia política, na formação da consciência política de cada sujeito entrevistado e do grupo de acampados. Seguem agora os roteiros das entrevistas. 12.1. Roteiro De Entrevista Familiar

Nosso roteiro está dividido em blocos de perguntas.

Nesse primeiro bloco

queremos apenas recolher os dados referentes ao entrevistado. As perguntas de 1 a 8 compõe o 1º bloco.

1. Nome: 2. Gênero: 3. Data de Nascimento: 4. Naturalidade: 5. Escolaridade: 6. Estado civil: 7. Nome do(a) Cônjuge: 8. Número de filhos:

Nesse 2º bloco temos cinco perguntas que tem por função esclarecer o processo de associação da família ao movimento levando em conta a sua história de vida. Também queremos observar com estas perguntas o grau de participação efetivo da família como um todo no processo decisório. Oito questões.

9. Gostaria de saber como o(a) senhor(a) ganhava a vida antes de chegar a este acampamento? 10. O(a) senhor(a) já teve alguma experiência com a terra? 11. O que o(a) fez sair da terra ? 12. Como o(a) senhor(a) conheceu o MST? 13. Qual o(a) motivo que o (a) fez de participar desta ocupação ? 14. Como foi tomada a decisão de participar da ocupação? 15. Quais as maiores dificuldades enfrentadas por vocês na ocupação? 16. O que significa a terra na vida de vocês?

Nesse 3º bloco queremos verificar em que medida a família e MST se transformam, mudam um ao outro. Três questões. 17. Para o(a) senhor(a) qual o papel da família na estrutura do MST? 18. A sua família exerce esse papel? 19. E o MST, ele tem algum papel na estrutura da família? Qual?

Esse 4º bloco preocupa-se com a formação e nível de consciência Política dos membros de cada família e das famílias do acampamento. 3 questões. 20. O que o(a) senhor(a) a respeito da política agrária do governo federal? 21. O que o(a) senhor(a) pensa a respeito da política agrária do governo estadual? 22. E sobre a atuação dos técnicos do ITESP?

12.2. Roteiro De Entrevista Individual

Nesse 1º bloco de questões queremos recolher dados que nos indiquem o grau de comprometimento que cada membro da família e que a família como um todo têm com o movimento. Para esse fim temos cinco perguntas. 1. Qual foi o seu papel (função) durante a ocupação ? 2. E o papel (a função) da família, qual foi ? 3. É possível pensar o MST sem a organização familiar? 4. Como o(a) senhor(a) vê a sua própria participação no movimento? 5. Como o(a) senhor(a) vê a atuação das lideranças no acampamento?

O 2º bloco busca recolher dados acerca da representação social da terra para um acampado que nunca teve vínculos diretos com ela e para os que tiveram contato com ela. Duas questões. 6. O que significa a terra para o senhor(a)? 7. Qual a importância da terra para sua família? 8. Na sua opinião, qual a melhor forma de se trabalhar a terra? Por quê?

As perguntas do 3º bloco são direcionadas a medir a força da família no processo decisório do movimento. Quatro questões. 9. Vocês discutem em família antes de tomar uma decisão ou de votar na assembléia do acampamento? 10. E qual é a atitude de vocês quando não há acordo sobre algum ponto? 11. Você costuma conversar com alguém antes de tomar decisões em família? 12. O projeto da sua família é o mesmo projeto social que o MST defende?

As quatro questões que compõe o 4º bloco visam averiguar qual é a representação social acerca do MST para cada sujeito, para a família e a importância que ela tem no universo de cada sujeito e família. 13. O que significa o MST na sua vida? 14. O que significa o MST na vida de sua família? 15. O que é o MST para o(a) senhor(a)? 16. Para o(a) senhor(a) o movimento é construído através das ações individuais, da ação da família ou da ação da coletividade?

Esse 5º bloco preocupa-se com a formação e nível de consciência Política dos membros e das famílias do acampamento. Quinze questões. 17. Para o(a) senhor(a) por quais motivos acontecem os conflitos de terra? 18. Na sua opinião qual a melhor maneira de superá-los? 19. E é isso que se está fazendo nessa ocupação? 20. Houve algum registro de violência na ocupação? 21. De que tipo, feita por quem e por qual motivo? 22. Como o(a) senhor(a) tem visto atuação do MST? 23. O que precisa ser feito para melhorar esta atuação? 24. O que a experiência no MST e na ocupação mudou na sua vida?

25. O que experiência no MST e na ocupação mudou na vida da sua família? 26. Para o(a) senhor(a)quem são os inimigos do MST? 27. Para o(a) senhor(a)quem são os aliados do MST? 28. Como o(a) senhor(a)vê o papel da mulher no movimento? 29. Como o(a) senhor(a)vê o papel do Homem no movimento? 30. Para o(a) senhor(a) o papel do homem e da mulher é diferente? Se sim, em quê? 31. Quando o senhor(a) receber a terra, vai trabalhar do seu jeito ou do jeito que MST propõe?

CAPÍTULO V

A EXPRESSÃO DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA NA VIDA DOS ACAMPADOS

''Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira.'' (José Saramago no livro ''Levantado do Chão'')

O presente capítulo tem por objetivo aprofundar a análise dos dados obtidos nas entrevistas e na pesquisa de campo durante o período em que estivemos entre as famílias sem terra do Pontal do Paranapanema. Muitas são as categorias possíveis de serem encontradas a partir desse material. Contudo utilizaremos como categorias principais as dimensões da consciência proposta por Sandoval (2001) em seu modelo analítico de estudos sobre a Consciência Política por nós apresentado e discutido no capítulo III do presente trabalho. Assim, as categorias adotadas serão Crenças e Valores Societais; Identidade Coletiva; Identificação de Adversários e Sentimentos Antagônicos; Sentimentos de Eficácia Política; Sentimentos de Justiça e Injustiça; Metas de Ação Coletiva e, por fim, Vontade de Agir Coletivamente. Como já apontamos, essas categorias são informadas por conteúdos diversos que estão inscritos sócio-históricamente na vida de cada sujeito e grupo. Portanto, estaremos, ao analisarmos cada categoria a partir do discurso de nossos depoentes, buscando identificar tais conteúdos. Vale ainda salientar que as dimensões da consciência adotadas aqui como categorias analíticas não são estanques e articulam-se entre si, muitas vezes se interpenetrando. Dessa forma, explica-se o motivo pelo qual, em certos momentos, as análises feitas em certas categorias indicarem dados que a priori estariam em outra categoria. Assim, pensamos que as dimensões da consciência propostas por Sandoval devam ser interpretadas à luz de um procedimento dialético. Ao desenvolvermos este capítulo, seguimos o caminho traçado por Andrade (1998) para o estudo da formação da consciência política. Inspirados nele, buscamos averiguar como era o cotidiano dos acampados e as possíveis alterações e/ou contradições presentes

em seu cotidiano relativas as suas experiências grupais. Por isso, fazemos das palavras de Márcia Andrade as nossas palavras: "Estudos como este, que buscam captar o fenômeno em movimento (processo), exigem uma apreensão da consciência enquanto um momento de síntese, na interface das determinações macro-estruturais e dos significados pessoais. Buscamos não apenas descrever, mas também analisar esses momentos, através dos arranjos de conteúdo que configuram diferentes combinações" (Andrade, 1998:218), que produzem distintas complexidades da consciência política.

1. CRENÇAS E VALORES SOCIETAIS

As crenças e valores societais encontram-se na base da consciência política de nossos sujeitos. Muitas vezes demonstram-se naturalizadas e vinculadas ao senso comum como no caso das famílias de Tereza e Osmar e de Márcia e Barroso. São quase inquestionáveis e estão dispersas na vida desses sujeitos tornando-se quase de impossível percepção para eles. Muitas das crenças são apreendidas socialmente em tão tenra idade que quase equivalem a verdades de fé. Outras vezes elas são superadas diariamente mediante as experiências grupais, mediantes as experiências da luta. Serem superadas significa serem desnaturalizadas. Dessa maneira, a experiência vivida entre os sem terra por esses sujeitos pode quebrar não apenas a rotina diária alienante, mas as impressões cristalizadas de cada um na medida em que eles desenvolvem a atividade crítica própria da consciência política durante o processo contínuo da luta e permanência na terra. Esse último quadro pode ser percebido na afirmação de Paraguai a respeito da sua experiência no MST. Para ele, viver junto do MST ‘muda o jeito da pessoa’. Exemplo dessa mudança é o próprio Paraguai. Ao retomar sua história de vida ele assinala crenças com as quais eles se deparam freqüentemente, cada vez que as pessoas lançam-lhes olhares cheios de preconceitos. Muitos dos acampados já o fizeram também. Antes de ingressar entre os sem terra, Paraguai via essa gente como vagabundos, como preguiçosos etc. Coincidentemente esses adjetivos são os mesmos utilizados pelos fazendeiros como já observamos no capitulo I. No depoimento de Paraguai essa revisão crítica é clara:

“O movimento eu acho que o jeito, ele, ele muda o jeito do cara né porque por exemplo quando eu era assi soltero assi anda assi de aqui pra lá eu chamava até de vagabundo o movimento, sabe. É o turma que tava assi acampada assi qué entra na terra dos outro. Eu chamava até de vagabundo; eu chamava até de vagabundo. Daí eu vi, eu vi, como que era a situação. Daí um dia eu cheguei ali no acampamento, sabe, no acampamento cheguei, e vi criança, não tinha nada prá comê, chego, veio uma chuva. De aí fiquei,

encostei nele, encostei o caminhão, eu trabalhava com caminhão daquele veis, encostei o caminhão ali e oiei e daí o meu coração parece que funcionou de outro tipo, sabe?! Daí eu cheguei, falei pra muié, olha alí chegou um monte de pessoal ali assim assi. Eu tinha uma roça de mandioca, uma roça de batata, siempre tinha, né. E aí eu disse pra muié: vô chamá um doi pessoa prá vim arrancá essa batata ali , prá ajuda. Encostei fui a lá e chameio ali... Daí chamei o pessoal ali, veio ali, veio ali arranco batata, mandiooca pra ajudá. Foi lá no Paraguai esse aí, né. E ajudei muita gente. E de aí entrei no movimento e foi memo, e até agora eu to.”

Parece-nos que no caso deste entrevistado houve um processo de desnaturalização de certos conteúdos, de certas crenças e valores societais. A desnaturalização a respeito do que significava ser um sem terra se dá mediante a aproximação daquela gente sofrida. A emergir um sentimento de solidariedade, de identificação, Paraguai revê suas posturas a respeito do que representa ser sem terra. No momento que nota a situação limite pela qual aquelas pessoas passavam e da qual ele próprio não estava distante. É a partir dessa reflexão compartilhada com a esposa que a decisão de aderir ao movimento campesino paraguaio é tomada. Desde que ingressou na luta Paraguai tem, junto com a família enfrentado situações extremas para sobreviver e permanecer na luta. Ao falar das dificuldades passadas no acampamento, identifica a doença como sendo um dos fatores de maior dificuldades. A doença é identificada assim não somente por causa das condições propícias existentes no acampamento, visto que não há uma infra-estrutura adequada que garanta as condições mínimas de alimentação e saneamento para esse povo. Ela encabeça o rol das dificuldades porque ele próprio teve de enfrentar a doença que atacara sua filha Verônica e sua mulher. Com essa situação adversa, e até mesmo limite, instalada em sua casa, tivera de assumir o cuidado da casa, das crianças e da mulher adoentada. E para agravar mais ainda, via-se desempregado, sem nenhum trabalho para prover remédios e outras necessidades. Vivia da parca ajuda de parentes. Nesse contexto, Paraguai diz o seguinte: “(...) como eu falei prá você: na luita sim terra a gente tem que ser macho pra aguentar se não não aguenta!”. Ora, quando ouvimos um homem falar de sua macheza logo imaginamos que refere-se ao seu potencial sexual, a sua capacidade de comandar o sexo frágil, ao poder que socialmente ele possa deter enquanto membro do ‘sexo forte’. Porém, no caso de Paraguai ser macho é ser corajoso para manter-se na luta apesar de todas as adversidades que se abatem na vida de um acampado. E essa frase não encontra-se restrita aos homens mas ao conjunto de acampados, aos homens e mulheres que ingressam na luta. Assim, todo acampado e acampada é macho na medida em que se faz capaz de enfrentar as dificuldades dessa vida e de superá-las.

Dessa forma, aquilo que poderia ser - e até mesmo pode ter sido – um ato de fé na masculinidade, uma frase reveladora acerca da crença societal no poder do patriarcado, em verdade revela-se

um testemunho de alguém que foi capaz de desconstruir valores

societais naturalizados. Em outras palavras, de alguém que foi capaz de superar a cadeia da ideologia vigente. Tal rompimento indica que Paraguai possui um entendimento políticoideológico a respeito da importância e equivalência de homens e mulheres nessa luta. Essa postura apresentada por Paraguai não é a mesma que normalmente é encontrada entre os homens do campo. Habitualmente homens demonstram atitudes machistas, as quais são repostas pelas próprias mulheres. Esse não é o caso de Paraguai e Rosane. Já os relatos de Márcia em certos momentos demonstram a busca de uma explicação transcendental que justifique seu estado de sem terra; que garanta a harmonia entre as práticas do movimento a que se filiara e as suas convicções religiosas. Márcia participa da Igreja Congregação Cristã do Brasil, Igreja que tem por princípio não manifestar-se ou envolver-se em questões políticas por serem mundanas. Quando ela refere-se às injustiças que os sem terra sofrem em função da concentração de terras por parte dos grileiros, ela busca a validação dessa luta nas Escrituras Sagradas. Vejamos: “Eu acho que existe mesmo no caso dessas terras devolutas. Na Bíblia tem né, as terras devolutas" . Márcia naturaliza as práticas que ela desenvolve cotidianamente ao lançar mão da Bíblia. Os valores Societais que norteiam a sua vida e que lhe permitem ingressar e perseverar no MST estão vinculados ao contexto místico do MST. Quando pedimos-lhe que esclareça como a questão das terras devolutas é tratada na Bíblia, ela responde que não sabe onde isso está, mas que uma amiga que é crente lhe exortara a saber. Entretanto, a angustia gerada pelos conflitos que rompem a natural harmonia do cotidiano lhe incomoda. Ela busca com todas as suas foças encontrar uma resposta que lhe garanta a manutenção de suas crenças religiosas e dos valores societais que embasam sua vida. Vejamos:

“Eu nunca li né, mas eu tenho uma colega minha ela é muito crente assim sabe, ela lê ali e eu sou mais assim né. E ela falou para mim que tem , até falou onde é que é, e eu nunca li. E tem na Bíblia, fala sobre as terras devolutas. "Ah, Márcia, tem que acontecer, tá na Bíblia". Agora eu não sei se é assim, com brigas né, com essas coisas todas. (...) Agora é que as coisa estão andando mais. Não tá precisando mais de briga e essas coisas. Nós estamos até aqui, mais lá. É eles lá, como direção tão trabalhando muito em cima disso aí.”

Diferentemente de Paraguai, Márcia apresenta dificuldades para perceber as questões político-ideológicas; para trabalhar as tensões decorrentes das oposições que

surgem entre crenças religiosas e a filiação ao MST. Márcia atribui à direção do MST regional as funções de resolver as contendas existentes entre fazendeiros e sem terras e de conseguir as terras sonhadas por ela. Assim, as lideranças assumem, nesse contexto, uma dimensão salvífica à semelhança daquela de Cristo. Naturalizada dessa forma, a imagem das lideranças, torna-se dispensável uma participação política mais efetiva por parte dela e de seu esposo. Um outro trecho em que as crenças e valores societais marcam decisivamente a vida da família de Márcia e Barroso pode ser visto durante o momento do diálogo em que a questionávamos se já havia testemunhado atos de violência, quem seriam os autores, etc. Mas a resposta de Márcia nos surpreendeu, pois ela defendia a garantia da ordem e a obediência; a não resistência dos trabalhadores rurais. Para ela, resistir significava romper a harmonia que ela busca a partir da vivência religiosa. Ao fim do diálogo pergunto-lhe sobre as palavras de ordem do MST que são o oposto daquilo que ela defendia. Ela celebra as palavras de ordem, sem se dar conta de sua própria contradição. A vivência na luta e a vivência religiosa faz com que seu espírito crítico se choque com as crenças e valores societais apreendidos na Igreja. Observemos o diálogo em questão:

“A: Me conta uma coisa, quando há violência quem será que é o autor da violência? M: Quando há violência? A: É, quando acontece em assentamento ou em ocupação, quem que comete essa violência? M: A maioria é os fazendeiros. Eu nunca vi, mas o que a gente ouve falar que é os fazendeiros, aí o pessoal vai aí um pouco também né, pede para sair da área e o pessoal fica ali, resiste. Aí é onde acontece alguma coisa. A: É errado resistir na ocupação? M: Eu acho que sim, né. Porque é a lei e a gente tem que cumprir. Se eles chega e fala que a gente tem que sair, não adianta querer enfrentar que só prejudica a gente mesmo. A: E no lugar de resistir, a gente deveria fazer o que? M: Ah, eu acho que chegou e pediu para desocupar a gente sair tem que sair. Igual acontece aqui no rumo do Paraná que eles fala que resiste. Mas pra cá eu nunca vi acontecer nada. Quando o policiamento chega o pessoal tudo sai. A: Eu lembrei do lema do MST. O MST teve um lema que era "terra na lei ou na marra" e o lema de hoje é "ocupar, resistir e produzir". M: O lema de hoje? A: É. O que você acha desse lema? M: Se não acontece isso... é "Ocupar, resistir e produzir"? A: É. Ocupar terra, resistir nessa terra e fazer com que essa terra que você tá ocupando ser produtiva, dá frutos. O que você acha desse lema? M: Legal. É isso mesmo. Se não for assim, a gente nunca vai conseguir alguma coisa.”

É interessante notar que nesse conjunto de crenças e valores defendidos por Márcia e que se põe antagonicamente aos valores do MST há a busca da paz interior por ela, do equilíbrio. Ela não gosta “de coisa errada (...) Gosto das coisas tudo certinho”. Ela gosta da harmonia e das coisas naturalizadas na sociedade e sofre com a condição de

antagonismo vigente na sociedade. Assim, a percepção de adversário e de interesses antagônicos existentes entre os diversos grupos sociais implicados na questão, é obscurecida pela tensão estabelecida entre suas crenças religiosas e sua vivência na luta, no MST. Posição diferenciada a de Márcia pode ser observada na seguinte fala de Rosane na qual ela narra como eles enfrentaram a lei, na figura dos policiais, no ímpeto de alcançar a justiça social representada na posse da terra. Para Rosane resistir é fundamental. Para ela 'certinho' é a distribuiçao da terra, o fim do latifúndio, a aquisição de uma vida digna para ela e sua família. Podemos notar que a politização de Rosane atua como que um antídoto a posturas naturalizadas no espaço político-ideológico. Vejamos:

"Cheguemo só com a ropa lá do corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele tempo, né. Daí nois cheguemo e fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E as polícia tudo veio pra cima de nois né. E daí nois falemo ‘Não, aqui nois vamo ficá. Voceis pode saí.’ Falemo pras polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele.. fiquemo treze dia sem nada, né, passanndo frio, (Sabino junta e diz “comida”), ichi, passando fome, né, cas criança.”

Apesar de todas as dificuldades encontradas no período de ocupação da fazenda Querência, eles não desistiram. Pelo contrário, ocuparam, resistiram e produziram naquela terra enquanto lhes foi possível. A visão de mundo dessa família é reflexiva, crítica e engajada. Já a visão de mundo da família de Barroso e Márcia está calcada nas crenças e valores societais de origem judaico-cristã. Para o casal o que garante o sucesso da luta é a caridade cristã que é gratuita e 'não olha a quem faz o bem'. Essa condição a priori que aparece nas falas do casal está em oposição à leitura dialética feita pelo movimento, a qual está inscrita entre as tradições cristã e materialista histórica de origem marxista. A fala que segue foi proferida por Barroso e nos mostra o peso da tradição judaico-cristã na constituição das crenças e valores societais do casal:

“Hoje tem pessoas aqui no acampamento que se souber que tá faltando a comida no prato do outro, as vezes não dá para ele. E eu não tô dizendo isso para dizer que eu sou melhor do que todo mundo. Tem uma parte na Bíblia que Deus fala "Dê a esmola com a sua mão direita sem que a sua mão esquerda possa vê". Mas eu já fiz isso muito aqui. Já fiz não. Eu não fiz nada. Deus que me deu e eu comparti com quem precisava. Mas já cheguei aqui, saber de pessoas que estão necessitadas e eu pegar meu carro, às vezes eu não ter dinheiro para fazer as compras para a pessoa mas eu comprar uma parte e sair pedindo para os meus amigos o resto das coisas para poder completar uma cesta para dar para as pessoas aqui em baixo. Tô dizendo pra dizer que eu não sou melhor do que ninguém. Porque hoje ou amanhã pode faltar na minha também e alguém fazer isso por mim também. E se fosse assim era mais legal.”

A solidariedade proposta por ele é oriunda de um processo de conversão (metanóia) e visa lograr a vida eterna e a justiça divina, sendo ela de natureza teleológica. A solidariedade proposta pelo MST é de outra ordem. Ela é resultante do processo de conscientização de cada sujeito que os conduz às praticas e ações coletivas. A família de Osmar e Tereza nutrem acerca da vida no campo, do acampamento, da luta uma visão paradisíaca. De modo mais claro podemos dizer que cada sujeito identificase com sua posição de classe sem deixar de ser solidário com outros grupos com os quais tenham um convívio mais intenso ou com quem comunguem interesses contextuais. Salvador Sandoval nos aponta para o fato de que a configuração da consciência que encontra-se ainda vinculada ao senso comum, como é o caso de Tereza e Osmar, “induz a uma percepção da ação como contingência dos fatores situacionais e geralmente predisposta a evitar conflitos” (Sandoval, 1994:70). Ainda se faz mister enfatizar que a vida cotidiana, a percepção paradisíaca de seu aqui e agora tem sua sustentação nos benefícios que esperam lograr nessa empreitada. Tais benefícios são identificados por nós como sendo da ordem econômica (terra, insumos, assistência técnica) e política (programas públicos que garantam os benefícios econômicos, um grupo capaz de mobilizar-se independentemente de sua participação). Como já pontuamos a pouco, uma importante questão que perpassa o conjunto de crenças e valores societais de grande parte dos acampados é a questão da resolução pacífica e negociada dos conflitos. Atribui-se às lideranças o poder e o dever de resolver harmonicamente as questões de disputas existentes entre eles e os grupos oponentes. Enquanto isso, os demais membros do movimento que compõe as ‘esferas inferiores’ assumem a postura de espera, ficam aguardando a tomada e a comunicação vertical de decisões tomadas por

aqueles que detém o poder para fazê-lo. Essa expectativa se

concretiza no imaginário dos acampados quando eles entendem que a inexistência de conflitos significa a superação das contradições e conflitos que perpassam as lutas travadas no campo brasileiro. A entrevista feita com Barroso contém alguns indícios importantes a esse respeito. O trecho seguinte é um exemplo adequado desse quadro: “Já faz. Cada vez que passa, melhor fica. De um modo geral, a gente acha que o MST melhorou. Por exemplo, antigamente, acampava na beira da estrada pensava que quebrava e tomava. Agora não, já ta melhorando, é mais pacífico, já aguardamos decisões. Creio que assim, vai melhorando, cada vez melhora mais. (...) Para mim, melhorou bastante. Eu tô achando que ta bom. Mudou, para melhor. Pelo menos a gente tem sossego. O que nós todos precisa mais é isso aí.”

Visivelmente a situação vivida hoje nas fileiras do MST parece estar num momento

muito diferente daquele vivido pelas famílias de Andradina, Sumaré, Gleba Macali que deram os primeiros passos para a constituição do movimento. Enquanto aquelas famílias estavam presente em todo o processo decisório como demonstram os trabalhos aqui abordados, as famílias do MST acampadas no Pontal do Paranapanema - SP, pelo que pudemos perceber através de nossas observações feitas nos acampamentos Dorcelina I e II, Fusquinha, Che Guevara e Carlos Mariguela, colocam-se passivamente atribuindo e ou delegando essa atividade às lideranças. Elas, de modo geral, acomodam-se e alienam-se dos processos políticos por terem presente a crença na capacidade de negociação das lideranças a ponto de acomodarem-se e não participarem tão ativamente do processo de luta no campo. Poucas são as famílias, como a de Paraguai, que assumem ou desejariam poder assumir um papel mais efetivo nas decisões tomadas na luta. Enquanto resistir era um dado fundante para os pioneiros do movimento, percebemos que uma parcela considerável dos acampados do Carlos Mariguela comungam da posição de Barroso que entende que apenas “(...) as vezes tem que reagir”; normalmente melhor é aguardar as decisões das lideranças.

2. IDENTIDADE COLETIVA

A construção da identidade coletiva entre as famílias de sem terra costuma estar fundamentada em relações de afinidade – quando não parental - e em um conjunto de crenças societais que são compartilhadas pelas famílias. Além disso, o reconhecimento de que as privações vividas por cada uma dessas famílias são por demais semelhantes, é um dado importante durante a forja dessa identidade coletiva. Dizemos isso porque a formação do grupo e a manutenção deste se dará quando do estabelecimento de uma pauta comum inicialmente baseada nas privações que os igualam e da posterior identificação de adversários e sentimentos antagônicos sustentados pelo grupo dos outros. Portanto, pode-se afirmar que o sentimento de solidariedade oriundo do processo de identificação com a categoria social a que pertencem - sem terras - e com a qual desenvolvem laços interpessoais, é a base da coesão social vivenciado pelo grupo. Rosane, por exemplo, indica que o caminho percorrido por ela e o seu companheiro na constituição dessa identidade coletiva teve início nas relações parentais: “Eu conheci por causa do meu pai, né, que ele tava nessa luita, né. E daí ele falô pra nóis que era bão,. né, e se nois pensasse podia vim, né, junto com ele, daí viemo”.

Nesse caminho pode-se perceber que há um dado que impulsiona a ruptura do cotidiano e a construção dessa identidade coletiva: a condição material vivida por eles, as suas privações relativas. A ausência de condições materiais que lhes possibilitassem uma vida digna leva à ruptura desse cotidiano alienante. É necessário mais do que nunca redefinir as pautas interiores, fazer-se objeto de si mesmo. A constatação da própria precariedade, a apropriação desse fato e a percepção de que muitos outros se encontram da mesma maneira, leva-os a rediscutir as relações familiares e a, posteriormente, associaremse ao MST.

Nesse contexto, emergem sentimentos de solidariedade decorrentes da

identificação com a categoria social dos sem terra, gerando, assim, laços interpessoais que produzem um sentimento de coesão social entre os acampados. Paraguai, conta que decidiram participar do movimento quando já não tinham outra possibilidade de vida, ingressando no MST por ‘precisão’:

“A precison, como falo, a precissão. A precissao da pessoa, né. Por ejemplo, a lá o movimento ali, eu trabaiava mai no tinha terra, né. E eu sô um cara, não é injoado, sabe, e so também porque eu falei pra muié “ meu pai tem um pedaço de terra, né, o pai não trabaia mais, né, daí o pai falô vem aqui filho, você é filho, você tem filho". Eu já quis saí do meu pai quando era novo, né. Eu saí novo do meu pai. Eu no quiero, eu no queria voltar a lá, né. Porque tem tre irmão que ele lutô, e ele ganho de ele, tem cabecinha de gado de ele, tem familia de ele tratado bem, tem a casa de ele.”

O relato de Paraguai revela que além da necessidade material há as decisões de não mais permanecer naquele estado de penúria e de não regressar a casa paterna. Regressar a casa paterna significaria admitir que fracassou, seria perder a autonomia pela qual lutou desde a juventude. A partir dessas decisões e do assumir as suas privações, Paraguai rompe com a sua rotina diária. Ele e a esposa comungam da certeza depositada na decisão de mudar e encontram no movimento social sua saída para deixar para trás essa vida de precariedade. No movimento social eles acabam por encontrar outros que também querem superar essa condição, identificando-se com estes como iguais. Em outras palavras a internalização do outro generalizado ‘família’ que traz consigo noções como as de responsabilidade, autonomia e independência, impedem que Sabino, o Paraguai, se acomode no cotidiano alienante, que regresse a casa paterna. Está desencadeado um diálogo intenso entre eu e mim que remete ao contato, a partilha, com o outro que é Rosane sua esposa. Na seqüência, Rosane nos relata seu processo de apropriação dessa nova vida como uma família militante em um movimento social:

“É, no começo antes de entra achei meio difícil, mas daí despois já fui acostumando, né, com tudo... (...) O Sabino chegou com a idéia, né: “Vamo pra lá!” E daí eu falei

“vamo”, daí topei, né. Falei vamo e daí fomo, né. E daí cheguemo, já armemo os barraco e fiquemo. Lá no Paraná. Daí despoi fumo, fiquemo dois meis. Daí despois fumo pra Querência (fazenda) a ocupemo a fazenda lá, né. Sei que foi muito dificil. Daí nossas coisa fico tudo pra tras, co caminhão. Daí quando o caminhão foi, as polícia prendeu o caminhão, né. Com as nossa coisa, as roupa, as coisinha, o poquinho que a gente tem, né, ficou tudo prá trás. Cheguemo só com a ropa lá do corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele tempo, né. Daí nois cheguemo e fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E as polícia tudo veio pra cima de nois né. E daí nois falemo ‘Não, aqui nois vamo ficá. Voceis pode saí.’ Falemo pras polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele.. fiquemo treze dia sem nada, né, passanndo frio, (Sabino junta e diz “comida”), ichi, passando fome, né, cas criança.”

O processo de resistência e acomodação vivido pela família de Rosane é um momento importante para a conformação da identidade coletiva, pois em meio a ele se estabelecem vínculos entre as famílias que estão em fase de reconhecimento mútuo, de identificação das privações relativas e de estabelecimento das pautas sociais em torno da qual estarão reunidas. Assim o movimento vai tomando corpo na vida da família. Mais do que isso, vai se firmando como sendo a 'família', a 'grande família' em que aqueles que se reconhecem e se identificam encontram resguardo. Em outras palavras, esse momento equivale à consolidação da confiança e da credibilidade que a família atribui ao grupo, ao MST. Paraguai aponta para isso ao dizer que “O movimento acho que ocupa algum lugar muito importante prá gente, né?! Eu, eu acho que ocupa.” A impressão levantada por Paraguai é justificada pelo fato de que individualmente eles não estão aptos a enfrentarem o universo de desafios que despontam em seu horizonte. Essa convicção brota de experiências passadas: um dia eles já enfrentaram sozinhos a esses desafios e não foram vitoriosos. É agindo como uma grande família que eles serão capazes de superar os percalços encontrados durante a luta. Assim, essa grande família é a materialização dessa Identidade Coletiva, é signo de força e de condições reais de enfrentamento do adversário. No dizer de Sabino,

“É, porque sem movimento você também não faz nada, né. Perque eu soizinho ali não faço nada. Enton pra mim acho que significa muita coisa o movimento, né. Ocupa mui.. Um famiia, pra falá, o movimento é uma famiia. Porque eu só, com quatro criança e minha muié, eu não posso fazê nada. Não faço pressão nenhuma. Então o movimento é uma famiia da gente, sabe.”

A identidade coletiva de um grupo também pode se manter pela atuação de sujeitos chave, de lideranças. Essas pessoas ajudam a organizar a pauta social do grupo e a superar os momentos de desmobilização. Membros da base e da militância tendem a atribuir valor às atitudes e reações de membros significativos do grupo no momento de decidirem se

participam ou não das atividades do grupo. Isto significa admitir que as lideranças tem um papel estratégico na manutenção da coesão social do grupo, no fortalecimento da identidade coletiva. Para Márcia essa identidade coletiva é entendida como sendo ‘união’. Segundo Márcia, para que se garanta essa ‘união’ é importante a constante presença do líder. Ela atribui ao trabalho dos coordenadores a manutenção do grupo e a sua coesão:

“Não sei se é porque a gente né, igual, eu sempre tô lá. tô junto com todo mundo, todos os dias tô lá, vou duas três vezes, o Ismael também quando era ele, o Seu Luiz, não sei, acho que né quando eu não vou o pessoal cobra, não sei se é isso. Mas a gente tem que participar, tá ali, conversar com um com outro, não sei.”

Márcia, como Paraguai, enfatiza a importância do MST como um instrumento de luta. O movimento, que para Paraguai e Rosane equivale a uma família, é para ela o motor da conquista da terra, pois ele é o conjunto das famílias que sozinhas são impotentes. Para ela o MST é constituído “(...) por todas as famílias juntas. Porque sozinho não tem como construir o MST. Tem que ser com as famílias, que dependem, ah.. me enrolei toda. Eu acho que o MST sozinho não tem como... né, uma pessoa sozinha não tem como...” Liciel e Edir em suas entrevistas revelam que sua identificação coletiva se estabelece a partir da identificação de suas privações relativas como, por exemplo, a condição de sem terra, e da subseqüente constatação de que elas não podem ser superadas mediante a adoção de estratégias individuais. A constatação de que a ação coletiva é o único modo de se alcançar sucesso nessa empreitada, acaba por, de certa forma, garantir a vinculação da família ao grupo. Podemos verificar essa realidade quando, em alguns instantes da entrevista, Liciel se diz incapaz de sair vitorioso nessa luta, de lograr sucesso de maneira isolada. A ‘capacidade’ da vitória é atribuída ao grupo, pois se ele “tivesse essa capacidade” ele não estaria afiliado ao MST. No trecho que segue Liciel posiciona-se muito claramente a esse respeito. Vejamos:

“Porque se eu quero pra mim, eu quero pra minha família, eu quero pra você e quero pros meu vizinhos. Eu acho que eu tenho que querer pra todos. Porque se eu vou querer uma área só pra mim, eu tenho capacidade pra isso? Se eu tivesse capacidade pra uma área sozinha eu não ia tá aqui. (...) Mas não acho que a capacidade da gente não alcança isso.“

Liciel avalia críticamente sua capacidade de transformar sua realidade social de modo individual e aliado a outros que estejam buscando superar essa realidade social marcada pela exclusão social. Sua opção pela mudança social é fruto dessa reflexão e não de laços parentais ou de amizade. Nesse sentido, Liciel e família aproximam-se bastante da complexidade da configuração da consciência política de Paraguai e Rosane e distancia-se

daquela exibida pelas famílias de Márcia e Barroso e de Osmar e Tereza. Osmar, Tereza e os filhos demonstram laços coletivos frágeis. A filiação ao movimento ainda está atuando na reorganização da vida familiar desgastada na cidade. O reencontro da paz no interior da família faz com que eles voltem-se para as questões que lhes dizem respeito no dia a dia. As questões ligadas ao coletivo ocupam o lugar de requisitos que, se cumprido, lhes aproxima mais da terra onde a família irá trabalhar. A identificação com o coletivo se dá mediante a constatação de certos interesses comuns que os aglutinam temporariamente. Nossas análises dessa dimensão da consciência política aponta para o fato de que o valor atribuído aos laços interpessoais criados pelos indivíduos com o grupo propiciou-lhes uma maior capacidade de compartir seus interesses comuns facilitando o surgimento de pautas grupais que são identificadas nas metas de ação coletiva, nas reivindicações coletivas. No MST essas proposições podem ser percebidas nos comportamentos dos acampados durante as ações coletivas desenvolvidas pelo movimento, nas quais a identidade coletiva dos acampados fica patentemente visível através dos atos de solidariedade de cada sujeito para com o grupo. Por fim, ressaltamos dois aspectos que consideramos relevantes nessa dimensão: 1) o sentimento de solidariedade proveniente da identificação com alguma categoria social, o que produz laços interpessoais e sentimentos de coesão social e 2) a identificação de interesses comuns que leva os sujeitos a compartilhá-los entre si, com os demais membros da categoria social com a qual estão identificados, o que origina pautas comuns, agregadoras, e, conseqüentemente, sentimentos de reivindicações coletivas .

3. IDENTIFICAÇÃO DE ADVERSÁRIOS E SENTIMENTOS ANTAGÔNICOS

Identificar adversários nem sempre é algo fácil ou até mesmo possível. Alguns sujeitos se mostravam capazes de perceber os seus reais adversários e outros o faziam apenas ao reproduzir um discurso, mas em verdade não os tinham tão distintos assim. Os grandes inimigos identificados pelo sem terra acampados no Carlos Mariguela foram os latifundiários e a polícia. A posição deles acerca do governo, do Estado, é ambígua. Ora o governo é aquele ente poderoso capaz de livrá-los da situação de marginalidade a que estão submetidos socialmente e da qual querem ver-se livres, ora é um dos reais responsáveis por estarem nesse lugar de marginalidade e, portanto, adversário. Márcia é uma das que vê no governo aquele que pode agir como um salvador, como

aquele que pode fazer justiça, basta ele querer voltar seu olhar misericordioso para libertála. Essa situação pode ser observada quando ela diz que “(...) isso também vai muito do governo. Ele tinha que ver essas terras, os que não são donos, esses documentos. Eu acho que existe mesmo no caso dessas terras devolutas. Na Bíblia tem né, as terras devolutas.” Contudo o governo parece não querer ser um sinal de justiça porque a “política do governo” não promove a justiça, porque o governo “não cumpre com o que eles promete”. Para ela a resolução das desigualdades sociais é dever do Estado, “Isso aí já é a parte deles”. Parece-nos que a contradição presente na fala de Márcia fica clara. O governo que pode ser redentor de sua miséria, não volve seu olhar misericordioso para “a classe mais pobre”. Assim, “a maior parte da culpa” das injustiças e conflitos agrário é do mesmo governo que pode salvá-los e não o faz. Segundo Márcia “(...) a maioria (da culpa) é o governo porque as coisas que andam acontecendo tudo é por causa deles, que não liga para assentar a classe mais pobre”. Importante notar que Márcia não dá conta de notar claramente os conflitos de classes, os interesses antagônicos existentes entre as demandas dos sem terra e as ações do governo. No trecho anterior da fala de Márcia os latifundiários são reconhecidos como usurpadores, falsários que forjam injustamente seus títulos de propriedade. São donos de algo que não lhes pertence. E ela completa e corrobora a sua crítica e a identificação dos latigrileiros como adversários que tem interesses antagônicos aos seus, ainda que de modo obscurecido por suas crenças e valores societais, quando ela diz que

“Essas terras que não são dos fazendeiros. Elas foram griladas bem antes. Aí eles ficam com um monte de terras para trabalhar sozinhos. Que nem fazendeiro com cinco mil, e fica tudo sozinho trabalhando ali, é tudo dele. A pessoa sozinha não faz nada, não tem serviço para ninguém enquanto tem um monte de pessoas que precisam de trabalho, precisam de... tá tudo sem serviço. Precisa de alguma coisa, de um roça , de um motorzinho, né.”

Márcia expressa o antagonismo existente entre os interesses dos acampados e os dos grileiros ao reivindicar o direito ao trabalho, ao denunciar a injustiça e a imoralidade dessa situação. Ela se posiciona em relação ao grupo do outro e aos interesses desse grupo e deslinda as fronteiras entre ambos ao afirmar que: “A pessoa sozinha não faz nada, não tem serviço para ninguém enquanto tem um monte de pessoas que precisam de trabalho, precisam de... tá tudo sem serviço. Precisa de alguma coisa, de uma roça , de um motorzinho, né”. Todavia, isso não a torna capaz de incorporar o valor da resistência. Ela ainda gosta e quer ver as coisas 'certinhas'. Assim, a identificação de adversários e de interesse antagônico parecem estar presos ao universo do discurso, estando, então, distante

de seu universo atitudes de resistência como aquela narrada por Rosane durante um dos vários confrontos com a polícia vividos por ela e sua família. A violência policial é um dado importante na conformação do imaginário das pessoas acerca da polícia e a experiência de ser vitimado pela ação policial1 é um fator decisivo na hora de reconhecê-los como adversários ou inimigos. No contexto agrário, na maioria das vezes, a polícia se traveste de defensora da lei e da ordem e acaba defendendo os interesses dos ‘donos da lei’, dos latigrileiros. A polícia, braço do Estado, é a imagem da ambigüidade de um Estado que, apesar de dizer-se empenhado na transformação social2, oprime àqueles de quem se diz protetor, revelando-se protetor de interesses não sociais mas eminentemente econômicos. O uso da força policial é o retrato da defesa que o Estado faz das oligarquias agrárias ‘donas da lei e da ordem'. Assim, o governo civil se esconde por detrás do manto democrático para estabelecer uma política autocrática, uma ditadura branca, mediante a qual ele se torna o novo algoz das torturas. Paraguai testemunha que fora “muito torturado” durante a ações da polícia nas ocupações. E quando não era a polícia a autora eram os seguranças privados – a milícia armada dos grileiros, seus pistoleiros pessoais – que o faziam já que eram detentores de um poder quase policial. Rosane relata a ação da polícia durante uma ocupação no Paraná. Ela beira ao terrorismo. A pressão emocional a que a polícia submete os acampados é incrivelmente cruel. Ninguém é poupado, nem mesmo as crianças. A expectativa de que a morte pode chegar a qualquer hora ronda a todos. Mas a necessidade de sobreviver, a ausência de outra alternativa faz com que eles perseverem e lutem, que eles enfrentem de peito aberto a seus algozes. No trecho que segue Rosane nos relata um pouco das angústias por ela vivida ao ver a si e a sua família em perigo: 1

Andrade quando discute a construção do caderno de fotografias, registra o seguinte a esse respeito: "Assim, uma das imagens de maior impacto, selecionadas também do acervo, foi a da representação do desejo: pertences dos trabalhadores jogados ao chão de terra, dando idéia de violência e destruição provocadas pela polícia militar. A violência também expressa nas palavras "sede de justiça", assume aqui o sentido da dominação através do poder das armas à serviço da lei. Os trabalhadores respondem, com orações e uma postura pacífica, à ação violenta da polícia militar. A destruição dos bens materiais, como os barracos do acampamento, não é suficiente para destruir a identidade coletiva, nem a união ou o sentimento de pertencimento ao grupo. (...) A "união para a luta" significa, para o grupo, a ideologia que permeia a consciência dos trabalhadores e os impele a dar outros passos, resistindo às pressões e ações intimistas por parte da ação policial" (Andrade, 1998:75-6). 2 A expressão transformação social encontra-se em itálico neste trecho porque entendemos que o Estado brasileiro, hoje comandado por FHC, propõe realizar uma reforma social - nos moldes do neoliberalismo - e não uma transformação social, uma transformação nas injustas relações sociais vigentes. Assim, as vezes que o presidente Cardoso fala em transformação, entendemos que esteja falando em reforma e utilizando incorretamente o termo, visto que ele tem significado diferente daquele com o qual é aplicado. Também entendemos que essa observação seja importante para que o projeto de transformação social do MST seja

“Daí despoi fumo, fiquemo dois meis. Daí despois fumo pra Querência (fazenda) a ocupemo a fazenda lá, né. Sei que foi muito dificil. Daí nossas coisa fico tudo pra tras, co caminhão. Daí quando o caminhão foi, as políciia prendeu o caminhão, né. Com as nossa coisa, as roupa, as coisinh, o poquinho que a gente tem, né, ficou tudo pra tras. Cheguemo só com a ropa lá do corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele tempo, né. Daí nois cheguemo e fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E as polícia tudo veio pra cima de nois né. E daí nois falemo “ Não, aqui nois vamo ficá. Voceis pode saí.” Falemo pras polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele.. fiquemo treze dia sem nada, né, passando frio, (Sabino junta e diz “comida”), ichi, passando fome, né, cas criança. Essa aqui nem dormia de noite de frio que passo, porque não tinha nada e daí eu tirei um brusa que eu tinha e ponhei pra ela dormi, né. Dormiu no meu braço. Porque não tinha como né, no piso assim...( Se refere a Verônica, a mesma doentinha de antes e a quarta filha do casal). (...) É. E sei que a Mônica falava assim: “ Mãe, vamo embora mãe, chama o pai e vamo embora que a polícia vai matá nois mãe! Vamo.” (Sabino: Hum!) A policia vinha pra cima co o carro, com o camburão pra cima de nois na chegada da fazenda; gritava “ mãe vamo pra casa. Vamo embora que a polícia vai matá noi” Daí desespero naquela hora que ela viu que...”

Nem mesmo ao ouvir a filha implorar para que fossem embora eles pensaram em desistir, conta Rosane. Para ela a ação policial não poderia ser séria, “era uma brincadeira”: “Pra mim naquela hora aquilo era uma brincadera, né. Sei lá. Naquela hora aquilo era uma brincadera! (...) Pra que era uma brincadeira da polícia. (...) Nem assim não desisti. Ainda fiquemo lá quatro meses acampado. Depois que fumo retirado”. Parece-nos que as intervenções da polícia são constantemente eivadas de 'brincadeiras', de extremo mau gosto', das quais nem crianças indefesas encontram-se a salvo. Os traumas psicológicos resultantes das 'brincadeiras' da polícia que marcaram as crianças de Rosane e Paraguai também são compartilhados pelas crianças de Liciel e Edir que estiveram juntas em algumas ocupações onde a polícia 'atuou como comediante' e lacraia das oligarquias rurais. Ao observarmos as entrevistas feitas com os membros da família de Tereza e Osmar constatamos que a consciência política desenvolvida por eles já avançou para além do senso comum. Contudo está muito aquém do que podemos chamar de consciência revolucionária (Sandoval, 1994). Eles ainda estão vinculados de modo significativo ao cotidiano e por isso têm dificuldade em reconhecer os seus reais adversários. Os adversários que reconhecem são aqueles que emergem da rotina do dia a dia. Exemplo disso é a fala de Osmar que, como já registramos, demonstra a dificuldade para identificar seus adversários. Para ele o ‘adversário’ está distante da vida da família, pois “(...) o único risco que corre é algum carro cai lá de cima em cima da gente” (referindo-se à estrada pois seu barraco ficava abaixo do nível da estrada). resguardado e não confundido com as propostas do Estado neoliberal brasileiro. Ainda que possa ser óbvio, ressaltamos o antagonismo que marca e separa as duas propostas.

Não encontramos nas falas dessa família quaisquer indícios de que compreendam o que seja a luta de classe ou mesmo indício de que se compreendam enquanto membro de uma classe que possui adversários que distanciam-se deles, tanto pelo poder quanto pelos ideais político-ideológicos que subsidiam suas práticas. O que encontramos são sinais de reconhecimento de suas privações e de outros que passam por situações semelhantes. Tanto suas privações quanto a dos outros membros do grupo acabam sendo compreendidas a luz da lógica de causas e efeitos de cunho transcendental. O que parece-nos evidente é a existência de um fechamento dessa família em torno de si mesma na tentativa de reconstruir-se, de deixar para trás as dificuldades da cidade construir um novo mundo para eles. Para Osmar tudo o que ele precisa está dentro de casa. Adversários, interesses antagônicos, coletivo, parecem permanecer a margem de seu universo, pois para ele a força familiar é suficiente para reerguer-se, vencer adversários. Coletivo, em primeiro plano, é o sinônimo de família. Segundo ele, "Na minha família, nós somos em seis. Eu acho que tenho a força para... porque sozinho eu não ia conseguir nada. Agora eu não preciso mais da força de ninguém. Só de Deus e deles". Apesar da força das crenças religiosas na vida de Barroso, bem como de sua esposa, e que muitas vezes obscurece sua visão crítica, ele assinala que muitos dos interesses que estão em jogo e em lados opostos do campo de luta, são de caráter econômico. Os latifundiários buscam de todas as formas garantir vantagens durante o processo de negociação das terras a serem arrecadas e desapropriadas pelos diversos níveis do Estado. Em seu depoimento Barroso diz que “existe muita coisa errada” no processo de negociação. Para ele o governo não cumpre adequadamente seu papel e tende a atuar em benefício dos latigrileiros:

“Por exemplo, penso eu assim, às vezes tem fazendeiro que tem uma terra negociada, as vezes ele não quer colocar, não tem lugar para o gado que ele tem, aí eu penso comigo que dentro das autoridades ali ele deve as vezes chega na pessoa, fala por exemplo, eu te dou tanto se você deixar minha fazenda pelo menos mais uns dois anos. Eu acho que as coisas giram em torno disso aí. (...) Precisava de ter mais autoridade, que é o que eu já falei para você. Para diminuir esses conflitos, uma parte das autoridades e outra parte do pessoal mais maior. (...) As autoridades, governo, jurídico, essas coisas.”

Nesse sentido, Barroso aponta-nos como sendo adversários, como autores de violência, a classe política. O fato de estarem muitas vezes aliados àqueles que são os opressores, os que os mantém a margem da dignidade e à margem da própria vida, faz com que os políticos e a política sejam vistos como adversários, algozes. Quando lhe perguntamos quem seria responsável pelas violências no campo, Barroso foi enfático

respondendo que era “A própria Política”. No mesmo caminho encontra-se Liciel que vê na atuação um descaso para com os interesses dos sem terra e um comprometimento deste com o fazendeiros. E ele indica a necessidade de se lutar sem esperar que o governo venha auxiliá-lo. O trabalho é o caminho para a superação das dificuldades. Os interesses do governo são antagônicos àqueles dos trabalhadores rurais sem terra. Nesse contexto Liciel faz a seguinte colocação: "Aí eu falei pra mulher que o governo não trata. Pelo que eu tenho de vista, o governo não trata. A gente tem que lutar, aguardar, e trabalhar. Porque se não trabalhar, não vive.” Um outro aspecto que ainda se faz digno de registro é a relação entre ênfase na coletividade e enfrentamento dos adversários. As estratégias que são reconhecidamente admitidas pelos acampados como sendo politicamente eficazes são de caráter coletivo e não individual. Desse modo, o enfrentamento dos adversários se dá desde a ocupação coletivas das terras até as estratégias de trabalho coletivo que facilita a obtenção de recursos para o cultivo. Andrade também aponta para esse tipo de entendimento. Segundo a autora "A valorização do coletivo pode ser interpretada como possibilidade de enfrentamento do adversário, institucionalizado na esfera do Estado e do Mercado. As demandas mais imediatas como crédito, políticas agrícolas para o pequeno produtor, comercialização, constituem-se no foco das relações entre os oponentes" (Andrade, 1998: 78) Toninho, por sua vez, unifica, como se fossem uma única e mesma personagem, latifundiários e governo. Essa amálgama derivada da fusão de latifundiários e governo é identificada por ele como sendo a grande adversária e responsável por não haver reforma agrária no Brasil: "É que a maioria dos governo hoje são latifundiários, são fazenderos. Então eles acham impossível fazer, é... dá um prosseguimento para a reforma agrária por causa deles mesmos que são latifundiários”. Para ele, o fato de serem governo e latifundiários gera conflito entre seus interesses pessoais e os interesses da coletividade que eles governam. Como o poder está na mão dos governantes-latifundiários, a única possibilidade de se conseguir que a reforma agrária continue avançando é"(...) a união do povo. Sem luta nos não vamos consegui terra nenhuma". Como Toninho já participou de alguns cursos e congressos do MST, vemos que algumas das posições político-ideológicas do movimento são apropriadas por ele na hora de construir seu discurso. Assim, ainda que não tenha tão clara a complexidade das relações políticas que envolvem as disputas entre os adversários e seu grupo de pertença, Toninho bem sabe que um dos principais motivos das injustiças e da pobreza "(...) está na

luta de classe. Sos precisamo se organizá para poder enfrentar os poderosos do governo que são donos dessas terras todas".

4. SENTIMENTOS DE EFICÁCIA POLÍTICA

Quando paramos para observar o discurso de nossos sujeitos a respeito da eficácia política, das estratégias e ações do movimento dos trabalhadores rurais sem terra, percebemos, em alguns desses sujeitos, a consciência de que muitas vezes há situações, ações e estratégias absolutamente ineficazes e consideravelmente desmobilizadoras. Contudo, estes, como Paraguai e Rosane, tem a clareza de que eles não podem voltar atrás, que sua vida, seu investimento está completamente comprometido com a conquista da terra e desistir significa retroceder demais. E isso parece-lhes inconcebível. Mesmo depois de ter posto as suas vidas em risco, de ter sido despejado de forma violenta das ocupações pela polícia, de ter passado fome e frio incontáveis vezes, desistir é um pensamento que é rechaçado tão logo ele chega. Ao invés de desistir, melhor é buscar novos espaços para continuar na luta. O trecho que segue, extraído do depoimento de Paraguai, é significativo para ilustrar esse contexto:

"E de aí eu decidi, um dia aqui eu falei pra mulié “ você topa desiti do negócio e vorta nargum canto algum achá servicio, arguna coisa”, né. Daí ela falô pra mim “depoi dsse tanto año ali...”, até minha mulié me ajudo, né, "depois de tanta luita a gente vai dexá atrai, não dá não". Daí eu falei “Então você fica aqui na casa do teu pai e eu vou a lá, vê a lá no Estado de São Paulo. Se a lá é melhor a gente vai pra lá. Você topa?” “Eu topo.” (resposta de Rosane narrada por ele) Tá. Aí eu veio, né. Tinha deiz real no meu bolso, veio aqui, paguei, gastei cinco real e comprei um cigarro alí e sobro quatro real pra mim (eu e Rosane rimos) E de aí cheguei aqui e Qua.. achei muito conhocido aqui, muito acampado... muito conhocido, né, muita amizade, né. E daí eu falei “ vamo pra lá muié? É bom lá. Vamo mora na beira da estada, é dificultoso, não tem água; o negocio é assim, alguna veiz tem servicio, alguna veiz não tem, mai noi ta com esse aí mismo, noi aguenta. Vamo? Daí ela topo “Vamo”.

Um fator que parece-nos interferir consideravelmente na forma com que os sentimentos de eficácia política são construídos pelo sujeito são os laços afetivos. Essa questão aparece claramente na fala de Paraguai. O fato de que no Pontal encontrem-se muitos de seus amigos, os quais testemunham sobre a tranqüilidade política da região, faz com que a decisão de trocar de Estado pareça estrategicamente apropriada. Além disso, avaliação acerca da eficácia desta tranqüilidade política da região e do sucesso do movimento é, em parte, resultado de tais testemunhos. No caso de Paraguai e Rosane percebe-se uma postura crítica frente a luta, uma

postura afirmativa. Ainda que ao observarem o MST paranaense vejam que as estratégias do movimento, em função da política interna deste e da conjuntura política desfavorável que este vive em relação ao governo Lerner, não sejam favoráveis para futuro das famílias, eles mostram-se capazes de distinguir o contexto regional – Paraná – dos demais contextos que configuram o movimento nacionalmente. Esse discernimento é válido para o modo com que eles olham para o movimento regional do Pontal. Assim podemos explicar porque, apesar de considerarem que o movimento no Paraná estava “ruim demais” e de verem seus filhos clamarem para deixarem àquela vida de perigo e até sofrerem a humilhação e a tortura, eles não sofreram o efeito desmobilizante da situação e buscaram uma solução. A solução encontrada por eles foi transferirem-se para o Pontal depois de averiguarem o contexto vivido pelo movimento nessa região. Paraguai conta a esse respeito o seguinte:

“Nois vimo la de Paraná aqui, né, no Paraná tava muito ruim demais, né, despejo... Passiemo siete despejo. Torturado fui na cadeia, tudo, tudo, tudo, esse aí, né, até minha famiia falá pra mim “vamo embora pai porque a polícia vai matá nois” desse jeito, né. E então a gente fico preocupado, né. Só que... só que a gente também não têm mai nada, não tem mai saída, né. Da onde vai í? Não têm mai nada! Né?! Só tem minha criança e minha muié. Sorte que ainda não perdi ao meno minha famiia. Mai pasei risco de perdê, viu?! Passemo risco de perde até criança.”

Parece-nos que as experiências vivida pelo casal no Paraguai e no Paraná contribuiu para forjarem como que um ‘espírito de luta’. Nesse sentido Rosane, ao responder-nos como se sentiu quando viu o companheiro ser preso, mostra esse ‘espírito de luta’ que, para alguns, pode parecer resignação mas que pensamos ser, na verdade, um modo sofrido de garantir a manutenção de uma luta que parece não ter fim. Rosane deu-nos a seguinte resposta: “Me deu assim um desanímo mas eu pensei ‘não adianta desanima, né, a luita é essa!’ (Risinho e pausa) E segui pra frente.” Temos a impressão de que o casal tomou consciência acerca da coletividade como arma de transformação social a partir de sua história. Paraguai vê-se como que responsável não apenas por sua família mas por todo um grupamento de famílias, vê-se como um ator e diretor da cena da luta. Em dois trechos ele ressalta esse aspecto de seu caráter. No primeiro, de modo geral, referindo-se a sua participação do movimento paraguaio e no segundo referindo-se a sua transferência ao MST do Pontal. Vejamos:

“E como falô, né, eu memo, eu memo conhoci essa luita, conhoci já lá no Paraguai. La no Paraguai nois tinha também um movimento, né, o movimento MS... MCP, Movimiento Campesino Paraguay; eu ajudava lá muito tempo. E de aí trabalhava assim na roça, ajudava o movimento e indo assim preparando pessoa, né. (...) Tán envolvido

ali; até, até o pedaço que eu ganhei ali, contrui uma casinha em cima, até fico pra outro ainda. Eu deixei pra outro, di pa outro e dexei. Por isso que eu te falei: Eu tenho consciência muito limpa ali. Que podê ajuda pessoas, eu não estrago ninguém; que pode ajuda, ajudo e se não pode ajuda, dexa do lado não estrovo ninguém também.” “Daí outro dia eu já preparei o siete famiia que ia vir junto. Até queria vir mais, mai só que eu não queria estragá o movimieto de a lá também né. De ai eu peguei aqueles siete familia.; cheguei aqui, né, os grupos já tá todo cheio, não sei o que, não sei o que. Fiquei sem grupo um mês. Aí depois de um meis eu falei com Ismael, Musgão, né, eu to sem grupo. Eu to meio, meio até vergonhoso ali. O cara, né, isolado é ruim. Eu nunca fiquei isolado no acampamento. Fica até ruim pra mim, né. Até vergonha eu to passando. Daí ele falô ” no, no esquenta a cabeça. Não fica assim. Aí eu fiquei, né. Fiquei assim e depois de um mês eu preparei um grupo, o grupo oito. Daí preparei o grupo oito, né, entremo siete familia e daí aumento, ai indo vai indo agora tá com ternta e seis famiia. Enton, é, é assim a luita. A luita é muito bonita se o cara participá, sabê da luita ali é muito, muito bonito.”

Nesse último trecho, fica claro o comprometimento de Paraguai com o movimento dos sem terra. Mesmo ao passar por um instante de dificuldade, de desmobilização e reorganização da vida, ele busca não desagregar o MST paranaense. É como que se as estratégias adotadas pelo MST no Paraná não fossem viáveis para ele e não para todo o conjunto das famílias. Fica claro também que a eficácia política de suas ações e das ações do movimento depende da integração do sujeito no movimento e do nível de integração vivido pelo movimento. Quanto mais integrado estiver o movimento maior será a eficácia das ações por ele desenvolvidas e maior será a identidade coletiva de seus membros. A ausência de perspectiva de vida também é um dos elementos que garantem, de alguma forma, a manutenção do sentimento de eficácia política e a continuidade da família na luta. Ainda que, depois de tanto tempo, não tenham conseguido garantir um futuro melhor, seja porque, em um dado momento estavam por demais enfronhados na luta, seja porque a conjuntura nacional não está propícia à realização da reforma agrária, a família de Paraguai e Rosane não vê outro caminho senão ‘Seguir em frente’, como disse Rosane. Continua-se na luta porque ela é ‘muito, muito bonita’, como falou Paraguai. A ausência de um futuro claro para eles reforça o sentimento de eficácia política que garante a perseverança deles no movimento, na luta pela terra. Em outro momento, Paraguai nos oferece respaldo a essa análise:

“E a gente depois de fica assim, doze, doze año no Paraguai lá na luita, sin, sin, sin futuro nenhum; aqui no Brasil já to com tre año e poco no movimento, sim futuro ninhum, agora vo í despeja sin ninhum cobertor en cima de meu parente eu, pra mim vergonha né?! Então eu vou aguentar até o fim. Esse aí que eu falo sempre pra companhera, né.”

“Agüentar até o fim” é dizer de seu orgulho pessoal, de sua luta para não fracassar, mas também é dizer do seu reconhecimento e identificação com as estratégias de ação

coletiva adotadas pelo MST. Só é possível agüentar até o fim no movimento exatamente porque há uma identificação com esse coletivo e suas estratégias para superar as privações vividas por seus membros. No entanto, fica claro que cotidianamente é preciso superar um universo de dificuldades que naturalmente podem desmobilizar, provocar um sentimento de ineficácia política. Em um dado momento da entrevista Paraguai e Rosane enumeram algumas delas, aquelas que, para eles, consistem nas maiores dificuldades enfrentadas por eles no dia a dia:

“Dificio lã, o negócio, negócio do acampamento é difici. Difici de ficá no acampamento, assim, de, de firme; fir firme tem que, tem que ter muito corage. Porque o acampamento no é fácil. Porque primero, primero é a doença,né, que tem, que noi, que noi aqui no acampamento tem, que tá com famiia, né, primero é a doença. Segundo é o alimentação, né, no é fácil também porque não tem servicio, é difici. Noi tá com quatro criança e todo quasi doente. A muié também fico muito tempo internada, ficô má de quatro meses internada, operô. Daí sufrió outro probrema de doença, foi a la se opero de novo e a gente, a gente, como eu falei prá você: na luita sim terra a gente tem que ser macho pra aguentar se não não aguenta. Porque essa doença que passô toda em cima de mi, eu siem servicio, só parente me ajudando um pinguinho, pinguinho assim, mandando um troquinho pra gente e o trabaio, né, fica cuida de criança, a muié doente fica no hospital, fico tre meis internado, só internado, só internado, tre meis. Eu sozinho com criança. E ela no hospital. Tinha veis que a gente ni come no comia., né. Enton fica, fica ruim. É difícil, é dificultoso.” (Paraguai) “Antes era melhor assim. Porque não é facil, né a gente fica debaxo das lona. Só que a gente tá percurando prá consegui um pedaço de chão né. Pra acabá de criar os filho da gente, né porque na cidade tá difícil pra vive, né também... Com quatro filho não dá prá vivê na cidade. Então é por isso que a gente tá nessa luita no movimento.” (Rosane)

Importa observarmos aqui que a ausência de resolução das privações relativas vividas por cada família pode deixar de ser um dado fortalecedor do sentimento de eficácia política e tornar-se um dado que fortalece seu antônimo: a ineficácia política e a conseqüente desmobilização da família no movimento. Nesse sentido, queremos recordar a seguinte nota de nosso diário de campo em que alguns homens acampados conversando comigo foram unânimes ao dizer que o tempo de espera e a ausência de trabalho é um dos maiores desafios dos acampados. Entre esses homens também estava Paraguai. Assim, nós pontuamos na ocasião: “Na noite anterior à nossa primeira entrevista, encontrávamos na casa de Valdir. Enquanto tomávamos chimarrão, Sabino (Paraguai), Valdir e outros apontavam como a coisa mais difícil do acampamento: o TEMPO de espera e a falta de trabalho. Com relação ao tempo de espera, ele causa desânimo nos acampados e desacredita muitas vezes a palavra dos lideres (...).” (Nota do diário de campo, fita 1, dia 21 de fevereiro de 2000). Os acampados esperam que o movimento estabeleça estratégias para alcançarem uma condição mínima de sobrevivência nesse período – trabalho - e que

lhes possibilite o início de sua nova vida na terra de seus sonhos. Esse é o caso de Márcia e Barroso. O grande motivo que, por vezes, lhes causa desânimo, lhes coloca num contexto desmobilizante, é o tempo demandado para a aquisição da terra. A espera por decisões da liderança que os conduzam à 'terra prometida' mostra a fragmentação de suas consciências e quão incipiente é a compreensão política-ideológica da realidade apresentada pelo casal. Ainda que eles percebam o tempo como um dos aspectos da luta que são para eles desmobilizantes, não conseguem captar o significado desses aspectos no processo da luta. Isso equivale a uma configuração fragmentária da consciência política. Apesar disso, eles perseveram porque estão convictos de que as estratégias adotadas pela liderança têm sido eficazes do ponto de vista prático, ou seja, muitas das famílias acampadas na região têm sido assentadas como resultado das estratégias adotadas pelo MST. Outro ponto importante que podemos observar no depoimento de Barroso refere-se ao desconhecimento do projeto do movimento. Tal situação de ignorância pode produzir sentimentos de ineficácia política e provocar a desmobilização dos acampados, visto que muitas vezes pode-se atribuir ao movimento projetos que são de caráter pessoal e muitas vezes antagônicos àqueles defendidos pelo MST. Em seu depoimento Barroso diz o seguinte: "(...) os projeto do MST eu acho que eu não sei quais são não. Nunca vi ninguém conversá sobre isso por aqui. Nem coordenador, nem militante, nem o Rainha... Por isso é que eu acho que eu não sei. Mas eu acho que o projeto é dá terra pra todos nós.". A situação pode se agravar caso associemos o desconhecimento das propostas do movimento com atitudes impositivas e até mesmo autoritárias tomadas pelo movimento. Entendemos que o sentimento de eficácia política atribuído às ações e propostas do movimento são decorrentes da identificação social, cultural e política estabelecidas entre as demandas e projetos pessoais do indivíduo e estas propostas e ações do movimento apresentadas a este indivíduo. Assim , atitudes que não façam sentido frente à herança histórica e cultural desse indivíduo podem produzir efeitos desmobilizantes, o aparecimento de sentimentos de ineficácia política e até mesmo de injustiça. Barroso deseja exprimir seu descontentamento na medida em que observa coisas erradas, que estão em desacordo com sua história, mas acaba por calar temendo ser punido por falta de respaldo do grupo, sendo privado de seu sonho: a terra.

"Porque tem muitas coisas erradas aqui. E a gente é obrigado a concluir com aquilo. A gente vê que tá errado e é obrigado a ficar quieto. (...) Não é questão de medo. É questão

que pra mexer você sabe que é uma andorinha no meio de... uma andorinha só não faz verão. As pessoas precisava se reunir, mas as pessoas são quase toda maioria desunido né. Pra um só pegar e... as vezes você vai correr atrás de um negócio sozinho, você tá no certo mas acaba vazando pro errado. É como se um acampamento. Se vim só e coloca um barraquinho só nessa beira de estrada aqui não vai resolver problema nenhum. Tem que ser maioria. (...) De forma geral, o coordenador do grupo fica puxando mais pessoas. É aí que se divide. Não é assim como você diz. Porque a gente tá aqui, todos estão por uma finalidade só. Se todo mundo fosse unido, seria mais bonito. E a gente conquistaria mais fácil ainda o objetivo. Do que haver essas divisão. Tem oito grupos. Então um coordenador puxa pro dele, outro pro dele, individual. Acho que se fosse todos unidos seria mais...".

Mesmo sem concordar com todas as propostas e estratégias do movimento, Barroso continua nele porque, de alguma forma confia, reconhece o sucesso do movimento e confia que receberá cedo ou tarde seu quinhão de terra. Portanto, ainda que por vezes ele julgue que seja melhor calar, ele persevera nas fileiras do movimento, mantém-se leal a ele. Em outra palavras, os sentimentos de eficácia são mais consistentes do que os de ineficácia política. Barroso reivindica ser mais ouvido. Ser ouvido significa ser reconhecido, valorizado. Ouvir fortalece os sentimentos de eficácia política, a identidade coletiva, a vontade de agir coletivamente e diminui os sentimentos de injustiça que podem desmobilizá-lo. Para Barroso "Precisava ouvir mais". O sucesso do acampamento também está vinculado a capacidade de interação das lideranças locais com o conjunto de acampados. A falta dessa interação é simbolizada por Barroso como um sentimento de abandono que gera a ineficácia das ações ou, pelo menos, a morosidade na obtenção de resultados das ações propostas e efetivadas. Barroso entende que os militantes deveria facilitar o diálogo, promover espaços de interação. O resultado dessa ação, seria uma maior união, uma coesão social maior: "Quando a gente se sente livre pra falá o que pensa a gente tem mais gosto pela coisa, fica mais unido. Eu acho que os militantes deveria ver mais isso". Barroso propõe mudanças estratégicas para melhorar o acampamento e deixa a entender o despreparo das lideranças e a necessidade de melhor formação dos quadros do movimento. Ele afirma que "Para esse acampamento, para melhorar a situação, precisava de, primeiramente, os coordenador de militantes mais adequados chegar e procurar por alguém" pois o acampamento e os acampados "Fica um pouco meio por conta”. Esse aparente descaso por parte das lideranças causa-lhe um pouco desânimo. Desanimado, Barroso percebe as reuniões de grupo, as atividades coletivas, como um 'faz de conta'. Para ele seria muito bonito se a união fosse real e todos trabalhassem coletivamente. Mas não é assim que ele vê a realidade desse acampamento. Para ele, "É.

Tudo "faz de conta". Todos fala que tá junto, mas chegou naquela parte ali cada um tá puxando farinha pro seu saquinho. É desorganizado. Eu lembro que antigamente, você vinha

nesses acampamentos todo mundo comia junto. Hoje tem pessoas aqui no

acampamento que se souber que tá faltando a comida no prato do outro, as vezes não dá para ele". A união que historicamente marcou as ações do MST desapareceu. Se antes essa união poderia ser observada através de um refeitório coletivo e uma cozinha coletiva que funcionava como espaço de socialização e fortalecimento dos vínculos identitários, agora cada um come a sua comida feita na sua cozinha dando espaço para o aprofundamento de postura individualistas, que enfraquecem o coletivo. Participar do coletivo acaba sendo simplesmente um meio de superar as precariedades da vida. Márcia e Barroso apresentam visões de mundo fragmentárias. Contudo, Barroso tem uma visão de mundo na qual conteúdos político-ideológicos emergem, por vezes, sem estarem obscurecido por suas crenças religiosas. Diferente de sua esposa, Barroso recorre muito menos do que ela às crenças religiosas para justificar sua condição de sem terra, sentido-se também bem mais a vontade para refletir sobre as questões mundanas da política. Liciel destaca a transparência do movimento como sendo um dado importante para a sua permanência no Pontal. O fato de não haver "mentiras" nessa regional, é um marco significativo para Liciel. A presença da verdade na relação entre os membros do MST funciona como uma espécie de garantia de que as estratégias apresentadas pelas lideranças do MST do Pontal são aquelas que realmente serão implementadas. Certeza como essa não estava presente nas relações estabelecidas entre os dirigentes do Paraná e seus filiados. Por isso, a convicção de que "(...) no Pontal tudo é feito no claro", funciona no universo de Liciel e Edir como sendo um fortalecedor dos sentimentos de eficácia política. Observemos as colocações de Liciel: “Quando tem mentira as coisa só dão pra trás. No Paraná era assim. Um dia o governo já ia dá os título da terra e no dia seguinte a polícia já baxava pra despejá nois. Não dava pra confia no que a gente ouvia.(...) Aqui foi muito mais melhor do que lá. Por uma parte, primeira parte que o movimento pra lá convive muito com a mentira e eu acho que aqui convive com a realidade". Podemos observar que apesar de Liciel estar desanimado com o movimento paranaense, ele não está desapontado com o MST. Ainda que no Paraná o movimento tenha assumido uma imagem de ineficaz para os acampados que lá estiveram como Liciel e Edir, Jucian e Toninho, Paraguai e Rosane, Marcos e outros, o MST ainda é reconhecido

como um movimento capaz de alcançar seus objetivos. É por isso que o MST do Pontal surge como uma opção viável, que inspira reconhecimento e eficácia política.

5. SENTIMENTOS DE JUSTIÇA E INJUSTIÇA

Quando nos detemos a analisar tanto as entrevistas como as notas de campo no que tange a dimensão dos sentimentos de justiça e injustiça, observamos que ela atua de modo dual na formação da consciência política dos acampados. Quando os sentimentos de injustiça estão voltados aos adversários externos, a saber: latifundiários, governo, políticos, polícia etc.; eles tendem a promover o fortalecimento da identidade coletiva, do sentimento de eficácia política e da vontade de agir coletivamente, por exemplo. Porém, quando estão voltados para as questões do grupo, ora atuam como elementos a serem superados em função de uma meta a ser alcançada, ora atuam como uma oportunidade de se reforçar os laços identificatórios do grupo. Parece-nos que no primeiro caso não é grande o elã do grupo mas sim a meta de ação coletiva . No outro caso o vínculo identitário é forte e tende a ser preservado e reforçado. Duas situações que ilustram bem essa nossa análise a respeito da relação existente entre sentimento de injustiça e adversários externos ao grupo é expressa nas falas de Márcia e Rosane. Em sua fala, Márcia acentua a forma injusta como se deu a aquisição das terras por parte do latigrileiro; a desproporcionalidade da quantidade de terras que o latifundiário possui, através do grilo, sendo 'sozinho' e o contraste estabelecido entre os que têm demais - os latifundiários e grileiros de terras - e aqueles que nada têm - eles, os sem terra. Márcia

fala, ainda, da impossibilidade de o

latifundiário tornar-se produtivo agindo sozinho na terra que ele diz ser sua; ela está reivindicando a inversão do status quo no qual está inscrita: de injustiça e opressão à igualdade e dignidade, de injustiça à justiça:

“Essas terras que não são dos fazendeiros. Elas foram griladas bem antes. Aí eles ficam com um monte de terras para trabalhar sozinhos. Que nem fazendeiro com cinco mil, e fica tudo sozinho trabalhando ali, é tudo dele. A pessoa sozinha não faz nada, não tem serviço para ninguém enquanto tem um monte de pessoas que precisam de trabalho, precisam de... tá tudo sem serviço. Precisa de alguma coisa, de um roça , de um motorzinho, né.”

Já no relato trazido pela família de Paraguai e Rosane fica patente, além do sentimento de injustiça experimentado em relação aos latifundiários, o sentimento de

injustiça com relação à polícia. Depois de terem vivido inúmeros despejos, de terem testemunhado e vivido na pele diversas atrocidades patrocinadas pelos policiamentos paraguaio e brasileiro, eles encontram desenvolvido um verdadeiro sentimento de repulsa aos policiais. Segundo Rosane, tanta violência e incompreensão por parte dos policiais que chegavam ao cúmulo de promover verdadeiros atos de terrorismo psicológico foram suficientes para que a polícia assumisse em sua vida a representação da injustiça: "A polícia quando chega perto dos pobre é prá prendê, torturá e nunca prá ajuda nóis. Se é o rico que percisa da policia ela trata deferente, Pro pobre, pros sem terra só sobra a violência, a pancadaria. Nóis já é culpado antes de quarqué coisa" Rosane, Paraguai e suas crianças narram-nos momentos terríveis vividos por eles durante um dos diversos despejos vividos por eles na fazenda Cobrinco no Paraná. Na ocasião, como já observamos, os policiais militares chegaram a `brincar de jogar as viaturas' sobre os acampados na busca de assustá-los e, desse modo, desmobilizá-los. Para aumentar a tensão já presente no local, segundo o relato de Rosane e família, os policiais também aprenderam o caminhão com os pertences dos acampados que, vivendo o rigoroso inverno do noroeste paranaense não tinham roupas e cobertores para enfrentar as intempéries do clima. Velhos, adultos e crianças ficaram por quase uma semana resistindo sob forte pressão psicológica até que o comando da polícia militar liberou seus pertences e puderam enfrentar o inverno no acampamento. Quando questionada acerca de quais eram os sentimentos vividos por eles durante os episódios de terrorismo psíquico proporcionados pelo policiamento paranaense, Rosane deu-nos a seguinte resposta: “Me deu assim um desanímo mas eu pensei ‘não adianta desanima, né, a luita é essa!’ (Risinho e pausa) E segui pra frente”. Tendo a sua frente a opção de escolher entre enfrentar o perigo da morte pela mão da polícia ou dos jagunços da fazenda ou então a incerteza de uma vida nas favelas da cidade, a família de Paraguai opta por permanecer na luta por uma vida digna e sair da injusta situação de marginais no campo pois, como disse Rosane, "a luta é essa". Assim, o sentimento de injustiça decorrente da ação policial reiterada atua como um dado mobilizador visto que Sabino e Rosane, a cada passo que dão, tornam-se mais conscientes de si mesmos e adquirem, com a experiência no movimento social dos trabalhadores rurais sem terra, um novo modo de ver sua própria história, apropriam-se de um outro outro generalizado que media seus diálogos internos e as experiências externas vividas no coletivo. A esse respeito percebemos como precioso o relato de Rosane sobre o medo da morte da família vivido pela filha de 5 anos que gritava, em meio a ação policial,

para irem embora do acampamento. Observemos o relato:

“E sei que a Mônica falava assim: “ Mãe, vamo embora mãe, chama o pai e vamo embora que a polícia vai matá nois mãe! Vamo.” (Sabino: Hum!) A policia vinha pra cima co o carro, com o camburão pra cima de nois na chegada da fazenda; gritava “ mãe vamo pra casa. Vamo embora que a polícia vai matá noi” Daí desespero naquela hora que ela viu que... (...) Nem assim não desisti. Ainda fiquemo lá quatro meses acampado. Depois que fumo retirado.”.

No caso dessa família injustiça e morte andaram muito próximas inúmera vezes. Mas a falta de perspectiva de um outro lugar onde obter um futuro melhor, uma vida mais digna mostrou-se decisivo para que enfrentassem tanto a morte quanto as demais situações de injustiça que nas suas vidas viriam surgir. Quando o sentimento de injustiça é vivido dentro do grupo, ele pode ter, como já dissemos, nuanças diferenciadas. As falas de Liciel e Barroso podem ser significativas para ilustrarmos melhor a questão. No diálogo travado por nós e Liciel, discutimos aspectos relacionados à liderança. Para ele todos são iguais dentro do MST, todos são tão líderes e parte dos processos decisórios quanto Cledison ou Zé Rainha, por exemplo. Nesse clima, tivemos a oportunidade de resgatar uma de suas falas acerca da expulsão do acampamento de uma mulher que abusava de sua autoridade como coordenadora de saúde e usava dessa posição para lograr benefícios pessoais. Essa situação causou, além de um mal estar em todo o acampamento, um generalizado sentimento de injustiça. Para Liciel a realidade da injustiça é vista pelo conjunto dos acampados e é por esse mesmo coletivo que tal situação deve ser enfrentada. Durante o diálogo, nos ficou que essa visão ardorosamente defendida por Liciel e Edir, sua companheira, só tem sentido quando a identidade coletiva do grupo é consistente e que situações como essa que nos fora relatada por Liciel e Edir, tendem a propiciar o fortalecimento dos vínculos coletivos ao invés de desmobilizar o grupo como um todo. Observemos um pequeno trecho desse diálogo:

L - Porque todos nós? Porque é todo nós que tamo lutando pela terra. "Ah, não tem líder, não tem chefe? Não rapaz, quem tem chefe é índio. Nós não somos índio. Nós tamo lutando pela nossa terra." A - E como é que faz sem líder pra decidir. Por exemplo no caso dessa menina que foi embora, quem determina, quem decide isso? L - Não, isso daí quem decide principalmente é o povão né. Que vê a realidade.

A reação de Liciel frente a essa situação pode ser entendida como um sentimento de quebra da reciprocidade social entre membros de estratos hierárquicos, sociais ou políticos diferenciados gerando, dessa forma, sentimentos de legitimidade moral para o

enfrentamento da questão. Assim, a identificação do adversário promove a passagem da responsabilização do adversário à culpabilização do mesmo pela injustiça sentida e sofrida pelo sujeito. Marcos partilha conosco sua angústia a respeito da ausência de retorno do trabalho. Trabalha-se de maneira incessante e mesmo assim não se consegue melhorar de vida. O que se consegue é ver o patrão mais rico e perceber-se cada vez mais miserável. É o sentimento de injustiça provocado por essa relação perversa presente tanto no trabalho volante quanto no trabalho assalariado, que faz com que as pessoas busquem os acampamentos do MST como opção. Esse foi o seu caso. Assim, Marcos assinala que o

“(...) acampamento (...) significa a esperança das pessoas... das pessoas terem uma nova vida, né. Porque todas essas pessoas que vem... vem se acampa vem na esperança de não depende dos otros, não vive trabalhando igual a gente trabalhava... trabalhava por diária aí ou trabalhava pá usina que você trabalhava e a perspctiva não é boa. Você sempre trabalha, sempre trabalha... Chega no final você adquire nada, nunca tem nada prá você mesmo. A impressão que a gente têm é que as pessoas que vêm para o acampamento que sempre elas tão, e na verdade é, né, irricando os otros e vai ficando prá trás e Chega uma época que você não vai ter nada. Você olha prá trás na sua vida e você não tem nada”

Para ele é o sentimento de impotência provado pelo indivíduo frente aos poderosos que desperta neles esses sentimento de injustiça e o desejo de mudar o jogo: "É preciso mudar o jogo, lutá pra não ser mais injustiçado e isso só será possível se a gente se uni contra os grandões". As injustiças vividas por ele no meio, urbano, a compreensão de que na balança social eles estão do lado mais frágil, a situação de precariedade com que ele e os demais companheiros de luta levam a vida produzem nesse sujeito um sentimento de revolta que faz com que ele se jogue de cabeça na militância, assumindo o discurso do movimento em sua plenitude. No entanto esse assumir as proposituras do MST causa tensão em seu interior na medida que seus interesses pessoais muitas vezes são desconsiderados pelos dirigentes. Quando nos atemos ao subtexto presente em suas falas, observamos que Marcos também sente-se injustiçado pelos líderes maiores do movimento na medida em que não é compreendido. Frases como "Muitas vezes a gente tem que abrir mão de certas idéias que a gente tem para que a luta saia vencedora", "Os dirigente acha que eu devo ir trabalhar na frente de massa no norte do Paraná, pros lados de Terra Nova. Eu acho que não vai dá muito fruto mas como ele tem mais experiência a gente obedece Eles sabem o que faz." ou ainda "Hoje eu to me dedicando ao trabalho como militante, mas eu também quero ter o meu lote e se um dia assentado pra pode casá. (...) As veiz a gente cansa dessa vida...(uma

pausa longa) mas não pode desanima, não podemo deixa de militá. " nos indicam o grau de dificuldade que é para Marcos conciliar projetos pessoais e a vida militante. Não ser compreendido em suas opiniões, demandas e sonhos por vezes o desmobiliza, o faz sentirse injustiçado; dá-nos a impressão de que o ser militante torna-se, em certas ocasiões, um peso em sua vida, um fardo a ser carregado. Como ele mesmo disse," As veiz a gente cansa dessa vida...". Assim, sentimentos de injustiça atuam na vida do Marcos de maneira ambivalente. Ao mesmo tempo que ele é mobilizado por eles, pois quer, mediante sua militância, ajudar a fazer um mundo socialmente mais justo, os sentimentos de injustiça vividos por ele no interior do MST o desmobilizam da militancia e o direcionam para a acomodação do assentamento e do casamento. Acomodação porque eles aparecem em oposição à vida militante.

6. METAS DE AÇÃO COLETIVA

O desejo de conquistar um quinhão de terra que lhes possibilite um futuro, uma vida digna para si e seus familiares, é um dado agregador das famílias em luta. Conquistar a ‘terra de seus sonhos’, ‘terra prometida’ por Deus nas Sagradas Escrituras e pelo Estado ou durante as campanha eleitorais ou mediante propagandas feitas por ele através de seus braços3 nas diversas esferas de governo, acaba por tornar-se a meta de ação coletiva de cada família e do grupo de sem terras acampados como um todo. A clareza dessa meta é um dos pontos mais evidentes entre os acampados. Todos são unânimes ao expressarem o real motivo que os faz permanecer acampados e vivendo da forma precária com que vivem: o desejo pela terra. Isso fica evidente em todos os depoimentos que pudemos recolher através de entrevistas, em nossas observações feitas diariamente acerca da vida dos acampados e em nossas notas do diário de campo resultantes tanto das entrevistas quanto das observações da vida no acampamento. O fato de se ter a meta clara no horizonte pessoal e grupal faz com que as dificuldades da luta surtam um impacto menor nas vidas desses lutadores. Vemos isso quando Paraguai, ao colocar uma lista de dificuldades enfrentadas pelos acampados do Carlos Mariguela, e em especial por sua família, apresenta uma condicionante que explica a razão de manterem-se mobilizados a despeito de todas as

adversidades e intempéries. Segundo o depoente, as dificuldades existem e são inúmeras mas, diz ele, “Só que o objetivo da gente é a terra, né. Tem que vê pegá um pedaço de terra pra gente vê si trato todo, melhora essa situação e trata a família melhor, né?!” E ele continua, em outra ocasião do depoimento, indicando o modo como essas metas são implementadas. Por vezes é preciso recuar, por vezes deve-se avançar, dependendo da estratégia que no momento se mostre politicamente mais eficaz, mas o que importa é jamais perder a meta de vista. Segundo Paraguai “Alguma veiz ocupa, alguma vai, né, pacífica, quando o governo no liga manda muito pistolero, tem pistolero também; quando o governo no liga muito manda muita polícia, o turma recua um poco. Quando abaxa o pó ali o turma entra de novo, ocupa”. Observamos que nessa dimensão da Consciência política o valor atribuído a ela pelos entrevistados é alto. As metas de ação coletiva pautadas pelo MST são vistas pelos acampados do Carlos Mariguela como importantes para que se possa lograr uma mudança social que propicie uma real aquisição de benefícios individuais e coletivos. Assim, a meta de ação coletiva adquire uma instrumentalidade capaz de superar os sentimentos de injustiça experimentados pelos acampados no decorrer do processo de luta pela mudança social desejada: a obtenção de um quinhão de terra que seja seu e no qual se possa construir um futuro. Todavia, um dado que nos chama a atenção quando analisamos tanto as entrevistas quanto as notas do diário, é a ausência de outras metas coletivas além da obtenção de um lote de terra para viver com mais dignidade. Não aparecem como metas do grupo possibilidades como o trabalho coletivo na terra conquistada, a criação de uma cooperativa ou mesmo de uma associação. No horizonte do coletivo só está posta a questão 'terra'. Quando lançamos aos entrevistados perguntas sobre o modo com que pretendem administrar essa terra, eles apontam para o trabalho familiar. Mas quando perguntamos se o trabalho coletivo não seria uma alternativa melhor, apenas Paraguai, Rosane, Marcos e Barroso se colocam favoráveis. A bem da verdade, eles quando falam de seu futuro na terra já vislumbram o trabalho coletivo como parte desse futuro. Para Paraguai, atuar em coletivo não é apenas uma possibilidade mas sim uma necessidade. Segundo ele "(...) a única saída para nóis, os pequeño, é a união, o trabalho coletivo. Se a gente não tiver organizado en uma cooperativa, por ejemplo, os fazendero van devora a gente. Muitos de esses acampados já perderam tudo uma veis e vão perde de novo se ficarem sozinhos outra vez". Já Rosane posiciona-se com moderação. Para ela o 3

Ministério da Reforma Agrária e INCRA na esfera federal e Secretaria da Justiça e Cidadania e ITESP na

melhor é o trabalho coletivo, está disposta a tentar, mas "(...) é preciso ser bem organizado porque a gente não conhece o coração das pessoa". Para Rosane e Praguai a conquista da terra é uma meta que se mantém na companhia do trabalho coletivo quando estiverem assentados. Barroso, motivado pelas dificuldades do início da vida de assentado vê no trabalho coletivo uma saída viável e que não deve ser descartada. Entretanto, isso não chega a figurar em seu repertório como uma meta propriamente dita, mas como uma reflexão que está em fase de maturação: “Eu penso comigo, todo mundo quando vai pega uma situação difícil né. Se trabalhasse em conjunto todo mundo seria mais fácil. (...) Pelo menos nos primeiros anos que é mais difícil”. Marcos trás em todo o seu depoimento discurso militante: "Aqui nós já temos a COOCAMP e assim que a gente terminá de construir a cooperativa, será mais fácil organizar os assentados coletivamente. Quando eu tiver a minha terra eu quer estar organizado num coletivo pra produzi e poder enfrentar o mercado dominado pelo capital. As cooperativas e trabalho cooperativista é a melhor saída pros pequeno produtor". A fala de Marcos, como a de Paraguai, revela que, para ele, a aquisição da terra e o trabalho coletivo são as duas faces da mesma moeda. Assim, a meta de ação coletiva assume em sua vida o formato de um projeto político, o projeto do MST, que ocupa lugar em sua vida e a tensiona quando entra em choque com alguns de seus projetos pessoais. Parece-nos que essa tensão está presente porque em alguns momentos há divergência entre a sua herança histórica e cultural e o projeto político-ideológico do movimento no qual milita. Notemos que essa tensão não faz parte do cenário vivido por Rosane e Paraguai. A questão do trabalho coletivo não é na vida do casal um projeto político do qual eles se apropriam simplesmente. O trabalho coletivo é uma saída política, social e cultural que eles encontraram para garantir a superação definitiva da precariedade presente vivida por eles. Dessa forma há confluência entre o projeto do MST e a herança histórica e cultural de Paraguai e Rosane. Em oposição a esse grupo de sujeitos estão os demais depoentes deste trabalho e a maioria esmagadora do acampamento Carlos Mariguela. Liciel considera o trabalho coletivo no lote "(...) coisa de gente covarde" e Edir pensa que trabalhar em coletiva "(...) é só pra caçá confusão e desgraça. Melhor é cada um no seu lote com seus filho". Márcia, esposa de Barroso, diz que "Sempre achei que a gente tem que conseguir as coisas sozinho. Eu sempre achei, desde que casei, que devo conseguir as coisas sozinha”. esfera Estadual, em São Paulo.

Juciane pensa que "Melhor é eu e meu marido!" e seu companheiro Toninho acha o mesmo, pois "(...) as pessoas são muito egoístas e tem neguinho que se atira nas corda e deixa a gente com o trabalho todo e só aparece despois prá querê 'dividí' o lucro. Isso pra mim não serve!". Osmar mostra-se determinado a construir seu futuro como se fosse em um clã. Ele crê que já tem tudo o que precisa e não necessita de mais ninguém: "Na minha família, nós somos em seis. Eu acho que tenho a força para... porque sozinho eu não ia conseguir nada. Agora eu não preciso mais da força de ninguém. Só de Deus e deles". Parece-nos que para que possamos entender melhor os motivos que dificultam o surgimento de metas de ação coletiva que extrapolem a simples aquisição da terra, seja importante observarmos os primórdios do movimento. Para tanto, recorremos outra vez aos trabalhos de Tarelho (1988) e de Andrade (1998). Ao estudarem o movimento dos sem terra de Sumaré I, eles apontam que na base do sucesso desses movimentos estava a existência de importantes espaços de socialização que lhes possibilitava espaços comunicativos de interação. Assim desde os cursos bíblicos promovidos pelos agentes de pastoral das CEB's até as cozinhas coletivas dos acampamentos possibilitava-lhes um contato maior com experiências coletivas. Este pode ser apontado como um dos motivos que podem ter sido responsáveis pelo surgimento durante os acampamentos de iniciativas coletivas que deveriam se efetivar depois no assentamento. Sabemos que muitas destas tentativas fracassaram, mas essa não é a questão aqui. A questão é que só houve fracasso porque se tentou. No caso do acampamento, parece-nos que não promoverá fracassos futuros, pois não encontramos quase ninguém favorável a sonhar com um coletivo para quando estiverem sobre seus lotes. E a razão disso parece-nos estar na ausência de espaços de socialização capazes de suscitar esse tipo de iniciativa, de meta de ação coletiva, de vontade de agir coletivamente. Essa dimensão da consciência política nos leva a refletir sobre quais projetos propostos ao grupo ou engendrados por eles são política e culturalmente viáveis, consistentes. Ainda que a meta do movimento seja a conquista para o uso coletivo, as pessoas mantém seus projetos de trabalho familiar; elas aderem ao movimento fazendo projetos de exploração individual do lote. Muitas vezes esses projetos são identificados como sendo o mesmo do MST em razão do desconhecimento das pautas e propostas do movimento. E quando elas conhecem quais são as propostas do MST e se descobrem em desacordo, mesmo assim elas permanecem no movimento devido ao reconhecimento da eficácia política do movimento. Assim, as metas devem ser correspondentes aos anseios que os indivíduos nutrem em relação às ações. Quando elas não correspondem a esses

anseios, elas podem gerar contra-movimentos no interior do grupo e até mesmo provocar a desmobilização e a deserção de indivíduos. As análises que fomos capazes de fazer até o presente momento nos conduzem, então, ao entendimento de que as ações, metas e projetos do movimento, para que obtenham êxito, necessitam fazer sentido frente à herança histórica, cultural e política de cada sujeito. E é por isso que parece-nos que a idéia de coletivização da terra, defendida pelo MST e por setores do governo, encontre tanta resistência entre os trabalhadores rurais de modo geral: falta-lhe base histórica e cultural para dar-lhe a necessária sustentação em nossa sociedade, entre o campesinato brasileiro. Em outras palavras, podemos supor que indivíduos não tornam-se predispostos a construir metas e propostas, a agir coletivamente simplesmente porque estejam identificados com um grupo de pertença, comunguem das mesmas crenças e valores societais, tenham os mesmos adversários etc.; elas agem coletivamente quando as metas e propostas de ação coletiva fazem sentido para elas, quando não entram em choque com sua herança sócio-político-cultural, gerando-lhes sentimentos de eficácia política. Portanto, entendemos que são as metas de ação coletiva as responsáveis pela adesão comportamental do sujeito ao 'outro'.

7. VONTADE DE AGIR COLETIVAMENTE

Todas as famílias com quem tivemos contato no acampamento Carlos Mariguela estão identificadas e compartilham das mesmas crenças, valores societais e expectativas acerca da família. Identificam o mesmo adversário – o rico latifundiário – e os mesmos interesses antagônicos – o egoísmo e ganância do rico não lhes permite estar melhor – e comungam da certeza de que só terão sucesso se estiverem reunidos no coletivo. Rosane nos mostra como era, ainda que difícil, clara a meta da família e grande a vontade de agir enquanto coletivo, associados aos demais. Para Rosane “‘(...) não adianta desanima, né, a luita é essa!’ (Risinho e pausa) É segui pra frente.” Para nós, as diversas situações em que observamos a família de Paraguai e Rosane mostra como é marcante o desejo de agir coletivamente, a solidariedade para com os membros de sua classe ; para com aqueles que passem por situações similares fazendo com que sejam capazes de extrapolar a sua própria classe e lutar com as demais para vencer a classe dominante. Esse comprometimento com a luta pode ser visto nesses quinze anos4 4

Paraguai e Rosane militaram no MCP por 12 anos e agora faz três anos que estão militando no MST.

que Paraguai e sua companheira têm se dedicado à luta por justiça e igualdade no campo. A vontade de agir coletivamente está expressa no desejo de agir em família assim, o MST é a grande família com a qual Paraguai e Rosane contam para realizar todas as suas ações. Vejamos esse trecho outra vez, pois para nós ele é bastante significativo:

“É, porque sem movimento você também não faz nada, né. Perque eu soizinho ali não faço nada. Enton pra mim acho que significa muita coisa o movimento, né. Ocupa mui.. Um famiia, pra falá, o movimento é uma famiia. Porque eu só, com quatro criança e minha muié, eu não posso fazê nada. Não faço pressão nenhuma. Então o movimento é uma famiia da gente, sabe. Ele muda, ele muda de todo jeito até a família muda.” (Paraguai)

Entretanto, enquanto Rosane e Paraguai vêem no MST que os acompanhará até depois de assentados pois para eles “(...) o trabaio coletivo é o mejor” (Paraguai), Osmar e Tereza posicionam-se de forma mais restrita. A vontade de agir coletivamente restringe-se à conquista da terra e a aquisição de implementos e equipamentos agrícolas. Em um certo momento Osmar deixa claro que a terra que receberá é a realização de um sonho pessoal no qual só há espaço para a família nuclear. Assim, ação da coletividade restringe-se à conquista da terra. Observemos esse trecho bastante revelador: “Olha, eu acho que quando eu tiver a minha terra ela vai representar tudo aquilo que eu nunca tive. É meu sonho é a terra. Ela vai representar realizar o meu sonho. Até hoje eu nunca tive nada. A única esperança que eu tenho aqui nesse mundo que eu vivo, é a terra. Eu tenho que sobreviver dela. Trabalhar, sobreviver dela. Eu acho que ela representa, praticamente, ... ela vai ser tudo para mim. Sem ela, se eu não consigo o meu lote, eu tiver que voltar para cidade eu vou morrer amanhã, daqui a vinte, trinta anos, sem realizar o meu sonho. Tanto é que eu vim na hora exata. Esse meu filho aqui vai fazer 18, o outro vai fazer 11. A gente tem tudo agora. Na minha família, nós somos em seis. Eu acho que tenho a força para... porque sozinho eu não ia conseguir nada. Agora eu não preciso mais da força de ninguém. Só de Deus e deles. Eu posso dar estudo, roupa, sapato, tudo. Na cidade, eu ia abrir o bico.”

Na mesma trilha caminham Liciel e Edir. Liciel em diversos momentos enfatiza a impossibilidade de alcançar a transformação social de maneira individual demonstrando estar convictamente alinhado com aqueles que aderem à teoria da mudança social em oposição ao que acolhem a tese da mobilidade social. A luta coletiva e a necessidade de transpor as barreiras da individualidade durante o processo de aquisição da terra a ser trabalhada. No trecho que segue podemos observar o quanto a vontade de agir coletivamente mobiliza o depoente:

“Porque se eu quero pra mim, eu quero pra minha família, eu quero pra você e quero pros meu vizinhos. Eu acho que eu tenho que querer pra todos. Porque se eu vou querer

uma área só pra mim, eu tenho capacidade pra isso? Se eu tivesse capacidade pra uma área sozinha eu não ia tá aqui. Eu não ia tá aí isolado dentro do movimento. Eu ia chegar e comprar uma terra só pra mim. Eu ia comprar uma chácara de uns 40, 50 alqueires só pra mim. Não é? Mas não acho que a capacidade da gente não alcança isso.“

Como podemos notar, a capacidade para alcançar as metas é atribuída ao grupo, ao coletivo. Isso se dá porque há uma identificação sócio-cultural desses sujeitos com as propostas e estratégias do movimento. Enquanto a posição da família de Paraguai e Rosane é favorável à ação coletiva em todos os momentos da luta e as famílias de Liciel e Edir e de Osmar e Tereza restringem a ação à luta da terra. Já a família de Barroso e Márcia está parcialmente dividida. Apesar de terem em sua relação a experiência do diálogo, a posição de Márcia tende ao trabalho individual. Pensamos que essa posição de Márcia seja influenciada por sua experiência religiosa que enfatiza o esforço pessoal. Tal experiência é corroborada em sua história de vida por uma experiência marcadamente solitária, de lutas individuais. Márcia contou-nos um pouco dessas suas lutas e em dado momento disse o seguinte: “A gente sempre foi muito sozinho, lutando sozinho. Sempre achei que a gente tem que conseguir as coisas sozinho. Eu sempre achei, desde que casei, que devo conseguir as coisas sozinha”. Graças a essa história de vida, Márcia tem dificuldade de se incluir entre os membros do MST apesar de ser coordenadora de grupo no acampamento. Quando durante nossa entrevista lhe perguntamos qual o melhor jeito de se trabalhar a terra, Márcia diz que “(...) eles preferem juntos. Eu acho que é cada um no seu lote”. Assim, para ela a possibilidade de se agir coletivamente está restrita às mesmas proposições de Osmar e Márcia. O MST tem seu universo de ação restrita às ocupações, as negociações com os latigrileiros e com o Estado mas está fora de ação no espaço privado do lote. A respeito da importância do MST, Márcia coloca que ele é um instrumento fundamental na luta contra o latifúndio porque ele organiza e fortalece a todos e conclui dizendo: “Eu acho que a gente tem que lutar, que nem a gente tá lutando”. Ainda que ela nutra a crença de que “(...) tem que conseguir as coisas sozinha”, ela pensa contraditoriamente que é preciso continuar lutando coletivamente “(...) que nem a gente tá lutando” e vê o MST como sendo o resultado de atuação de “(...) todas as famílias juntas”, E continua argumentando que isso se dá porque “(...) sozinho não tem como construir o MST. Tem que ser com as famílias (...) Eu acho que o MST sozinho não tem como... uma pessoa sozinha não tem como...”. Barroso, por sua vez, pensa um tanto quanto diferente de sua esposa. Vale dizer que Barroso não participa tanto das atividades religiosas como Márcia o que faz com que o

peso do aprendizado religioso seja menor. Barroso pensa que o trabalho coletivo é importante para se conseguir a terra pois “Se divide, não tem quem consegue pegar” e também é favorável ao trabalho coletivo nos primeiros anos de assentado, até que sua família esteja mais estável. Barroso pondera a esse respeito o seguinte: “Eu penso comigo, todo mundo quando vai pega uma situação difícil né. Se trabalhasse em conjunto todo mundo seria mais fácil. (...) Pelo menos nos primeiros anos que é mais difícil.”. Ele pensa que Márcia pensa assim, acha “(...) que ela concordaria em trabalhar junto”. Ainda que esse seja um casal que aparentemente dialoga, não conhecem claramente as posições do cônjuge no que tange ao projeto futuro, sobre o como viver nessa terra. Mesmo assim, Márcia e Barroso tem a convicção de que o trabalho coletivo após a aquisição das terras não da certo. Enquanto Márcia pensa assim por causa do hábito de trabalhar solitariamente adquirido desde cedo, Barroso atribui essa dificuldade de manter unidas pessoas por muito tempo num trabalho coletivo ao aparecimento da ambição, a disputa e a inveja que cedo ou tarde surge entre as famílias. Quando lhe perguntamos o porque de só se trabalhar junto nos primeiros anos, se o fato de já terem trabalhado junto algum tempo não acabariam trabalhando juntos o resto da vida, ele respondeu-nos o seguinte: “Não porque aí começa a aparecer a ambição. O pessoal começa a pensar ‘Puxa vida, o fulano de tal tem isso e eu não tenho’. Aí começa. Existe muito disso aí.” E em outro momento ele também frisou que o fato de cada sujeito ter seus hábitos e costumes é um complicador na relação grupal, pois “Cada um pensa de um jeito. Cada um trabalha de um jeito”. Nossas entrevistas e notas do diário de campo indicam também que as propostas do MST não estão divulgadas claramente entre os acampados. Com Márcia e Barroso, não é diferente. Barroso de maneira mais que explícita nos dá sinais de que o conteúdo ideológico do MST acaba ficando um tanto quanto distante da vida do acampamento. Ele está presente nos assentamentos, na mídia, nas manifestações de massa, mas encontra-se fragmentado no cotidiano dos acampados. Parece-nos que a distância tanto dos meios de comunicação como dos lideres da vida diária do acampamento seja um dado importante dessa questão. Acompanhemos um trecho importante da entrevista feita com Barroso e que fala dessa questão e corrobora nossa avaliação:

“A: Na sua opinião qual é o projeto do MST para as pessoas? Tem um projeto? Ou ele arrecada famílias que se luta aqui e depois solta? É uma coisa mais solta? B: Eu creio que é assim mais solto. A: Não tem uma programação? B: Se tem não tá chegando no teu ouvido. A: O que o MST pensa sobre essa idéia do coletivo? Você já ouviu alguma idéia que o

MST tem sobre isso? B: Não tenho ouvido comentário não.”

Esse desconhecimento por parte da base e de parte da militância do projeto que impulsiona o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra atua em nossa opinião, como um dado fragilizador da eficácia política e da vontade de agir coletivamente. Não conhecer profundamente as propostas do MST contribui para que se possa pensar em MST’s ou seja diversas perspectivas acerca de um mesmo movimento. Pensá-lo dessa forma não seria de todo mal não fosse o fato de que muitas vezes acabam sendo perspectivas antagônicas nas quais os agentes propositores da políticas, das posições ideológicas assumidas pelo movimento encontram-se num lugar de divergência dos trabalhadores da base. Exemplo disso é a questão do trabalho coletivo das famílias versus o trabalho de cada família em particular. Como as falas de Márcia e Barroso, as falas de Liciel e Edir; Juciane e Toninho, Osmar e Tereza apontam para esse caminho, o da divergência com o projeto do movimento. O diálogo que segue mostra que um dos resultados dessa questão é a redução da ação do MST na luta pela terra.

“A: E o que é o MST? B: Para mim, é tudo. Eu acho que na parte que a gente luta pela terra, o MST é tudo. A: Você acha que o movimento do MST é construído pela ação de cada pessoa, das famílias em separado ou do coletivo? B: Do coletivo. A: Isso é o que deveria ser ou é o que é? B: Ah, é o que deveria ser. Tem partes que gira nesse termo do coletivo e tem outras partes que não. A: Será que algum dia a gente vai conseguir trabalhar no coletivo todo mundo junto? B: Se haver diálogo, eu acho que sim.”

Notemos que Barroso aponta para uma questão condicionante do sucesso ou fracasso do trabalho coletivo: o diálogo. O diálogo com menor índice de mediação podia ser visto nos primórdios do MST, quando o número de famílias acampadas era consideravelmente menor. O diálogo era uma das principais ferramentas de socialização política. Poderíamos arriscarmo-nos a dizer que era mediante o diálogo que as pessoas tomavam consciência de sua situação de excluídos e se percebiam como aliados e assim gerava-se, de maneira marcante, a vontade de agir coletivamente. Mas desde que a estratégia de massa foi adotada pelo movimento, o diálogo foi qualitativamente alterado, tornou-se mais ruidoso., com maior número de intermediários5. Essa situação fez com que

5

As pesquisas de Tarelho (1988); Fernandes (1996) e Andrade (1998) apontam para essa transformação e dão subisídios a nossas análises.

o próprio processo de conscientização ficasse tutelado pela atuação dos diversos mediadores que podem surgir durante a luta. Assim, a vontade de agir coletivamente também estará na dependência da atividade mais ou menos ruidosa de tais mediadores. Além disso, a estratégia de massa produz uma heterogenização interna do movimento, pois com o aumento dos participantes também há o aumento da diversidade de configurações de consciência dificultando o processo de identificação e reconhecimento entre os membros do movimento.

7.1. Diálogo: Um Aliado da Formação da Consciência, um Sinal de Democracia

E essa questão do diálogo, da escuta no acampamento por parte dos líderes em relação a base parece-nos nevrálgica. A inexistência de canais limpos de comunicação entre as partes acaba produzindo, por vezes, uma adesão falsificada às ações coletivas, à ideologia que movimenta o MST. A questão da comunicação, ao nosso ver, não tem implicações que atingem apenas a dimensão volitiva da mobilização política e social dos sujeitos, ela traz implicações que consideramos graves a todas as dimensões da consciência. Como já apontou Andrade (1998) nesse sentido, a consciência política é 'despertada' mediante as oportunidades de comunicação, diálogo, e interação visto que "O espaço comunicativo é o lugar de receber informações, refletir sobre as histórias de vida e interesses enquanto categorias sociais,

e partir para a ação política: no caso, a

organização social na luta pela terra" (Andrade, 1998:144). Em relação às crenças e valores societais entendemos que diálogos truncados produzem uma maior cristalização, naturalização, e, porque não dizer, um enrijecimento dos conteúdos que informam essa dimensão. No que tange a identidade coletiva, pensamos que, de modo geral, estaremos mais propensos a verificar processos identificatórios frágeis porque a interação entre os sujeitos encontra-se parcialmente comprometida e a adesão às pautas que organizam a ação e manutenção do grupo não estão internalizadas por todos de forma satisfatória. A identificação de adversários acaba restringindo-se ao plano geral sem atingir aspectos mais específicos. Adversários internos tendem a ser sufocados devido à adesão condicionada daqueles sujeitos que tiveram uma comunicação mais ruidosa. O mesmo vale para os sentimentos antagônicos vividos no plano interno. O fato de ingressar no movimento não significa aderir às pautas que organizam o movimento. Entretanto, a questão da não adesão ou da adesão parcial ao projeto do MST é pouco trabalhada no

movimento pelo fato de, no nosso entender, a exposição das contradições poder gerar situações de mal estar e até prejuízos aos sujeitos que tenham essa postura e ao próprio movimento que fica fragilizado. Isso acaba por regular e maquiar, deformar, os antagonismos existentes nas relações intra e inter-grupais. Aspectos como a eficácia política também ficam prejudicados já que ela também depende da identificação e adesão de cada sujeito às proposições e estratégias adotadas pelo grupo. A ausência de diálogo põe em cheque a credibilidade das estratégias adotadas pelo grupo. O diálogo parece garantir o discurso democrático do movimento e fazer frente à acusações de práticas autoritárias. Aliás, a ausência do diálogo e de modo especial de um diálogo fluido colaboram imensamente para o surgimento de sentimentos de injustiça no coração do grupo, minando as demais dimensões da consciência, pondo em cheque o sucesso das estratégias adotadas com vista à lograr sucesso na obtenção da metas coletivas. Tendo em vista as colocações que acabamos de fazer, apresentamos agora um trecho que, apesar de longo, pode nos mostrar a gravidade da questão que ora discutimos. O trecho que segue foi extraído do depoimento de Barroso. Vejamos:

“A: Você acha que nas reuniões o pessoal fala o que pensa. B: Acho que tem até gente que às vezes tem vontade de trocar mas aí é aquele negócio. Não quer mexer. Porque tem muitas coisas erradas aqui. E a gente é obrigado a concluir com aquilo. A gente vê que tá errado e é obrigado a ficar quieto. A: Por quê ficar quieto? Medo de quê? B: Não é questão de medo. É questão que pra mexer você sabe que é uma andorinha no meio de... uma andorinha só não faz verão. As pessoas precisava se reunir, mas as pessoas são quase toda maioria desunido né. Pra um só pegar e... as vezes você vai correr atrás de um negócio sozinho, você tá no certo mas acaba vazando pro errado. É como se um acampamento. Se vim só e coloca um barraquinho só nessa beira de estrada aqui não vai resolver problema nenhum. Tem que ser maioria. A: Então parece que tem pouco espaço para diálogo, para ouvir, no acampamento as pessoas são pouco ouvidas? B: É. Precisava ouvir mais. A: Quem precisava ouvir? B: Para esse acampamento, para melhorar a situação, precisava de, primeiramente, os coordenador de militantes mais adequados chegar e procurar por alguém. A: Qual a maior falha do MST na relação de cuidar dos acampamentos? B: Fica um pouco meio por conta. A: O acampamento anda meio aos trancos e barrancos? B: É. A: Você acha que a família é um lugar que é trabalhado ou o MST usa como um jeito de contar com o número de pessoas? B: Para mim tem. A: Mas o MST trabalha o valor e a importância da família? B: É pouco mexido, mas existe sim. A: Se trabalhasse mais, você acha que ajudaria? B: Com certeza. A: A ausência de diálogo é só entre os militantes de forma geral ou dentro do acampamento também falta? B: Ah, dentro também. A: Existe diálogo entre os grupos? B: Acho que não.

A: Por quê? B: De forma geral, o coordenador do grupo fica puxando mais pessoas. É aí que se divide. Não é assim como você diz. Porque a gente tá aqui, todos estão por uma finalidade só. Se todo mundo fosse unido, seria mais bonito. E a gente conquistaria mais fácil ainda o objetivo. Do que haver essas divisão. Tem oito grupos. Então um coordenador puxa pro dele, outro pro dele, individual. Acho que se fosse todos unidos seria mais... A: Você acha que as reuniões são "faz de conta"? B: É. Tudo "faz de conta". Todo fala que tá junto, mas chegou naquela parte ali cada um tá puxando farinha pro seu saquinho. É desorganizado. Eu lembro que antigamente, você vinha nesses acampamentos todo mundo comia junto. Hoje tem pessoas aqui no acampamento que se souber que tá faltando a comida no prato do outro, as vezes não dá para ele. E eu não tô dizendo isso para dizer que eu sou melhor do que todo mundo. Tem uma parte na Bíblia que Deus fala "Dê a esmola com a sua mão direita sem que a sua mão esquerda possa vê". Mas eu já fiz isso muito aqui. Já fiz não. Eu não fiz nada. Deus que me deu e eu comparti com quem precisava. Mas já cheguei aqui, saber de pessoas que estão necessitadas e eu pegar meu carro, às vezes eu não ter dinheiro para fazer as compras para a pessoa mas eu comprar uma parte e sair pedindo para os meus amigos o resto das coisas para poder completar uma cesta para dar para as pessoas aqui em baixo. Tô dizendo pra dizer que eu não sou melhor do que ninguém. Porque hoje ou amanhã pode faltar na minha também e alguém fzer isso por mim também. E se fosse assim era mais legal. (...) A: Quem deveria facilitar o diálogo? B: Eu acho que os militantes.”

Expressões como “E a gente é obrigado a concluir com aquilo. A gente vê que tá errado e é obrigado a ficar quieto” revelam que as possibilidades de livre expressão estão, por vezes, comprometidas, bem como o uso do diálogo como instrumento de formação e socialização política. Ela revela também a dicotomia presente no discurso de muitos acampados e que se faz visível em falas como as de Liciel e Marcos que afirmam que no movimento não há a figura do líder porque todos são iguais e a luta é de todos. Liciel disse o seguinte:

L - Olha, dos líderes da região eu vou te falar bem a verdade. Eu ali acho que líder... não tem líder. Eu acho que todos nós é líder. A - Todos nós quem? L - Todos nós que lutamos pela terra são líder. Porque nós não tem líder nem chefe. Quem tem chefe é índio, que já acha que todos são iguais. (...) Porque todos nós? Porque é todo nós que tamo lutando pela terra. "Ah, não tem líder, não tem chefe? Não rapaz, quem tem chefe é índio. Nós não somos índio. Nós tamo lutando pela nossa terra." A - E como é que faz sem líder pra decidir. Por exemplo no caso dessa menina que foi embora, quem determina, quem decide isso? L - Não, isso daí quem decide principalmente é o povão né. Que vê a realidade.

Como pode-se notar, Liciel atribui ao povo a capacidade decisória. Tal capacidade decisória, visão da verdade, é construída mediante as assembléias nas quais todos se tornam iguais através do exercício cidadão do voto. A figura da liderança é rechaçada por Liciel pelo fato de significar a supressão da liberdade de decidir a própria história. O líder assume o lugar da autoridade inquestionável, da lei que não pode ser desrespeitada. A

imagem do chefe indígena que decide o destino da tribo figura no imaginário de Liciel através desse dito popular 'quem tem chefe é índio'. Para Liciel as decisões tomadas em coletivo dispensam figuras como os líderes. Decidir em coletivo, usar da palavra e debater as questões que dizem respeito a ele, a sua família e ao seu grupo de pertença significa assumir pessoalmente a responsabilidade de seu destino e do destino da coletividade. Portanto, podemos perceber que com relação a dimensão da vontade de agir coletivamente, estão presentes dois importantes aspectos: 1) O comprometimento dos sujeitos com as ações coletivas propostas e 2) a avaliação por parte desses sujeitos dos fatores situacionais da ação coletiva. No primeiro aspecto percebemos que os sujeitos procuram estar familiarizados com a ação proposta de ação coletiva e procura também verificar com que esta nova proposição se relaciona com as suas outras experiências em ações coletivas. Isso significa que o sujeito necessita, antes de aderir à proposta, avaliar a operação e os instrumentos dessa ação coletiva do ponto de vista da eficácia da ação, bem como a necessidade dele participar para que a meta seja alcançada satisfatoriamente. Por fim, consultar outros membros do grupo para certificar-se de que sua decisão de aderir à ação não é equivocada, também pode ser uma das estratégias presentes e determinantes da consolidação da volição do sujeito. Em relação ao segundo aspecto desta dimensão vale observar que os tipos de interesses e o grau de antagonismo presente entre o grupo de pertença e o grupo dos outros é avaliado pelo sujeito na hora de garantir sua adesão à ação coletiva proposta. Nesse sentido, pesar as relações de poder entre o seu grupo de pertença e o grupo de seus adversários, bem como o grau de legitimidade atribuída a essas relações, ocupa um lugar importante na definição por parte do sujeito de sua vontade de agir com o coletivo, visto que pesar essas relações implica em avaliar os custos e os benefícios intra e intergrupais decorrente dessa participação.

Algumas Considerações Acerca das Consciências de nossos Sujeitos

Depois de analisarmos como se apresentam os conteúdos de cada dimensão da consciência política dos sujeitos, entendemos por bem fazer alguns apontamentos acerca das configurações das consciências políticas destes. Parece-nos óbvio dizer que cada sujeito e família são indicativo da diversidade de configurações da consciência política presentes no acampamento Carlos Mariguela.

Enquanto Tarelho (1988) propôs a leitura da consciências a partir da relação falso e verdadeiro e Andrade (1998) as identifica em três configurações, a saber: Fragmentada, Possível e Transformadora; nós não nos

sentimos a vontade para propor novas

terminologias para localizarmos em que ponto da complexidade esses sujeitos encontremse. A bem da verdade, se quer temos convicção de que isso se faça necessário. Então, ao invés de lançarmos novos termos ou nos apropriarmos de um ou de outro já propostos, decidimos transitar por entre as proposições já feitas por Luis Carlos Tarelho, Márcia Andrade e Salvador Sandoval (1994; 2001). Quando olhamos o conjunto desses sujeitos, percebemos que há instantes em que eles transitam por uma falsa consciência (Tarelho, 1988) e uma consciência fragmentária (Andrade, 1998) ou consciência de senso comum (Sandoval, 1994) devido a cindirem teoria e prática, a estarem racionalizando um discurso que encontra-se distante de suas vidas. Essa cisão lhes obscurece e limita a percepção da realidade, do mundo da vida, da sua vida. De modo geral é essa a complexidade da consciência política alcançada na maior parte do tempo por Juciane, Flávio, Fagner, Osmarzinho, Cleverson, Osmar, e Tereza. Em outros momentos nossos sujeitos demonstram uma compreensão da realidade ampliada na qual questões político-ideológicas são observadas por eles alternando visões turvas em que as noções de classe e interesses antagônicos são restritas e visões em que eles trazem mais claramente a sua pertença a uma classe que disputa um lugar no jogo de interesses da luta de classes. Todavia, tendem a buscar saídas institucionais ou negociadas. Assim, essa complexidade transita entre uma consciência fragmentada ou de senso comum e uma consciências possível (Andrade, 1998) ou uma consciência de conflitos (Sandoval, 1994). Nesse quadro de complexidade encontram-se Márcia, Barroso, e Toninho. Ainda há aqueles que transitam entre uma consciência possível, de conflitos e uma consciência transformadora (Andrade, 1998) ou consciência revolucionária (Sandoval, 1994). Os sujeitos que encontram-se nesse tipo de complexidade da configuração da consciência política costumam estar mais próximos da liderança em termos de posições. É clara para eles a pertença a uma classe social e entendem as questões referentes a sua realidade como produto da luta de classes. Contudo, as atitudes revolucionárias dependem de estarem convencidos acerca das vantagens de aderirem a essas lutas. Nesse nível estariam Edir, Liciel e Rosane. Por fim, aqueles que estão afinados com as propostas das lideranças e entendem que os motivos que os separam do grupo dos outros são intransponíveis, que as relações entre as classes sociais são irreconciliáveis, e por isso entendem que a transformação da

realidade social só se dará mediante ações coletiva. Estes são, para nós, sujeitos que atingiram uma complexidade da consciência política mais refinada, isto é, são portadores de uma consciência Transformadora ou Revolucionária. Nessa complexidade estariam presentes Paraguai e Marcos. Assim, identificamos quatro quadros possíveis para a compreensão da consciência política em formação entre os acampados do Carlos Mariguela. Dizemos em formação, porque a consciência política é um processo contínuo, dinâmico que se altera a medida em que os conteúdos que informam cada uma das dimensões aqui estudadas se alteram. Não poderíamos terminar este capítulo sem lembrarmos mais uma vez que, o presente modelo que subsidiou nossas análises não constitui-se num 'roteiro de análise'. Poderíamos dizer, com a devida cautela, que ele é um 'roteiro de conceitos' que orientam a análise do processo sócio-histórico-político-cultural vivido por cada sujeito e grupo de pertença aos quais esteja filiado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

"A terra do dono é só dele / Aí ninguém pode mandar Mas se eu não pegar na enxada / Não tem ninguém para plantar Eu semeio e trato o milho / E a colheita é do senhor Mas o dia da Igualdade / Tá chegando seu doutor" (Sem Deus com a Família (1965) Letra e música de César Roldão e Interpretação de Elis Regina)

Nessa pesquisa chegamos a um ponto por demais delicado de nosso trabalho: As considerações finais. Gostaríamos que nossas contribuições pudessem alcançar questões como o crescimento do movimento estudado e a melhoria da vida dos sujeitos que colaboraram para essa pesquisa. Contudo sabemos que ela é limitada e as transformações por nós desejadas nem sempre serão realizadas. Entendemos que este trabalho encontra-se inscrito no campo da Psicologia Social porque dedica-se a compreender as questões subjetivas presentes nos fenômenos coletivos e como elas se articulam no cenário da coletividade. De maneira mais precisa, entendemos que este trabalho lance mão do marco psicossocial para compreender melhor as questões subjetivas presentes na arena política, nos fenômenos políticos1. Nossa revisão bibliográfica mostra que em Psicologia Social há poucos estudos no campo dos movimentos sociais agrários, dedicado ao estudo de fenômenos políticos. Por esse motivos vemos como relevante o presente trabalho, pois ele ajuda a ampliar esse universo dentro do campo da Psicologia Social. Ao estudarmos a formação da consciência política entre famílias acampadas na região paulista do Pontal do Paranapanema, estávamos embuídos do desejo de colaborar para a superação da cisão existente entre a sociologia e a psicologia quando se realiza estudos sobre movimentos sociais. Desse modo, entendemos que essa pesquisa segue na trilha de trabalhos como os realizados por Luís Carlos Tarelho, Márcia Andrade, Maria Antonieta de Souza, Sandra Freitas e outros mais que se utilizaram tão apropriadamente da Psicologia Social para desenvolver suas pesquisas. Portanto, a pesquisa que realizamos com as famílias do acampamento Carlos Mariguela vem colaborar, ainda que timidamente, para a consolidação da Psicologia Social como um campo que traz importantes contribuições ao estudo de movimentos 1

A esse tipo de apropriação da Psicologia Social podemos chamar de Psicologia Política. No Brasil existe um grupo de psicólogos que dedicam-se a estudo desse tipo e que estão reunidos na Sociedade Brasileira de

sociais. Em outras palavras, nosso esforço contribui para que a Psicologia Social retome mais fortemente os movimentos sociais como área temática a que se debruça a estudar a para a qual tem muito a colaborar. Historicamente é possível observar que nas raízes da Psicologia Social encontra-se a busca da compreensão acerca de questões ligadas à movimentos de massa. Assim, encontramos diversos trabalhos que marcaram a Psicologia Social como sendo um campo da ciência comprometido com o estudo dos movimentos sociais. Um exemplo importante do uso da Psicologia Social nesse tipo de estudos pode ser encontrado na obra de Hadley Cantril que em 1948 escreveu o clássico The Psychology of Social Moviments. No Brasil encontramos alguns estudiosos realizando esforços importantes para a ampliação dos estudos sobre movimentos sociais realizados pela Psicologia Social. Entre eles podemos nomear os professores Leoncio Camino, Salvador Sandoval, Louise Llullier, Talma Souza, Marco Aurélio Prado, Pedrinho Guareschi, Maria Palmira da Silva, Ana Raquel Rosas Torres e Soraia Ansara. Importa dizer que ainda, que os trabalhos voltados às questões ligadas aos movimentos sociais sejam parcos, eles são densos e revelam o potencial da Psicologia Social para esse tipo de estudos. Do ponto de vista teórico, consideramos importante a retomada de George Herbert Mead como sendo um autor importante e que pode oferecer alguns importantes instrumentos de reflexão na compreensão de fenômenos psicossociais. De alguma forma estamos contribuindo para que ele volte à cena da Psicologia Social. Como já pontuamos no decorrer dessa dissertação, a retomada de Mead pela Psicologia Social é algo muito recente, visto que anteriormente ele fora utilizado quase que somente por lingüistas, sociólogos e filósofos. Mas de maneira especial, entendemos com significativos nossos esforços para contribuir para uma melhor sistematização do modelo analítico de estudos da consciência política proposto por Salvador Sandoval. Lembramos que este é o primeiro trabalho pautado por tal modelo. Alias, o fato de ser o primeiro constituiu-se um grande desafio, pois não tínhamos no que pautarmo-nos no decorrer do trabalho. Assim, o trabalho de Andrade (1998), ainda que não tomasse especificamente este modelo, foi como que o nosso trabalho-guia. Em nosso capítulo teórico empreendemos incontáveis esforços para, a partir de uma série de artigos publicados por Sandoval entre os anos de 1989 e 2001, dar uma maior organicidade ao modelo que, apesar de ser trabalhado pelo autor e o grupo de pesquisadores por ele orientados, não havia até o momento recebido um tratamento mais

Psicologia Política - SBPP. O estudo de Movimentos sociais é um dos temas clássicos a que os psicólogos políticos dedicam-se.

pontual. Nesse sentido, entendemos como importe a retomada de Mead para clarear nossa compreensão do modelo. Outro ponto que para nós é relevante nesse trabalho, é o fato dele ser o primeiro trabalho dentro da Psicologia Social que lança esforços para entender questões ligadas ao MST partindo da unidade familiar2. Isso revelou-se de fundamental importância no estudo do MST porque é com base no grupamento família e não no indivíduo que o movimento está organizado. Assim, todas as decisões tomadas pelo movimento trazem em si o caráter coletivo. O voto nas assembléias e nas reuniões de grupo, por exemplo, pertencem à família do acampado tal e não à fulano de tal, o que obriga à família fazer, mesmo que mínimas, discussões sobre os temas a serem votados. O valor da coletividade é um traço marcante na história dos trabalhadores rurais sem terra organizados no MST e é mais visível nos acampamentos do que nos assentamentos da reforma agrária. É na realidade do acampamento que os sentimentos de solidariedade estão mais aflorados; é nele que as metas de ação coletiva proporcionam o fortalecimento dos vínculos da identidade coletiva; é no acampamento que a tomada de consciência das privações vividas por cada sujeito permite a ressignificação de crenças e valores desse sujeito e o mútuo reconhecimento, o reconhecimento do outro com um igual e dos adversários que eles tem em comum. Essa nossa posição encontra respaldo tanto em nossa pesquisa de campo com acampados pois muitos deles são filhos de assentados, quanto em pesquisa como a de Andrade que dedicou-se a estudar assentados e constatou que "(...) a noção de solidariedade, de coletivo (...) já esteve presente na vida dessas famílias, nos momentos de luta pela terra e pela sobrevivência nos acampamentos, e que hoje parece estar esquecido" (Andrade, 1998:198) Como a posse da terra é a meta a ser alcançada por todos, notamos durante as análises das entrevistas que os interesses individuais encontram-se relegados a um segundo plano da consciência, a espera de um momento para que possam vir a tona. O discursos de 2

Parece-nos importante fazermos aqui, ainda que no final desse trabalho, algumas considerações históricas acerca da família como unidade produtiva. Segundo Stolcke mesmo durante o período da escravidão no Brasil, os proprietários rurais que mexiam com café tinham preferência pela contratação de famílias para cuidar da produção. Essa preferência se dava pelo fato de que mulheres e crianças auxiliavam durante a colheita. Esses contratos davam-se nos moldes da parceria. Após a abolição da escravatura, a preferência era por contratar homens livres que tivessem família, pois essa funcionava como reserva de mão-de-obra a preços menores que os praticados no mercado à época da colheita. Assim, com a mudança nas relações de produção, o trabalhador livre deixou o sistema de parceria e passou a ser remunerado. Esse fato ocasionou algumas alterações na divisão do trabalho familiar. Enquanto o homem continuava sendo líder da família, estabelecendo os contratos com os fazendeiros, mantendo o vínculo empregatício, recebendo e controlando todos os salários,; a mulher que antes era a dona de casa e a guardiã dos filhos, passa a realizar trabalhos sazonais. Lembramos que ainda hoje o trabalho da mulher é visto como sendo subsidiado ao do homem, que os salários pagos a ela no campo é muitas vezes menor que os pagos ao homem. Mas fato é que ainda que hajam inúmeras transformações no campo, a família ainda é a unidade produtiva que organiza essas relações.

todas as famílias, mesmo daquelas mais militantes, apontam para o instante do assentamento, do corte das terras. É nesse momento que se processa uma baixa dos sentimentos de solidariedade, de coletividade e um voltar-se para o seio familiar. Ë nesse momento que a desconfiança e o medo de ser explorado pelo companheiro vem à tona. Expressões como "Pra mim, melhor é o coletivo mas a gente não sabe o que tem nos coração das pessoa..." (Rosane); "Trabalho seguro 'e com os meus filhos e a minha esposa."(Osmar); "Coletivo (na plantação) é coisa de gente fraca, preguiçosa" (Liciel); "Eu sempre trabalhei sozinha." (Márcia), mostram claramente que para a grande maioria dos acampados as ações coletivas são uma espécie de trampolim, de mediação durante a luta por um pedaço seu de terra. Verdadeiramente há o reconhecimento de que para vencer os adversários que lhes impõe o lugar da marginalidade é preciso trabalhar juntos "(...) que nem a gente está trabalhando aqui" (Márcia). Mas essa premissa não se estende na maior parte dos casos

para além dos

momentos de sobrevivência no acampamento e de conquista da terra. Se

durante o

processo da luta impera a crença na mudança social, durante a fase posterior, de assentados, impera a crença na mobilidade social, na força familiar. Isso pode ser notado quando observamos as dificuldades que o movimento tem para organizar e manter as iniciativas coletivas em assentamentos da reforma agrária. Muitas das iniciativas que começam logo no início do assentamento acabam sendo frustradas no decorrer do tempo. É por isso que nós entendemos o período de acampamento como sendo um instante privilegiado para se gestar os sonhos coletivos, para que se possa organizar melhor o grupo para que possam obter sucesso em suas iniciativas coletivas quando forem assentados. Assim, o que percebemos é o acampamento como uma grande escola subutilizada pelo movimento. Identificamos o caráter pedagógico do MST, já que ele pode atuar como um agente político-pedagógico que, na interação com seu filiados, tem possibilidade de constituir espaços de discussão, de leitura crítica acerca da realidade desses sujeitos trazendo presente a sua matriz político-ideológica. Nesse sentido temos encontrado tanto nas entrevistas como em conversas informais durante nossa estada entre os acampados, falas que olham para o acampamento e para o MST como sendo uma grande escola em que velhos, adultos, jovens e crianças são alunos. A esse respeito Osmar colocou que "(...) o MST representa pra gente isso aí. A pessoa tando aqui, aqui você fica tranqüilo, sossegado, porque é uma educação. Eu acho que é uma escola porque você tem muito o que aprender. Por mais que você tá aqui, você tem muito o que aprender. Porque eles ensinam mesmo. Sempre cursos e mais cursos. Até

cursos eles deram aí esses dias aí. O que é certo, o que é errado, eles fala mesmo. Não tem esse negócio não". Escola, educação estão ligadas a disciplina e a transmissão de conhecimento. O papel formativo que deveria estar sob a tutela familiar é transferido em grande parte ao MST, a "grande família".

Assim, entendemos que a família passa por um certo

esvaziamento de suas funções. Na construção da consciência ela divide o papel formador com o MST. E é interessante notar que em muitos momentos há uma certa dubiedade na fala dos entrevistados. Quando eles se referem à luta eles se reconhecem como parte integrante do MST, como um 'Nós'. Contudo quando se referem a formação e a disciplina é como se não estivessem incorporados ao movimento, fazendo com que o MST passe a ser um 'Eles' que tem influência em suas vidas. Osmar ilustra essa questão que está presente em todas as falas, mesmo que daquelas famílias em que o ato militante é mais presente. Ao dizer "Porque eles ensinam mesmo", Osmar está delimitando uma fronteira entre a vida de acampado e a vida familiar, pois para ele a participação política no movimento é um ato transitório na vida familiar. E essa transitoriedade pode ser vista na maioria de nossos entrevistados ora de modo mais forte ora de modo mais brando. Assim, esse 'Eles' assume, muitas vezes, a face do poder que pode agir de forma coercitiva na vida desses sujeitos. Portanto, entendemos que a forma com que as questões ligadas à coletividade são tratadas de modo a cair equivocadamente na negação da individualidade. Para nós, é a negação da individualidade uma das grandes motivações do fracasso de estratégias coletivas desenvolvidas pelo MST. Por isso fazemos coro com aqueles que, como Souza, entendem que “(...) a autonomia dos indivíduos deve ser preservada num Movimento Social, caso contrário teremos objetivos racionais fixados, em detrimento do emocional, das opiniões individuais dos participantes. Garante-se as condições objetivas e as subjetivas são massacradas”. (Souza, 1994:242) É preciso que o movimento trabalhe com mais cuidado da relação existente entre coletivo e individual, pois, como já observou Bert Klandermans (1997), encontramos nos movimentos sociais "(...) ações coletivas de pessoas com objetivos e solidariedade. (...) Portanto são indivíduos concretos que pensam, sentem, desejam, sonham". Como já apontamos no capítulo quatro desse trabalho, as frentes de massa e os acampamentos são espaços privilegiados para essa empreitada e que encontram-se, ao nosso ver, subutilizados. Quando analisamos a realidade do acampamento a partir das duas categorias de trabalhadores rurais a que tivemos acesso no acampamento Carlos Mariguela, observamos

que os trabalhadores que tiveram uma experiência urbana tendem a significar a vida no acampamento, no MST como sendo o retorno às origens campesinas, a um passado em que as boas recordações estão presentes em oposição às dificuldades vividas na urbe do desemprego e da violência. Essa significação pode ser encontrada tanto nos discursos trazidos por Marcos que tem uma atuação mais próxima àquelas dos líderes do MST, quanto pela família de Márcia e Barbosa, que tem uma atuação intermediária entre a militância e base, estando mais próximos da base do que dos valores defendidos por militantes como Marcos, ou pela família de Tereza e Osmar que ainda está vinculada a proposições idealistas e bucólicas, do que seja viver no campo e do reencontro de uma certa harmonia familiar desde que deixaram a cidade. Contudo, nota-se que em cada configuração da consciência em que encontra-se cada um desses sujeitos, há elementos que apontam para o campo como sendo a possibilidade da melhoria de vida e para a superação da exploração capitalista presente na sociedade de consumo urbana. Osmar e Tereza já nos apontaram para essa questão quando relatavam a dificuldade de atender as demandas por produtos (por vezes de marca) que eram necessário mas que também eram a marca da inclusão de seus filhos em seus grupos de pertença. Segundo eles, ao regressarem para o campo esta pressão continua do consumo exercida sobre a família na realidade urbana não estaria presente na roça. Essa ausência abriria espaço para a construção de algo mais perene em oposição a transitoriedade que marca a sociedade de consumo. No caso de Marcos, vemos a preocupação por retomar sonhos que o universo das drogas e da violência, presente na periferia curitibana, como que lhe afugentou, tirou. A tranqüilidade presente em suas poucas experiências no meio rural e o seu imaginário do que seja a vida no campo, levam-no a associar-se à luta do MST. Assim, para ele esta é a grande oportunidade de resgatar a perspectiva de um futuro melhor e longe da marginalidade com que tivera contato na cidade. Márcia e Barroso não são muito diferentes dos demais. Depois de viverem na cidade de São Paulo por dois anos e de perceberem que por mais que trabalhassem não conseguiam garantir uma melhoria consistente em seu padrão de vida, resolvem retornar ao campo para lutar por uma chance de crescer economicamente. Todos eles tem em comum uma visão crítica e um tanto pessimista da vida urbana. Todos eles reconhecem que as possibilidades de ascender socialmente na cidade pode ser uma ilusão. Em outras palavras, a realidade do cotidiano - dura e penosa - quebrou-lhes algumas crenças e valores societais a respeito da urbanidade. Pode-se dizer que nesses

casos retornar ao campo é, além de desejo de ascensão social, resgate da dignidade que lhes foi usurpada no meio citadino, buscar um sentido para a vida, para a existência pessoal e de seu grupamento familiar. Vale notar que no caso deles retornar ao campo não significa abrir mão do conforto da vida urbana mas sim um meio pelo qual alcançá-lo seria menos desgastante. Essas são questões presentes nas falas dos trabalhadores de origem urbana. Já as nossas observações acerca das famílias de origem rural apontam para outra direção. As famílias de Paraguai e Rosane - que estão mais sintonizadas com o discurso do MST, de Liciel e Edir - que também tem uma boa sintonia, à exceção do que se refere ao trabalho coletivo no assentamento, e de Toninho e Juciane - que também está no mesmo espaço da experiência de Liciel e Edir, são por demais marcadas pela dor da expropriação. A experiência do conforto urbano passa longe de suas intervenções. Assim a luta contra o latifundiário e a luta contra a vida marginal a que foram submetidos assume um caráter mobilizador em suas experiências no MST. Aqui a noção de classe poderia ser identificada a partir do momento em que eles se reconhecem como um sujeito coletivo que tem interesses e adversários comuns e necessitam mobilizar recursos presentes em suas vidas e que são comuns a todos. A visão bucólica do campo dá lugar a concretude de um futuro com menos sofrimento para eles e seus filhos. Conforto é ter comida, saúde e trabalho. Mais do que isso já é um luxo que, sanadas as outras necessidades até pode vir. Através das entrevistas pudemos notar que, se para as famílias urbanas a luta é necessária para a superação das desigualdades, entre as famílias de origem rural observamos que mais do que necessária, ela é uma luta permanente, uma luta sem fim. Há entre os trabalhadores de origem rural uma postura mais crítica e a formação de vínculos de solidariedade baseadas no mútuo reconhecimento. Parece-nos que essa apreensão mais ampla, abrangente e crítica só é possível mediante a contraposição do sujeito ao outro; mediante a percepção pelo indivíduo de sua determinação social e de sua diferenciação do outro e das ações que ele mesmo é capaz de realizar. Assim, as ações transformadoras que ele pode realizar estão baseadas nesse conjunto de dimensões que organizam a consciência política e porque não dizer, social. Para nós, as preocupações expressas inúmeras vezes por Paraguai com a situação social não apenas de sua família, mas de todos aqueles que são seus companheiros de luta contra a existência do latifúndio no país, é um indicador de uma configuração da consciência política mais complexa. Isso se justifica a partir da concretude de suas falas e análises que superam a condição naturalizada no universo das crendices, da ideologia da

cartilha. Para nós, os depoimentos de Paraguai são o reflexo da maturidade política que é capaz de apreender as nuanças das relações e jogos próprios da arena política. Inicialmente pretendíamos também ter alcançado o grupo dos pequenos proprietários de terra e que são insuficientes para a subsistência familiar. Encontramos duas famílias no acampamento Carlos Mariguela mas que se negaram a colaborar conosco concedendo-nos entrevista apesar de termos com ela um convívio diário e próximo. Mas vale dizermos aqui que essas duas famílias encontravam-se bastante desmotivadas pois tinham a expectativa de lograrem seu quinhão bastante rapidamente. Havia entre os membros dessas famílias uma descrença na possibilidade de que as mudanças almejadas pelo movimento fossem possíveis. Mesmo assim, estavam lá acampadas como que orientadas por um sentimento bem pragmático: tentar um quinhão maior de terra do que aqueles que eles já têm e no qual plantam ordinariamente. Tivemos a clara impressão de que a experiência da propriedade da terra os diferenciaria bastante dos dois outros grupos que entraram firmemente na luta. Ainda que não tenhamos dados mais consistentes para fazer a adequada análise, arriscamos dizer que esse grupo traria alguns valores capitalistas bem mais arraigados que os outros em função de terem sido os únicos a terem experimentado o que significa ser proprietário. Esse grupo pareceu-nos estar bastante afinado com a mentalidade pequeno-burguesa própria da classe média brasileira. Todavia, queremos ressaltar o fato de que essas considerações estão no campo da hipótese e necessitariam ser investigadas em outra oportunidade e com mais cuidado para que equívocos e injustiças não fossem cometidos. Não poderíamos deixar de registrar aqui, que um dado que perpassa a todos os grupos refere-se à necessidade de se preservar um modelo de vida: o da família que trabalha unida produzindo na terra que é sua para sobreviver. Isso aponta para uma questão não estudada neste trabalho e que poderia ser melhor estudada em outra ocasião. Referimonos a fragmentação da família em função do êxodo rural. É importante notar que a manutenção da família no meio rural desejada por eles passa por transformações visto que a estrutura familiar encontra-se fragilizada no mundo contemporâneo. Isso vale também no meio rural. Não é a toa que a responsabilidade da disciplina, por exemplo, é compartilhada com o MST. Parece-nos que a posse da terra é, além de um projeto econômico que lhes possibilita ascender3 economicamente na sociedade rural, um espaço que consolida na terra. 3

Quando falando em ascensão, não estamos querendo dizer enriquecimento mas nos referendo a uma significativa melhoria de vida, a um resgate da dignidade humana que lhes fora roubada no processo de exclusão social.

Ainda vale destacar aqui a condição da mulher nos acampamentos. Ainda que não seja nossa intenção ingressar no campo das discussões de gênero, as contradições encontradas em nossas experiências relacionadas a isso são marcantes e merecem serem pontuadas aqui por nós por entendermos que elas representam o princípio de uma quebra política no universo patriarcal. Em todas as entrevistas homens e mulheres dizem de maneira categórica não haver diferenciação nos papéis do homem e da mulher na realidade do acampamento, contudo quando observamos a estrutura hierárquica do acampamento Carlos Mariguela, notamos que dos 10 coordenadores de grupo, apenas duas são mulheres e dos dez vice-coordenadores apenas uma era mulher. Nossa inquietude surgiu quando ouvimos falas masculinas como as de Osmar que dizia no decorrer da entrevista familiar que na ausência de consenso em casa seguia-se a sua opinião pois ele era "(...) o cabeça da casa, o chefe da família". Porém, durante sua entrevista individual, Osmar disse-nos que "(...) na hora de negociar, de decidir as mulheres são melhores que os homens porque elas tem a cabeça fria". Ainda que a melhor decisão, segundo Osmar, venha da mulher graças a sua "cabeça fria", o monopólio da decisão final lhe pertence. Postura semelhante pode ser encontrada na fala de Liciel. Ele diz que "(...) as mulher e as criança são importantes pra afastar as polícia que não bate nelas. Mas não é só isso elas tem capacidade, observa as coisa com mais calma que os home nas hora de tensão". Mas ainda assim Liciel acha que "(...) a Edir deve cuidar dos filho e da casa e não se mete nas coordenação da saúde como já fez". A ambigüidade presente nas falas dos homens acampados é notória. Ainda que reconheçam o potencial de suas companheiras, eles continuam numa posição comodista, machista e cômoda que é ratificada muitas vezes pela submissão silenciosa das mulheres que assumem o lugar das cuidadoras do lar e das guardiãs dos rebentos. Mesmo assim, entendemos ser o reconhecimento da capacidade da mulher no campo decisório um avanço importante nas relações de gênero dadas no meio rural: um meio eminentemente machista e conservador. Para nós, as falas masculinas que reconhecem o potencial feminino como sendo algo que extrapola o limite geográfico do tanque e do fogão, são fruto das experiências vividas no interior do acampamento. Ë dentro da vida diária do acampamento que trabalhos organizados pelo grupo de mulheres que atua com Márcia na distribuição do leite ou no cuidado da saúde no acampamento ou ainda nos trabalhos de coordenação de grupo como fazem Marilú e Márcia que são transformados sócio-histórica e politicamente os conteúdos das crenças e sentimentos de eficácia política em relação ao trabalho feminino.

Quando observamos a totalidade das entrevistas, notamos que é patente o fato de que os sujeitos, guardadas as diferenciações das configurações de suas consciências políticas, tem claro para si questões como sua condição social de pobreza; das dificuldades advindas de sua resistência no meio rural; a sua condição de igual ao outro e da necessidade de unirem forças para a realização de seus sonhos, seu objetivo maior que é a conquista da terra. Eles demonstram, assim, uma forte consciência das precariedades enfrentadas por eles e de como elas lhes foram impostas através das políticas estatais que beneficiam apenas aos poderosos e um alto sentimento de solidariedade e de mútuo reconhecimento. Contudo, nem todos eles demonstram ter uma consciência de classe que se evidencia na crença de que sua ascensão social dentro do universo agrário; a superação da intolerável precariedade de suas condições de vida só é possível mediante a luta coletiva e que se expressa nas ações particulares e organizadas na coletividade. Os depoimentos de modo geral são contraditório. Eles são marcados por um hiato entre o discurso e a ação. Em outras palavras, os sujeitos por nós entrevistados sabem de alguma forma, com maior ou menor clareza, que para transformar sua realidade muitas são as variáveis a serem mexidas. E entre essas variáveis a que está mais próxima e depende exclusivamente deles é a decisão pessoal de cada um em aderir a essa luta que não é de um ou outro militante do movimento, mas de todos aqueles que tiveram sua dignidade negada e que são capazes de se reconhecer como iguais e fazerem de suas lutas pessoais uma luta de todos.

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ANEXOS

Apresentamos aqui dois gráficos fornecidos pelo ITESP nos quais pode-se observar dados referentes 1) às áreas de conflitos fundiários no Estado de São Paulo existentes até outubro de 2000 e 2) ao número de famílias e assentamentos instalados em São Paulo distribuídos por coordenação regional do ITESP.

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