Acesso à água potável declarado direito humano

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Acesso à água potável declarado direito humano Renata Farias - 12/08/2010 - 00h00

Espaço do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) em Última Instância (http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/colunas/2955/acesso+a+agua+potavel+d eclarado+direito+humano.shtml) No último dia 28 de julho, a Assembleia Geral das Nações Unidas[1], reunida na sua 64º sessão, pôs termo a uma discussão de uma década e meia, reconhecendo o direito humano à água potável e ao saneamento. Sem consenso, e com 122 votos favoráveis, as Nações Unidas adotaram uma Resolução que conclama os Estados e organizações internacionais a propiciarem condições financeiras, capacitação e transferência tecnológica para garantir saneamento e água potável segura, limpa e acessível a todos. A ideia do direito à água não é estranha nos documentos internacionais e o direito foi reconhecido em vários textos normativos. A resolução da Assembleia Geral 58/217 já lançava as bases para o reconhecimento do acesso à água potável e do saneamento como direito fundamental, destacando que "a água é essencial ao desenvolvimento sustentável, incluindo a integridade do meio ambiente e a eliminação da pobreza e da fome, e é indispensável à saúde e ao bem-estar das pessoas". A proclamação do período de 2005-2015 como Década internacional de ação, "Água, fonte de vida", determinou a prioridade na execução de programas e projetos relativos à água. O Conselho de Direitos Humanos também produziu resoluções específicas sobre os direitos humanos e o acesso à água potável salubre e ao saneamento [2]. Ainda mais específica, a Observação Geral nº 15 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o direito à água, de 2002, introduziu de maneira clara os fundamentos jurídicos do direito à água. O Comitê partiu da constatação que o exercício do direito à água é sistematicamente negado, tanto nos países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos, e destacou que "a tendência persistente à contaminação da água e ao esgotamento das reservas de água e sua repartição desigual exacerbam a pobreza". Para o órgão onusiano, o direito à água consiste em um abastecimento suficiente, fisicamente acessível e a um custo abordável, de água salubre e de qualidade aceitável para a utilização pessoal e doméstica de cada um. Esse entendimento extrai-se do parágrafo 1º do artigo 11 do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[3], cujo enunciado elenca, em um catálogo não exaustivo, um número de direitos decorrentes do direito a um nível de vida suficiente.

É certamente o melhor entendimento que o direito à água pertence ao rol das garantias fundamentais para assegurar um nível de vida suficiente. Igualmente associado ao direito "ao melhor estado de saúde suscetível de ser alcançado", esse direito deve ser considerado conjuntamente com os direitos consagrados na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, em especial o direito à vida e à dignidade, logo, é elemento fundamental à liberdade, à justiça e à paz no mundo. É indiscutível o caráter essencial da água na realização de vários direitos fundamentais ao desenvolvimento e muito claramente a atividades como a produção alimentar e a higiene, estreitamente ligadas a direitos econômicos e sociais tais como o direito à alimentação suficiente e direito à saúde. O Comitê vai além ao declarar que a prioridade na utilização da água deve ser para uso pessoal e doméstico e à prevenção da fome e das doenças, bem como ao respeito das obrigações fundamentais decorrentes dos direitos inscritos no Pacto. Convém notar que, além da referência aos textos normativos das Nações Unidas, em especial às resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos, a Resolução fundamenta-se em dois relatórios, o estudo produzido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre o conteúdo e a extensão das obrigações concernentes ao acesso equitativo à água potável e ao saneamento consignadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, e o relatório da expert independente Catarina de Albuquerque, mandatária do Conselho de Direitos Humanos para examinar a questão das obrigações referentes aos direitos humanos no que concerne o acesso à água potável e ao saneamento. A Comissária Louise Arbour (2004-2008), após um processo de consulta que reuniu contribuições de Estados, organizações intergovernamentais, ONG, setor privado, Universidades, concluiu, em 2007, que era chegada a hora de considerar o direito à água potável e ao saneamento como um direito humano. Considerou que os instrumentos normativos existentes permitiam especificar as obrigações dos Estados, mas que seria necessário dar orientações práticas detalhadas sobre pontos como: conteúdo normativo das obrigações referentes aos direitos humanos em matéria de saneamento, obrigações pertinentes aos direitos humanos em matéria de elaboração de uma estratégia nacional de água e saneamento; a regulamentação de serviços privados de água e saneamento; critérios de proteção do direito à água potável e ao saneamento em caso de interrupção de serviço, obrigações próprias dos municípios. O mandato confiado à consultora pelo Conselho de Direitos Humanos deriva dessas conclusões. Merece destaque no relatório da consultora Catarina de Albuquerque a recomendação que a decisão do Estado em delegar ou não o fornecimento do serviço de água deve, independente da modalidade escolhida, ser tomada dentro de um processo democrático e participativo. A expert enfatiza que todas as partes interessadas devem ter a oportunidade de participar durante todo o processo, monitorar e denunciar eventuais violações aos direitos

humanos. Essa participação deve ser ativa, livre e significativa e deve possibilitar uma real oportunidade de influenciar a tomada de decisão. A Resolução adotada é sucinta e certamente seria bom ver uma mensagem mais clara sobre a responsabilidade dos Estados na garantia desse direito. As recomendações dos estudos que a fundamentam devem contribuir para reforçar os parâmetros utilizados pelo Comitê de Humanos no exame dos relatórios dos Estados membros no que se refere ao tratamento do direito à água, no seu reconhecimento pelas constituições e legislações nacionais e reconhecimento da sua exigibilidade pelos tribunais. Embora as resoluções da ONU tenham o caráter de normas multilaterais de consenso, cujo descumprimento muitas vezes não acarreta nem as próprias sanções previstas em sua Convenção, a nova Resolução expressa a preocupação da Assembleia, ou seja, do conjunto de Estados soberanos que a compõem, com o fato de que "884 milhões de pessoas no mundo não têm acesso a uma água potável de qualidade e que mais de 2,6 bilhões não dispõem de instalações sanitárias básicas", e destacou que cerca de dois milhões de pessoas, a maioria crianças, morre anualmente por doenças causadas pelo consumo de água não potável e pela falta de instalações sanitárias. Os Estados membros também destacaram o compromisso da comunidade internacional na realização dos Objetivos do Milênio[4], em especial o objetivo 7, que visava, em 2000, reduzir pela metade, até2015, a percentagem da população que não dispõe de acesso ao fornecimento de água potável nem de serviços de saneamento básico. Apesar de algumas melhoras sinalizadas com relação ao acesso em zonas rurais[5], a segurança do abastecimento de água permanece um desafio, principalmente na perspectiva das mudanças climáticas e é urgente que sejam tomadas medidas suficientes e eficazes para garantir o exercício do direito à água potável para todos de maneira sustentável. Alguns temas pertinentes ao direito à água e saneamento têm preocupado particularmente as organizações de consumidores. Além do acesso propriamente dito, as organizações chamam

a

atenção

para

elementos

fundamentais

nesse

debate:

propriedade,

abastecimento, tarifas, regulação do setor, e meio ambiente, destacando a importância do envolvimento da sociedade civil na governança da água. Por essas razões, a água foi o tema da campanha do dia mundial dos consumidores de 2004[6], promovida pela Consumers International, organização mundial de consumidores que congrega mais de 200 organizações de defesa do consumidor em todo o mundo, e continua sendo tema prioritário para as organizações de consumidores. Embora o consumo mundial de água tenha sido multiplicado por mais de 5 ao longo do século XX, o acesso à água contínua e de qualidade permanece desigual. Em estudos das organizações de consumidores na última década, verificou-se que a parcela mais pobre da

população frequentemente paga mais para o acesso, precário, à água. Aqueles que não têm acesso às ligações regulares de fornecimento de água pagam entre 10 e 100 vezes mais. No Brasil, a realidade do acesso água potável mostra duas faces que concorrem para um mesmo problema. O acesso à água ainda é restrito, em grande parte em razão do valor da tarifa. Por outro lado, há um elevado desperdício. O Brasil é um dos países com as maiores reservas de água potável do mundo, entretanto, compõe também a lista dos que registram o maior índice de desperdício. Ao desperdício estrutural, entre a estação de tratamento e o consumidor, que pode alcançar absurdos 70% em algumas capitais, como Belém e Manaus, segundo dados do Instituto Socioambiental, soma-se o desperdício resultante das práticas domésticas. A média de consumo domiciliar no país, 150 litros diários per capita, está 40 litros acima do recomendado pela ONU, embora muito aquém do insustentável padrão de consumo norte americano (600 litros) e da média europeia (entre 250 e 350 litros). A média brasileira esconde realidades muito diferentes, nas diferentes regiões e classes sociais, as quais comportam os extremos verificados nos Estados Unidos e na África Subsaariana. O percentual de domicílios atendidos por rede geral de abastecimento no total de domicílios particulares permanentes no Brasil atinge 83,3%, enquanto que na região Norte não passa de 55,9%[7]. Acesso e qualidade nem sempre andam juntos. Testes promovidos pelo Idec sobre a qualidade da água de abastecimento em cidades de Estados brasileiros desenvolvidos, como Rio de Janeiro e Paraná, em 2000 e 2001, constataram que a população recebia, em alguns locais, água contaminada por coliformes. O Brasil dispõe de norma estabelecendo os procedimentos e responsabilidades relativos ao controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade[8]. Entretanto, de acordo com uma Pesquisa realizada pelo Ministério das Cidades entre março de 2008 e agosto de 2009, no âmbito do Programa de Modernização do Setor Saneamento, os municípios não monitoram a qualidade da água. A pesquisa foi feita em 1.907 municípios e apontou uma série de dificuldades para cumprir as normas relativas à qualidade da água. Em mais da metade das respostas, as empresas responsáveis pelo serviço de água afirmam que têm grande dificuldade para realizar as análises determinadas pelo Ministério da Saúde e alegam falta de recursos para o cumprimento do disposto na norma. É responsabilidade das secretarias municipais de saúde cobrar o cumprimento dessas normas pelas empresas de abastecimento, refazendo análises e exigindo relatórios, mas 51% das secretarias municipais de saúde dizem que os investimentos de sua cidade em vigilância da qualidade da água são insuficientes. Quando se trata de saneamento, no Brasil, como no mundo, a falta de acesso ao saneamento básico tem repercussões nefastas na vida das pessoas, mas permanece um

dos temas mais negligenciados. Segundo o IBGE, o esgotamento sanitário adequado (rede coletora ou fossa séptica) só atinge 73,6% dos domicílios permanentes, o que equivale dizer que mais da metade da população não têm acesso a esgotamento sanitário, sendo que 60% do esgoto gerado nas cidades brasileiras é despejado em rios ou absorvido pelo solo. A falta de acesso a saneamento básico atinge principalmente a população mais pobre e com menor grau de instrução, perpetuando um ciclo de exclusão social. Como consequências mais imediatas da falta de políticas públicas adequadas que garantam esse direito fundamental temos que, na última década, cerca de 700 mil internações hospitalares ao ano foram causadas por doenças relacionadas à falta ou inadequação de saneamento[9], e que sete crianças morrem todo dia no país, em decorrência de doenças diarreicas. Apesar da Lei 11.445/07, que contou em seu processo a discussão de vários atores, incluindo o Idec e Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor, ter trazido avanços no marco regulatório do saneamento, determinando diretrizes gerais para a política de saneamento e princípios, dentre os quais o da universalização do acesso, não garantiu a todos os consumidores acesso contínuo aos serviços de saneamento. É de se notar que o Brasil votou a favor da Resolução das Nações Unidas, e seu representante na Assembleia manifestou-se afirmando que o direito à água e saneamento está intrinsecamente conectado ao direito à vida, à saúde, à alimentação e moradia adequadas, e que é responsabilidade dos Estados garantir esses direitos a todos os cidadãos. A proposta é boa, mas necessita ser posta em prática de maneira efetiva.

[1]

A Assembleia Geral é a assembleia deliberativa principal das Nações Unidas.

Composta por todos os Estados membros das Nações Unidas, suas Resoluções não são vinculativas para os membros. [2]

Resolução 7/22 de 28 de março de 2008 e 12/8 de 1º de outubro de 2009.

[3]

O Pacto, adotado pela Resolução 2200A da Assembleia Geral das Nações Unidas de

16 de dezembro de 1966, teve a adesão do Brasil em janeiro de 1992 e entrou em vigor no Brasil, na sua integralidade, em 24 de abril de 1992. [4] Os Objetivos do Milênio, estabelecidos em 2000, definem um padrão de necessidades humanas que cada pessoa, em todo o planeta, deve ver satisfeitas e os direitos fundamentais que todos devem poder gozar: proteção contra condições extremas de pobreza e fome, acesso à educação de qualidade, emprego produtivo e decente, acesso à saúde de qualidade e habitação, direito das mulheres de poder dar à luz sem por em risco suas vidas; um mundo onde o desenvolvimento sustentável é uma prioridade e onde homens e mulheres estão em pé de igualdade. [5]

Relatório

dos

Objetivos

do

Milênio

junho

2010

http://www.un.org/millenniumgoals/pdf/MDG%20Report%202010%20En%20r15%20low%20res%2020100615%20-.pdf

Página visitada em 05/08/2010.

-

[6]

Os documentos da campanha estão acessíveis no site da Consumers International

http://www.consumersinternational.org/Templates/Internal.asp?NodeID=90183&int1stParen tNodeID=89650&int2ndParentNodeID=90546 [7]

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2007 (IBGE)

[8]

Portaria 518/2004 do Ministério da Saúde

[9]

Fonte: SIH (Sistema de Informações Hospitalares) e SUS (Sistema Único de Saúde),

citados por Instituto Terra Trata

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