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May 30, 2017 | Autor: F. Marion Spengler | Categoria: Conflitos sociais, Processo Civil, Conciliação, Mediação e Arbitragem, Jurisdição
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Multideia Editora Ltda. Alameda Princesa Izabel, 2.215 80730-080 Curitiba – PR +55(41) 3339-1412 [email protected]

Conselho Editorial Marli Marlene M. da Costa (Unisc) André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Salete Oro Boff (UNISC/IESA/IMED) Carlos Lunelli (UCS) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Liton Lanes Pilau (Univalli) Danielle Annoni (UFSC)

Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED)

Coordenação Editorial: Fátima Beghetto Capa: Sônia Maria Borba

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte Spengler, Fabiana Marion (Org.) S747 Aceso à Justiça e Mediação [recurso eletrônico] / organização de Fabiana Marion Spengler e Theobaldo Spengler Neto – Curitiba: Multideia, 2013. 202 p.; 23 cm ISBN 978-85-86265-80-8 (VERSÃO ELETRÔNICA) 1. Acesso à justiça. 2. Mediação. 3. Justiça Restaurativa. I. Spengler Neto, Theobaldo (org.). II. Título. CDD 340.1(22.ed) CDU 340 É de inteira responsabilidade dos autores a emissão dos conceitos aqui apresentados. Autorizamos a reprodução dos textos, desde que citada a fonte. Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98.

FABIANA MARION SPENGLER THEOBALDO SPENGLER NETO ORGANIZADORES

ACESSO À JUSTIÇA & MEDIAÇÃO

Curitiba 2013

PREFÁCIO A força normativa e substantiva dos Direitos Humanos como horizonte de sentido para a construção de uma nova cultura Jurisdicional: repensando lugares, procedimentos e conteúdos.

Nunca se viu uma tensão e um debate tão grandes sobre a função jurisdicional como atualmente. Críticas, sugestões e diversas análises são dirigidas à atividade jurisdicional por diferentes segmentos sociais. A crise é uma constatação que ninguém ou quase ninguém contesta e as soluções apresentadas são de múltiplas orientações. Fala-se muito em controle externo do Poder Judiciário, em reformas processuais para agilizar a prestação da “justiça”, em reformas estruturais, em qualificar a formação dos magistrados e em outras temáticas que envolvem direta ou indiretamente o tema. Parece que a angústia em apresentar soluções provoca uma apatia do diálogo e gera proposições perigosas, capazes apenas de tentar atender aos reclamos pragmáticos de uma realidade complexa. Mas antes de reagir, de responder ao quadro de dificuldades é preciso perguntar, ou no mínimo perguntar de modo mais qualificado, sobre quais são as funções da Jurisdição ou, dito de maneira diferente, o que uma sociedade democrática, que valoriza a diversidade e se fundamenta na proteção dos direitos humanos, espera da atuação jurisdicional e do próprio Estado no contexto de uma sociedade complexa. A negação do diálogo, a castração da diferença e a racionalização estereotipada, que marca os mecanismos tradicionais de solução de conflitos e que gera apenas soluções jurídicas formais e não sociais substanciais têm pautado também o conjunto de respostas/soluções dadas para resolver as crises operacionais do Poder Judiciário. Isto é, o tecnicismo exagerado e o racionalismo cartesiano, que cegaram o direito positivo para a sensibilidade e para as necessidades históricas, continuam a cegar os operadores do direito e a induzi-los a reducionismos explicativos, um verdadeiro risco para a democracia.

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Pensar o direito, os conflitos sociais e a Jurisdição no contexto da realidade social contemporânea não significa negar as conquistas e as virtudes da modernidade inacabada; significa, antes, repensar o direito, os conflitos e a Jurisdição para fortalecê-los. O grande desafio é humanizar o direito/Jurisdição para poder compreender os conflitos sociais também em sua dimensão humana, e não apenas jurídica, o que permitirá reconhecer nas novas formas de litigiosidade a revelação das próprias formas da humanidade, que se reproduzem e se inovam, também, pelos conflitos sociais. Como a modernidade forjou uma Jurisdição limitada para atender a uma conflituosidade rotulada aprioristicamente e limitada geograficamente em sua abrangência, para o jurista o conflito racionalizou-se, juridificou-se e perdeu o seu viés humano. O aumento e a complexidade dos conflitos contemporâneos desafiam o purismo metodológico e a racionalidade hermética do direito positivo moderno que, ao racionalizar e centralizar o direito/Jurisdição, negou epistemologicamente a pluralidade/diversidade do conflito e perdeu a criatividade e a inventividade para tratar com o novo e com situações não padronizadas. E como os conflitos não podem ser eliminados da realidade social, uma sociedade complexa constitui-se de conflitos complexos, de conflitos não tabulados e não estereotipados, de conflitos que a racionalidade tradicional não consegue entender e atender. E o quadro não é de otimismo, pois, nos destroços dessa Jurisdição incapaz de compreender a essência humana do conflito e insuficiente para organizar a realidade social contemporânea, não surgem soluções emancipadoras, mas apenas novos ambientes de regulação e de solução de conflitos que, por sua vez, tendem a adaptar-se mais à “cultura” do mercado e do consumo do que ao projeto democrático. A Jurisdição tradicional, além de ceder espaços e ser questionada por novas formas de solução de conflitos, é repensada a partir da eficiência do mercado e obrigada a “produzir” soluções jurídicas em tempo real, mesmo que isso signifique muitas vezes a perda de garantias processuais. Os conflitos sociais não são aprisionáveis por modelos e por fórmulas padronizadas. Seguem o curso da história, alimentam-se em várias fontes e reproduzem o próprio dinamismo das relações humanas. Os conflitos impulsionam para o novo, são necessários para produzir a vida,

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para declarar as diferenças e para aceitar os diferentes. Para os juristas e para a Jurisdição tradicional a teoria do conflito é a inexistência do conflito, é a tentativa de evitá-lo, de repensá-lo e de redefini-lo como litígio ou como controvérsia jurídica. A padronização do conflito e a negação da diferença e do diferente tornam a Jurisdição um espaço muito frágil, um ambiente desorientado, confuso e incapaz de trabalhar com um contexto social constituído pela diversidade, pelo pragmatismo, enfim, pela complexidade que não se deixa conceituar e aprisionar. As expectativas sociais não são consensuais, pois representam a pluralidade de interesses e de concepções de justiça, situação que se agrava nas sociedades de abissal desigualdade material e que denuncia a insuficiência e o descompasso da razão burocrática jurisdicional para atender ao conjunto de demandas da sociedade. O aparecimento de novas formas de resolução de conflitos é exemplo desta crise, que é uma crise dos paradigmas do direito, que afeta a organização da sociedade. A Jurisdição deve constituir-se em um espaço público de debate, local privilegiado para expor e tratar das diferenças em conflito. Não pode ser ambiente de constrangimento, de usurpação do desejo e de negação do cidadão, sob pena de cultivar um autoritarismo devastador de sonhos e reprodutor de uma visão simplista e reducionista da realidade social. Não se pode estimular um modelo jurisdicional que se assente na rejeição da diversidade, na castração das particularidades e na generalização dos sujeitos. A democracia exige olhar e valorizar as diferenças, comprometer-se com cidadãos históricos (Pedros, Paulos, Marias) e não apenas com sujeitos processuais (réus, autores, eleitores, contratantes, etc.), e humanizar a aplicação do direito e os próprios conflitos sociais. Isso faz lembrar Warat e sua preocupação com uma magistratura que parece resolver conflitos que lhe são alheios, sem sentir a existência daqueles que fazem parte do próprio conflito. As respostas são dadas sem a participação do outro e a responsabilidade é atribuída exclusivamente à norma. Os juízes, segundo o autor, “deci-

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dem conflitos sem relacionar-se com os rostos. As decisões dos juízes são sem rosto”1. A força normativa dos direitos humanos substancializou o papel do Estado, construindo novos contornos para a sua agenda de possibilidades jurídico-políticas. Essa profunda alteração não representou, contudo, apenas uma mudança na postura valorativa, de afirmação e reconhecimento da dignidade humana como núcleos fundantes do Direito, mas significou também uma reformulação e questionamento sobre a validade do direito e a sua própria operacionalidade tecnológica. Como tecnologia que também é, o direito precisa reinventar-se, ser criativo ao ponto de construir ferramentas novas, procedimentos eficientes para garantir o enfrentamento da nova realidade e sobretudo para satisfazer um conjunto de novos direitos, de base epistemológica cada vez mais complexa e desconectada da temporalidade e espacialidade modernas. Seja em um ambiente nacional ou pós-nacional, a necessidade de diálogo com novos atores, novos lugares e o reconhecimento de demandas complexas, faz dos Direitos Humanos um critério epistêmico, valorativo e tecnológico importante para a construção e avaliação de novas ferramentas jurisdicionais e administrativas. O discurso dos Direitos humanos precisa ser, cada vez mais, um discurso normativo sem deixar de ser utópico e prospectivo. Isso significa que as instituições deverão ser avaliadas segundo o atendimento aos níveis de satisfação desses direitos sem obstruir a própria capacidade reivindicativa de sua natureza. Levar a sério os Direitos Humanos em todas as suas dimensões é condição de possibilidade para travar disputas em todos os espaços institucionais e não institucionais, criar uma nova cultura de ensino e aprendizado do direito e fortalecer uma postura política e jurídica democrática fortemente republicana que seja capaz de enfrentar ranços históricos da desigualdade social de todos os tipos. Sem esse enfrentamento jurídico republicano a Jurisdição tenderá a reproduzir velhas fórmulas técnicas no enfrentamento de problemas novos, apresentando ótimas soluções para problemas que não existem mais (a não ser na cabeça de juristas) ou soluções atrasadas e des1

WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. v. 1, p. 214-215.

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conectadas para um modelo de mundo que não existe mais. Para além disso, não faltam acusações sobre uma espécie de apropriação e confusão cada vez maiores entre os papéis jurisdicionais e aqueles de responsabilidade da política, cenário que revela os benefícios do envolvimento da jurisdição com a proteção dos direitos fundamentais, mas que também deixa transparecer a continuidade e a fragilidade das estratégias jurisdicionais tradicionais na promoção desses mesmos direitos. O modelo de Jurisdição moderna não consegue enfrentar as demandas da economia global e os conflitos multiculturais que caracterizam a excessiva diversidade da sociedade atual, de modo que a elaboração de um novo paradigma de resolução de conflitos deve ser conduzida a partir de pressupostos comprometidos com a ampliação e o fortalecimento das conquistas democráticas. Furtar-se ao diálogo e ao compromisso de reinventar a racionalidade jurídica neste momento de dificuldades significa permitir que as soluções se deem à revelia dos interessados, distante das preocupações e dos espaços sociais que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, produzem o conflito e retratam a atualização das demandas públicas pela própria implantação do litígio, seja ele absorvido ou não pelo direito estatal. Em outras palavras, quanto mais a Jurisdição sofre com um conjunto de demandas internas e externas que não consegue solucionar, mais claro fica que tanto as expectativas dos grupos marginais excluídos como dos grupos marginais que se excluem não estão sendo absorvidas nem se revelam capazes de atualizar as razões operacionais e funcionais do direito. A Jurisdição será capaz de conviver com tantos ambientes decisórios internos e externos? Não chegou o momento de se pensar novas maneiras de produzir respostas jurídicas às demandas sociais, capazes de valorizar espaços constituídos pela sociedade civil de forma democrática? Por certo, não será o mercado que dará as diretrizes de uma reforma jurisdicional afinada com os direitos sociais e com as conquistas constitucionais que marcaram o cenário jurídico do século XX como um tempo de significativos avanços para a afirmação da democracia. O mercado não tem compromisso com o desenvolvimento das nações, não age em razão de sentimentos de soli-

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dariedade e tampouco se preocupa com a implantação das políticas sociais presentes nas cartas constitucionais contemporâneas. Nesse cenário de inquietações e preocupações, o livro Acesso à Justiça e Mediação, organizado pela professora Fabiana Marion Spengler, grande estudiosa do assunto, e pelo professor Theobaldo Spengler Neto, cumpre um papel muito importante na missão de compreender a crise de identidade funcional do Poder Judiciário e de avaliar as alternativas à Jurisdição tradicional que têm aflorado como respostas para o déficit operacional na prestação da Justiça brasileira, especialmente a mediação. Com textos de experimentados e de jovens pesquisadores, esta obra apresenta leituras mais didáticas e outras mais substanciais sobre os contornos teóricos, dificuldades, e aplicações da mediação como alternativa para (re)ver o conflito, (re)posicionar os atores sociais e cultivar processos pacíficos de entendimento e diálogo. Um livro que deve ser lido com um olhar atento e otimista, mas não romântico, capaz de fazer perceber as fragilidades de nossa jurisdição tradicional e, ao mesmo tempo, ser potente para lançar novas compreensões sobre o Direito e sobre as formas de realizá-lo. Eis aí o impacto da mediação sobre o Direito: denuncia as precariedades do julgar moderno no momento que descobre o valor positivo e histórico do conflito e seus atores, e os reconhece de modo humanista, com tudo o que isso possa significar.

Ijuí, 08 de setembro de 2013.

Doglas Cesar Lucas Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma Tre, Itália. Doutor em Direito pela Unisinos e Mestre em Direito pela UFSC. Professor nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da Unijuí. Professor no Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA. Pesquisador do CNPq. Avaliador do MEC/INEP.

SUMÁRIO A BUSCA DE OUTRAS ESTRATÉGIAS NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ......................................................................................................................... 13 Theobaldo Spengler Neto Augusto Reali Beck A ABORDAGEM AO CONFLITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DO PODER JUDICIÁRIO VERSUS A MEDIAÇÃO ..................... 37 Charlise P. Colet Gimenez Marina Vetoretti AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO ESTADO E PELA JURISDIÇÃO E A MEDIAÇÃO COMO MÉTODO EFICAZ NO TRATAMENTO DE CONFLITOS .................................................................................. 59 Ana Carolina Ghisleni CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MEDIAÇÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA ............................................................................................................................... 83 Roberta Marcantônio Jaiane Braga da Silva O ALCANCE DA DISSOLUÇÃO DOS CONFLITOS POR MEIO DE PRÁTICAS NEGOCIATIVAS .........................................................................................107 Augusto de Mello Caroline Pessano Husek Silva O ACÚMULO DE DEMANDAS E A MOROSIDADE DA JUSTIÇA CÍVEL NO BRASIL ........................................................................................................................129 Fabiana Marion Spengler Helena Pacheco Wrasse QUEBRA DE PARADIGMAS: OUTRO MEIO DE ACESSO À JUSTIÇA ..........153 Josiane Rigon Caroline Wüst

MEDIADORES X JULGADORES: FACES DE UMA MESMA MOEDA1 .......... 169 Josiane Caleffi Estivalet JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA POLÍTICA PÚBLICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL NOS CASOS DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR ......................................................................................................................... 185 Marli Marlene Moraes da Costa Rosane Teresinha Carvalho Porto

A BUSCA DE OUTRAS ESTRATÉGIAS NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Theobaldo Spengler Neto Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2000), onde atualmente é professor adjunto. Professor de Direito Processual Civil (Processo de Conhecimento, Processo de Execução, Procedimentos Especiais e Processo Cautelar) e de Direito Civil - Responsabilidade Civil. Vice-líder do Grupo de Pesquisas “Políticas públicas no tratamento dos conflitos”, certificado ao CNPq. Coordenador do Centro de Pesquisas Jurídicas do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Sócio titular do escritório Advocacia Spengler Assessoria Empresarial – SC. Contato: [email protected]. Augusto Reali Beck Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - Unisc, bolsista de iniciação científica sob orientação do Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto, PUIC, no projeto “Acesso à Justiça, Jurisdição (In)Eficaz e Mediação: a Delimitação e a Busca de Outras Estratégias na Resolução de Conflitos”, coordenado pela Profª. Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler.

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INTRODUÇÃO

O direito de se acessar a Justiça pode ser traduzido como a garantia de se ter assegurado acesso ao próprio Direito. Em se tratando este de verdadeiro fenômeno social, ao passo que é expressão das clamantes reivindicações populares ao longo da história e quiçá o mais notável rebento da coletividade humana, não há se admitir afronte justamente ao princípio que o consagra. No Brasil, o encargo de promover justiça é confiado primordialmente ao Poder Judiciário, que deverá inafastavelmente manifestar-se no sentido de dirimir os litígios postos à sua apreciação, sendo-lhe vedado estabelecer qualquer tipo de critério discriminatório entre eles que importe declínio da prestação jurisdicional. Corolá-

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rio lógico, se não pode o Judiciário se furtar da análise do caso concreto, independentemente de suas proporções, ofensa maior ainda ao Direito seria a distinção entre os que litigam ou pretendem litigar. Na prática o que se verifica, porém, é um cenário de gritante segregação jurisdicional, reflexo principalmente da segregação econômica e cultural enfrentada pela sociedade. O Poder Judiciário brasileiro se tornou território hostil para parcela da população, que vê dessarte, comprometida a defesa de seus direitos. Em prol destes, e como obrigação moral e legal, foram concebidos instrumentos jurídicos no intuito de ver encurtada a distância que os afasta do Direito. Desde 1841 – ano de introdução da primeira ferramenta com este propósito - o modelo brasileiro de promoção ao acesso à Justiça evoluiu, partindo da concepção de gratuidade judiciária como único benefício ao carente até chegar à ideia hodierna de assistência jurídica integral. Muitos ainda são os obstáculos que se opõe ao acesso de parcela da população ao Judiciário. Além dos elevados custos relativos ao trâmite processual, a demasiada delonga para se obter a solução de uma lide contribui para o desprestígio da instituição para com o cidadão. O presente ensaio objetiva explicitar os principais fatores que afastam o cidadão brasileiro da prestação jurisdicional estatal. Preliminarmente, a necessidade de se promover o acesso à Justiça é explicada à luz do princípio da igualdade, ponto de partida para qualquer divagação acerca do tema. Em seguida, são contemplados os obstáculos que mais fortemente incidem sobre o acesso e é realizada sintética busca histórica na legislação brasileira pelos instrumentos originários da crescente preocupação com a segregação jurisdicional no País. Após, são apreciadas as propostas mais contundentes do Projeto do Novo Código de Processo Civil – atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados – no sentido de garantir participação igualitária dos litigantes, atenuação da demasiada onerosidade que implica o processo, simplificação dos procedimentos e, acima de tudo, eficácia da prestação jurisdicional. Finalmente, voltam-se as atenções para a mediação, estratégia alternativa à prestação jurisdicional tradicional que em seu bojo acolhe diversos pontos tutelado pelo direito de acesso à Justiça.

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FUNDAMENTO DE PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A NECESSIDADE DE CORRETAMENTE INTERPRETÁ-LO

O direito universal de igualdade, que figura como garantia fundamental na maioria das Constituições mundo afora e informa a todos os ramos do direito, se faz impreterível quando se pretende discutir o acesso à Justiça e os obstáculos que se opõem à sua efetividade. Preconiza o princípio da isonomia que todos, sem qualquer discrição, deverão ser tratados com equidade pelo sistema jurídico, desde a produção normativa à execução das disposições legais. Fruto da visão do constituinte do século XX, tal princípio é reflexo do clamor pela proteção dos direitos ditos sociais, surgindo para suprir a ineficácia da lógica essencialmente individualista dos estados liberais burgueses, modelos em vigência desde o século XVIII. Na antiga concepção liberalista, os direitos tidos como naturais e inatos ao ser humano não careciam da intervenção do Estado para assegurar o seu cumprimento, exigindo deste tão somente um posicionamento passivo, prezando pela observância e não transgressão daqueles. Para Cappelletti e Garth (1988, p. 9), “esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros”. Por não admitir os privilégios e distinções que o regime simplesmente liberal consagra, o direito de igualdade não foi postulado pela classe burguesa com tanto afinco como foi reivindicado o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa. À medida que cresciam em tamanho e complexidade, tendo acentuadas suas desigualdades econômicas, as sociedades do laissez-faire provocaram uma transformação no conceito de direitos humanos, deixando para trás a “visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10). A atuação positiva do

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Estado verificou-se necessária para assegurar a fruição dos direitos sociais básicos – incluído aqui o direito a tratamento isonômico entre os cidadãos. Há que se fazer, no entanto, imperiosa releitura deste princípio. Dedicar semelhante tratamento da lei a todos importaria em flagrante injustiça se tivesse aplicação no mundo dos fatos somente sob esta óptica. Para fins de facilitação e promoção do acesso à Justiça, é imprescindível se levar em conta as particularidades das partes, sob pena de se trilhar o caminho oposto e fomentar desigualdades. Seria justo, pois, esperar condutas equivalentes de seres em completa disparidade econômica, social e/ou cultural? A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição, especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmo deveres e conferir os mesmo direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres. (KELSEN, 1998, p. 99)

O princípio da igualdade positivado na Carta Magna brasileira de 1988, em seu artigo 5º, se apresenta sob seu caráter puramente formal, de interpretação estrita. Em seu corpo não há menção a aspectos personalíssimos do indivíduo, levando-se à convicção, corolário lógico, de que tal igualdade é apenas de direitos e deveres, e não de condições. Outra dimensão, no entanto, deve lhe ser conferida para que sua real volição seja contemplada, qual seja, a igualização material dos indivíduos. Não basta, portanto, que à população sejam garantidas prerrogativas – mesmo a nível constitucional – se, no plano fático, parte dela não disporá de mínima condição de exercê-las. Nesse sentido, corrobora Augusto Tavares Rosa Marcacini que deve ser superada a limitada visão da igualdade formal: Mais do que a mera igualdade formal, a garantia de tratamento igualitário pela lei, a proibição de privilégios legais, é necessário falar-se em igualdade de possibilidades. Em um Es-

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tado verdadeiramente democrático, todos devem ter, substancialmente, na sociedade, as mesmas possibilidades de desenvolvimento social, intelectual, econômico. Enfim, todos devem viver em condições compatíveis com a dignidade humana, condições estas que, por sua vez, não são estáticas, mas devem acompanhar o estágio de desenvolvimento tecnológico da sociedade. A isonomia deve, pois, ser entendida substancialmente. Todos devem ter chances de atingir o conteúdo da norma, a finalidade a que se presta, ainda que por caminhos, - formas – diferentes (MARCACINI, 2009, p. 21-22).

A percepção de que o princípio da igualdade de todos perante a lei, nos estreitos termos do caput do supracitado artigo 5º, tem como principal destinatário o legislador é lugar-comum doutrinário. O propósito é de impedir que ele crie normas discriminatórias entre pessoas, coisas ou fatos, e não de exigir que todos sejam tratados de forma abstratamente igual pela lei, a despeito de suas particularidades. Segundo Kelsen (1998), com a garantia da igualdade perante a lei se estabelece que os órgãos aplicadores do Direito somente podem tomar em conta aquelas diferenciações que sejam feitas nas próprias leis a aplicar, ou seja, apenas se estatui que as normas devem ser aplicadas de conformidade com as normas. Uma decisão judicial pela qual uma pena prevista na lei a aplicar não é imposta simplesmente porque o delinquente é um caucasiano e não um afrodescendente, um cristão e não um judeu, embora a lei não tome em conta, na determinação do fato delituoso, a etnia ou a religião do delinquente, é anulável como contrária ao Direito. Destarte há que ser vencido o enfoque essencialmente formal do princípio da isonomia para se adentrar a seara do acesso à Justiça, ao passo que a efetivação deste somente se dá combinada à aplicação material daquele. Para que possa ser substancialmente exercido todo o conjunto de direitos e faculdades assegurado pela lei processual, alcançando assim a exata dimensão do princípio da igualdade, dois planos de ação devem ser realçados: “no direito material, todos devem ter a possibilidade de ser titulares dos direitos que o ordenamento jurídico lhes confere e de efetivamente exercê-los; no plano processual, o acesso à Justiça e a possibilidade de litigar em igualdade de condições se impõe” (MARCACINI, 2009, p. 22).

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A QUESTÃO ECONÔMICA E SOCIOCULTURAL COMO ÓBICE AO ACESSO À JUSTIÇA

Pugnar pela “efetividade” do acesso à Justiça, apesar de devido, é ideia tanto quanto imprecisa. Mauro Cappelletti acredita que a efetividade perfeita pode ser expressa como a “paridade de armas” entre os litigantes, no sentido de que a conclusão do litígio confiado ao Estado se dê consoante aos méritos jurídicos das partes antagônicas, de forma alheia às diferenças que não lhes sejam de direitos. Ou seja, bem sucedido em sua empreitada pelo Judiciário deve ser aquele que sustenta a causa mais justa, e não o mais bem municiado de advogados ou capaz de empreender mais esforços financeiros (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Como bem reconhecera o jurista italiano, essa perfeita igualdade é utópica, porquanto as diferenças – por serem inerentes às partes – são de impossível transposição por completo. Ressalta, porém, que se faz forçoso avançar na direção dessa quimera. Em sua obra, Cappelletti parte rumo ao diagnóstico dos obstáculos ao efetivo acesso à Justiça, dividindo a análise em três campos: (i) as custas judiciais e extrajudiciais referentes ao ajuizamento e acompanhamento de processo contencioso (obstáculos econômicos), (ii) as possibilidades das partes no tocante a recursos financeiros e aptidão para reconhecimento de um direito e ajuizamento de uma ação (obstáculos socioculturais) e (iii) a abnegação dos interesses difusos e a dificuldade de organizar politicamente os grupos em defesa de seus direitos. No presente estudo, limitar-nos-emos à apreciação das duas primeiras barreiras, melhores tradutoras dos problemas enfrentados pela Justiça brasileira – não ignorando, no entanto, a existência de uma terceira.

3.1 OS OBSTÁCULOS ECONÔMICOS O custo referente à tramitação de um processo judicial é um dos grandes inibidores da busca pela tutela jurisdicional do Estado, afrontando a ideal “igualdade de armas” descrita por Cappelletti. Especialmente no Brasil, onde a distribuição de renda é bastante deficiente, o empecilho econômico acaba por evidenciar a incidên-

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cia das desigualdades sociais no campo da litigância. A dedução é puramente lógica: a gritante fragmentação social brasileira, aliada à concentração das frações nas classes desfavorecidas economicamente, conduz ao cenário de repulsão jurisdicional hodierno. Corrobora este raciocínio Augusto Tavares Rosa Marcacini (2009, p. 22): Ao mesmo tempo em que a assistência jurídica passa a ter importância fundamental para resgatar a cidadania de volume gigantesco de seres humanos, o instrumento não pode deixar de ser visto como mero paliativo, diante do ideal, possivelmente utópico, mesmo a longo prazo, de erradicar a pobreza. Quanto ao Brasil, mostra-se praticamente impossível conceder o benefício a todos os carentes de recursos, pelo simples fato de que a pobreza, neste país, é regra, e não exceção. O número de pessoas potencialmente usuárias do serviço é muito superior à capacidade de atendimento, ainda que esta seja ampliada. A solução para o problema, portanto, passa pela diminuição dos níveis de pobreza. Aliás, o verdadeiro problema é a própria existência de pessoas em condições alarmantes de pobreza, e não a impossibilidade de atender a todos os pobres. A assistência jurídica, assim, só pode contribuir para tornar a pobreza menos áspera.

Dessarte, o obstáculo econômico ao acesso à Justiça não se resume ao alto custo da litigância, ao passo que representa, outrossim, [...] a mais das evidentes contradições sociais refletida no campo da litigância. Em verdade, o obstáculo econômico consiste em quaisquer dificuldades ou óbices por que passe um cidadão, quando em necessidade do uso do aparato da Justiça na sociedade, decorrente de seu nível social. Portanto, é um equívoco asseverarmos simplesmente que ‘a justiça é cara’, no fito de simplificar a questão. (FONTAINHA, 2009, p. 4243)

Para que se atinja a solução de uma lide, os litigantes precisam suportar diversas e demasiadas custas judiciais e extrajudiciais (deslocamento, fotocópias, a guisa de exemplo), além de despesas eventuais com assistente técnico e perito e honorários advoca-

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tícios contratuais e sucumbenciais, residindo nestes a maior parcela da onerosidade despendida. Nos países que adotam o sistema sucumbencial – a exemplo do Brasil – os riscos da litigância são potencialmente maiores em relação àqueles assumidos pelas partes no Sistema Americano, onde o vencido não é obrigado a reembolsar ao vencedor os honorários empregados com seu advogado. A penalidade para o vencido no modelo sucumbencial é, grosso modo, duas vezes maior, vez que terá de arcar com os gastos de ambas as partes. Intentar uma ação judicial acaba por se tornar ainda mais desencorajante, exigindo do futuro litigante convicção de que logrará êxito em sua contenda. Os altos custos, não obstante seja uma ou ambas as partes a suportá-los, erigem importante barreira ao acesso à Justiça. Merece maior destaque, no entanto, aquela que, segundo Cappelletti e Garth, é “a mais importante despesa individual para os litigantes”: os honorários advocatícios. Fundado em dados colhidos de relatórios de diversos países em seu Projeto de Florença1 – que deve ser observado com ressalva no tocante a valores, posto que sua realização data de 1978, porém sem demérito quanto ao teor das norteadoras conclusões –, os autores ilustram a questão: [...] nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo, custo por hora dos advogados varia entre 25 e 300 dólares e o custo de determinado serviço pode exceder ao custo horário. Em outros países, os honorários podem ser calculados conforme critérios que os tornem mais razoáveis, mas nossos dados mostram que eles representam a esmagadora proporção dos altos custos do litígio, em países onde os advogados são particulares.

E concluem, apontando para o pressuposto que deve se fazer irrefutável no rompimento da barreira econômica: “qualquer tenta1

Coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em 1978, o Projeto de Florença foi pioneiro no estudo e reflexão sobre a situação do Poder Judiciário no mundo, suas principais mazelas e obstáculos que se perfazem ao seu aperfeiçoamento, bem como as possíveis alternativas encontradas a esses problemas. A metodologia baseou-se na troca de experiências entre os Estados participantes, permitindo-lhes conhecer os problemas enfrentados por seus vizinhos e os fracassos e sucessos das alternativas utilizadas em sua superação.

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tiva realística de enfrentar os problemas de acesso deve começar por reconhecer esta situação: os advogados e seus serviços são muito caros” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11). Nas causas de valor relativamente pequeno, o obstáculo econômico é atravanco ainda mais contundente, tornando a busca pela tutela jurisdicional verdadeira questão de investimento. É possível que, ao término da contenda, o valor devido ao vencedor se dilua consideravelmente em meio aos custos por ele gerados na ação, ou ainda que saia derrotado o autor, mesmo no sustento da verdade material. Também há de ser atentamente observado o tempo médio para obtenção de uma solução que, em geral, é bastante extenso e acaba por dilatar os gastos das partes, pressionando os economicamente fracos a abandonar suas causas, ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles que lhes seriam de direito, além de sujeitar aqueles que se aventurarem pelo Judiciário às farpas da intempestividade jurisdicional2.

3.2 OS OBSTÁCULOS SOCIOCULTURAIS Recai especialmente sobre os integrantes das classes sociais menos favorecidas o obstáculo sociocultural ao efetivo acesso à Justiça. Esses cidadãos, além de possuírem as supracitadas dificuldades atinentes à sua deficiente condição econômica, se encontram à mercê dos precários estímulos governamentais em prol de seu desenvolvimento educacional e, por conseguinte, encontram dificuldades para reconhecer seus direitos, reivindicá-los com amparo no Poder Judiciário ou promover sua defesa se acionados. Num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é 2

Ademais, a morosidade do processo atinge de modo muito mais acentuado os que têm menos recursos. A demora, tratando-se de litígios envolvendo patrimônio, certamente pode ser compreendida como um custo, e esse é tanto mais árduo quanto mais dependente o autor é do valor patrimonial buscado em juízo. Quando o autor não depende economicamente do valor em litígio, ele obviamente não é afetado como aquele que tem o seu projeto de vida, ou o seu desenvolvimento empresarial, vinculado à obtenção do bem ou do capital objeto do processo (MARINONI, 2008, p. 188).

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especialmente séria para os despossuídos, mas não afeta somente os pobres. Ela diz respeito a toda a população carente não apenas no sentido de reconhecer um direito exigível, como no de se opor quando da ofensa a eles. Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de que sua assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente, sujeitar-se a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento jurídico básico para fazer objeções a esses contratos, e, antes disso, perceberem que são passíveis de objeção (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Outro ponto tange aos limitados conhecimentos acerca da maneira de ajuizar uma ação, fator estritamente ligado, outrossim, ao insucesso do sistema educacional no Brasil. Ademais, é pouco provável que o cidadão desfavorecido economicamente tenha um advogado – ou outro profissional da área do Direito – em seu ciclo de convívio a quem possa recorrer, ou mesmo que encontre nos meios de comunicação orientações de valor. Essa falta de conhecimento relaciona-se a outro incidente, qual seja, a disposição psicológica para recorrer a processos judiciais. A desconfiança nos advogados, o excessivo formalismo dos procedimentos, a intimidação dos ambientes e das figuras, tais como juízes, advogados e promotores, podem fazer com que mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamento jurídico qualificado desistam de suas causas. Ainda que tenha acesso à assistência judiciária gratuita, o cidadão corre o risco de ser amparado com debilidade, seja porque a instituição prestadora privilegia o caráter formativo da experiência para o acadêmico em detrimento do papel assistencial – no caso de assistência judiciária prestada por uma universidade –, ou porque o trabalho dos defensores dativos, nomeados pelo Estado, não é desempenhado com zelo integral, visto ser que prestado como obrigação pelo profissional e sob baixa remuneração. Conforme Cappelletti, “sem remuneração adequada, os serviços jurídicos para os pobres tendem a ser pobres, também. Poucos advogados se interessam em assumi-los, e aqueles que o fazer tendem a desempenhá-los em níveis menos rigorosos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 47-48). Para completar a lacuna da assistência jurídica para o menos favorecido, é mister acentuar a instituição das Defensorias Públi-

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cas3, encarregadas de esclarecer a população quanto a seus direitos, sobre como reclamá-los e como desenvolver sua relação jurídica com outros indivíduos ou pessoas jurídicas de direito privado ou público. A ação clarificadora como instrumento de justiça faz da Defensoria Pública a principal forma de acesso ao Poder Judiciário oportunizada pelo Estado em prol dos carentes. Apesar dos esforços já empreendidos no fomento à ampliação da acessibilidade judicial e jurisdicional, a distribuição da justiça no Brasil é insatisfatória e necessita primordialmente do rompimento de barreiras econômicas e socioculturais, para, aí sim, sofrer mudanças eficazes. Reformas processuais ou de direito material, se isoladas, poderão apenas aliviar as chagas de um sistema que se faz inacessível para muitos – ou que, quando acessível, é intempestivo e dispendioso. O acesso a direitos – que compreende o conhecimento e a capacidade de reivindicá-los – deve sim ser suscitado por meio da revisão e adequação contemporânea do direito formal e substantivo, o que não deve substituir a imprescindível educação e orientação para o exercício da cidadania.

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ESBOÇO HISTÓRICO: OS INSTRUMENTOS BRASILEIROS DE PROMOÇÃO AO ACESSO À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

A legislação brasileira apresenta instrumentos para fazer frente às barreiras impostas historicamente ao acesso à Justiça, dos quais passaremos a contemplar os mais notáveis. A primeira incidência de texto legal em prol da promoção do acesso dos pobres à Justiça no Brasil deu-se em virtude da adoção da compilação jurídica portuguesa, as Ordenações Filipinas, ratificada em 1841, no início do Segundo Reinado de Dom Pedro II e dizia respeito à assistência judiciária gratuita. O litigante poderia ser isentado do pagamento das custas relativas ao recurso de agravo ordinário se alegasse ser pobre e rezasse pela alma de D. Diniz em audiência. Já o preparo do recurso de revista poderia ser dis3

A Defensoria Pública é um serviço público, patrocinado pelo Estado, posto em função das pessoas social e financeiramente desprotegidas, que deve prestar assistência jurídica integral, atuando em todos os graus de jurisdição e também de forma extrajudicial e nas instâncias administrativas, assegurando aos seus assistidos a ampla informação e defesa jurídicas (CAOVILLA, 2006, p. 98).

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pensado com a anuência do Rei. A alegação de suspeição do juiz era condicionada ao oferecimento de caução, de valor variável conforme a hierarquia do magistrado, da qual era o pobre isento (MARCACINI, 2009). Pouco tempo depois, em 1842, foi editado o Regulamento 120, que previa o pagamento de metade das custas judiciais – no processo criminal – pelos cofres municipais, se o réu fosse pobre. Ao município restava resguardado o direito de haver do réu tal quantia, quando ele se encontrasse em melhor condição financeira. Ainda no mesmo ano, a Lei 150 desobrigava os “miseráveis”4 do pagamento integral do dízimo de chancelarias cobrado no processo civil. Essas esparsas disposições normativas, entretanto, eram nitidamente insuficientes para garantir o efetivo acesso dos carentes aos tribunais, tema emergente no cenário internacional da época e que tinha a França5 como recente pioneira em sua contemplação. Ciente da carência do sistema brasileiro nesse sentido, o Presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, Nabuco de Araújo, propôs, pela primeira vez no Brasil, medidas concretas para que fosse assegurado o direito de acesso à Justiça aos carentes. A sugestão do jurista, de fato acatada, foi a implantação, pelo instituto que presidia, de um conselho para prestar assistência jurídica e judiciária aos necessitados nas causas cíveis e criminais. Os encarregados pela prestação seriam os próprios membros do Instituto. Posteriormente, proclamada a República, é editado o Decreto 1.030, de 1890, que, dispondo sobre a organização da justiça no Distrito Federal (cumpre ressaltar que, à época, a capital federal situava-se na cidade do Rio de Janeiro), autorizava o Ministro da Justiça a organizar “uma comissão de patrocínio gratuito dos pobres no crime e no cível, ouvido o Instituto da Ordem dos Advogados, e dando os regimentos necessários”6. Em 1891 é promulgada a primeira Constituição Republicana, que, fiel à sua veia absenteísta, nada discorre acerca da temática do acesso à Justiça. Somente em

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Termo extraído do § 4º do artigo 10 da Lei 150, de 9 de abril de 1842. Foi publicado na França, em 22 de janeiro de 1851, o Código de Assistência Judiciária, que impunha aos advogados o ônus jurídico de promover a defesa em juízo das partes hipossuficientes economicamente. Art. 176, do Decreto 1.030, de 14 de novembro de 1890.

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1897, por meio do Decreto 2.4577, é instalado no Distrito Federal o primeiro serviço de Assistência Judiciária totalmente suportado com recursos públicos. Nos anos subsequentes, o patrocínio gratuito oferecido como serviço público se mostrou mais eficaz e foi preferido em relação ao auxílio prestado por advogados dativos – embora este ainda fosse adotado em um grande número de causas –, o que se refletiu nas reformas dos Códigos de Processo Civil de alguns Estados8, “como o de Pernambuco, no art. 68, da Bahia, nos arts. 38 e seguintes, de São Paulo, no art. 65 e seguintes, e Minas Gerais, no art. 68”. A isenção de custas processuais, outrossim, foi alvo de apreciação por essas legislações. Em 1930, via Decreto 19.408, é criada a Ordem dos Advogados do Brasil, posteriormente regulamentada pelo Decreto 20.784, de 14 de dezembro de 1931. A assistência judiciária gratuita passa a ser jurisdição exclusiva da ordem e múnus profissional do advogado, sujeitando seu descumprimento a penalidades desde multas até o cancelamento da inscrição na entidade. Finalmente, em 1934, o constituinte reconhece que é dever da União e dos Estados o patrocínio gratuito das causas dos necessitados e prevê a criação de órgãos públicos que se destinariam especificamente a tal prestação. A promoção da assistência judiciária ganhara o devido enfoque, tornando-se garantia constitucional com a promulgação da nova Carta Magna. No entanto, com o golpe de 1937 e a conseguinte instauração da Constituição do Estado Novo, é rebaixada para texto infraconstitucional, se fazendo presente no Código de Processo Civil de 19399. 7

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O Decreto 2.457, de 8 de fevereiro de 1897, trouxe algumas disposições inovadoras que até hoje permeiam a legislação atinente à concessão de gratuidade de justiça. Entre elas, a redefinição de “pobreza”, estendendo o benefício àqueles que não pudessem arcar com as despesas processuais sem prejuízo da manutenção própria ou de sua família, que ultrapassava a velha concepção baseada em critérios estanques de percepção de renda. À época, vigente a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, competia às unidades federativas legislar sobre matéria processual, respeitando os princípios constitucionais estabelecidos pela União. O Código de Processo Civil, fruto do Decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, e vigente a partir de 1940, dedicou capítulo especial para a questão da gratuidade de justiça, qual seja, o Capítulo II, Título VII, do Livro I.

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Finda a Ditadura Vargas e retomada a democracia no País, a garantia volta a ter status constitucional com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. O passo de verdadeira importância, porém, viria a ser dado em 1950, quando aprovada a Lei Federal 1.060, que consolidou em um só diploma legal diversas disposições relativas à concessão de assistência judiciária gratuita até então dispersas em vários códigos e leis. Recepcionada pelas Constituições que lhe seguiram, a Lei 1.060 ainda vigora, não obstante tenha sofrido substanciais alterações à medida que o modelo brasileiro ia se solidificando. Em 1984 é criado um importante instrumento para viabilizar a apreciação judicial de causas de pequeno valor, o Juizado Especial de Pequenas Causas, mediante a Lei 7.244 do mesmo ano. Ainda que a defesa técnica e a orientação jurídica não fossem dispensadas, a maior simplicidade do procedimento permite que o órgão prestador de assistência judiciária “produza” mais com menor esforço e, consequentemente, o atendimento pode ser ampliado (MARCACINI, 2009). Para a defesa em juízo de interesses difusos, foi instituída a ação civil pública pela Lei 7.347, em 1985, destinada à reparação de danos morais e patrimoniais contra o meio ambiente, o consumidor, os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o ideal de acesso à Justiça é elevado a novo patamar. O antigo direito de assistência exclusivamente judiciária é superado e a assistência jurídica integral10 passa a ser o horizonte para onde devem apontar os esforços estatais. A competência para prestá-la é conferida às Defensorias Públicas dos Estados e da União, de criação prevista no artigo 134 da Magna Carta, mas não há óbice 10

Spengler faz precisa distinção entre “assistência judiciária” e “assistência jurídica integral”, observando que esta “deveria acontecer não só no sentido de solucionar litígios, mas também para preveni-los, por isso é integral, é jurídica e não judiciária. Importante salientar que por assistência jurídica entende-se aquele instituto que compreende a assistência judiciária, sendo mais ampla do que esta, e mais completa, uma vez que engloba, em seus serviços, além dos judiciais, também aqueles de orientação e informação” (SPENGLER, 1999, p. 51).

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à existência de “outros órgãos prestadores, diversos da Defensoria Pública, que podem ou não ser mantidos por verbas públicas. Neste sentido, encontramos alguns Municípios que mantêm serviços de assistência jurídica à população. Existem, ainda, associações civis que prestam o serviço e entre estas destacamos as entidades estudantis” (MARCACINI, 2009, p. 76). Em 1990, duas codificações de relevância histórica para o Brasil são publicadas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069), que extingue os juizados de menores, garante o direito do livre acesso da criança e do adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, isentando as ações judiciais de competência da Justiçada Infância e Juventude do pagamento de qualquer tipo de custas judiciais. Já o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078) prevê mecanismos para a proteção judicial dos interesses difusos e coletivos dos consumidores. Em 1994, é promulgada a Lei Orgânica da Defensoria Pública no Brasil, regulamentando as normas e diretrizes emanadas da Constituição de 1988, que estabelece os parâmetros e normas gerais que devem ser observados pelos Estados da Federação para a organização deste serviço público. É a primeira legislação em âmbito nacional a dispor sobre a instituição da Defensoria Pública. A seguir, em 1995, sobrevém a Lei 9.099, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e revoga a Lei 7.244/84, que dispunha sobre os Juizados de Pequenas Causas. O objeto dos Juizados Especiais são as demandas de menor complexidade, que serão orientadas pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. Foram esses princípios, outrossim, que inspiraram a criação, em 2001, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, com a Lei 10.259. Em 2004, a edição da Emenda Constitucional 45 aponta para a necessidade de se dedicar maior presteza à atividade jurisdicional. A Emenda da Reforma do Judiciário – como ficou comumente conhecida a EC 45/04 – trouxe ao texto constitucional os princípios da razoável duração e da celeridade na tramitação do processo, além de algumas mudanças pontuais norteadas por tais diretrizes. Pode-se afirmar, com a ciência dos supramencionados marcos legislativos, que o sistema brasileiro de promoção do acesso à Jus-

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tiça aos economicamente fragilizados basicamente tomou a hodierna forma no período compreendido entre 1946 e 1994. Optou-se pela adoção de uma entidade pública, a Defensoria Pública, especialmente designada para prestar assistência jurídica integral por intermédio de profissionais remunerados pelos cofres públicos, não obstando à prestação – em caráter subsidiário – por advogados, não remunerados pelo erário, ou organizações e entidades diversas como as Faculdades de Direito, por exemplo.

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A CONTEMPLAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO DE CIVIL DE 2010

Dezenas de diplomas legais modificando o texto original do atual Código de Processo Civil brasileiro foram editados desde 1973, quando promulgado, tendo como escopo pontos específicos que careciam de urgente atualização. Era esse o caminho mais fácil a percorrer, afinal, a codificação era jovem. Mas até quando seriam cabíveis reformas pontuais? Acumuladas quase quatro décadas de vigência, o panorama é de considerável desconsolidação, de obnubilação sistemática do direito processual civil. De outro lado, a gritante morosidade da prestação jurisdicional no Brasil, sem perspectiva de amenização, acalenta o vislumbre a um novo Código. Um código de processo civil deve inapelavelmente densificar o direito de ação como direito a processo justo e, muito especialmente, como um direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva (MARINONI; MITIDIERO, 2010). Não se fidelizando a tais direitos fundamentais processuais civis previstos na Constituição, é concebível que tenha sua credibilidade para com o cidadão abalada. De fato, é o que vem se verificando no caso brasileiro. Em 2009, sob motivação da desconfiança do jurisdicionado em relação ao Poder Judiciário, é instituída uma Comissão de Juristas encarregada da elaboração do novo Código de Processo Civil brasileiro. Presidida por Luiz Fux, sob relatoria de Teresa Arruda Alvim Wambier e composta por eminentes processualistas, a comissão elabora o anteprojeto e o apresenta ao Congresso Nacional no ano seguinte. No Senado Federal o anteprojeto é recebido sob a alcunha de Projeto de Lei 166/10. Elaborado e aprovado pelo Se-

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nador Valter Pereira, seu texto substitutivo11 é encaminhado para apreciação da Câmara dos Deputados, onde assume o nº 8.046/10. O Projeto inicia a disciplina do direito processual civil enunciando os direitos fundamentais nos quais se baseia o processo civil e que deverão servir de diretrizes para os operadores da matéria. Entre eles, elenca a igualdade de todos perante o Direito, consagrada no princípio da paridade de armas: “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório” (art. 7º). Observam Marinoni e Mitidiero (2010, p. 74) que [...] o direito ao processo justo tem como elementos inafastáveis o direito à igualdade (art. 5º, I, CF) e o direito ao contraditório (art. 5º, LV, CF). Um processo de cariz realmente democrático não pode prescindir da previsão de ‘participação em contraditório mediante paridade de armas’. Isto porque a paridade de armas é pressuposto para que o contraditório encontre ambiente propício ao seu cabal e pleno desenvolvimento.

Nesse sentido, a positivação de direito fundamental disposta nos artigos 3º a 11 do Projeto, apesar de basicamente simbólica, é elogiável, posto que atenta para a necessidade de se perceber a legislação infraconstitucional sob a ótica de desdobramento da Constituição. Visa-se a sobreposição dos princípios constitucionais às regras infraconstitucionais sobre processo e procedimento, o que ofereceria maior margem ao magistrado para adequar a técnica ao caso concreto, balizando sua decisão não só em regras formais, mas, mormente, nas carências da realidade. Não basta, no entanto, apenas trazer mais um princípio ao direito processual civil. A participação igualitária das partes no processo importa a previsão de ferramentas que propiciem sua pre11

As referências dispositivas realizadas neste ensaio têm por base as alterações apresentadas pelo Relator-Geral no texto substitutivo do Projeto de Lei 166/2010. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2012.

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servação e atenuem as diferenças a elas inerentes, na forma de regras jurídicas. Em seu artigo 358, o Projeto cria a possibilidade de dinamização do ônus da prova, atribuindo a realização da prova à parte que, consideradas as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, encontrar-se em melhor condição de fazê-lo. Presentes as condicionantes, deve o magistrado seguir à dinamização do ônus de provar. Em não havendo subsídio para tal, não poderá ele, em hipótese alguma, dar vez ao instituto. Não há menção expressa quanto ao ideal momento para acertá-lo, porém, ao se realizar rápida interpretação sistemática, resta claro que o despacho saneador é o momento mais oportuno. Não poderia ser de outro modo, a contemplação da assistência judiciária gratuita subsistir no Código em gestação. Alojada no artigo 99, a previsão dispositiva inova ao estender expressamente o benefício à “pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira”, bem como possibilitar que o juiz determine de ofício a comprovação da insuficiência econômica pela parte, se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos requisitos legais da gratuidade de justiça (art. 99, § 1º). Na linha de promoção do direito fundamental à assistência jurídica integral, é instituído pelo Projeto o dever de os órgãos e repartições oficiais cumprirem determinações judiciais relativas à entrega de laudo pericial com preferência, no prazo estabelecido, quando a parte estiver no gozo da gratuidade de justiça (art. 457, § 1º). O descumprimento do prazo sujeita o órgão e seu dirigente à multa sancionatória, por cujo pagamento ambos responderão solidariamente (art. 457, § 2º). O ataque àquele que é tido por grande massa da população brasileira como o mais perene dos obstáculos ao acesso ao Poder Judiciário fitou a simplificação de procedimentos. À morosidade da prestação jurisdicional foram propostas pontuais alterações com o desiderato de imprimir celeridade ao processo, sem, no entanto, desprestigiar os que litigam. Com a abolição do procedimento comum sumário pelo Projeto, coube especialmente ao rito ordinário o suporte de tais modificações. Não é por outra razão que será a repaginação deste – o rito ordinário – o objeto de análise seguinte.

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De acordo com o regime processual proposto, o réu não será mais citado para apresentar defesa, no gênero, com as espécies da contestação, da reconvenção, das exceções de impedimento, de suspeição e de incompetência relativa e da impugnação ao valor da causa, além da impugnação à concessão do benefício da assistência judiciária, como atualmente lhe é franqueado. Essa proliferação de defesas é burocrática e contribui para o retardo na solução do conflito de interesses (MONTENEGRO FILHO, 2011). No Código vigente, são respostas do réu a contestação, a reconvenção e as exceções (art. 297). Com vistas à simplificação do procedimento nesse ponto, o Projeto propôs a supressão das exceções, a transformação da reconvenção em pedido contraposto (art. 326) e o deslocamento de determinadas matérias antes suscetíveis de exceção e de provocar incidentes processuais para o rol de preliminares de contestação – como é o caso da arguição de incompetência relativa e absoluta, da impugnação ao valor da causa e da impugnação à concessão do benefício da gratuidade de justiça (art. 327, II, III, XII). O procedimento de proposição de provas judiciais foi simplificado, seguindo a vertente do atual procedimento sumário. O rol de testemunhas deverá ser apresentado na petição inicial e na contestação (art. 296, do Projeto), sob pena de preclusão e perda do direito de produzir prova testemunhal posteriormente. Ademais, cai para cinco o número máximo de testemunhas a serem arroladas pelas partes – atualmente o limite é de dez testemunhas. Uma das grandes apostas do Projeto é dar ênfase à composição amigável dos litígios. Em seu artigo 323, prevê que o réu será citado para comparecer à audiência de tentativa de conciliação, e não para imediatamente contestar o pedido. Na audiência, atuarão conciliadores e mediadores, se houver. A realização de conciliação ou mediação deverá ser estimulada por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 145). A contestação somente será oferecida após a audiência de conciliação ou após a última sessão de conciliação e julgamento (art. 324 do Projeto), o que é positivo, posto que não terá o réu, até a tentativa de conciliação, eivado suas intenções de compor amiga-

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velmente o litígio. Se uma das partes manifestar desinteresse pela autocomposição, a audiência será dispensada (art. 323, § 5º), prosseguindo-se desde então à apresentação da contestação.

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A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO ALTERNATIVA À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO

Como se sabe, à medida que cresciam em complexidade, as sociedades deparavam-se com a inevitabilidade de conferir a uma figura imparcial e autônoma a função de regular as condutas sociais, de modo que esta zelasse pelo harmônico convívio entre os indivíduos do grupo. Em um processo gradual, muniu-se este ente, o Estado, do poder de coerção, outorgando-lhe o poder-dever de dizer e aplicar o direito aos conflitos oriundos do meio. Surgia então, em contraponto à defesa privada de interesses e como mister exclusivo deste, a jurisdição. No desenrolar do tempo, se verificou em nosso país progressivo aumento da dependência do cidadão em relação ao aparelho estatal de decisão de litígios, fruto de uma cultura que estimula a conflitualidade e de uma estrutura jurídico-política sempre empenhada em “decidir” (de forma paliativa) conflitos sociais, e não em “eliminá-los” (com concretude). O resultado é o abarrotamento do Poder Judiciário, que não mais consegue dar respostas em tempo razoável – comprometendo, muitas vezes, a utilidade da sentença – ou apreciar todas as situações que demandam acesso à Justiça. Nesse contexto, dada a evidente incapacidade do Estado de monopolizar a jurisdição de maneira eficaz, faz-se necessário examinar estratégias alternativas de prestação jurisdicional12. Paralelamente às formas jurisdicionais tradicionais, existem possibilidades não jurisdicionais de tratamento de disputas que 12

“Deve-se ter presente, também, que as crises por que passa o modo estatal de dizer o direito – jurisdição – refletem não apenas questões de natureza estrutural, fruto da escassez de recursos, como inadaptações de caráter tecnológico – aspectos relacionados às deficiências formativas dos operadores jurídicos – que inviabilizam o trato de um número cada vez maior de demandas, por um lado, e de uma complexidade cada vez mais aguda de temas que precisam ser enfrentados, bem como pela multiplicação de sujeitos envolvidos nos polos das relações jurídicas, por outro.” (SPENGLER; MORAIS, 2008, p. 78)

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merecem atenção face ao atual quadro de excessiva litigiosidade. Chega-se assim à mediação, modalidade da justiça consensual que não é estranha ao Judiciário, e sim age no sentido de completar o processo judicial quando possível, estimulando a cooperação pactuada e convencionada entre os litigantes por intermédio de um mediador legalmente habilitado (SPENGLER; MORAIS, 2008). Guardando semelhança com o processo judicial, na mediação também há a presença de um terceiro entre os litigantes. Sua atuação e influência no resultado final, porém, muito se distanciam do coercitivo desempenho do juiz (que se estende à prolação da sentença), cabendo-lhe auxiliar os participantes na resolução de uma disputa, assumindo o papel de conselheiro, facilitando-lhes a comunicação sem forçar-lhes à avença. O acordo final trata o problema com uma proposta mutuamente aceitável e será estruturado de modo a manter a continuidade das relações das pessoas envolvidas no conflito. Diferentemente da jurisdição estatal tradicional na qual o poder de gerir o conflito é delegado aos profissionais do direito, com preponderância àqueles investidos das funções jurisdicionais, na mediação, por constituir um mecanismo consensual, as próprias partes detêm esta prerrogativa, podendo escolher de forma livre e consciente. Daí a importância da escolha recair sobre um mediador qualificado, afinal, é com o auxílio deste que os envolvidos buscarão compreender as fraquezas e fortalezas de seu problema, a fim de tratar o conflito de forma satisfatória (SPENGLER; MORAIS, 2008). O culto ao conflito, reflexo da sociedade em seu atual estágio e responsável pelo panorama de excessiva litigiosidade, tem alto índice de propagação e é nitidamente insustentável, inobstante se invista de forma veemente no aparelhamento do Judiciário – possibilidade por si só remota. Dentre as estratégias disponíveis, é a mediação que oferece o solo mais propício para o cultivo da não conflitualidade entre as partes, e mais, o faz ao instituir denso filtro pré-processual com grande potencial contributivo para o desafogamento da máquina estatal. Ademais, a ampliação das formas de tratamento de litígios aliada ao uso de linguagem e emprego de sistemática mais simples, bem como maior contato humano entre os envolvidos e menor dispêndio de tempo e dinheiro, apontam os holofotes na direção do deveras esquecido direito de acesso à Justiça.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A segregação social experimentada pelo Brasil não pode ter reflexos no âmbito do processo judicial. Apesar de aparentemente fantasioso e inalcançável, este pensamento oferece as coordenadas iniciais para rumar em direção ao plano da igualdade material, que é a igualdade de condições e possibilidades do cidadão perante a Justiça. A utopia, diga-se de passagem, é a força motriz do Direito, vez que impõe ao cientista jurídico a preliminar idealização da norma em um mundo abstrato e perfeito para somente então importá-la ao terreno fático. Em verdade, expurgar todos os obstáculos ao efetivo acesso à Justiça é tarefa impraticável, pois, conforme foi visto, alguns deles são inerentes ao nível social ou cultural do indivíduo. No entanto, sua mitigação é viável e pode tomar forma por meio da orientação pré-processual e processual ao cidadão, da concessão de benefícios processuais aos necessitados e de adaptações da legislação ao caso concreto. Nessa esteira, o Brasil adotou o modelo de assistência jurídica integral, dever inarredável do Estado e exercido preferencialmente pela Defensoria Pública. Cônscio dessa realidade e com atenções voltadas à dinâmica forense, o Projeto do Novo Código de Processo Civil propõe alterações pontuais na codificação. Entre elas, a busca pela composição amigável dos litígios, por meio do incentivo à conciliação, e pela autocomposição, utilizando-se da mediação, a simplificação de procedimentos no rito ordinário e a distribuição do ônus da prova de acordo com a capacidade de provar das partes são dignas de aplausos. Não obstante a preocupação do Projeto em conferir celeridade aos procedimentos, especialmente no rito ordinário, e razoável duração ao processo, há que se questionar a oportunidade de tamanha reforma que na essência não acrescenta muito ao estado da arte. A morosidade na resolução dos litígios sob sua jurisdição, fator que gera desprestígio do Poder Judiciário para com o cidadão brasileiro, não parece ter origem na lei processual, e sim em sua estrutura.

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A ABORDAGEM AO CONFLITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DO PODER JUDICIÁRIO VERSUS A MEDIAÇÃO

Charlise P. Colet Gimenez Doutoranda em Direito e Mestre em Direito pela Unisc – Universidade de Santa Cruz do Sul e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora de Estágio de Prática Jurídica, Direito Penal e Processo Penal pela URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões (Santo Ângelo/RS). Integrante do Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Advogada. Contato: [email protected]

Marina Vetoretti Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Unisc – Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Contato: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No dia a dia de uma pessoa, desde o acordar até o dormir, diversas situações conflituosas são desenhadas – disputas no seio familiar, no trânsito, no trabalho, consigo mesmo, entre amigos, vizinhos, conhecidos, estranhos etc. Ou seja, a existência do ser humano é inerente ao conflito e, das suas interações, ele surge, podendo ser construtivo, fazendo-o crescer, ou destrutivo, quando se utiliza da violência ou meios não adequados para solucioná-lo. Ao ultrapassar os limites, há necessidade de intervenção, razão pela qual o presente capítulo investiga o conflito abordado pelo

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Judiciário enquanto modelo tradicional, bem como pela mediação, como uma nova cultura de tratamento do conflito. Ao longo da história, a evolução percorreu da autotutela ao poder do Estado de solucionar o conflito, quando foi transferido ao Poder Judiciário, representado pela figura do juiz, o qual tem o poder de decidir o conflito, dizendo quem é o ganhador. Dessa forma, enfrenta atualmente a insatisfação das pessoas por ela atendidas, oportunidade em que se apresenta a mediação como modelo consensual construído entre as partes. A mudança de formas de tratar conflitos e responder às necessidades das partes envolvidas permite a criação de uma sociedade justa e livre, a qual abre espaço para a diversidade, liberdade, individualidade e igualdade entre as pessoas, são vistas como portadoras de capacidades e de necessidades positivas. Assim, devem-se buscar condições permanentes de tratamento de conflitos que tenham possibilidades concretas de construção da paz positiva como um meio ao progresso social, a partir dos direitos do homem.

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O CONFLITO SOB A ÓTICA SOCIAL

A palavra conflito tem origem no latim, conflictu, confligere, significando lutar, chocar, contrapor ideias, razão pela qual está sempre associada em embate com algo ou com alguém. No entanto, conceituá-lo revela-se uma tarefa árdua, em razão de sua origem ser diversa – social, política, psicanalítica, familiar, interna, externa – ou por abarcar motivações étnicas, religiosas ou de valores (SPENGLER, 2010). A história relata que a evolução do ser humano foi acompanhada pela existência do conflito que, por sua vez, adotou distintas formas de resolvê-lo, seja por meio de guerra, luta corpo a corpo, vingança, ordálio, ou, ainda, pela intervenção de processos normativos ou jurídicos (GORCZEVSKI, 2007). O conflito pode ser estabelecido entre sindicato e empresa, entre nações, entre um marido e sua esposa, ou entre crianças etc., assim como a sua existência traz questões intrapessoais, interpessoais, intracoletivos, intercoletivos e internacionais (DEUTSCH, 2004).

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Dessa forma, a trajetória da humanidade descreve uma realidade em que o ser humano sempre conviveu com o conflito, cuja face se revela na escravidão, na homossexualidade, na preservação ambiental, na liberdade de crença, no direito das mulheres a um tratamento igualitário, dentre outras disputas excluídas do debate, porém a evolução do pensamento humano possibilitou a integração das partes conflitantes e a satisfação das suas necessidades. Assim, toda sociedade é fortemente marcada pela existência de conflitos, positivos ou negativos, demonstrando-se em cada um os valores e as motivações das partes envolvidas, suas aspirações e objetivos, seus recursos físicos, intelectuais e sociais para suscitar ou tratar a disputa. Percebe-se que cada participante de uma interação social responde ao outro de acordo com as suas percepções e cognições, as quais podem ou não corresponder à realidade do outro; bem como cada participante é influenciado pelas próprias expectativas em relação às ações e conduta do outro, podendo a interação social ser iniciada por motivo distinto daquele que mantém a integração das partes. [...] o conflito é uma forma social possibilitadora de elaborações evolutivas e retroativas no concernente a instituições, estruturas e interações sociais, possuindo a capacidade de se construir num espaço em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento, produzindo, simultaneamente, uma transformação nas relações daí resultantes. Desse modo, o conflito pode ser classificado como um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder, no qual uma parte influencia e qualifica o movimento da outra. (SPENGLER, 2010, p. 248)

Da interação, os atores são expostos como modelos e exemplos a serem imitados e com os quais se deve identificar. Dessa forma, compreende-se que a interação social se desenvolve em um ambiente (família, grupo, comunidade, nação, civilização) que apurou técnicas, símbolos, categorias, regras e valores relevantes para as interações humanas. Para a compreensão dos eventos desencadeados pela interação social, devem-se entender as inter-relações dos eventos com o

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contexto social que envolve cada um. Ademais, salienta-se que, apesar de um participante da interação social, seja pessoa ou grupo, ser uma unidade complexa, composta por vários subsistemas interativos, ela pode agir unificadamente em determinado aspecto de seu ambiente, e, por conseguinte, tomar decisões no plano individual ou no plano nacional, as quais podem desencadear uma luta entre diferentes interesses e valores de controle sobre a ação (DEUTSCH, 2004). Quando os papéis sociais não são desempenhados de forma adequada, ou seja, de acordo com as expectativas do grupo social, nascem os conflitos (SPENGLER, 2010), podendo ser avaliados enquanto construtivos, ou seja, com funções positivas, consoante refere Deutsch (2004, p. 29): O conflito previne estagnações, estimula interesse e curiosidade, é o meio pelo qual os problemas podem ser manifestados e no qual chegam às soluções, é a raiz da mudança pessoal e social. O conflito é frequentemente [sic] parte do processo de testar e de avaliar alguém e, enquanto tal, pode ser altamente agradável, na medida em que se experimenta o prazer do uso completo e pleno da sua capacidade.

Em adição, esclarece Deutsch, em grupos fundamentados a partir de laços frouxos e em sociedades abertas, o conflito se abriga com o escopo de integrar e estabilizar o relacionamento das partes antagonistas, visto que permite uma expressão direta e imediata de reclamações rivais. E, complementa o referido autor: Além disso, o conflito dentro de um grupo frequentemente [sic] ajuda a revitalizar normas existentes; ou contribui para o surgimento de novas normas. Nesse sentido, o conflito social é um mecanismo de adequação de normas a novas condições. Uma sociedade flexível beneficia-se do conflito por causa desse comportamento, na medida em que ajuda a criar e a modificar normas, assegura sua continuidade sob condições diversas. (COSER, apud DEUTSCH, 2004, p. 30)

Assim, na medida em que a explosão de um conflito indica a rejeição de uma acomodação anterior existente entre as partes, eis que o respectivo poder dos contendores foi verificado no conflito,

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um novo equilíbrio pode ser estabelecido e o relacionamento pode prosseguir sobre essa nova base (COSER, apud DEUTSCH, 2004). Por isso Muller (2006, p. 19) refere que [...] a humanidade do homem não se cumpre fora do conflito, mas sim para lá do conflito. O conflito está na natureza dos homens, mas quando esta ainda não está transformada pela marca do humano. O conflito é o primeiro, mas não deve ter a última palavra. [...] o homem não deve estabelecer uma relação de hostilidade, onde cada um é inimigo do outro, mas deve querer estabelecer com ele uma relação de hospitalidade, onde cada um é hóspede do outro. É significativo que os termos hostilidade e hospitalidade pertençam à mesma família etimológica: originalmente, as palavras latinas hostes e hospes designam ambas o estrangeiro. Este, com efeito, pode ser excluído como um inimigo ou acolhido como um hóspede.

A seu turno, Julien Freund (apud MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 46) manifesta que o conflito [...] trata de romper a resistência do outro, pois consiste no confronto de duas vontades quando uma busca dominar a outra com a expectativa de lhe impor a sua solução. Essa tentativa de dominação pode se concretizar através da violência direta ou indireta, através da ameaça física ou psicológica. No final, o desenlace pode nascer do reconhecimento da vitória de um sobre a derrota do outro. Assim, o conflito é uma maneira de ter razão independentemente dos argumentos racionais (ou razoáveis) [...]. Então, percebe-se que não se reduz a uma simples confrontação de vontades, idéias ou interesses. É um procedimento contencioso no qual os antagonistas se tratam como adversários ou inimigos. [grifou-se]

O conflito, muitas vezes procurado em esportes competitivos e jogos, em filmes ou livros, ao ouvir-se notícias ou ler-se o jornal, no jogo provocante entre casais, no trabalho intelectual, demonstra que não deve ser eliminado nem suprimido por um longo tempo, pois a existência do conflito é inerente à própria existência do ser humano (DEUTSCH, 2004). Por isso, afirma Vezzula (1998, p. 21), “o conflito consiste em querer assumir posições que entram em oposição aos desejos do

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outro, que envolve uma luta pelo poder e que sua expressão pode ser explícita ou oculta atrás de uma posição ou discurso encobridor”. Nessa ótica, verifica-se que o conflito transforma as pessoas, seja em relação consigo mesmas, seja na sua relação com os outros, demonstrando que traz consequências desfiguradoras e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras. Portanto, um conflito externo, determina os confins do grupo e contribui para o nascimento de um sentimento de identidade, bem como centraliza a estrutura interna do grupo e possibilita a definição de aliados. O conflito externo une o grupo e o faz coeso, concentrando uma unidade já existente, eliminando os elementos que possam obscurecer a clareza dos limites com o inimigo, aproximando pessoas e grupos que, de outra maneira, não teriam qualquer relação entre si (SPENGLER, 2010). Entretanto, destaca-se que o conflito, assim como pode ser construtivo, pode se apresentar com conotação destrutiva quando seus participantes restarem insatisfeitos com as conclusões, e sentirem, no resultado do conflito, a derrota. Dessa afirmação, vislumbra-se que o conflito com resultado produtivo é aquele em que todos os participantes estão satisfeitos com os efeitos e consequências do conflito (DEUTSCH, 2004). Portanto, o conflito é inevitável e salutar, e requer meios autônomos de manejá-lo para ser encarado enquanto fato, positivo ou negativo, de acordo com os valores inseridos no contexto social analisado, pois uma sociedade sem conflitos é estática (MORAIS e SPENGLER, 2012). Neste rumo, adiciona Deutsch (2004, p. 24): Algum tempo atrás, no jardim da casa de um amigo, meu filho de cinco anos e seu colega disputavam a posse de uma mangueira. Um queria usá-la antes do outro para aguar as flores. Cada um tentava arrancá-la do outro para si e ambos estavam chorando. Os dois estavam muito frustrados e nem um nem outro era capaz de usar a mangueira para regar as flores como desejavam. Depois de chegarem a um impasse nesse cabo de guerra, eles começaram a socar e a xingar um ao outro. A evolução do conflito para a violência física provocou a intervenção de uma poderosa terceira parte (um adulto), que propôs um jogo para determinar quem iria usar a mangueira antes do outro. Os meninos, um tanto quanto assustados pela

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violência da disputa, ficaram aliviados em concordar com a sugestão. Eles rapidamente ficaram envolvidos em tentar achar um pequeno objeto que eu tinha escondido e obedientemente seguiram a regra de que o vencedor seria o primeiro a usar a mangueira por dois minutos. Logo eles se desinteressaram pela mangueira d’água e começaram a colher amoras silvestres, as quais atiravam provocativamente em um menino de dez anos de idade que respondia aos inúteis ataques com uma tolerância impressionante.

Da narração do episódio acima, pode ser inquirido aos participantes no conflito de que forma suas características individuais (força, meios de cognição, personalidade, estado emocional etc.) e as relações prévias de um com o outro afetaram o desenvolvimento e o andamento da disputa. A partir dos fatos, poderia ser indagado, por exemplo, se os conflitantes fossem adultos ao invés de meninos, teria a violência física sido utilizado como meio de solução da disputa? Ou deve-se supor que isso teria ocorrido em razão de que a violência é mais dolorosa e perigosa entre os homens do que entre meninos e assim as restrições pessoais e sociais contra adultos batendo em um outro são possivelmente mais fortes? Ou talvez seja mais difícil manifestar a violência por causa da maior intelectualidade dos adultos? Ou seria razoável pensar que seria menos provável meninas baterem umas nas outras do que meninos fazê-lo. Se tais suposições fossem corretas, como seria possível socializar as pessoas de maneira a tornar determinados meios de estourar conflitos tão estranhos a ponto de serem “impensáveis”? Ou poderia ser indagado acerca da motivação do conflito e da maneira como ele se expressa? Havia algo na posse ou na não posse da mangueira que tenha sido de particular importância emocional para os litigantes? (DEUTSCH, 2004). A partir do caso exposto, pode-se indagar: De que forma a intervenção de uma terceira parte terá chance de ser mais bem-sucedida em resolver um conflito desse tipo? Quais são as características dessa terceira parte, incluindo o seu relacionamento com as partes em conflito, que determina a aceitabilidade de sua intervenção? Quais as características do terceiro que ajuda a resolver conflitos e quais são as que promovem o impasse e um litígio interminável?

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Igualmente, podem-se estabelecer algumas questões partir do caso ilustrado. Primeiro, as características das partes em conflito (seus valores e motivações; suas aspirações e objetivos; seus recursos físicos, intelectuais e sociais para travar ou resolver conflitos; suas crenças sobre conflito, incluindo suas concepções estratégicas e táticas; e assim por diante). Ao envolver-se em um conflito, seja para um grupo de pessoas ou para meninos, importa saber o que cada parte irá considerar como recompensa ou vitória e o que compreenderão como punição ou perda. Ainda, tanto para indivíduos quanto para nações, conhecer as armas e instrumentos disponíveis e as habilitadas para utilização desses recursos é relevante para prever e entender o andamento do conflito, da mesma forma como é importante saber se o conflito é dado entre iguais (dois meninos) ou desiguais (um adulto e uma criança), entre partes de um todo (Porto Alegre e Santa Cruz do Sul) ou entre uma parte e um todo (Rio Grande do Sul e Brasil), ou entre todos (Brasil e Estados Unidos). Na sequência, verificam-se os relacionamentos prévios de um com o outro “(suas concepções, crenças e expectativas sobre o outro, incluindo o que cada um acredita ser a visão do outro sobre si, e particularmente o grau de polarização que ocorreu em avaliações como ‘bom-mau’, ‘confiável-desconfiável’)” (DEUTSCH, 2004, p. 31). A importância desse conhecimento reside no fato de que o conflito será influenciado e afetado pelas relações prévias e pelas concepções preexistentes entre as partes. Percebe-se também a natureza da questão que dá origem ao conflito (seu âmbito, rigidez, importância emocional, formulação, periodicidade etc.), bem como o ambiente social em que o conflito ocorre, ou seja, “as facilidades e restrições, os encorajamentos e as retrações que ele gera em relação às diferentes estratégias e táticas de travar ou resolver conflitos, incluindo a natureza das normas sociais e das formas institucionais que o regulamentam” (DEUTSCH, 2004, p. 31). Observam-se, da mesma forma, os espectadores interessados no conflito, a partir dos relacionamentos entre si e com as partes em conflito, seus interesses no conflito e as consequências deste para os espectadores, suas características. Um conflito que surge em uma esfera pública pode ser influenciado pelas concepções dos partici-

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pantes a respeito de seus espectadores e como eles irão reagir ou, ainda, pelo exato comportamento dos terceiros interessados. E um conflito entre indivíduos ou coletividades pode ser ou incentivado ou retido pelo desejo de manter ou de ganhar frente aos terceiros e pelas promessas ou ameaças exercidas pelo espectador. A estratégia e a tática empregada pelas partes no conflito consistem em [...] avaliar e/ou mudar a utilidade, a inutilidade e as probabilidades subjetivas de cada um; e em influenciar as concepções dos outros sobre as próprias utilidades e inutilidades de alguém por meio de táticas que variam em dimensões como legitimidade-ilegitimidade, o uso relativo de incentivos positivos e negativos como promessas e recompensas ou ameaças e punições, liberdade de escolha-coerção, a abertura e veracidade da comunicação e do compartilhamento de informações, o grau de credibilidade, o grau de comprometimento, os tipos de motivos alegados, e assim por diante. (DEUTSCH, 2004, p. 32)

Por conseguinte, extraem-se as consequências do conflito para cada participante e para outras partes interessadas, ou seja, os ganhos e perdas relacionados à questão imediata em conflito, os precedentes estabelecidos, as mudanças internas nos participantes resultantes em razão de terem entrado em conflito, os efeitos a longo prazo no relacionamento entre as partes envolvidas e a reputação que cada parte constrói aos olhos dos vários espectadores interessados (DEUTSCH, 2004). Para resolver os conflitos surgidos na sociedade, o Estado utiliza-se do Poder Judiciário, a partir da intervenção do juiz, o qual deve decidir os litígios, e pôr fim ao conflito por meio de uma decisão que se torna definitiva e, portanto, imutável. Por outro lado, surgem as práticas de tratamento de conflitos, as quais objetivam compreender as pessoas envolvidas no embate para alcançar um tratamento qualitativamente adequado, construído pelas próprias partes com o auxílio do terceiro mediador. Por isso, nos próximos pontos, estudar-se-á o papel do Judiciário e do mediador no conflito.

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A DECISÃO DO CONFLITO PELO PODER JUDICIÁRIO

A sociedade contemporânea, gravada pelas marcas da violência e medo constantes, recorre ao Poder Judiciário para ver-se amparada e fortalecida. Ao delegar a função de resolver o conflito ao Judiciário, o cidadão ganha, por um lado, a tranquilidade de deter a vingança e a violência privada, submetendo-se à violência estatal, e perde, por outro, a possibilidade de tratar os seus próprios conflitos, a partir de diferentes estratégias. As pessoas, diante de um conflito, têm a expectativa que um terceiro apresente a solução. “Espera-se pelo Judiciário para que este decida quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda” (SPENGLER, 2010, p. 284), transferindo-se ao juiz a responsabilidade de gerenciar o conflito, o qual o traduz na sua linguagem. Cabe, portanto, ao Judiciário, a decisão do conflito, porém sua decisão não elimina as relações sociais. “O ato do Poder Judiciário interrompe apenas aquela relação conflitiva, mas não impede o surgimento de outras tantas. Não cabe ao Judiciário eliminar o próprio manancial de conflitos sociais, mas sobre eles decidir, se lhe for demandado” (SPENGLER, 2010, p. 287). O ritual judiciário organiza-se à volta desse jogo subtil da identidade e da diferença. A toga glosa a separação entre os celebrantes do ritual e os outros: ela prolonga a cancella. O ritual une os protagonistas separando-os dos outros, mas distingue-os igualmente entre si atribuindo-lhes papéis diferentes. Unidos pela sua diferença comum, os celebrantes são, contudo, plurais. Essa unidade na diferença do outro lado da cancella é transmitido sob a forma de um ideal a atingir. O processo vê-se a si próprio como uma verdadeira lição de civismo. (GARAPON, 1997, p. 88)

Por isso, para o Estado cumprir seus objetivos, e mesmo como justificativa para manter-se, deve preservar, a qualquer custo, a ordem e a paz social, razão pela qual os conflitos na sociedade têm de ser imediatamente eliminados, independentemente das causas, necessidades, valores ou interesses das pessoas (GORCZEVSKI, 2007). Nessa ótica, Garapon (2001, p. 197) complementa que:

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Não é exigido à justiça que leve em consideração a sutileza das relações afetivas ou a injustiça das situações sociais. A justiça tem uma função essencialmente punitiva: ela deve excluir o criador de problemas. Isso é verdade tanto em matéria civil como penal. Assim, o juiz de família expulsa do domicílio conjugal o cônjuge faltoso e lhe tira a guarda dos filhos; o juiz de menores encaminha a criança maltratada para colônias agrícolas, o mais longe possível de sua casa, e o juiz penal envia o delinquente para o degredo. O condenando é pura e simplesmente suprimido do mundo: o melhor exemplo consiste na morte civil, quer dizer, a supressão de todos os direitos cívicos e civis dos condenados a longas penas.

Ao invés de encontrar instrumentos de paz social e fortalecimento dos laços entre as pessoas, percebe-se uma jurisdição ineficaz, eis que o Judiciário “decide sobre aquela relação social especificamente demandada, o que não impede, todavia, que outras tantas, com novas características, se manifestem, ou que continue existindo a própria relação social enquanto relação social” (SPENGLER, 2010, p. 287). Continua a referida autora: Tratar o conflito judicialmente, todavia, significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda. É nesse sentido a afirmativa de que “quando se vai ao juiz se perde a face”, uma vez que, imbuído do poder contratual que todos os cidadãos atribuem ao Estado, sendo por ele empossado, o magistrado regula os conflitos graças à monopolização legítima da força. (SPENGLER, 2010, p. 290-291)

O sistema judiciário brasileiro interessa-se pela manutenção da ordem dominante e pelo desenvolvimento econômico, utilizando as decisões judiciais como reflexos de interesses internos ou externos, porém sem refletir sobre as condições do espaço em que focaliza. Este é marcado por um imenso contingente de pobres e miseráveis, sem acesso ao mínimo existencial, vítimas da marginalização do próprio sistema seletivo.

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O principal problema da magistratura é que ela decide litígios que lhe são alheios, sem sentir os outros do conflito, encaixando-o num modelo normativo, sem ouvir/sentir as partes. Para os juízes, o outro não existe, sempre decidem a partir de si mesmos, de seus egos enfermos. Decidem sem responsabilidade, porque projetam a responsabilidade na norma. Decidem conflitos sem relacionar-se com os outros. As decisões dos juízes são sem rosto. (SPENGLER, 2010, p. 291)

É notório que, além das crises enfrentadas pelo Poder Judiciário, também as enfrentam os juízes, na medida em que percebem o seu papel na realização da justiça modificado, eis que o aumento do poder da Justiça também revelou maior independência à magistratura e ao juiz no tocante ao poder de disciplinar, e a garantia de que o magistrado não está atrelado às pressões de poderes externos ou internos. Na prática, a lesão à independência interna costuma ser de maior gravidade do que a violação à própria independência externa. Isso obedece ao fato de que o Executivo e os diversos operadores políticos costumam ter interesses em alguns conflitos, em geral bem individualizados e isolados, sendo que os corpos colegiados exercem uma ditadura interna e se divertem aterrorizando os seus colegas. Por meio do seu poder vertical, satisfazem seus rancores pessoais, cobram dos jovens suas frustrações, reafirmam sua titubeante identidade, desenvolvem sua vocação para as intrigas, desprendem egolatria, etc., mortificando os que, pelo simples fato de serem juízes de diversas competências, são considerados seus “inferiores”. Desse modo, desenvolve-se uma incrível rede de pequenez e mesquinharias vergonhosas, das que participam os funcionários e auxiliares sem jurisdição: a maledicência. (SPENGLER, 2010, p. 118)

Destarte, um juiz independente pode decidir sem pressões do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e de outras instituições externas. No entanto, ao abraçar o sistema da legalidade, os magistrados, conhecedores de seus deveres e na busca por sua tranquilidade, “mantêm com indiferença aqueles autos à espera em sua mesa, parecem não se lembrar de que entre aquelas páginas se encontram, esmagados e ressecados, os restos de tantos pobres inseti-

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nhos humanos, que ficaram presos no pesado livro da justiça” (CALAMANDREI, 2000, p. 264). Se um corpo pende da forca executado por uma sentença injusta, quem é o responsável pelo assassinato de um inocente? O legislador que estabeleceu a pena de morte em abstrato ou o juiz que a aplicou em concreto? O legislador argumenta: não tenho culpa por aquela morte; a sentença é um silogismo do qual construí apenas a premissa maior, uma fórmula hipotética, geral e abstrata, que ameaçava a todos, mas não atingia ninguém. O assassino é o juiz, porque foi ele quem, a partir de premissas inócuas, tirou a conclusão homicida, a lex specialis que ordenou a morte do inocente. O juiz, por sua vez, argumenta: não sou culpado, posso dormir tranqüilo, a sentença é um silogismo do qual não fiz nada mais que extrair a conclusão a partir da premissa imposta pelo legislador. Quem assassinou foi o legislador com a sua lei, a qual já era uma sententia generalis em que estava encerrada a condenação do inocente. Legislador e juiz remetem um ao outro a responsabilidade e ambos podem dormir tranquilos. (SPENGLER, 2010, p. 120)

Os juízes creem que sua função é a administração da justiça e a sua realização ao proferir decisões. No entanto, seus atos interrompem apenas uma relação conflitiva, mas não impedem o surgimento de outras tantas, pois negam as condições de existência digna, ou seja, ignoram os anseios do tecido social por um mínimo necessário de possibilidade de sobrevivência. Diante desse panorama, vislumbra-se que o modelo atual de prestação jurisdicional repele o reconhecimento da pessoa enquanto ser dotado de direitos fundamentais humanos, razão pela qual se mostram coerentes e mais democráticos o reconhecimento de métodos que se adaptam às situações concretas e garantam o mínimo existencial refletido na ideia de liberdade, nos princípios constitucionais da dignidade humana, de igualdade e na Declaração dos Direitos Humanos. “Só os direitos da pessoa humana, referidos à sua existência em condições dignas, compõem o mínimo existencial” (TORRES, 2009, p. 36). A garantia, portanto, do mínimo existencial pressupõe a indissociável relação entre a dignidade da pessoa e os direitos fun-

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damentais, eis que em cada direito fundamental se faz presente alguma projeção de dignidade humana. Assim, sustenta-se que “a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões” (SARLET, 2010, p. 97). Se da dignidade – na condição de princípio fundamental – decorrem direitos subjetivos à sua proteção, respeito e promoção (pelo Estado e particulares), seja pelo reconhecimento de direitos fundamentais específicos, seja de modo autônomo, igualmente haverá de se ter presente a circunstância de que a dignidade implica também, em ultima ratio por força de sua dimensão intersubjetiva, a existência de um dever geral de respeito por parte de todos (e de cada um isoladamente) os integrantes da comunidade de pessoas para com os demais e, para além disso e, de certa forma, até mesmo um dever das pessoas para consigo mesmas. (SARLET, 2010, p. 130)

Desse modo, percebe-se que a aplicabilidade e a eficácia jurídica dos direitos fundamentais humanos constituem a problemática do ordenamento jurídico brasileiro, já que a necessidade de garantia de sua eficácia não reside simplesmente na positivação desses direitos “naturais” e “inalienáveis”, requer seja-lhes assinalado a dimensão de Fundamental Rights colocados como fontes de direito. Assim, “sem esta positivação jurídica, os direitos do homem são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional” (CANOTILHO, 1993, p. 371). Nesta senda, as pessoas privadas do exercício regular de seus direitos fundamentais, bem como à mercê da atuação estatal em efetivar políticas públicas, recorrem ao Judiciário como forma de compensar o déficit social que o Brasil apresenta. Diante da ineficácia da prestação jurisdicional, apresentam-se possibilidades não jurisdicionais de tratamento de conflitos, como, por exemplo, a mediação, instituto a ser compreendido a seguir.

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A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA CONSENSUAL PELA MEDIAÇÃO

A incapacidade do Estado, por meio da jurisdição, de atender aos interesses e desejos das partes envolvidas no conflito permitiu o desenvolvimento de práticas alternativas de tratamento de conflito, fundamentadas na cultura, na confiança, na informalidade, na autenticidade, na flexibilidade, na rapidez, e na descentralização (GORCZEVSKI, 2007). Todas as sociedades, comunidades, organizações e relações entre as pessoas deparam-se ao longo do tempo com conflitos, os quais, conforme já manifestado, não são necessariamente ruins, anormais ou disfuncionais. São fatos da vida, porém, ao adquirirem aspectos de concorrência e aniquilamento do outro, necessitam de tratamento. Nessa senda, apresenta-se a mediação como abordagem do conflito capaz de desenvolver resultado eficaz, lidar com barreiras psicológicas e criar soluções de integração das partes (MOORE, 2003). A mediação é caracterizada como a forma ecológica de tratamento de conflitos sociais e jurídicos, cujo escopo é satisfazer o desejo das partes envolvidas na disputa. O acordo trata o problema a partir de uma resposta aceitável mutuamente, estruturado para manter a continuidade das relações envolvidas no conflito (WARAT, 2001). Na busca por uma justiça mais próxima – não em termos geográficos, econômicos ou sociais, mas em termos que signifiquem autonomização e responsabilização do cidadão pelas decisões dela vertidas – a mediação pode surgir como um “um salto qualitativo para superar a condição jurídica da modernidade, que vem baseada no litígio e possuindo como escopo objetivo idealizado e fictício, como é o de descobrir a verdade, que não é outra coisa que a implementação da cientificidade como argumento persuasivo”. (SPENGLER, 2010b, p. 28)

Trata-se de uma forma consensuada de tratamento de conflitos, pois o terceiro, chamando mediador, possui o poder de decisão limitado (não autoritário), auxiliando as partes envolvidas no conflito a alcançar um acordo de forma voluntária, mutuamente aceitável. O mediador não se preocupa em decidir, ao contrário do juiz, oferece às partes a liberdade para discutir a sua disputa.

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Se comparada a decisão judicial à composição consensuada entre as partes, percebe-se que a primeira tem por base uma linguagem terceira normativamente regulada. Ao contrário, a mediação desmancha a lide, decompõe-na nos seus conteúdos conflituosos, avizinhando os conflitantes que, portanto, perdem as suas identidades construídas antagonicamente. A mediação pretende ajudar as partes a desdramatizar seus conflitos, para que se transformem em algo de bom à sua vitalidade interior. (SPENGLER, 2010, p. 320)

Dessa forma, diante da existência de um conflito, há a interferência de um terceiro, com o poder de decisão limitado, o qual auxilia as partes a alcançarem de forma voluntária um acordo, ou seja, “é o modo de construção e de gestão da vida social graças à intermediação de um terceiro neutro, independente, sem outro poder que não a autoridade que lhes reconhecem as partes que a escolheram ou reconheceram livremente” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 131). Consoante manifesta Spengler (2010), a palavra mediação suscita a ideia de centro, de meio, de equilíbrio, descrevendo um terceiro elemento que se encontra entre as partes, não sobre, mas entre elas. Por tal razão, afirma a autora que a mediação constitui--se em um processo no qual o terceiro auxilia os participantes numa situação conflitiva a tratá-la, permitindo que a solução seja aceitável para os envolvidos, bem como que satisfaça seus anseios e desejos. A autora em estudo revela que os conflitantes devem ser encorajados a ouvir e a entender os pensamentos e sentimentos uns dos outros, possibilitando que juntos alcancem uma resposta favorável a ambos. Dessa forma, a meta da mediação é responsabilizar os conflitantes pelo tratamento do litígio que os une a partir de uma ética da alteridade, encontrando, a partir do auxílio de um mediador, uma garantia de sucesso, aparando as arestas e dificuldades das partes, bem como compreendendo as emoções reprimidas e buscando um consenso que atinja o interesse das partes e a paz social. De fato, o principal desafio que a mediação enfrenta não é o de gerar relações calorosas e aconchegantes, sociedades isentas de litígio ou uma ordem de mundo harmoniosa. Ao invés disso, considerando-se a natureza endêmica do conflito, talvez o seu principal desafio seja encontrar mecanismo que

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possibilitem uma convivência comunicativamente pacífica. (SPENGLER, 2012, p. 94)

A mediação ocorre pela intervenção de um terceiro, de uma terceira pessoa que se interpõe entre os dois protagonistas de um conflito, isto é, de duas pessoas, comunidades ou povos que se confrontam e estão um contra o outro. Assim, a mediação busca passar os dois protagonistas da adversidade à conversação, levando-os a virar-se um para o outro para se falarem, compreenderem e, se possível, construírem juntos um compromisso que abra caminho à reconciliação (MULLER, 2006). Ademais, “mediation may also establish or strengthen relationships of trust and respect between the parties or terminate relationships in a manner that minimizes emotional costs and psychological harm” (MOORE, 2003, p. 15). Assim, na definição de mediação, destaca-se a aceitação pelas partes, ou seja, deve haver a permissão para que o terceiro entre na disputa e auxilie no restabelecimento da comunicação e na construção do acordo. Por isso, o terceiro mediador trabalha para criar um espaço intermediário que possibilita que os envolvidos no conflito possam descansar dele e recriar as suas relações fundamentadas na paz. O mediador, no contato com as partes, contribui com novas variáveis e dinâmicas na interação com as partes, identificando o conflito existente, examinando seus interesses e necessidades para, então, auxiliá-los a negociar promessas e redefinir o seu relacionamento, de forma que seja mutuamente satisfatório e atenda aos padrões de justiça para ambos (MOORE, 2003). Portanto, “a mediação quer, assim, criar na sociedade um lugar onde os adversários possam aprender ou reaprender a comunicar, a fim de chegarem a um pacto que lhes permita viver juntos, se não numa paz verdadeira, pelo menos numa coexistência pacífica” (MULLER, 2006, p. 170) Escolher a mediação é, para cada um dos dois adversários, compreender que o desenvolvimento da sua hostilidade só lhes pode ser prejudicial e que têm todo o interesse em tentar encontrar, por meio de um acordo amigável, uma saída posi-

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tiva para o conflito que os opõe. [...] Na maior parte das vezes, as decisões da justiça cortam o nó de um conflito, designando um ganhador e outro perdedor – um ganha o seu processo o outro perde-o – e as duas partes saem do tribunal mais adversárias do que nunca. A mediação não se preocupa tanto em julgar um facto passado – que é o que faz a instituição judicial – como em apoiar-se nele para o ultrapassar e permitir que os adversários de ontem inventem um futuro liberto do peso de seu passado. (MULLER, 2006, p. 171)

O mediador não tem por função pronunciar um veredicto, nem enunciar uma condenação, bem como não dispõe de qualquer poder de coação que permita impor uma solução aos protagonistas de um conflito. Tampouco, consoante reflete o autor, o mediador é aquele que toma partido por nenhum dos dois conflitantes, mas é aquele que toma partido por ambos. “Neste sentido, o mediador não é neutro, ele é equitativo: esforça-se por dar a cada um o que lhe é devido” (MULLER, 2006, p. 172). A intervenção de um terceiro (magistrado, por exemplo) na resolução do conflito poderá, de maneira geral, oferecer maiores chances de sucesso? Nesse caso, que características essa terceira parte, incluindo seu relacionamento com os conflitantes, determina a aceitabilidade de sua intervenção? Que características desse terceiro ajudam a resolver conflitos e quais são as que promovem impasse e um litígio interminável? Se abordados por um igual, que pertence à mesma comunidade e possui valores, hábitos e crenças comuns aos conflitantes, os conflitos podem ser tratados de maneira mais adequada? Entre iguais, a chance de autonomização e responsabilização pelo tratamento de litígios são reais? (SPENGLER, 2012, p. 199-200)

O mediador tem um poder limitado ou um poder não autoritário de decisão, ou seja, não pode unilateralmente determinar ou forçar as partes a resolver as suas diferenças, provocando a decisão. Estas características são as que distinguem o papel do mediador do juiz ou do árbitro, pois os dois últimos detêm o poder de tomada de decisão para as partes, fundamentados por contratos,

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normas e leis (MOORE, 2003). Para Moore, enquanto o juiz examina o passado e avalia acordos pactuados entre as partes ou violações de um para o outro, The mediator, on the other hand, works to reconcile the competing interests of the two parties. The mediator’s tasks are to assist the parties in examining their interests and needs, to help them negotiate an exchange of promises, and to redefine their relationship in a way that will be mutually satisfactory and will meet their standards of fairness. (MOORE, 2003, p. 18)

Dessa forma, afirma-se que a mediação e o processo se diferem porque o segundo trabalha com a lógica do ganhador/perdedor, além de investigar a verdade real dos fatos, enquanto que a mediação centra-se no restabelecimento da comunicação a partir da lógica ganhador/ganhador (SPENGLER, 2010). Ou seja, enquanto o processo busca a verdade, produz/reproduz a violência. A verdade não pode ser imposta por uma decisão, muito menos descoberta pela violência. Consoante adiciona a autora em estudo, [...] um mediador que atende aos interesses de um ou de outro promove a falência da mediação e perde a sua identidade. A mediação é outra; é um ficar inserido entre as partes e não encontrar um espaço neutro e equidistante no qual resida a grande utopia do moderno, que é ter a qualidade de terceiro. (SPENGLER, 2010, p. 343)

Warat (2004) discorre que captar o outro é importante, na medida em que permite à pessoa descobrir a sua honestidade, com ela mesma e com os demais. E, ainda, vê-lo além das suas imagens, seus simulacros, suas representações, seus comportamentos artificiais, fabricados para agradar, ou para ter êxito. Percebe-se, assim, que os métodos atuais utilizados pelo Direito não encontram adequação entre a complexidade das ações judiciais, as pessoas envolvidas e as técnicas jurídicas aplicadas, o que acarreta a morosidade, o acúmulo de demandas e a insatisfação das pessoas envolvidas no conflito.

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Por essa razão, a mediação revela-se como uma cultura de paz, que ultrapassa a jurisdição tradicional, e utiliza práticas consensuais e autônomas que devolvem às pessoas a capacidade de tratar o seu próprio conflito. A meta da mediação é, portanto, responsabilizar os conflitantes por meio da ética da alteridade, encontrando uma garantia de sucesso, aparando as arestas e eliminando divergências, compreendendo as emoções reprimidas e alcançando um consenso que atenda aos interesses de cada um, representando, assim, a paz social. 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade contemporânea revela-se pautada nos ideais da competividade e do individualismo, desencadeando processos de beligerância entre os membros de um mesmo grupo e, por consequência, aumentando o número de litígios e processos judiciais. Desta forma, mostra-se urgente o discurso da implantação de uma cultura de paz e justiça social, de forma a obstaculizar o crescente nível de combate e conflito existente no tecido social. Verifica-se que o conflito danifica as relações entre as partes de forma irreparável nos âmbitos psicológico, social, econômico e físico. Somente com práticas alternativas para tratar tais conflitos é que se estará promovendo a cidadania de cada parte, bem como a sua inclusão. Assim, percebe-se que práticas alternativas de tratamento de conflitos se revelam como manifestos de uma nova cultura cidadã, a qual é caracterizada pela valorização da pessoa enquanto ser humano e pelo pacto entre iguais, fomentando a cooperação, o entendimento e a justiça social, por consequência. Tais práticas são instrumentos viabilizados a partir da implantação de políticas públicas que envolvam o Estado, a sociedade e aqueles que nela vivem, resgatando ações que visam a proteção e o respeito à dignidade humana. Por isso, a mediação apresenta-se como resposta ao cenário atual da jurisdição, pois restabelece as relações sociais entre as partes envolvidas em um conflito, resgatando os sentimentos/necessidades de cada um, minimizando, portanto, os danos causados às partes e suas respectivas famílias e comunidades. Portanto, cria

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espaços de acolhimento e promoção de direitos, bem como permite a existência de um sistema de valores e princípios fundado no diálogo, na participação direta e indireta dos envolvidos e no estabelecimento de acordos, buscando, por conseguinte, a concretização e o exercício regular da cidadania de cada um. A mediação é um processo alternativo, consensual e não adversarial de tratamento de conflitos, no qual o mediador dá assistência às pessoas em conflito com a finalidade de que possam manter uma comunicação produtiva à procura de um acordo satisfatório. Permite que as partes encontrem uma saída original para seus conflitos; que trabalhem por si próprias na resolução do litígio; que sejam autoras e não meras expectadoras da decisão a ser tomada. REFERÊNCIAS CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1993. DEUTSCH, Morton. A Resolução do Conflito: processos construtivos e destrutivos. Trad. Arthur Coimbra de Oliveira, revisado por Francisco Schertel Mendes. In: AZEVEDO, André Goma de (Org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília: Grupo de Pesquisa UnB, 2004. v. 3. GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião de promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. GARAPON, Antoine. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Trad. Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. GORCZEVSKI, Clovis. Jurisdição Paraestatal: solução de conflitos com respeito à cidadania e aos direitos humanos na sociedade multicultural. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2007. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e Arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e Arbitragem: alternativas à jurisdição. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. MOORE, Christopher W. The Mediation Process. Practical Strategies for Resolving Conflict. San Francisco: Jossey-Bass, 2003. MULLER, Jean-Marie. Não-violência na educação. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2006.

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AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO ESTADO E PELA JURISDIÇÃO E A MEDIAÇÃO COMO MÉTODO EFICAZ NO TRATAMENTO DE CONFLITOS

Ana Carolina Ghisleni Advogada e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul-Unisc, integrante do Grupo de Pesquisas “Políticas Públicas no tratamento dos conflitos”, mediadora judicial junto ao projeto de extensão “A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar conflitos”, sendo todos os projetos coordenados pela professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler. Contato: [email protected]

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APRESENTAÇÃO

Vive-se hoje a judicialização dos conflitos sociais. A sociedade contemporânea protagoniza a cultura do litígio e vê somente no Judiciário e na figura do juiz a maneira de resolver seus conflitos. Contudo, em termos organizacionais, o Poder Judiciário foi estruturado para atuar sob a égide dos códigos, cujos prazos e ritos são incompatíveis com a multiplicidade de lógicas, procedimentos decisórios, ritmos e horizontes temporais hoje presentes na economia globalizada. Assim, em face das crises que o Estado enfrenta, refletidas também na jurisdição, seus mecanismos se tornaram ineficientes frente à complexidade social. Em face da incapacidade do Estado nesse processo de resolução de litígios, tendem a se desenvolver outros procedimentos jurisdicionais, como a arbitragem, a mediação, a conciliação e a negociação, almejando alcançar celeridade, informalização e pragmaticidade. Neste sentido, a mediação de conflitos surge como importante mecanismo de acesso à justiça e também potencializador das relações inter-humanas existentes na sociedade, tornando-se um instrumento democrático e eficaz para tratar conflitos, vez que objeti-

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va, além da resolução do problema, restabelecer as relações sociais entre os conflitantes. Por isso, o presente debate se fundamenta inicialmente na discussão envolvendo o monopólio do poder jurisdicional e as dificuldades enfrentadas pelo Estado no tratamento dos conflitos, bem como aborda os benefícios da mediação enquanto instrumento consensual no tratamento de litígios e promotor do acesso à justiça.

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AS CRISES DA FUNÇÃO JURISDICIONAL, SUAS CAUSAS, CONSEQUÊNCIAS E AS DIFICULDADES ENFRENTADAS EM FACE DA COMPLEXIDADE SOCIAL

A jurisdição é a função exclusiva do ente estatal e visa à neutralização dos conflitos de interesses existentes em face da aplicação forçada de um direito positivo. Diz-se forçada pois o Estado, ao deter a forma de poder legal, detém também o monopólio legítimo da decisão vinculante, na medida em que os conflitos levados ao Judiciário são direcionados ao juiz, terceiro que decide a lide e diz a última palavra com base na lei (RESTA, 2004, p. 96-97). Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 reserva um capítulo próprio1 para o Poder Judiciário, que por sua vez é encarregado de administrar a justiça. A Emenda Constitucional 45/04, além disso, incluiu o Conselho Nacional de Justiça dentre seus órgãos, o que demonstra a crença na solução judicial dos conflitos. Entretanto, com o nítido aumento da esfera de abrangência das intervenções judiciais no destino dos indivíduos, grupos e do próprio Estado, o Judiciário não soube assumir este perfil e, “pior do que tudo, nada se faz para modificar a cultura judiciária, calcada em ranços medievais” (NALINI, 2008, p. 32-46). Na busca pela solução do conflito surge a lide processual; “todavia, tratar o conflito judicialmente significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda”. O maior problema da magistratura é que ela decide litígios que lhe são alheios, não levando em consideração, salvo raras exceções, o que as partes sentem e suas expectativas. “Decidem sem 1

Título IV, Capítulo III, artigos 92 a 126 da CF/88.

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responsabilidade, porque projetam a responsabilidade na norma. Decidem conflitos sem relacionar-se com os outros” (RESTA, 2004, p. 74). Diante disso, o âmbito de crescimento da discricionariedade do juiz é muito amplo e o grau de poder conferido pela discricionariedade é variável e específico em relação ao contexto. Deste modo, há forte conexão entre a ideia de conflito e de jurisdição, visto que os conflitantes se mantêm atrelados ao processo pelo litígio que foi originado em face de um conflito: unidos por ele, “os litigantes esperam por um terceiro que o ‘solucione’” (CHASE, 2009, p. 69-87). De fato, tarefa nada pequena aquela confiada ao processo e ao seu juiz: “accertare responsabilità grazie a um gioco dialogante dove domandare e rispondere acquistano um senso”. Esta é a história do processo, continuamente problemática a construir a gramática comum de uma linguagem na qual se responde a alguém porque e enquanto se responde de alguma coisa. Mas aqui é o confim a considerar entre direito e processo (RESTA, 2008, p. 154). No entanto, a ideia de que o juiz deve decidir todos os conflitos não passa de um mito derivado do excessivo ritualismo do Judiciário, e relaciona-se com os símbolos e rituais muito antigos que se perpetuam no tempo. O simbolismo que criou o rito judiciário foi buscar seus elementos na mitologia, Bíblia, história, entre outros domínios. O primeiro registro é de ordem cosmológica, traduzida na busca por uma forma de comunicação com a natureza. O segundo grande registro é de ordem religiosa. Tal concepção não crê que a justiça é divina, mas sim que juízes são homens aos quais incumbe uma tarefa sobre-humana para a qual devem tornar-se dignos. Estes diversos registros – cosmológico, mitológico, religioso, histórico – podem ser encontrados até hoje em vários âmbitos do judiciário (GARAPON, 1997, p. 28-29). O ritual judiciário, nesse sentido, é considerado um espetáculo e como tal é repleto de simbolismos; tudo conta: desde os trajes de juízes e advogados2, até os gestos3, posturas4, expressões5, audi2

A história do traje judiciário confunde-se com a história da própria profissão judiciária. Ela é testemunha do desejo de igualar em dignidade, por meio da magnificência dos símbolos, a nobreza guerreira. O traje judiciário tem a sua origem na realização da sagração, o que atenua a oposição entre a origem real e a origem clerical do traje judiciário, já que a veste que o rei recebia no dia

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ências6. Os próprios tribunais e fóruns são projetados com base em valores tradicionais: tudo começa no majestoso portão de entrada, imponente. O simbolismo da porta demonstra a “separação entre o espaço judiciário e o espaço profano da cidade. A porta é um local imbuído de um certo poder, o que explica que tenha sido escolhida muitas vezes por essa qualidade para nela se fazer justiça”. Além disso, a entrada de um palácio de justiça nunca se encontra ao mesmo nível da rua: está sempre acima deste; para acessar um palácio da justiça é necessário subir sempre um grande número de

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da sagração – a mesma que depois concedia aos presidentes dos parlamentos – era um traje religioso (GARAPON, 1997, p. 80-82). A mão levantada do juramento, o efeito da manga, a designação acusadora, a posição em sentido dos agentes ou do acusado que ouve o veredicto, a entrada solene do tribunal ou o retinir das algemas, correspondem a outros tantos gestos que constituem a base corporal do ritual. Têm a gravidade e a insignificância de um jogo. O gesto ritual realiza a estética do processo. No fascínio exercido pelo gesto no processo, está a procura de uma linguagem e a afirmação do primado da forma (GARAPON, 1997, p. 119). O corpo é o ponto de referência primordial de qualquer experiência. O ritual judiciário organiza-se em redor de três posturas fundamentais: o homem a andar, de pé e sentado. O simbolismo do corpo associado à função judiciária é muito antigo, tendo permanecido quase imutável desde os tempos bíblicos (GARAPON, 1997, p. 119-120). Existem tantas expressões como pessoas e, logo, como processos. E, no entanto, uma frequência assídua das salas de audiências mostra até que ponto é que certas expressões são estereotipadas. Os presidentes podem adoptar várias atitudes. Maureen Mileski identificou quatro tipos de expressões nas jurisdições americanas: afável (3%), dura (5%), firme e muitas vezes moralizadora (14%), impessoal e burocrática (78%). Certas mímicas, como descreve R. Grenier, são específicas dos advogados. Aliás, certos advogados, ao ouvirem um depoimento, têm as atitudes mais surpreendentes. Continuam a exprimir-se mimetizando da forma mais teatral as reacções que é necessário ter perante as palavras de uma testemunha. Inicialmente, é uma expressão de atenção contida, com o corpo projectado para a frente, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado e o olhar fixo, como que a afirmar a importância daquilo que se está a ouvir. Posteriormente, a satisfação, o triunfo, a incredulidade, a ironia ou o desprezo surgem na face desse comediante que monopoliza em si todas as atenções, procurando com isso sobrepor-se ao resto do elenco (GARAPON, 1997, p. 122). A audiência desperta uma multiplicidade de identificações particulares [...]. O espetáculo judiciário faz com que a sala exista, e vice-versa. O magistrado é serio porque é levado a sério. A sociedade necessita da sua função, da mesma forma que o magistrado necessita da sociedade para cumpri-la. O juiz só pode presidir ao ritual se o público reconhecer na toga as insígnias da sua função (GARAPON,1997, p. 116).

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degraus. As escadarias majestosas evocam a ideia de uma ascensão espiritual (GARAPON, 1997, p. 35-36). A partir disto entende-se porque a figura do juiz é mitigada: desde o início ele representa a divindade, o sagrado. É considerado o único capaz de julgar os problemas alheios por ser a representação da figura divina. Recebe a legitimidade da sociedade – e do Estado – como representante dessa soberania jurisdicional, no qual recaem inúmeras proclamações e mitos culturais, sendo “transfigurado como ser diferenciado, autoridade incontrastável provida de todos os poderes, poupado ao risco de errar e revestido de tonalidades demiúrgicas” (GARAPON, 1997, p. 97-100). No procedimento judiciário, não é sem significado que tudo seja conexo e finalizado a uma decisão que diga a última palavra sobre a lide. O juiz é, de fato, somente aquele ator que deve dizer a última palavra sobre a lide: pontualmente deve ius dicere para que, em nome de uma comunidade, não haja propagação da violência. Desenganchado pela retórica da virtude ou por improváveis profissões de sabedoria, o trabalho importante do juiz é aquele de dizer a última palavra sobre os conflitos e, graças a esta, interrompê-los (RESTA, 2008, p. 158). Ocorre que esse monopólio do poder jurisdicional que dita o direito para o caso concreto de forma impositiva não é uma forma democrática de resolução de litígios; a sociedade espera que o Judiciário resolva seus problemas, dizendo quem tem mais direito ou mais razão, ou ainda, quem é o vencedor da demanda. “Trata-se de uma transferência de prerrogativas” que cria muros normativos, engessa a solução da lide em prol da segurança e acaba por ignorar a reinvenção cotidiana ou um tratamento adequado aos litígios (CHASE, 2009, p. 70-71). Nessa linha, a dificuldade da dogmática jurídica em lidar com fenômenos sociais é histórica em face de vários fatores que influenciaram esta problemática. Ocorre que atualmente há uma tendência em identificar a ciência jurídica como “um tipo de produção técnica, destinada apenas a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o advogado) no desempenho imediato de suas funções”. Por isso criou-se uma cultura jurídica por meio da qual o operador do direito trabalha no seu dia a dia com soluções e conceitos lexico-

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gráficos, utilizando-se de ementas jurisprudenciais – por exemplo – completamente descontextualizadas (STRECK, 2001, p. 83). Seguindo as minuciosas regras do rito, o resultado final será o veredicto do complexo dizer e proceder: outra bela história, aquela de um dito que esteja ali como verdadeiro, a decretar a verdade ou a assumir-lhe a gestação. A partir desse momento, as palavras afetarão destinos, que terão, inevitavelmente outras histórias, outras linguagens, outros vocabulários. A normatividade das palavras do juiz estabelecerá alguma possibilidade de que em outra parte da totalidade da máquina se possam tomar outras decisões acerca da possibilidade de outras decisões. A normatividade da decisão considerará sempre uma outra normatividade, até que uma cognição não feche o círculo (RESTA, 2008, p. 160). Mais do que isso, do ponto de vista do procedimento decisional, o sistema jurídico aparece como uma cadeia infinita de decisões (strange loops na linguagem dos paradoxos) que tem a ver não com rude facts, mas com construções jurídicas, ou, melhor, com construções jurídicas da realidade que aparecem no sistema do direito como eventos (RESTA, 2008, p. 162). Com este procedimento, ignora-se o contexto histórico e social no qual estão inseridos os atores jurídicos, na medida em que há uma relação direta com um fator normativo de poder: o poder de violência simbólica7. “Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força”; o resultado é o aparecimento do arbitrário juridicamente prevalecente, cujo objetivo é alcançar o correto e fiel sentido da lei (STRECK, 2001, p. 85). Assim, o Poder Judiciário apenas decide os conflitos sociais, não os eliminando, pois eles representam “um antagonismo estrutural entre elementos de uma relação social que, embora antagônicos, são estruturalmente vinculados”, enquanto que as competências jurisdicionais fixam-se nos limites de sua capacidade de absor7

Este poder não significa coação, pois, pelo poder de violência simbólica, o emissor não coage, isto é, não se substitui ao outro. Poder é controle. Para que haja controle é preciso que o receptor conserve as suas possibilidades de ação, mas aja conforme o sentido, ou seja, o esquema de ação do emissor. Por isso, ao controlar, o emissor não elimina as alternativas de ação do receptor, mas as neutraliza (STRECK, 2001, p. 85).

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vê-los e decidi-los, ultrapassando os próprios limites estruturais das relações sociais (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 70-71). Além disso, “os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas, e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu”. Logo, os conflitos sociais não entram nos fóruns e tribunais em face das barreiras criadas pelo discurso produzido pela dogmática jurídica dominante: “nesse sentido, pode-se dizer que ocorre uma espécie de ‘coisificação’ (objetificação) das relações jurídicas” (STRECK, 2001, p. 74). Com efeito, não compete ao Sistema Judiciário eliminar vínculos existentes entre as unidades da relação social, mas sim, a ele caberá, “mediante suas decisões, interpretar diversificadamente este vínculo”, podendo inclusive dar-lhe uma nova dimensão jurídica, mas não dissolvê-lo. A eliminação do conflito pelo Judiciário não ocorre porque ele estaria suprimindo a sua própria fonte ou impedindo o seu meio ambiente de fornecer-lhe determinadas demandas (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 71). De outro lado, essas deficiências existentes na jurisdição são consequências das crises estatais, que nascem de um deliberado processo de enfraquecimento e se transferem para todas suas instituições. Por isso que se deve debater a crise da jurisdição a partir da crise do Estado, analisando sua gradativa perda de soberania, bem ainda “sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios atuais, de tomar as rédeas de seu destino, sua fragilidade nas esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, enfim, sua quase total perda na exclusividade de dizer e aplicar o direito” (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 76-77). A prática judicial atual, portanto, vê sua atividade comprometida em face de um novo e incerto cenário em que o Estado perde sua autonomia decisória e dá margem à operação de justiças não profissionais baseadas em critérios de racionalidade material. Esta situação provoca uma crise de identidade funcional da jurisdição, que compreende um embaçamento do papel judicial como mediador central de conflitos, perdendo espaço para outros centros de poder, talvez até mais adequados para lidar com a complexidade conflitiva atual (SPENGLER, 2010, p. 109).

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A crise de identidade das instituições judiciais se expressa, ainda, pela falta de modernização de suas leis básicas, de modo que magistrados aplicam normas ultrapassadas a uma sociedade que – em curto espaço de tempo – modificou sua natureza e a intensidade e alcance de seus conflitos. “Um setor significativo do ordenamento jurídico nacional se encontra em total desconexão com a realidade social, econômica e cultural”, pois muitos textos legais foram produzidos a partir de valores, motivações e interesses que se modificaram com o veloz processo de transformação social (FARIA, 1995, p. 13). De outro lado, as legislações atuais editadas em uma concepção mais contemporânea do direito, capazes de lidar com conflitos coletivos e envolvendo questões de natureza social, esbarram em uma concepção profissional ainda individualista e formalista: “este individualismo se traduz pela convicção de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivíduo estão acima dos direitos da comunidade”. Os magistrados são treinados para trabalharem com diferentes formas de ação, porém, não conseguem uma compreensão precisa das estruturas socioeconômicas em que são travadas (FARIA, 1995, p. 15). Nesse sentido, as demais crises que atingem o Estado e refletem, por sua vez, na jurisdição, podem ser entendidas sob diversas perspectivas. A primeira delas é a chamada crise estrutural e diz respeito ao financiamento, como infraestrutura das instalações, de pessoal, equipamentos, custos – estes últimos não somente relativos a valores efetivamente gastos, mas também ao custo diferido que se reflete em razão do alongamento temporal das demandas (SPENGLER, 2010). Ressalvada a excepcional situação de alguns tribunais, o arcaísmo predomina na justiça nacional. Isso significa que não há planejamento estrutural, mas sim despreparo administrativo, lamentação contínua por mais cargos e melhores salários e projetos interrompidos. “O funcionalismo ainda ostenta as denominações medievais. A regra é a inexistência de plano de carreira. A ascensão funcional é quase sempre empírica”. O funcionalismo, que outrora era elite, hoje se vê empobrecido. Desmotivados, os operadores do direito lutam por sobrevivência; não há preocupação nem em deixar o servidor satisfeito (NALINI, 2008, p. 120).

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Outra crise, chamada objetiva ou pragmática, engloba a questão da linguagem técnico-formal utilizada nos rituais processuais, bem como a burocratização, lentidão de procedimentos e acúmulo de demandas (SPENGLER, 2010, p. 78). O número excessivo de processos é a regra atualmente no Judiciário. Todos recorrem e ele: ricos, pobres, pessoas físicas, jurídicas, empresas, sindicatos, bancos, associações, organizações, etc. “Invoca-se o juiz quando se tem razão e, principalmente, quando não se tem nenhum direito” (NALINI, 2008, p. 106-108). Nesse contexto, a complexidade do processo gera uma lentidão insuportável e assim a injustiça consegue uma sobrevida, prolongada até vencer as quatro instâncias recursais. Desta forma os devedores são clientes muito gratos à justiça; apelar a ela parece ser a única alternativa para quem falha o cumprimento espontâneo de alguma obrigação e a quebra de compromisso em todas as esferas (NALINI, 2008, p. 108-110). A questão da duração de um procedimento reporta-se ao nó do convencionalismo; a relação mais geral entre direito e tempo é uma reserva ilimitada. “Certo, non sapremo mai cosa perdiamo quando perdiamo tempo”; por outro lado, o tempo é um recurso não igualmente distribuído, e isto significa que em um conflito o tempo que alguém perde é ganho pelo outro; e enfim, do ponto de vista não da ética pública, mas simplesmente da racionalidade social, é um empobrecimento coletivo o fato de que se desperdicem recursos, mesmo temporalidades, por bases rituais, simbolicamente significativas, grandiosas, mas inúteis e que não se pode efetuar (RESTA, 2008, p. 165). Além disso, o problema da comunicação não ocorre somente entre os operadores de direito e a sociedade, em face do desconhecimento da linguagem técnico-formal pelos cidadãos. Ocorre que o próprio Judiciário não está sabendo dialogar com os demais poderes estatais, nem com a mídia. O cultivo de uma linguagem apenas compreensível por iniciados e a interposição de um agente provido de capacidade postulatória como forma de acesso à justiça acaba tornando a prestação do justo um equipamento hermético (NALINI, 2008, p. 178). Lamentavelmente, por meio de um conjunto de crenças e práticas, os juristas passam a conhecer de modo confortável e acrítico

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o significado das palavras, das categorias e das próprias atividades jurídicas, banalizando sua profissão. Logo, seu saber profissional se converte em “‘capital simbólico’, isto é, numa ‘riqueza’ reprodutiva a partir de uma intrincada combinatória entre conhecimento, prestígio, reputação, autoridade e graus acadêmicos” (STRECK, 2001, p. 84). Deste modo surge o hiato entre a singeleza da concepção de justiça pelo cidadão comum e a extrema complexidade dos ritos processuais que ele não consegue entender por carecer da devida formação jurídica. Além de reforçar um sentimento de descrença por parte da população, afastando-a da justiça, gera até mesmo desprezo da sociedade em face dela (FARIA, 1995, p. 13). A morosidade, por sua vez, é o mais universal de todos os problemas do Judiciário e as respostas postuladas surgem quando os interessados já se desalentaram, quando o conflito já se dirimiu, ou quando a discussão do problema já perdeu importância. O processo e seus ritos estão em descompasso com o ritmo da sociedade moderna; prova disso são os atos de comunicação que não se modernizaram, confiados a um tratamento artesanal, a coleta de provas que continua atendendo a cânones superados, entre outros, – idêntico à produzida no medievo (NALINI, 2008, p. 176). Após superadas essas vicissitudes em primeiro grau, a outorga da prestação jurisdicional distancia-se de seu ideal. Mas não termina aí: instaura-se, posteriormente, a reapreciação por instâncias superiores. O reexame justifica-se pela tradição no Direito do duplo grau de jurisdição e a tentativa de reverter o resultado obtido no grau inferior em face de um patamar mais experiente. “O que não se legitima, porém, é a existência de verdadeiros quatro graus de jurisdição” – sem esquecer que no processo cível, após a solução definitiva, ainda há o processo de execução (NALINI, 2008, p. 175176). A crise subjetiva ou tecnológica, a seu tempo, se vincula à incapacidade de x, mudanças de perspectivas, pois tais mecanismos lógico-formais não atendem às soluções buscadas aos conflitos contemporâneos (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 80). Não se pode perder de vista que a sociedade brasileira está cada vez mais heterogênea e complexa, ostentando situações econômicas, sociais e culturais díspares, fator que interfere na admi-

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nistração da justiça. No ato de julgar, prestigiam-se valores; e, nesse sentido, não existe homogeneidade valorativa. “Em Direito, a polarização é mais do que provável. É a própria dialética do processo”, por isso a importância de se chegar a um ponto de equilíbrio entre os dois lados (NALINI, 2008, p. 165-168). A crise paradigmática, por fim, repercute nos métodos e conteúdos utilizados pelo Direito para a busca de um tratamento pacífico para os conflitos, a partir da atuação prática do direito aplicado a cada caso, vez que o modelo jurisdicional não atende às necessidades sociais dos sujeitos envolvidos e do conteúdo das lides (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 79). O problema é o excessivo ritualismo do Judiciário, que já deixou de ser uma questão cultural para ser tema de interesse ético, tornando o processo uma ferramenta inadequada na busca pelo resultado apropriado a uma controvérsia. Nesse sentido, o processo passou a ser uma finalidade em si, e caracteriza-se por ser intrincado, obsoleto e ideologicamente voltado à preservação de injustiças (NALINI, 2008, p. 182). Logo, “a dimensão dada pelo ritual judiciário a qualquer decisão judicial vai muito além das particularidades do processo”, refazendo o caminho que vai da violência ao direito, transformando o delito numa ocasião de socialização. Ocorre que desta forma o espetáculo do processo judicial dá ao mal um rosto – do réu –, à violência um quadro – o do confronto entre as partes – e à unidade um símbolo – a sentença. “Ao reconstituir estes três movimentos – o caos, o confronto e a resolução – leva à cena o próprio drama da vida política à ordem social e jurídica, representando-a”: o ritual judiciário, conferindo-lhe consistência, torna-a desejável (GARAPON, 1997, p. 67-71). No bem e no mal, portanto, a história do processo é a história da legalidade moderna definida pelo recorde da lei, por mais convencional que essa seja, e daquela gramática das palavras que deve distanciar de si a violência. Alhures reconstruímos este acontecimento do ponto de vista de phàrmakon, daquela estranha combinação de veneno e antídoto, tratamento e doença, que ambiguamente atravessa a violência, a lei, a escritura (RESTA, 2007). O direito e o processo se justificam como antídotos, mas, para não ser por sua vez veneno, devem reduzir o arbítrio da punição através da mini-

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mização da violência e o respeito de um princípio de exceção do meio. A aposta moderna é aquela de colocar junto garantias e eficiência, procedimento e resultado, respeito dos direitos e investigação da verdade (RESTA, 2008, p. 164). Ademais, a crise jurisdicional também afeta a qualidade e quantidade das lides, pela interferência de variáveis endógenas – formalização de novos direitos, normatizações nem sempre universalistas, categorias profissionais orientadas ao direito como cultura do conflito – e exógenas, as quais consistem em economias expansivas e conflituosas, ausência de uma cultura solidária, entre outros. Deste modo, em face de tal hipertrofia, a direção política do direito deve mover-se no sentido de uma jurisdição mínima contra uma jurisdição onívora e ineficaz. Porém, para que isso ocorra, ou seja, para que se possa recomeçar, “é preciso uma reconsideração ecológica da relação entre justiça e sociedade, que leve em conta o problema dentro da sociedade, onde se criam, juntos, os problemas e os remédios” (RESTA, 2004, p. 100). Todos esses problemas desembocam na crise de eficiência da jurisdição, a qual consiste na impossibilidade de responder de um modo eficiente à complexidade social e litigiosa, evidenciando morosidade e ineficiência na prestação do serviço judicial. A junção de todas essas deficiências provoca o descrédito do cidadão pela justiça e seu consequente afastamento dela. A decisão judicial frequentemente é insuficiente para satisfazer à pretensão formulada, não somente pela mora na prestação jurisdicional ou pelo insensato regime de recursos, mas por ser meramente processual e não atingir o cerne da controvérsia. “O fenômeno é abrangente e complexo” e assim ordens judiciais são descumpridas e nada acontece (NALINI, 2008, p. 183). Deste modo, os aspectos óbvios desta crise de ineficiência dizem respeito à inefetividade do Poder Judiciário em face do descompasso entre procura e oferta de serviços judiciais, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos. Em outras palavras, a produção judicial ocorre em ritmo inferior à entrada de novos processos. Este fato iniciou na década de 1980 com a abertura política e democratização progressiva, que despertaram na população a consciência de seus direitos, mas “esbarraram num Judiciário despreparado para responder ao desafio da ampliação do acesso à Jus-

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tiça no âmbito de um país ‘reconstitucionalizado’” (FARIA, 1995, p. 20). Vive-se, portanto, uma crise de organização política da sociedade em face do desmoronamento dos princípios que nortearam a organização política por vários séculos; “a população tem a maior parte de suas expectativas frustradas pela inoperância dos órgãos públicos, que não conseguem realizar suas funções e pelo agravamento das condições econômicas”, criando assim um clima de insegurança e impedindo a visão de um futuro promissor. Há uma total desconexão entre o aparelho judicial e o sistema político e social em face dos problemas referidos, da complexidade dos litígios e do aumento da desigualdade social (AGRA, 2005, p. 11-15). Muitas são as causas8 destas crises. As causas estruturais ou organizacionais referem-se ao problema da estrutura do Judiciário, a qual contém mais de cem tribunais autônomos sem coordenação e planejamento. Somente com a Emenda Constitucional 45/04 o Conselho Nacional de Justiça assumiu esta tarefa, tornando-se responsável por fiscalizar os juízes, prever condições para enfrentar os desafios e assegurar sua subsistência digna, tudo com o intuito de fortalecer a democracia. Além disso, pode-se afirmar que a estrutura jurisdicional atual transformou os tribunais intermediários tão somente em casas de passagem; isso ocorre porque são quatro as instâncias a serem vencidas por quem pretenda ver seu problema apreciado pela justiça: o primeiro grau, com o juiz local, o segundo grau, com o tribunal local, o Superior Tribunal de Justiça e finalmente o Supremo Tribunal Federal. É isto que ocorre com aqueles que precisam recorrer ao Judiciário para reconhecer seus direitos. A estrutura “permite a qualquer bom operador do direito fazer chegar à Corte Suprema todas as demandas judiciais”, tornando-se comum ouvir de advogados que a sentença de primeiro grau e os acórdãos de órgãos colegiados são irrelevantes. Assim, afastou-se do Brasil a ideia de um segundo julgamento como último e definitivo – ressalvadas as poucas hipóteses de competência originária (NALINI, 2008, p. 12). 8

Observa-se que na obra Nalini (2008), o autor refere as causas da crise de identidade do juiz, especificamente. Porém, no presente estudo, entende-se que tais causas são também responsáveis por todas as deficiências apresentadas, vez que estão interligadas e são dependentes.

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Outra das causas é a conjuntural e alude à falta de planejamentos; ou seja, não há projetos e os poucos existentes se limitam à necessidade de criação de novos cargos, contratação de novos funcionários e instalação de novas unidades judiciais. Ademais, muitas vezes o comando do Judiciário foi assumido por magistrados com pouco talento para administração, em face da regra da antiguidade. O líder, ao contrário, deve ser escolhido pela capacidade de gestão, pois são essas as atribuições desse trabalho. As causas processuais envolvem o desequilíbrio entre a segurança jurídica e a cultura do litígio. Assim, o processo – que deveria ser instrumento de busca pela justiça – tornou-se uma finalidade em si: “a forma foi privilegiada em detrimento da substância”. O país das quatro instâncias e infinidade de recursos assegura uma duração interminável dos feitos e por isso as demandas se eternizam no Judiciário. Mas, ainda pior que isso é o fato de os processos não receberem soluções, apenas respostas processuais. “Grande percentual de lides é resolvido mediante análise de questões procedimentais, sem que se alcance o cerne do conflito que a elas deu origem” (NALINI, 2008, p. 18-20). Por fim, as causas culturais compreendem o modelo operacional formal e conservador do Judiciário, dotado de um direito onipotente quanto à regulação das facetas da vida e de uma justiça que age apenas quando provocada. Este padrão vem de muito tempo e projeta-se desde a formação do bacharel em direito, nas faculdades. O Brasil possui mais faculdades de Direito do que todo o mundo: atualmente são cerca de mil, duzentos e quarenta cursos em plena atividade enquanto no resto do planeta a soma chega a mil e cem cursos9; multiplica-se o número de faculdades enquanto sua qualidade decresce. Quase duzentos mil bacharéis em direito se formam por ano no país, enquanto atualmente são mais de 4 milhões inscritos nas faculdades de Direito (NALINI, 2008, p. 20-22). Os operadores do direito refletem as deficiências existentes no ensino jurídico. Ainda não se conseguiu superar a visão de autossuficiência e normativismo para adotar modelos educacionais mais abertos, críticos, interativos e inovadores. A propagação das 9

Dados retirados da reportagem produzida pelo Conselho Nacional de Justiça: .

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faculdades de direito traz consigo salas de aulas numerosas e heterogêneas, analfabetismo funcional, aprovação praticamente garantida e reavaliações constantemente concedidas. O docente, por sua vez, é um profissional da área jurídica e não um professor provido de didática com formação em pedagogia, muitas vezes despreparado para obter êxito na formação do aluno e/ou orientar o aprendizado de forma adequada, favorecendo a ideia da litigiosidade (NALINI, 2008, p. 234-236). As faculdades de Direito “funcionam como meros centros de transmissão do conhecimento jurídico oficial, e não propriamente como centros de produção de conhecimento científico”. Ao mesmo tempo em que o professor fala de códigos, o aluno aprende – quando aprende – em códigos, motivo pelo qual a pesquisa jurídica é exclusivamente bibliográfica (STRECK, 2001, p. 80). Por óbvio, é evidente que todas essas deficiências exercem impacto negativo na economia e política nacional de forma geral. Há, de fato, uma interação de crises, de forma que um problema leva a outro, cujo resultado é a manutenção de desigualdades sociais, do círculo vicioso da pobreza, distribuição desigual de direitos, ampliação da concentração de renda, bem ainda expansão irracional de matérias submetidas ao controle jurídico (FARIA, 1995, p. 16). Mais do que isso, esta situação evidencia um problema muito mais profundo que atinge por consequência a produção cultural, ambiental, entre outros. Na verdade, está ocorrendo uma profunda “crise do regime democrático, uma crise do conceito de soberania, uma crise do Estado Democrático de Direito, uma crise do esquema funcional de separação dos três poderes”. Isto significa dizer que a pós-modernidade está colocando em dúvida antigos valores que estruturavam a sociedade, gerando, assim, uma intensificação dos conflitos sociais, e o pior: uma crise de confiança entre os próprios indivíduos e entre a sociedade e o Estado (AGRA, 2005). Desta forma, a própria lei – e sua consequente criação, interpretação e aplicação – distancia-se da sociedade em que está inserida, não correspondendo à expectativa dos indivíduos, o que só agrava a crise de confiança do cidadão no Judiciário. Tal descrédito no regime democrático em geral é comprovado pelo completo afastamento do cidadão da vida política, como a apatia generalizada da sociedade pelas eleições, desinteresse pela política em geral, oposi-

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ção total aos representantes e falta de confiança na classe política de modo abrangente10. Uma instituição como o Poder Judiciário não pode permanecer desconectada da sociedade. “O povo enxerga a Justiça com uma percepção de que ela é parcial, imprevisível, lenta e excludente dos desvalidos”. Não se confia mais na lei, a relação da humanidade com a lei mudou, pois, no passado, a regra do direito traduzia fielmente a ética dominante: “já foi o tempo em que o Judiciário estava acima de todas as críticas, dúvidas ou suspeitas e no qual o respeito era o primeiro sentimento a se devotar à Justiça. A Humanidade vive uma crise de fé” (NALINI, 2008, p. 10-50). Neste cenário, as práticas consensuais de tratamento de controvérsias tornam-se importantes instrumentos de regulação social, pois trazem novas formas de ver o conflito, e propõem, assim, uma quebra de paradigmas. A mediação – analisada no item abaixo – difere de todas elas “porque seu local de atuação é a sociedade, sendo a sua base de operação o pluralismo de valores, a presença de sistemas de vida diversos e alternativos, e sua finalidade consiste em reabrir os canais de comunicação”, reconstruindo laços sociais destruídos (SPENGLER, 2010, p. 311-312).

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A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO CONSENSUAL, DEMOCRÁTICO E AUTÔNOMO DE TRATAR OS CONFLITOS SOCIAIS, CAPAZ DE RESTABELECER A CONFIANÇA DO CIDADÃO

A mediação é uma técnica de tratamento de conflitos que vem demonstrando no mundo sua grande eficiência ao lidar com confli10

Sobre a crise da cidadania vivenciada atualmente, é importante a leitura de Vieira (2001, p. 236-237): o momento é de perda gradativa dos direitos de cidadania, em face do enfraquecimento da nacionalidade. A cidadania nacional vem sendo abalada pela formação de instituições supranacionais; além disso, a importância crescente da dimensão econômica e social na vida moderna vem enfraquecendo os laços políticos da cidadania, pois os interesses econômicos e materiais passam a prevalecer sobre os direitos e deveres cívicos do cidadão. Logo, o Estado não possui o monopólio das regras, já que há regras internacionais que deve partilhar. Por isso, o Estado-nação não é mais o lar da cidadania.

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tos interpessoais. Mais que isso, é um método não adversarial, já que não há imposições de sentenças ou laudos, permitindo às partes a busca de seus verdadeiros interesses e sua preservação por meio de um acordo (SILVA, 2004, p. 13). O tratamento do conflito pela mediação ocorre informalmente, por meio de uma terceira pessoa – o mediador – que tenta, mediante a organização de trocas comunicativas entre as partes, confrontar as opiniões, administrando o problema que as opõe. O debate entabulado durante o procedimento é todo voltado para o entendimento, pois a obtenção deste entendimento por meio de processos linguísticos possibilita “aos participantes, na interação, chegar ao acordo mútuo sobre a validade pretendida para os seus atos de fala, ou, se for o caso disso, levar em consideração os desacordos que foram averiguados” (SPENGLER, 2010, p. 356). Nesse sentido, a mediação pode ser considerada uma estratégia do agir comunicativo proposto na teoria de Habermas (1997), na medida em que a força consensual dos processos linguísticos para obtenção do entendimento e as energias vinculativas da própria linguagem são eficazes para coordenação da ação. Esta coordenação da ação, por sua vez, baseia-se em uma racionalidade que se manifesta nas condições para um acordo racionalmente motivado (SPENGLER, 2010, p. 356). Nesse contexto, o referido autor “pretende propor uma terapia por meio da nova conceituação que confere à ‘razão comunicacional’: ela rompe a clausura sistêmica de um direito curvado sobre as singularidades individuais”, almejando moldar no espaço público uma ética de discussão; é a linguagem – “mídia universal” – que cria a possibilidade de comunicação. É deste modo que as relações interpessoais passam a ter prioridade sobre a individualidade (GOYARD-FABRE, 2003, p. 322). Quanto mais a racionalidade comunicativa se amplia, maior é a possibilidade de haver coordenação da ação sem o emprego da coerção, permitindo a resolução consensual do conflito deflagrado em decorrência de dissonâncias cognitivas. Logo, a ação comunicativa – e consequentemente a mediação – ocorre a partir da prática do consenso, gerando compromissos e responsabilidades aos envolvidos (SPENGLER, 2010, p. 365). A racionalidade comunicativa “exprime-se na força unificadora da fala orientada ao entendimento

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mútuo, discurso que assegura aos falantes envolvidos um mundo da vida intersubjetivamente partilhado”, como também o horizonte pelo qual todos podem “se referir a um único e mesmo mundo objetivo” (HABERMAS, 2004, p. 107). O paradigma do sujeito, neste caso, é visto por meio do paradigma da intersubjetividade que também é, de maneira concreta e pragmática, interação e intercompreensão; como o sistema jurídico não responde mais às necessidades e reivindicações de uma opinião que o jurislador não escuta, necessária a formação de uma estrutura de comunicação entre os setores privados do mundo vivido e o sistema jurídico-político. Assim, um novo paradigma de direito exige que a discussão argumentada predomine sobre a decisão voluntária do poder (GOYARD-FABRE, 2003, p. 323). A razão processual convoca a prática do entendimento consensual por meio do diálogo. Assim, “a validade das normas jurídicas depende de seu acordo com o mundo cotidiano vivido, que é o próprio télos do ‘agir comunicacional” (HABERMAS, 1997). Este, a seu tempo, pressupõe a utilização da racionalidade recíproca, isto é, a utilização do agir orientado para o entendimento. O contato que os indivíduos possuem com o mundo é mediado linguisticamente, ao passo que a objetividade do mundo – que se supõe ao falar e agir – “está de tal modo entrelaçada com a intersubjetividade do entendimento sobre algo no mundo” (HABERMAS, 2002, p. 56). A interação existente na mediação de conflitos, portanto, decorre da ação comunicativa, a qual “se dá a partir da prática do consenso” e da racionalidade. “A atenção volta-se à racionalidade imanente da prática comunicativa que remete às diversas formas de argumentação” e à capacidade de seguir na comunicação almejando o consenso. Com efeito, o ato de argumentar almejando a concordância é critério de racionalidade e recomendação prática para uma boa convivência (SPENGLER, 2010, p. 360). Não se pode perder de vista, de outro lado, que o risco do desacordo sempre existe, pois é inerente ao mecanismo comunicativo: “os desacordos fazem parte do meio comunicativo, surgindo das experiências que perturbam os aspectos rotineiros e tidos como adquiridos, constituindo uma fonte de contingências”. Podem acarretar, ainda, a frustração de expectativas, e nesse aspecto o risco de desacordo é absorvido, regulado e controlado nas práticas cotidianas. Ocorrendo o dissenso, “os interlocutores buscam o restabele-

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cimento do consenso por meio de argumentos, em decorrência da racionalidade comunicativa” (SPENGLER, 2010, p. 365). De outro lado, o consenso social é fundamental para obtenção da vontade coletiva, e “significa que toda a comunicação se volta para o entendimento, compartilhando expectativas, buscando o acordo”. Ocorre que, ao contrário do que se pensa, o consenso não pressupõe uma concordância coletiva, embora esta seja sua meta final: o falante aspira à validez de sua emissão, na ânsia do reconhecimento do interlocutor, o qual assume uma postura, admitindo ou não a validez da emissão (SPENGLER, 2010, p. 364). A mediação de conflitos acarreta autonomia individual, na medida em que as partes constroem a decisão final juntas, e se comprometem a cumpri-la, responsabilizando-se por meio da alteridade. Possuindo uma cadência temporal própria, colocando-se entre as partes e agindo como instrumento de justiça social, “a mediação pode organizar as relações sociais, auxiliando os conflitantes a tratarem os seus problemas com autonomia, reduzindo a dependência de um terceiro (juiz)”, ao mesmo tempo em que acarreta entendimento mútuo e consenso (SPENGLER, 2010, p. 314). Neste mesmo sentido, a mediação enquanto instrumento comunicativo permite que os conflitantes participem, inicialmente, da construção da decisão, comprometendo-se e responsabilizando-se pelo seu cumprimento, instigando, posteriormente, uma participação mais ampla. Isso significa dizer que o método é forma de estimular a participação e a autonomia individual, auxiliando na construção da necessária mudança de cultura, qual seja, de que os sujeitos não devem sempre esperar uma resposta estatal, mas sim, resolver seus problemas ativamente. Isto ocorre porque “a mediação como ética de alteridade reivindica a recuperação do respeito e do reconhecimento da integridade e da totalidade de todos os espaços de privacidade do outro”. Nesse sentido, quando em conflito, as pessoas ficam tão tomadas pela dominação e vontade de impor seus interesses que acabam invadindo amplamente o espaço do outro litigante. Por isso, o mecanismo é radicalmente não invasor, não dominador, não aceitando dominação sequer em relação aos gestos (WARAT, 2004). A mudança de cultura proposta pela mediação inicia com a desvinculação da ideia de que uma terceira pessoa deve decidir a

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questão ou impor uma decisão, gerando participação do sujeito, o que indica que o procedimento possui também um viés democrático. Não existe coerção, sanção ou imposição de algum acordo ou decisão; tudo é definido pelos litigantes com o auxílio do mediador. Por isso a importância das políticas públicas geradoras de um cenário onde os sujeitos possuem espaço para atuação mais ampla. Para tanto, o Estado deve certamente garantir a igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de institucionalidade democrática, possibilitando que os indivíduos acompanhem e participem das políticas públicas (LEAL, 2008, p. 201). Logo, a mediação é um procedimento que, além de instituir o consenso, proporciona autonomia individual e instiga também a prática democrática. Sua dinâmica desmancha a lide, decompondo-a em seus conteúdos conflituosos e avizinhando os conflitantes, ao contrário da decisão judicial – a qual toma por base uma linguagem terceira normativamente regulada. “A mediação pretende ajudar as partes a desdramatizar seus conflitos, para que se transformem em algo de bom à sua vitalidade interior” (SPENGLER, 2010, p. 320). De fato, o procedimento é essencialmente democrático por que dissolve os marcos de referência da certeza determinados pelo conjunto normativo hierarquizado; acolhe a desordem como possibilidade positiva de evolução social. Aposta, ao mesmo tempo, numa matriz autônoma, cidadã e democrática, que compreende um salto qualitativo ao ultrapassar a dimensão da resolução de disputas jurídicas modernas, totalmente baseadas no litígio (SPENGLER, 2010, p. 337-338). Mais do que isso, ela envolve sensibilidade e institui um novo tipo de temporalidade, diversa da proporcionada pelo processo judicial: é o tempo instituído como tempo da significação, da alteridade que reconstitui como singularidade em devir, que aproxima os sentimentos. O tempo da mediação aponta para a sensibilidade, é “o momento certo, o instante propício para agir, lapso de crise, ocasião para a decisão” (WARAT, 2004, p. 31). Já o tempo da jurisdição é dilatado, detendo-se sempre na lógica paradoxal do desejo da palavra definitiva, que permanece na espera de controles posteriores. “É o tempo da necessidade, uma vez que, na realidade, já aconteceu tudo, tornando-se prioridade, nesse momento, evitar o pior”. A prática da mediação, ao contrário,

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necessita de prudência e paciência, possibilitando aos litigantes o encontro de um tempo diferenciado (SPENGLER, 2010, p. 347). Nesse contexto, o sistema social delegou aos juízes o singular poder de interromper o tempo inútil, custoso e insuportável das lides, decidindo o tempo. Como decide por meio da linguagem – e do significado das palavras – possui o poder de dizer quando o tempo do processo terminou. No entanto, a pressa que a complexidade moderna exige faz do tempo um recurso escasso, especialmente se comparado com a exigência necessária para a busca pela verdade. Logo, mesmo as questões que exigiriam maior longevidade em seu tratamento são seguidamente resolvidas – não porque devidamente ponderadas – mas porque não há mais tempo para nada (RESTA, 2008, p. 120). Na verdade, o tempo e o espaço da mediação não buscam a reconstrução de uma verdade, mas, sim, permitem a reconstituição de várias verdades possíveis, as quais se modificam à medida que os atores se exprimem. Por isso, uma mediação de sucesso não traduz um acordo sobre uma verdade efetivamente correspondente à exata dinâmica dos fatos, pois as partes devem buscar a reconstrução dos fatos que as satisfaça. “Não está dito que devam reconstruir exatamente a verdade, o importante é que tenham reconstruído a verdade que as contente, momentaneamente, provisoriamente, no tempo de um aperto de mão.” É por isso também que não se define um tempo fixado para a mediação de conflitos (SPENGLER, 2010, p. 347). De outro lado, a mediação possui como base teórica fundante o direito fraterno, modelo de direito que abandona a fronteira fechada da cidadania e olha em direção à nova forma de cosmopolitismo que não é representada pelos mercados, mas pela necessidade universalista de respeito aos direitos humanos que vai se impondo ao egoísmo dos “lobos artificiais” ou dos poderes informais que à sua sombra governam e decidem. Trata-se, portanto, de uma proposta frágil, infundada, que aposta sem impor, que arrisca cada desilusão, mas que vale a pena cultivar: vive de expectativas cognitivas e não de arrogâncias normativas (RESTA, 2004, p. 16). O binômio direito e fraternidade, deste modo, além de ser uma tentativa de valorizar uma possibilidade diferente, recoloca em jogo um modelo de regra da comunidade política: modelo não

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vencedor, mas possível. Retorna um modelo convencional de direito, ‘jurado conjuntamente’ entre irmãos e não imposto, como se diz, pelo ‘pai senhor da guerra’. Jurado conjuntamente, mas não produzido por um ‘conluio’. Por isso é decisivamente não violento – isto é, capaz de não apropriar-se daquela violência que diz querer combater (RESTA, 2004, p. 15). Na verdade, a fraternidade recoloca em questão a comunhão de pactos entre sujeitos concretos com as suas histórias e as suas diferenças, aproximando-se de forma direta da amizade, a qual é capaz de unir independentemente de vínculos ou liames visíveis. Nesse contexto, a mediação de conflitos se apoia também na ideia de amizade, a qual possui uma dinâmica paradoxal, pois até pessoas desiguais podem ser amigas e se tornarem, assim, iguais; ela pressupõe igualdade e semelhança, especialmente a semelhança daquelas pessoas que se assemelham em excelência moral (ARISTÓTELES, 2001, p. 168). A ambivalência da amizade faz com que se torne ao mesmo tempo lugar de inclusão e exclusão. Isto é, “a contingência da amizade se apresenta ao mundo das relações mundanas com esta faceta dúplice de re-proposição da solidariedade comunitária e de sua negação”. Este paradoxo é amplo, pois se constitui de movimentos diversos, mas complementares; a amizade separa reaproximando, dita regras ao mesmo tempo em que as tolera, “inclui porque exclui, avizinha porque distancia, reconstrói tecidos vitais enquanto destrói outros; parece, como o amor, uma improbabilidade normal” (RESTA, 2004, p. 25). O direito fraterno adquire, assim, uma dimensão cosmopolita, já que sua aposta é distinta de outros códigos que olham a diferença entre amigo e inimigo, e por isso se torna não violenta. Consequentemente, a minimização da violência leva à ideia de jurisdição mínima e de uma nova concepção da relação entre sociedade e justiça, levando em conta que o problema surge na sociedade e por ela deve ser tratado e resolvido (RESTA, 2004). Esta mudança na forma de ver o problema traz consigo uma nova concepção, na medida em que as divergências começam a ser vistas como oportunidades alquímicas e as energias antagônicas como complementares. É desta forma que “as velhas lentes que

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fragmentavam, classificavam e geravam distâncias e diferenças maniqueístas vão para a lixeira”, dando lugar para o entendimento de que a sociedade é produto da complexidade destes vínculos (WARAT, 2004, p. 55).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Judiciário brasileiro atravessa crises que dificultam o tratamento dos conflitos de forma adequada, restando à sociedade buscar outras formas de solucioná-los. Nesse sentido, cada vez mais a mediação de conflitos vem ganhando força por permitir, além de uma decisão mais satisfatória e democrática, a prevenção de novos litígios. O procedimento da mediação permite que as pessoas, ao resolverem seus próprios problemas, exerçam de forma mais ampla a autonomia individual e a cidadania. Este empoderamento do cidadão gerado pela mediação é capaz de, aos poucos, propiciar uma mudança de cultura, na medida em que as pessoas se tornam protagonistas das próprias decisões. Mais do que isso, a participação individual que o procedimento da mediação proporciona traz muitos resultados positivos. A construção de um acordo sem imposição de regras ou decisões contribui para a mudança de cultura necessária à sociedade brasileira. Logo, sua utilização consiste na cogente quebra de paradigma, fortalecendo a pacificação social e diminuindo – quem sabe até terminando – a judicialização dos conflitos. A mediação de conflitos é o mecanismo mais adequado para superar as crises estatais, vez que auxilia as partes na construção de uma decisão conjunta e democrática, bem como promove o acesso à justiça, o que compreende não só a possibilidade de acessar ao Judiciário, mas também de obter uma resposta justa e satisfatória à lide.

REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

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CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009. FARIA, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil: paradoxos, desafios e alternativas. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1995. GARAPON, Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual do Judiciário. Trad. Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2 v. HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Trad. Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. LEAL, Rogério Gesta. Esfera pública e participação social: possíveis dimensões jurídico-políticas dos direitos civis e de participação social no âmbito da gestão dos interesses públicos no Brasil. In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). A administração pública compartida no Brasil e na Itália: reflexões preliminares. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008. MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millennium, 2008. RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Trad. Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. RESTA, Eligio. La certezza e la speranza. Saggio su diritto e violenza. 3. ed. RomaBari: Laterza, 2007. RESTA, Eligio. Diritto vivente. Roma: Laterza, 2008. SILVA, João Roberto da. A mediação e o processo de mediação. São Paulo: Paulistanajur, 2004. SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001. WARAT, Luís Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MEDIAÇÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA1

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Roberta Marcantônio Aluna do Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Integrante do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, certificado pelo CNPq e liderado pela Profª Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e pelo Prof. Ms. Theobaldo Spengler Neto. Advogada.

Jaiane Braga da Silva Aluna do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, atualmente no 6º semestre. Integrante do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, certificado pelo CNPq e liderado pela Profª Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e pelo Prof. Ms. Theobaldo Spengler Neto.

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INTRODUÇÃO

Haja vista a complexidade das relações, a crescente falha do Estado na sua finalidade de compor os litígios, entre tantos outros aspectos, os meios alternativos de solução de conflitos vêm ganhando cada vez mais espaço como formas eficazes não apenas de colocar fim às lides, mas de pacificá-las, por meio do consenso atingido pelas partes, em vez de estas simplesmente obedecerem a uma decisão imposta pelo Estado. A moderna concepção de pacificação, somada ao fato de que vivemos em uma democracia, permitiu o desenvolvimento de uma nova visão a respeito dos meios alternativos, que há algum tempo não eram motivo de maior preocupação, uma vez que o Estado procurava manter sob seu controle a atividade de pacificação social (COELHO, 2007, p. 35). 1

Texto produzido a partir dos estudos e debates realizados junto ao Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, certificado pelo CNPq e liderado pela Profª Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e pelo Profº Ms. Theobaldo Spengler Neto.

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Os meios complementares de resolução de litígios, quais sejam, negociação, conciliação, mediação e arbitragem, dessa forma, representam um outro caminho, possuindo diversas vantagens em relação à jurisdição, tais como economia, celeridade, efetividade e justiça. Destarte, o presente estudo analisa a mediação a partir de seu desenvolvimento histórico, com abrangência de alguns aspectos do tema em países como Estados Unidos, Canadá, França, Argentina e Brasil. Realiza também uma necessária distinção do instituto em relação aos demais meios alternativos de resolução de controvérsias (negociação, conciliação e arbitragem), ressaltando a importância da utilização dos métodos alternativos à jurisdição no atual cenário jurídico brasileiro. Como ponto principal, o texto expõe a aplicação da mediação na seara familiar, em temas como guarda, alienação parental, entre outros, como forma de melhor tratar estas espécies de conflitos. Isso porque, em litígios de família, a mediação desempenha um papel crucial, qual seja, o de transformar o conflito, solucionando-o de modo consensual e conforme a realidade de cada núcleo familiar, o que possibilita a real pacificação e, consequentemente, uma maior probabilidade de cumprimento do que foi acordado entre as partes conflitantes.

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ASPECTOS HISTÓRICOS DA MEDIAÇÃO

Diante da importância crescente do instituto da mediação no Direito contemporâneo, em virtude de uma cultura de diálogo difícil, de complexidade das relações humanas, de necessidade de uma real efetividade em meio às relações jurídicas, entre outras questões, mostra-se imprescindível entender as origens dessa prática, o seu desenvolvimento e as suas perspectivas. Logo, passa-se a uma breve análise da historiografia da mediação, tendo como fulcro, principalmente, a compreensão da temática à luz das exigências sociais de busca de soluções mais céleres e justas para os conflitos familiares. Conforme Barbosa (2007, p. 12), “a mediação é uma qualidade intrínseca do ser humano, enquanto ser social, por excelência.

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Portanto a sua história é tão antiga quanto a da humanidade”. A prática, pois, encontra espaço entre os diversos períodos históricos, nas mais variadas culturas, sob diferentes formas e sempre com um intuito comum: a resolução de conflitos por meio do consenso. Assim, como ensina Spengler (2010, p. 17), “a presença da mediação mostrava-se no seio de quase todas as culturas mundiais, sendo legitimada pelas respectivas comunidades locais como forma preponderante e eficaz na resolução de conflitos”. Desta forma, há de se ressaltar que antes da existência do monopólio da tutela jurisdicional pelo Estado, os conflitos eram resolvidos de acordo com a cultura local, com a intervenção de mediadores ou árbitros (SPENGLER, 2010, p. 18). Na cultura oriental, “a mediação tem tradição milenar entre os povos antigos. Entre os judeus, chineses e japoneses, a mediação faz parte da cultura, e dos usos e costumes, muitas vezes integrando os rituais religiosos”, segundo Barbosa (2007, p. 12). Na China, por exemplo, onde a técnica da medição era amplamente utilizada, e ainda sendo nos dias de hoje, a resolução de conflitos por meio do processo era considerada como algo desonroso, e, portanto, devia-se sempre buscar a solução das contendas em meios conciliativos (SPENGLER, 2010, p. 18). No ocidente, dois movimentos simultâneos, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, vindo em seguida no Canadá e na França, deram origem ao renascimento da mediação no final do século XX. O primeiro serviço de mediação da Inglaterra nasceu em Bristol, em 1978, e com a difusão da mediação familiar britânica, em 1988, foi criada a “Family Mediators Association” - FMA, que organizou os estágios de formação e instituiu um código nacional da mediação (BARBOSA, 2007, p. 13). Os Estados Unidos, de acordo com Spengler (2010, p. 19), “são o primeiro país a estruturar a mediação como uma forma alternativa de resolução de conflitos, a fim de evitar a burocracia forense, a morosidade processual, os altos custos judiciais, etc.”. Implantou-se nesse país a via chamada Alternative Dispute Resolution – ADR, que se apresenta como um meio rápido e econômico para solucionar litígios. Na Austrália e na Nova Zelândia, a prática logo se desenvolve, visto que aderem ao conceito de mediação norte-americano, todavia, o mesmo não ocorre no Canadá, onde a media-

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ção adquire características próprias, a partir de importantes estudos e da praxis, devido à influência cultural francesa e inglesa (BARBOSA, 2007, p. 15). Nesse esteio, a mediação chega ao Canadá em 1980, e em 1984 é criado o primeiro serviço de mediação familiar de Montreal – SMF. Hoje, a mediação canadense encontra-se em avançado grau de desenvolvimento, destacando-se a questão da responsabilidade parental conjunta, equivalente à guarda compartilhada no Brasil (BARBOSA, 2007, p. 16). A França resgata a mediação no modelo que ressurge no mundo ocidental na década de 1980. Assim, diante da necessidade de regulamentação da prática, originou-se a Lei 95-125, de 8 de fevereiro de 1995, a respeito da organização das jurisdições e do processo civil, penal e administrativo, e em 1996 o Decreto 96.652 regulamentou a referida lei, definindo a atividade da mediação sob o enfoque jurisdicional. Cabe salientar que hoje não se fala mais de modelo francês, mas de modelo europeu de mediação familiar, ao qual se agrega o modelo concebido na Grã-Bretanha (BARBOSA, 2007, p. 17). Antes de adentrar na experiência brasileira de mediação, analisar-se-á brevemente o caso da Argentina, a título de se conhecer um pouco mais da realidade da utilização da técnica na América Latina. Neste diapasão, conforme Robles (2009, p. 94), em 1996 foi editada na Argentina a Lei 24.573, que instituiu a mediação prévia com caráter obrigatório a toda demanda judicial iniciada a partir de 23 de abril daquele ano, nos tribunais de Buenos Aires. O artigo 2º da lei supracitada excluía as causas familiares (com exceção das questões patrimoniais) do âmbito da mediação, algo que foi criticado e que gerou, por conseguinte, Projetos de Lei e iniciativas práticas no sentido de se instituir a mediação também para essas causas, em virtude da possível eficácia da utilização da técnica na resolução dos conflitos familiares. O caráter obrigatório da mediação foi alvo de críticas, e estatísticas do Centro Público de Mediação do Ministério da Justiça, para o período de junho de 1994 a maio de 1997, demonstraram que a porcentagem de acordos foi maior quando as partes concorriam de maneira voluntária para a mediação. Por outro lado, para

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muitos autores, esta obrigatoriedade, segundo Robles (2009, p. 97), “auxiliou na difusão do instituto da mediação por todo o país e na propagação da cultura da mediação […]. Também ajudou para que todos tivessem conhecimento sobre as utilidades e vantagens dos meios alternativos de resolução de controvérsias […]”. Insta destacar que, nas demais províncias argentinas, a mediação está se organizando de modo diferente, conexa ou anexa ao juízo, baseando-se em modelos de outros países, algumas tendo leis sobre o assunto, outras apenas utilizando a mediação em sede privada (ROBLES, 2009, p. 96). No Brasil, segundo Cachapuz (apud SPENGLER, 2010, p. 19), embora nunca prevista nas legislações, tem-se notícia da mediação desde o século XII. De acordo com Fagundes Cunha (apud SPENGLER, 2010, p. 19), o Direito brasileiro conheceu a busca da prévia conciliação entre as partes, objetivando a manutenção da paz e o afastamento da eternização dos conflitos judiciais, ao longo do período monárquico e no início da República. Nota-se, portanto, a utilização de formas alternativas para a resolução de conflitos no passado brasileiro, o que denota a já existência, em tal época, de uma preocupação com o assunto, que resultou no desenvolvimento destes métodos mais simples para se solucionar os litígios. Por duas vertentes chega ao País a mediação, conforme Barbosa (2007, p. 19), sendo pelo modelo francês, em São Paulo, em 1989, e pelo modelo dos Estados Unidos, no sul do Brasil, pela Argentina, no início da década de 1990. De acordo ainda com a autora, A mediação insere-se na busca de redução do distanciamento cada vez mais crescente entre o Judiciário e o cidadão, na busca do aperfeiçoamento dos instrumentos de acesso à justiça, porém num primeiro plano visa-se buscar meios de desafogar o Judiciário, sem qualquer preocupação em eliminar as causas do imenso número de processos que esmagam os tribunais (2007, p. 19).

Ao se considerar o contexto atual brasileiro, no que concerne à mediação, é possível constatar uma preocupação além do desafogamento do Judiciário, principalmente quando se tratam de questões familiares, nas quais, antes de se ter um conflito de direito, tem-se um conflito afetivo.

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Hoje, no País, tem-se o Projeto de Lei 4.827/98, que propõe institucionalizar e disciplinar a mediação, tratando especificamente dos mediadores, do registro destes, da fiscalização da atividade da mediação e, por fim, da mediação prévia e incidental. Conforme Robles (2009, p. 116), Referido Projeto de Lei tem ótimas estrutura e técnicas, principalmente por incluir as controvérsias familiares dentre as possíveis de submissão à mediação, bem como a determinação de comediação obrigatória em tais controvérsias. Ainda, ao prever mecanismos de controle e fiscalização pelo Poder Público, garantirá a qualidade do processo de mediação.

Em relação às críticas sobre o Projeto, cabe destacar a regra da obrigatoriedade da mediação incidental em todos os processos de conhecimento, ressalvadas algumas exceções2. Sobre essa questão, diz Pantoja (2008, p. 194): [...] à primeira vista, a imposição parece um meio eficiente para difundir o instituto e torná-lo usual à sociedade, aos advogados e aos juízes. Sem a ordem judicial, decerto poucos litigantes buscariam a mediação para solucionar seu conflito, já que se trata de um método pouco disseminado no país e verdadeiramente desconhecido para grande parcela da sociedade.

Cabe ressaltar ainda a Resolução 125 do CNJ, de 29 de novembro de 2010, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, tratando 2

Conforme Robles (2009, p. 115), as exceções são as hipóteses dos incisos I a IX do artigo 34 do Projeto de Lei 4.827/98, quais sejam, na ação de interdição; quando for autora ou ré pessoa de direito público e a controvérsia versar sobre direitos indisponíveis; na falência, na recuperação judicial e na insolvência civil; no inventário e no arrolamento; nas ações de imissão de posse, reivindicatória e de usucapião de bem imóvel; na ação de retificação de registro público; quando o autor optar pelo procedimento do juizado especial ou pela arbitragem; na ação cautelar; quando a mediação prévia, realizada na forma da seção anterior, tiver ocorrido sem acordo nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao ajuizamento da ação.

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[...] da ampliação do acesso à justiça e da pacificação do conflito por meio dos métodos consensuais, considerando que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que sua apropriada disciplina em programas já implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos, a quantidade de recursos e de execução de sentenças, sendo imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento da práticas já adotadas pelos tribunais. (TRENTIN; TRENTIN, 2011)

Logo, percebe-se que, ao analisar brevemente o desenvolvimento da mediação no Brasil, principalmente no que tange ao Projeto de Lei e à Resolução do Conselho Nacional de Justiça, a técnica da mediação, além de estar sendo incluída formalmente no ordenamento jurídico pátrio, está contribuindo para uma mudança cultural de importância imensurável. E um dos aspectos dessa mudança consiste no entendimento de que se pode chegar a uma solução para os conflitos de maneira pacífica, justa, por meio do diálogo, de forma mais rápida e econômica, sem necessariamente levar a questão ao Judiciário. Consequentemente, esse comportamento, com o decorrer do tempo, pode levar a um novo contorno do quadro da massificação de processos dos dias atuais.

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NEGOCIAÇÃO, CONCILIAÇÃO, MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM

Partindo do pressuposto de que o que importa é pacificar os conflitos, vem se fortalecendo a consciência de que é irrelevante que a pacificação seja realizada pelo Estado ou por outros meios, desde que eficientes (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2008, p. 31-32). Nesse esteio, considerando as falhas do Estado em sua missão de pacificar, haja vista a morosidade na solução dos conflitos, o formalismo processual, os custos do processo, dentre outros fatores, os meios alternativos de pacificação social – representados pela negociação, conciliação, mediação e arbitragem – têm se estruturado como uma nova tendência para o processo moderno. Destarte, conforme Silva (2008, p. 21),

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[...] a adoção de meios alternativos de solução de litígios está associada a processos e movimentos de informalização e desjudicialização da justiça, à sua simplicidade e celeridade processual, através do recurso a meios informais para melhorar os procedimentos judiciais e à transferência de competências para instâncias não judiciais, o que não leva ao enfraquecimento do Poder Judiciário.

É importante salientar que a utilização de métodos alternativos de solução de controvérsias não significa desabonar o Poder Judiciário, nem negar a importância que lhe cabe no Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, “tais métodos devem ser concebidos como meios complementares e cooperativos ao Poder Judiciário, que permitem a satisfação dos interesses dos cidadãos de forma efetiva, e aliviar, em certa medida, o problema da sobrecarga dos tribunais” (ROBLES, 2009, p. 31). Este também é o posicionamento de Spengler (2010, p. 291292): Paralelamente às formas jurisdicionais tradicionais, existem possibilidades não jurisdicionais de tratamento de disputas, nas quais se atribui legalidade à voz de um conciliador/mediador, que auxilia os conflitantes a compor o litígio. Não se quer aqui negar o valor do poder Judiciário, o que se pretende é discutir uma outra forma de tratamento dos conflitos, buscando uma nova racionalidade de composição dos mesmos, convencionada entre as partes litigantes.

Entende-se, pois, que os meios alternativos de solução de controvérsias surgem como resposta às atuais exigências sociais de efetividade, celeridade processual, entre tantas outras, atuando de forma paralela ao Poder Judiciário. Portanto, são melhor compreendidos quando enquadrados no movimento universal de acesso à justiça, à medida que aparecem como novos caminhos para os jurisdicionados, que necessitam solucionar seus conflitos, de maneira diversa do modelo tradicional de prestação de tutela exercida pelo Estado-juiz (FIGUEIRA JÚNIOR, 1999, p. 114). As formas de resolução de conflitos alternativas à jurisdição pública são a negociação, a conciliação, a mediação, que são métodos autocompositivos de resolução de conflitos e, ainda, a arbitra-

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gem, que representa um método heterocompositivo de resolução de controvérsias. A negociação ocorre quando as partes conflituosas buscam entre si, por meio do diálogo, expor seus argumentos para alcançar uma composição acerca da dificuldade que enfrentam, sendo que nesse debate entre as partes não ocorre a participação de uma terceira pessoa para auxiliá-las na condução da conversa ou incentivá-las a fazer um acordo (VASCONCELOS, 2008, p. 35). Os próprios envolvidos no litígio buscarão resolver a sua contenda, de uma forma que os satisfaça. A negociação “deve ser cooperativa, pois não tem por objetivo eliminar, excluir ou derrotar a outra parte” (VASCONCELOS, 2008, p. 35). Apesar de também se tratar de um método autocompositivo para a resolução de conflitos, a conciliação se difere da negociação especialmente porque na conciliação surge a figura de uma pessoa neutra, sem envolvimento no conflito, que é o conciliador. Na conciliação, as partes que, na negociação, tratavam diretamente entre si acerca dos assuntos conflituosos, terão o auxílio de uma terceira pessoa, o conciliador, que terá participação ativa na tentativa de conciliar as partes, sugerindo que façam propostas para a solução do litígio, incentivando uma das partes a aceitar o proposto pela outra, com fulcro no seu principal objetivo, que é a resolução do conflito através de um acordo entre as partes (VASCONCELOS, 2008, p. 39). Segundo Cachapuz (2003, p. 19) “o conciliador deve buscar todas as soluções jurídicas, para o caso concreto, com suas reais consequências para que as partes possam tomar uma solução de imediato, pois a sua função é terminar, desde logo, o conflito através do acordo de vontades”. Pode-se perceber, portanto, que na conciliação não irá ocorrer a análise, pelas partes, das causas do conflito, e tampouco ocorrerá o tratamento deste conflito, uma vez que o objetivo deste instituto é meramente o acordo. Importa ressaltar ainda que a conciliação poder ocorrer extrajudicial ou judicialmente, sendo que, neste caso, ocorrerá uma audiência preliminar de tentativa de conciliação, no início do processo, logo após a propositura da ação e, se não for exitosa, à ação será dado regular prosseguimento, podendo ainda as partes entabular acordos durante a tramitação da ação.

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Já na mediação, ao contrário da conciliação, o objetivo não é pura e simplesmente o acordo, mas sim o tratamento do conflito. Por isso, verifica-se que a mediação é a forma mais eficaz entre os métodos alternativos de solução de controvérsias. Na mediação, surge a figura do mediador, terceiro neutro que vai ajudar as partes conflitantes a restabelecerem o diálogo e, com isso, aumentarem as suas chances de conseguir tratar as causas do problema, proporcionando, assim, que tenham maior possibilidade de alcançarem o consenso sobre as questões litigiosas (MORAIS, SPENGLER, 2008, p. 133). Sobre a mediação e a missão do mediador, asseveram Morais e Spengler (2008, p. 133): “é um modo de construção e de gestão da vida social graças à intermediação de um terceiro neutro, independente, sem outro poder que não a autoridade que lhes reconhecem as partes que a escolheram ou reconheceram livremente. Sua missão fundamental é (re)estabelecer a comunicação”. Conforme Lisa Parkinson (2005, p. 22), “Los mediadores ayudan a los participantes a explorar las opciones disponibles y, en su caso, a tomar decisiones que satisfagan las necesidades de todos los interesados”. Ressalta ainda a autora que “Las decisiones, por tanto, las adoptan las partes, de forma voluntaria y sobre la base de la información recibida, libres de amenazas o presiones recíprocas y sin que el mediador les dirija” (2005, p. 22). O conceito de mediação, por Galvão Filho e Weber (2008, p. 19-20) é o seguinte: “[...] instrumento de natureza autocompositiva marcado pela atuação, ativa ou passiva, de um terceiro neutro e imparcial, denominado mediador, que auxilia as partes na prevenção ou solução de litígios, conflitos ou controvérsias”. No caso dos conflitos familiares, “a jurisdição ainda os decide com a utilização de ‘velhas molduras” (SPENGLER, 2009, p. 287), o que não mais se justifica, diante de toda a transformação pela qual vêm passando as famílias ao longo do tempo, que não mais seguem os modelos tradicionais e balizados, e necessitam de mais atenção e proposições que se ajustem de maneira mais apropriada às suas necessidades, surgindo a mediação como “um espaço democrático de decisão, uma vez que trabalha com a figura do mediador que, em vez de se posicionar em local superior às partes, se encontra no

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meio delas, partilhando de um espaço comum e participativo, voltado para a construção do consenso [...]” (SPENGLER, 2009, p. 287). Conforme Spengler, “se comparada a decisão judicial à composição consensuada entre as partes, percebe-se que a primeira tem por base uma linguagem terceira normativamente regulada” (2009, p. 289). A mediação, por sua vez, [...] desmancha a lide, decompõe-se nos seus conteúdos conflituosos, avizinhando os conflitantes que, portanto, perdem suas identidades construídas antagonicamente. A mediação pretende ajudar as partes a desdramatizar seus conflitos, para que se transformem em algo bom à sua vitalidade interior. (SPENGLER, 2009, p. 289)

Águida Arruda Barbosa alerta para a necessidade de ser feita a correta diferenciação entre os institutos da conciliação e da mediação, uma vez que ambos, em hipótese alguma, se confundem, apesar de, por desconhecimento, serem algumas vezes trocados um pelo outro, por exemplo, com a utilização de conteúdo de mediação como se fosse conciliação e vice-versa (BARBOSA, 2006, p. 58). Para desfazer a confusão de conceitos, a referida autora expõe a sua definição de mediação: A mediação é diferente de conciliação e arbitragem porque ela é um princípio, um comportamento, a experiência humana que assegura o livre desenvolvimento da personalidade, capacitando os sujeitos de direito à conquista da liberdade interna – e não política – de ser humano, e à igualdade contida no princípio da dignidade da pessoa humana, representando a união simbólica de todos os homens naquilo que eles têm de comum – a igualdade de qualidade de ser humano – permitindo o reconhecimento de uma pertença a um mesmo gênero: o gênero humano. (BARBOSA, 2006, p. 58)

Segundo Barbosa (2006, p. 58-59), “a mediação familiar, por sua natureza, exige maior rigor nessa necessidade de afastar seu conceito dos demais equivalentes jurisdicionais, aliás, para não permitir que a sua compreensão seja contaminada por uma linguagem que não lhe pertence [...]”.

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A Association pour la Médiation Familiale apresenta a seguinte definição, específica sobre a mediação familiar: A mediação familiar, notadamente em matéria de separação e divórcio, é um processo de gestão de conflitos no qual os membros da família demandam ou aceitam a intervenção confidencial e imparcial de uma terceira pessoa, o mediador familiar, cujo papel é de levá-los a encontrar por si próprios as bases de acordo durável e mutuamente aceito, levando em conta as necessidades de cada um e particularmente das crianças no espírito de co-responsabilidade parental. A mediação familiar aborda a competição da desunião, principalmente relacionais, econômicas e patrimoniais. Este processo pode ser acessível ao conjunto de membros da família (ascendentes, descendentes, colaterais), concernentes à ruptura da comunicação cuja origem está vinculada a uma separação. (apud BARBOSA, 2006, p. 59)

Pode ser dito, portanto, que a mediação, entre os meios alternativos de gestão de conflitos, é o mais completo e eficaz, uma vez que, na lição de Gustavo Andrade (2010, p. 506) “a mediação promove uma reflexão sobre o valor positivo do conflito, o que faz com que seus partícipes, sob a atitude equidistante do mediador, libertem-se de sua carga destrutiva, que se lhes apresenta como uma situação intransponível”. Já na arbitragem as partes deslocam a sua competência para a resolução do conflito a uma terceira pessoa, que é o árbitro, um terceiro neutro e escolhido pelas partes, a quem caberá resolver o conflito, por meio de uma decisão, a sentença arbitral (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 177). Conforme Morais e Spengler (2008, P. 178-179), “possibilita uma maior celeridade no tratamento dos conflitos, e faculta às partes, inclusive, estabelecer prazo para a sentença arbitral, podendo as mesmas responsabilizar civilmente o árbitro que descumprir o prazo estipulado”. Ensinam ainda os autores que, além do menor tempo para a resolução do conflito, quem opta pela arbitragem também visa mais qualidade no tratamento do litígio: Os participantes que buscam o tratamento dos seus conflitos por meio da arbitragem têm como interesse uma maior cele-

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ridade e uma melhor qualidade no tratamento do conflito. É inegável que no tocante à celeridade, por melhor que seja o órgão estatal competente para conhecer do conflito de interesse, o mesmo, salvo raríssimas exceções, nunca será resolvido em seis meses. (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 179)

Conforme Tartuce, “em nosso sistema jurídico, o objeto da controvérsia, nos termos do art. 1º da Lei nº 9.307/96, deve corresponder a direitos patrimoniais disponíveis, tendo sido eleita a via arbitral por pessoas capazes de contratar” (2008, p. 75). Assevera a referida autora que “em tal hipótese, dispõe o art. 18 da Lei que o árbitro validamente escolhido pelas partes é o juiz de fato e de direito da controvérsia, não ficando a sua decisão sujeita a recurso ou homologação perante o Poder Judiciário” (2008, p. 75). Conforme Vasconcelos (2008, p. 39), “trata-se de instituto com duas naturezas jurídicas que se completam: a contratual e a jurisdicional. Pelo contrato as pessoas optam por se vincular a uma jurisdição privada, sujeita, no entanto, a princípios de ordem pública [...]”. Aduz ainda o autor que [...] a arbitragem pressupõe a livre opção das partes (autonomia da vontade) por meio de uma convenção de arbitragem – cláusula contratual denominada “compromissória”, firmada antes do surgimento de qualquer conflito, ou “compromisso arbitral”, quando já há conflito e as partes, de comum acordo, decidem solucioná-lo por intermédio de arbitragem. Firmada a convenção de arbitragem, as partes ficam irrevogavelmente vinculadas à jurisdição arbitral, consoante regulamento previamente aceito, podendo contar com o apoio de instituição arbitral especializada na administração desse procedimento. (2008, p. 39)

A arbitragem é, portanto, destinada a pessoas maiores e capazes, que buscam um procedimento rápido para a solução de seu conflito, que será resolvido com qualidade, por um especialista no assunto, o que se apresenta como uma vantagem em relação à jurisdição.

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MEDIAÇÃO COMO ALTERNATIVA À JURISDIÇÃO NO TRATAMENTO DE CONFLITOS FAMILIARES

Raramente a sentença produz o efeito apaziguador almejado pela justiça, principalmente nos processos que envolvem vínculos afetivos, em que as partes se encontram magoadas, com medo, em uma confusão de sentimentos de amor e ódio (DIAS, 2010, p. 8485). Nota-se, portanto, que uma decisão imposta, especialmente nos litígios familiares, não é o melhor caminho para se chegar a uma solução que realmente apazigue. Isso porque se trata de uma situação cercada de emoções e, desse modo, o diálogo proporcionado pela mediação mostra-se como melhor alternativa para o conflito. Nesse esteio, explica Robles (2009, p. 44-45) que, habitualmente, as sentenças judiciais são infringidas, porquanto apenas dão fim ao processo sobre Direito de Família, todavia, na maioria dos casos, não pacificam o litígio. Nesse sentido, conforme afirma Maria de Nazareth Serpa (apud ROBLES, 2009, p. 45), [...] as famílias, geralmente, operam de acordo com suas próprias leis, e são rebeldes à imposição de padrões de terceiros. Quando são pressionadas, tomam a justiça em suas próprias mãos, e ignoram decisões […] A realidade dos conflitos familiares contém um indistinto emaranhado de conflitos legais e emocionais, e quando não são resolvidos pelos protagonistas transformam-se em disputas intermináveis em mãos de terceiros […].

Explica Dias (2010, p. 85) que “a resposta judicial jamais corresponde aos anseios de quem busca muito mais resgatar prejuízos emocionais pelo sofrimento de sonhos acabados do que reparações patrimoniais ou compensações de ordem econômica”. Logo, mesmo com o fim do processo judicial, o conflito, na verdade, geralmente permanece, uma vez que não houve aproximação com as partes, com a realidade destas, o que torna difícil encontrar uma solução singular, própria para aquela determinada família que está em situação conflituosa. Isto posto,

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Por ser uma técnica alternativa para levar as partes a encontrar solução consensual, é na seara da família que a mediação desempenha seu papel mais importante: torna possível a identificação das necessidades específicas de cada integrante da família, distinguindo funções, papéis e atribuições de cada um. Com isso possibilita que seus membros configurem um novo perfil familiar. (DIAS, 2010, p. 85)

Destarte, a mediação consegue trabalhar em cada situação específica, buscando as peculiaridades de cada caso, de cada família, para melhor solucionar o problema, modificando o conflito ao proporcionar o consenso. Nesse sentido, afirmam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2009, p. 23) que, “sem qualquer dúvida, a mediação é instrumento indicado para os conflitos de Direito de Família, servindo para arrefecer os ânimos das partes e, ao mesmo tempo, auxiliar à deliberação de decisões mais justas e consentâneas com os valores personalíssimos de cada um dos interessados”. A mediação, por conseguinte, apresenta-se como um mecanismo de grande importância no julgamento das causas familiares, aproximando a ciência do Direito à realidade viva da vida. Outros argumentos fortes para o uso da mediação familiar são a variada carga de conflitos humanos (afetivos, sexuais, entre outros), característica do Direito de Família, e a proteção constitucional da privacidade das partes envolvidas (FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 23). “O processo judicial exaspera o conflito, a mediação transforma” (ROBLES, 2009, p. 45). Explica a mesma autora que [...] a síndrome do perde e ganha, a necessidade de provar a culpa do outro e a demora na obtenção de uma solução, característica do processo judicial, só fazem acirrar o conflito, aumentar a raiva, a mágoa, despertar o sentimento de vingança, entre pessoas que, apesar da separação, ainda terão um relacionamento, precisarão se comunicar, principalmente nos casos de […] divórcio e de dissoluções de uniões de casais com filhos. (2009, p. 45)

Assim, fica evidente que a solução de conflitos familiares pela mediação mostra-se como a mais eficaz. Ademais, a probabilidade de cumprimento da decisão, que é tomada pelas próprias partes, de

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forma acordada, é superior à de uma decisão imposta por sentença (ROBLES, 2009, p. 46). Em um comparativo interessante entre a solução judicial e a mediação, Eduardo de Oliveira Leite (2008, p. 109-110) analisa: A solução judicial aponta problemas, a mediação potencializa a capacidade de compreensão dos problemas e a possibilidade das respostas mais corretas; a solução judicial impõe normas e posturas, por isso, na sua grande maioria, não são respeitadas; a mediação conduz as partes a decidir o que é melhor para a continuidade da vida familiar no pós-ruptura, o que justifica a maior adesão dos destinatários; a decisão judicial cria o impasse da infinita litigância enquanto a mediação procura, no consenso, meios de diminuir a gravidade da situação fática conduzindo as partes à segurança de resoluções sugeridas pelo mediador e pelos advogados.

Como é possível perceber, ao se analisar as realidades da mediação e da decisão judicial, a primeira está centrada na composição, ao passo que a segunda conduz, naturalmente, ao litígio e à discórdia, que só tendem a aumentar com o desenrolar dos infinitos procedimentos (LEITE, 2008, p. 110). Neste sentido, sobre a prática da mediação familiar, explica Spengler (2010, p. 1): Considerata come un’arte, “l’arte di condivisione”, la sua analisi avrà come filo conduttore il ristabilimento della comunicazione fra le parti, senza l’imposizione di regole, ausiliandole ad arrivare ad un riconoscimento reciproco che produca una nuova percezione del conflitto. Padrone di una propria cadenza teporale, mettendosi “fra” le parti e atteggiandosi come strumento di giustizia sociale, la mediazione può organizzare le relazioni familiari, ausiliando i discordi a trattare i loro problemi con autonomia, riducendo la dipendenza da un terzo (giudice), possibilitando la consapevolezza mutua ed il consenso.

A mediação tem diversas vantagens em relação à jurisdição civil, sendo menos dispendiosa e menos desgastante, emocionalmente. Isso porque, na mediação, as pessoas são levadas a agir de

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modo cooperativo e não a fazer acusações sem cabimento ou pedidos baseados apenas em suas convicções pessoais, sendo a flexibilidade3 e a criatividade favorecidas. A mediação, assim, mostra-se como um meio eficiente para se tentar evitar um confronto interminável (CEZAR-FERREIRA, 2007, p. 164). Nesse diapasão, passa-se a uma breve abordagem de algumas situações, na seara do direito das famílias, em que a mediação é mais utilizada e eficaz, apresentando-se como uma forma mais justa na obtenção de soluções para as relações conflituosas. Em conflitos como os relacionados à guarda, por exemplo, a mediação familiar produz resultados amplamente favoráveis às partes e ao Judiciário. É recomendável, portanto, aos juízes de família, utilizar o instrumento da mediação familiar para a obtenção de resultado mais seguro do litígio, garantindo a dignidade das partes e, essencialmente, das crianças e adolescentes (FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 23-24). Acerca da ação de guarda, salienta Maria Berenice Dias (2010, p. 443): Não conseguindo os genitores, de comum acordo, definir a guarda dos filhos, é chamada a justiça para tomar essa difícil decisão. Ora, se nem os genitores, que são os maiores interessados no bem-estar da prole e no seu desenvolvimento sadio, conseguem entrar em acordo, muito mais dificuldade terá um estranho para julgar de forma a atender à determinação legal de, ao não conceder a guarda compartilhada, atribuí-la ao genitor que objetivamente tenha mais aptidão para assegurar afeto, saúde, segurança e educação ao filho.

Nessa linha, afirma a mesma autora que a mediação é uma das maneiras mais adequadas para solver essa espécie de controvérsia, haja vista que a solução, em vez de ser imposta pelo juiz, é encontrada pelos pais e liberta a criança aprisionada dentro do 3

De acordo com Maria de Nazareth Serpa e Paula Lucas Rios, para que a mediação seja exitosa, é fundamental a obediência aos seguintes princípios: extrajudicialidade; voluntariedade das partes; privacidade e consensualidade; não adversariedade; presença de terceiro interventor; imparcialidade; autodeterminação das partes; informalidade e flexibilidade do processo e, por fim, confidencialidade (apud ROBLES, 2009, p. 48-51).

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conflito (DIAS, 2010, p. 445). Assim, conforme Haynes e Marodin (1996, p. 104), “os acordos sobre a parentalidade devem refletir os interesses de cada um dos pais em um relacionamento contínuo com os filhos e definir novos papéis ao mesmo tempo em que consideram as necessidades das crianças”. Sobre o tema, salienta Robles (2009, p. 74) que, [...] restaurando a comunicação entre os cônjuges e educandoos para que estes tenham consciência da necessidade da preservação de seus papéis de pais, a mediação possibilita que seja adotado o modelo de guarda mais apropriado, qual seja, o da guarda compartilhada, efetivando-se duas garantias constitucionais: aos filhos, a convivência familiar de maneira saudável e, aos pais, a igualdade no exercício de direitos e deveres.

Nota-se, pois, que “a mediação mostra-se como instrumento de fundamental importância, visto que possibilita o restabelecimento da comunicação interrompida entre os membros da família, bem como que estes últimos conscientizem-se de seus direitos e deveres” (ROBLES, 2009, p. 73). Ressalta Robles, ainda, que como a mediação tem como meta4 a responsabilização das partes, e não a busca de um culpado, permite que os pais, mesmo após o rompimento, conservem as suas relações de coparentalidade, tornando possível um acordo que inclua um plano familiar em que os filhos são o ponto central, de maneira que tenham suas necessidades acolhidas (2009, p. 73). A questão mais importante a ser resolvida pela mediação, nos casos de dissolução de união ou divórcio de casais com filhos, é a responsabilidade parental. Esta tem como fulcro determinar o modo como serão exercidos os direitos e deveres decorrentes da parentalidade da prole, decidindo-se, portanto, a respeito de todos os pontos relacionados aos filhos, quais sejam, residência, escolaridade, acesso a cada um dos pais, entre outros (ROBLES, 2009, p. 58).

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Os objetivos da mediação, em Direito de Família, apontados por Robles (2009, p. 61-74) são: a solução consensual do conflito e a promoção de uma cultura de paz; a responsabilização das partes; a continuação das relações parentais e, por fim, a diminuição da sobrecarga dos tribunais.

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Um dos aspectos destacados por vários autores do assunto é quanto à mudança de linguagem que deve ocorrer no processo de mediação. Dessa forma, de acordo com Robles, termos como casamento falido, lar arruinado, guarda e visitação devem ser substituídos por fim do relacionamento, casa da mãe, casa do pai, parentalidade, acesso e residência (2009, p. 58). Explica Robles (2009, p. 58) que, em relação aos temas a serem tratados na negociação, destacam-se a guarda, a residência, o compartilhamento da tomada de decisões, o acesso, os calendários, feriados, dia dos pais, dia das mães, férias de verão e escolares, acesso telefônico aberto, contato com a família extensa (avós, tios, primos), divisão das despesas, manutenção do nome da família e as mudanças futuras que se tornem necessárias para melhor se adequar às necessidades dos filhos em uma determinada idade. Salienta-se, neste contexto, que, independentemente do tema a ser tratado na composição do conflito, é indispensável “que todas as decisões sejam tomadas visando sempre ao melhor interesse das crianças. A mediação pode oferecer aos pais a possibilidade de centrar-se somente nas necessidades dos filhos, amenizando o clima de hostilidade” (ROBLES, 2009, p. 59). Acerca da inclusão da criança no processo de mediação, há divergências, uma vez que muitos são contra, alegando que a criança pode sofrer frustrações, ansiedade, sentimento de culpa, entre outros problemas, porém, outros defendem, argumentando que a criança precisa saber o que está acontecendo, que ela deve perceber que seus pais são capazes de manter uma comunicação, além de poder fornecer informações importantes ao mediador. De qualquer maneira, é fundamental enfatizar que o mediador deve dominar as técnicas e possuir um treinamento especializado para a oitiva da criança no processo de mediação, e que cabe a ele decidir pela participação ou não da criança, analisadas as peculiaridades de cada caso concreto (ROBLES, 2009, p. 59). Na mediação no divórcio, explicam Haynes e Marodin (1996, p. 32) que “um casal ou exauriu todas as possibilidades conhecidas de realizar um acordo ou está desprovido de opções para resolver os problemas que causaram a deterioração da relação”. Asseveram os mesmos autores que, “apesar disso, a sociedade requer que, a

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fim de terminar o relacionamento, eles devam resolver as questões sustento, divisão de bens e cuidado futuro dos filhos” (1996, p. 32). Logo, além de o casal ter que tomar inúmeras decisões importantes sobre seu futuro e dos filhos, deve lidar com diversos níveis de culpa, frustração, desapontamento, raiva, traição e tristeza e com o fato de se tornarem ex-cônjuges, mas continuarem a ser pais (HAYNES; MARODIN, 1996, p. 32). Como explicam os autores: A mediação do divórcio requer o ajuste de questões emocionais complexas, bem como de tópicos práticos cotidianos. Cada pessoa deve ser capaz de deixar as emoções e relações passadas longe o suficiente para ajustar o montante da pensão, dividir os bens de maneira justa e, estando separados, ser ainda pais cooperativos. (HAYNES; MARODIN, 1996, p. 32)

Nesse prisma, cabe destacar que é importante para o mediador ser capaz de distinguir as questões que podem ser resolvidas pela mediação daquelas que podem ser objeto de terapia ou resolvidas no âmbito legal, ressaltando-se que os problemas emocionais do casal são tratados de forma mais adequada por um terapeuta (HAYNES; MARODIN, 1996, p. 33). Sobre a mediação na alienação parental, cabe destacar que o mecanismo é utilizado, apesar de não estar previsto na Lei 12.318/10, que dispõe sobre o tema e teve o artigo referente à mediação vetado. Aponta Maria Berenice Dias que, de maneira desarrazoada, foi vetada a utilização do procedimento da mediação e que, “assim, a lei, que vem com absoluto vanguardismo, deixa de incorporar prática que vem se revelando como a mais adequada para solver conflitos familiares” (2010, p. 453-454). A respeito do cabimento da aplicação da mediação nos procedimentos regidos pela Lei 12.318/10, explica Elizio Perez (2011), responsável pela consolidação do anteprojeto que deu origem à referida lei: […] a mediação pode trazer importantes contribuições, em muitos casos. Lamentavelmente, o artigo do projeto de lei da alienação parental que tratava da mediação e tinha por objetivo intensificar sua aplicação foi vetado. Isso, no entanto, não

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impede que a mediação continue sendo aplicada. As soluções eventualmente decorrentes de processos de mediação são claramente mais consistentes, pois há maior espaço para comunicação e análise das questões efetivamente envolvidas no dissenso; há possibilidade de construção de saídas conjuntas e com o atributo de compreenderem contribuição pessoal dos envolvidos. É necessário, no entanto, observar que, em algumas situações, principalmente em processos de alienação parental em grau mais grave, a mediação pode se mostrar ineficaz pelo uso do diálogo formal como forma mascarada de transgressão e aprofundamento do processo de alienação parental (por exemplo: retardar a tramitação do processo judicial, burlar acordos prévios ou minar a resistência do genitor alvo do processo).

Por fim, reitera-se que o procedimento da mediação familiar possui diversas vantagens, quais sejam, o fato de ser voluntário, que é essência do processo de mediação; célere; amplo, uma vez que abrange diversos aspectos de interesse das partes, haja vista que o conflito familiar excede os aspectos puramente legais; consensual, na medida em que favorece uma solução de consenso do conflito; sigiloso, em virtude de o princípio da confidencialidade caracterizar a mediação, garantindo o resguardo da privacidade das partes; econômico, pois, ao abreviar o processo judicial, reduz as suas custas (LEITE, 2008, p. 114-128).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se, por meio do presente artigo, a importância do instituto da mediação como forma complementar de tratamento de conflitos, com especial ênfase aos litígios atinentes às questões familiares. Restou demonstrado que a mediação não possui como objetivo simplesmente o acordo entre as partes, mas sim restabelecer o diálogo entre elas, para que, por meio da comunicação, possam tratar as causas que ensejaram o conflito, a fim de melhorar o presente, podendo ou não chegar a um consenso. Nas relações de família, onde as questões controvertidas não se encerram com a sentença judicial, pois os vínculos familiares perduram, continuam, torna-se ainda mais evidente a relevância da

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utilização do instituto da mediação, uma vez que a reconstrução e o fortalecimento do diálogo proporcionados por esta são para a vida toda. Assim, a mediação mostra-se como o meio mais adequado no tratamento das disputas oriundas do campo familiar, pois, além de possibilitar a composição do litígio de modo consensual, proporciona o diálogo tão essencial para que a família consiga superar suas crises e possa voltar a atenção para o seu bem-estar, principalmente no que tange aos filhos. Desta forma, foi possível evidenciar que a mediação, especialmente nas controvérsias familiares, representa um instrumento imprescindível, posto que, pela sua dimensão e abrangência, acaba produzindo um resultado mais satisfatório às partes, que recuperam a sua autonomia para a resolução de suas próprias questões, em vez de entregar ao Judiciário a responsabilidade por fornecer uma decisão sobre algo tão pessoal, delicado e relevante. Por conseguinte, com a mediação, mesmo que não cheguem ao consenso, as partes têm a oportunidade de restabelecer a comunicação e tratar de suas tensões da forma que acreditam melhor se ajustar às suas realidades, e, no caso de ser realizado um acordo, este será dotado de mais efetividade, justiça e proximidade das partes, além de ser mais facilmente cumprido por elas. REFERÊNCIAS

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O ALCANCE DA DISSOLUÇÃO DOS CONFLITOS POR MEIO DE PRÁTICAS NEGOCIATIVAS1

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Augusto de Mello Estudante de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, RS, Brasil. Atualmente no nono semestre. Bolsista PUIC vinculado ao projeto de pesquisa intitulado “Acesso à justiça, jurisdição (in)eficaz e mediação: a delimitação e a busca de outras estratégias na resolução de conflitos”, integrante do Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice liderado pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9059826402034264 Contato: [email protected]

Caroline Pessano Husek Silva Estudante de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, RS, Brasil. Atualmente no sexto semestre. Bolsista Fapergs vinculada ao projeto de pesquisa intitulado “Acesso à justiça, jurisdição (in)eficaz e mediação: a delimitação e a busca de outras estratégias na resolução de conflitos”, integrante do Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/ 4618305809219082 Contato: [email protected]

1

INTRODUÇÃO

A negociação apresenta-se como um tema recorrente em nossa sociedade e vem sendo amplamente pesquisada. Embora seja notória a convivência com diversas situações em que se aplica esse método como forma resolutiva de conflitos, ao que se percebe, a 1

Texto produzido a partir dos estudos e debates realizados junto ao Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, certificado pelo CNPq e liderado pela Profª Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto.

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grande maioria dos aplicadores dessa prática não possui as formas conceituais e o manejo adequado para o almejado uso do referido tema. Outrora haja o pré-entendimento de que a negociação seja uma forma de composição evasiva, onde há um conflito ou tumulto entre as partes envolvidas, ocorre aqui uma pura confusão, mormente causada pela sua não aplicabilidade imediata. Este ato de deslinde conflitual é ocasião de mera ponderação entre os negociantes, com o único escopo de se alcançar equilíbrio da pretensão litigiosa. Indubitavelmente o embarco ou conflito arrola-se pela divergência de duas ou mais pessoas, o que por corolário leva a vários entendimentos e opiniões controvérsias e discutíveis. Assim, ante a emersão de grande número de juízos de razões, bem como interesses das mais diversas naturezas, há a necessidade inquestionável de se estabelecer, através do diálogo e da aceitação, uma forma de viabilização célere da pretensão em liame, que trará benefícios a ambas as partes, dentre eles a evolução pessoal em casos conflitantes. Desta forma, pode-se dizer com segurança que divergências e negociações devem e são atos cotidianos na condição de seres humanos, sendo que se torna imperioso o conhecimento da magnitude de sua importância, haja vista a percepção de um fator significante ao desenvolvimento e crescimento de uma forma de aprendizagem. Pelo que se observa, diversas são as ocasiões em que a negociação é notada como forma de resolução de conflitos, mormente tendo em vista as inúmeras divergências em que geralmente somos colocados a solucionar ou mesmo acabamos por nos envolver. Mostra-se aí o debate, a valorização de opiniões e o afunilamento de medidas que apontam ao denominador comum da questão, onde deve ser ponderado os prejuízos e benefícios do fato gerador, bem como, sem acionar o Poder Judiciário, o qual pela numerosa demanda acaba, por corolário lógico, em ferir preceitos fundamentais inerentes à garantia de jurisdição célere e eficaz, o que fortifica a indignação da sociedade direta e indiretamente envolvida. Com este trabalho, a proposta apresentada objetiva demonstrar um método alternativo e eficaz no tratamento dos conflitos, retirando o peso das costas dos aplicadores da lei e resgatando a celeridade, sendo que, para tanto, destacar-se-á e se diferenciará a

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negociação, a mediação e a conciliação, elencando suas prioridades e características. Para tornar plausível a elaboração do presente artigo, utilizou-se o método comparativo, o qual buscou analisar a existência de semelhanças e diferenças entre a negociação, mediação e conciliação; e também o método dedutivo, que por meio de uma apreciação da temática, será possível chegar ao caso concreto. Como técnica de pesquisa foi empregada a bibliográfica, tendo por base principal a leitura de livros, artigos e sites. Assim, analisar-se-á, em um primeiro momento, o tema dos conflitos interpessoais, sendo seguido pela questão da negociação e também da relação entre esses temas, bem como, ao final do estudo, colocar-se-á em tela uma sintética diferenciação entre negociação, mediação e conciliação como formas alternativas para o deslinde dos litígios.

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OS CONFLITOS INTERPESSOAIS

Notamos que os conflitos – os quais não são apenas fenômenos individuais, mas também metaindividuais e sociais, conforme explana Calmon (2008) – nascem a partir de uma sociedade que é constituída por diversas pessoas com opiniões desiguais, e é dessa maneira que brota a grande maioria dos embates aos quais acompanhamos cotidianamente. Segundo a linguagem forense, a palavra conflito2 é muito utilizada como sinônimo de litígio, que expressa a existência de uma controvérsia por uma pendência entre aqueles que compõem o processo judicial. O conflito, segundo Calmon (2008, p. 21-22), [...] é a exceção e ocorre quando o almejado equilíbrio social não é atingido. Pode perpetuar-se ou ser resolvido. Se resolvido, restabelece-se a harmonia. O conflito resulta da percepção da divergência de interesses, é um fator pessoal, psicoló-

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O conflito, conforme Dinamarco (2004, p. 117), significa: “a situação existente entre duas ou mais pessoas ou grupos, caracterizado pela pretensão a um bem ou situação da vida e impossibilidade de obtê-lo”.

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gico e social [...]. Os conflitos implicam lutas entre duas ou mais pessoas acerca de valores, posição ou recursos.

Pode-se dizer também que, como nos traz a doutrina, na análise de Morais e Spengler (2008, p. 54), “o conflito transforma os indivíduos, seja em sua relação um com o outro, ou na relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfiguradoras e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras”. A doutrina ainda aponta, nas palavras de Silva (2008), que onde está o homem há conflito, independentemente de haver duplicidade de sujeitos, tendo em vista que, mesmo estando sozinho ,existem os chamados conflitos interiores. O referido autor ilustra claramente a questão do ser humano conflitante ao dizer que “o conflito é inerente ao ser humano, tanto como indivíduo quanto como ser social” (SILVA, 2008, p. 21). Após o advento da Revolução Industrial e das lutas pela garantia de inúmeros direitos inerentes à condição humana, as relações entre os cidadãos mudaram drasticamente. Emergiu, em decorrência disto, um crescente número de conflitos, pois, quando um homem se aproxima de outros, surgirá a possibilidade de existir um conflito entre eles, nascendo então o embate3. Segundo Silva (2008), essa possibilidade é aumentada nas sociedades pós-revolução industrial, considerando que as cidades comportam cada vez mais pessoas, causando, assim, a exasperação do número de conflitos. Muitas pessoas associam o conflito com a concepção de situações prejudiciais e até mesmo destrutivas, contudo, esta não é uma maneira adequada de apreciá-los, tendo em vista que os embates, quando bem administrados, podem trazer inúmeras oportunidades de crescimento, de mudança, além de possibilitar um grande progresso no certame cultural e individual4. 3

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Estivesse o homem sozinho no mundo, como seu primeiro habitante ou seu último sobrevivente, não haveria necessidade do direito, por ausência de possibilidade de interpretação e conflito de interesses, cuja repercussão na ordem social impõe a regulação, tende à pacificação ou, pelo menos, à contenção de conflitos (SILVA, 2008, p. 12). O conflito pode ser tão positivo quanto negativo, e a valoração de suas consequências se dará justamente pela legitimidade das causas que pretende defender (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 53).

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Neste sentido, Martinelli e Almeida (2006, p. 46) afirmam que existem duas maneiras de encarar os conflitos: [...] uma negativista, que encara o conflito como algo apenas prejudicial, devendo ser evitado a todo custo e, não podendo evitá-lo, pelo menos dever-se-ia buscar minimizar seus efeitos. A segunda alternativa é a de encarar o conflito de maneira positiva procurando verificar aquilo que pode trazer de aprendizado.

Deste modo, o conflito deve ser visto “como algo útil e necessário, já que conduz à mudança, à inovação, à modernização e à criatividade, desde que, não suprimido, seja manejado eficientemente” (COLAIÁCOVO; COLAIÁCOVO, 1999, p. 26). Logo, o problema não é o conflito5 (SILVA, 2008), tendo em vista que ele não deve ser analisado por um âmbito negativo, mas sim como um ingrediente propício à transformação, isto é, como um elemento apto a trazer soluções céleres e inovadoras que possibilitem a mudança necessária. Se o conflito assim for percebido haverá a possibilidade de ele desenvolver o ser humano, tendo em vista que o embate, quando solucionado de modo harmônico, configura-se como um passo à frente, apresentando-se, deste modo, como uma possibilidade de aprendizado (SILVA, 2008). A doutrina aponta que não há problema no conflito em si, mas sim na forma como ele é dirigido, pois, “de uma perspectiva negativa, o conflito é entendido como um mal que deve ser banido. Consequentemente, a solução para o conflito é vista como um fim em si mesma” (SILVA, 2008, p. 20). Entretanto, a administração do litígio não deve ser confundida com o conflito em si, pois, se aquela for alcançada de maneira positiva, suas consequências serão propícias; por outro lado, uma vez mal orientada, seus efeitos não ocasionarão um resultado benéfico. Neste sentido, é fundamental destacar que não é uma função simples administrar os conflitos, todavia é desnecessário aprender a impedir que eles aconteçam, pois tais comportamentos podem tra5

O conflito apresenta vários aspectos, sendo que o principal é a mudança construtiva (SPENGLER; OLIVEIRA, 2013, p. 28).

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zer diversas consequências maléficas para nossa sociedade. Logo, diante do conflito, a melhor maneira de enfrentá-lo é encontrar um modo que favoreça sua composição construtiva (CALMON, 2008). Na mesma linha, diga-se que não devemos possuir receios acerca dos litígios, pois a dificuldade encontra-se na forma de resolvê-los, e, deste modo, temos que ter em vista que existem maneiras negativas e positivas de tratar os conflitos, e estas dependem do modo como os embates serão administrados, logo, as consequências maléficas serão causadas por pessoas que permanecerem ligadas à ideia de que o fim do conflito deve ser atingido de qualquer modo, menosprezando as particularidades dos indivíduos. É nesta perspectiva que se apresenta a negociação como método eficaz na dissolução dos conflitos, considerando que o seu desígnio primordial é a procura por uma solução harmônica e pacífica que permita a conservação das relações pessoais tão fundamentais para o desenvolvimento da coletividade atual. 3

A PRÁTICA DA NEGOCIAÇÃO

O não cumprimento voluntário da norma faz surgir o litígio e, desta maneira, sendo pretendia a solução desse embate, a tutela jurisdicional do Poder Judiciário apresenta-se como o meio tradicional destinado a este fim, entretanto, esta não é a única forma idônea para que haja a dissolução de litígios (CALMON, 2008, p. 25). Quando nos depararmos com um conflito e ao buscar a sua solução, há duas opções viáveis: a primeira será provocar a jurisdição do Estado; a segunda, por sua vez, é a busca pela autocomposição, isto é, por uma solução amigável, e é nesta perspectiva que nos deparamos com a negociação como uma forma alternativa de solução de litígios. Nesta esteira, a monopolização da resolução dos conflitos não deve mais ser assegurada, haja vista o escopo de dar fé e confiar no até então povo inerte6, que deverá emergir sua capacidade de diá6

A sociedade atual permanece inerte enquanto suas contendas são decididas pelo juiz. Da mesma forma, como o cidadão de outrora que esperava pelo Leviatã para que ele fizesse a guerra em busca da paz, resolvesse os litígios e trouxesse segurança ao encerrar a luta de todos contra todos, atualmente vemos o tratamento e a regulação dos litígios serem transferidos ao Judiciá-

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logo e usufruir de sua liberdade, participando de forma constante nas discussões de seus interesses, a fim de concretizar os ideais democráticos e de cidadania que lhe são assegurados (SILVA, 2008). A negociação é uma das maneiras mais antigas de solucionar os embates – conforme posicionamento doutrinário trata-se de uma forma primeira e natural no manejo de conflitos (SPENGLER; OLIVEIRA, 2013) – e podemos caracterizá-la como um método que busca uma solução satisfatória para todos os litigantes envolvidos no conflito. Deste modo, cada parte apresentará um ganho sem, entretanto, ajuizar soluções exclusivamente individuais. Logo, o objetivo primordial deste método alternativo é atingir a ampla satisfação das partes, para que tenham seus interesses supridos, desfazendo a primitiva concepção de que no ato negocial deve ater-se tão somente às suas próprias necessidades. A doutrina enfatiza que outrora, em uma negociação, sempre havia a preocupação de fazer prevalecer os próprios interesses sobre os dos demais. Com o tempo, porém, percebeu-se que a forma do ganha-perde (na qual, para que um ganhe, o outro tenha necessariamente que perder) teria poucas chances de se manter a médio prazo, devido à necessidade de se manter a continuidade das relações com os parceiros (MARTINELLI; ALMEIDA, 2006, p. 17). Martinelli e Almeida (2006) afirmam que é imprescindível desejar uma negociação classificada como “ganha-ganha”, isto é, quando há ganho de ambos os lados, pois, desta maneira, dividem-se os proveitos entre aqueles envolvidos no litígio. Logo, nota-se que na negociação é fundamental sempre buscar uma situação em que a relação possa ser duradoura, visto que nela aparecerão novas oportunidades de negociações, além de realmente suprir as necessidades dos litigantes. Assim, em síntese, a negociação pode ser caracterizada como uma troca de ideias que possui como objetivo o ganho de todos os envolvidos. Nesta mesma perspectiva Silva (2008, p. 27) afirma que rio, esquecidos de que o conflito é um mecanismo complexo que deriva da multiplicidade dos fatores, que nem sempre estão definidos na sua regulamentação; portanto, não é só normatividade e decisão (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 69).

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[...] a negociação é um processo dinâmico de busca de um acordo mutualmente satisfatório para se resolver conflitos, onde cada parte obtenha um grau de satisfação, devendo ser adotado padrões corretos, sem considerar propostas puramente indiciais. Pode-se dizer que é um diálogo, onde o resultado é o ganha-ganha.

Conforme Silva (2008, p. 27) “os agentes ativos da negociação são os próprios detentores da relação de interesses. São eles os negociadores e não terceiros. Assim, a negociação é conduzida unicamente pelas partes ou seus representantes”. Percebe-se então que, via de regra, este método alternativo permite a realização de uma conversa direta entre os envolvidos, sem que exista a interferência, como auxiliar, de um terceiro7. Seguindo esta mesma lógica Nierenberg (1991), citado por Carvalhal, André Neto e Andrade (2009, p. 37), expõe que, “cada vez que pessoas trocam ideias com o intuito de modificar suas relações, cada vez que chegam a um acordo, estão negociando. A negociação depende da comunicação, e ocorre entre pessoas que representam a si ou a grupos organizados”. Percebe-se assim que a negociação é uma atividade intrínseca aos seres humanos8, considerando que, ao nascer, já começamos a negociar. Neste sentido Spengler e Oliveira (2013, p. 77) afirmam que a negociação “está presente na vida das pessoas. Negocia-se com os amigos sobre onde comer, com os cônjuges sobre quem vai fazer os serviços domésticos e com os filhos sobre a hora de ir dormir”. 7

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Neste caso, não existe um terceiro – imparcial e independente -, pois o ato se faz pelos envolvidos que recorrem ao diálogo e à troca de informações e impressões (SPENGLER; OLIVEIRA, 2013, p. 77). Calmon afirma que a negociação “é uma atividade inerente à condição humana, pois o homem tem por hábito apresentar-se diante da outra pessoa envolvida sempre que possui interesse a ela ligado. Ao apresentar-se para demostrar seu interesse (pretensão), é sempre possível que seja atendido, não havendo o que falar em conflito. Em decorrência da aproximação para demonstrar a pretensão, é natural que havendo resistência (constituindo-se, então, o conflito) inicie imediatamente o diálogo (o que já caracteriza a negociação) com vistas à solução do conflito. Trata-se então, de prática que pode ser pessoal e informal, fazendo parte da natural convivência em sociedade” (2008, p. 113).

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Precisamos reparar a ideia de que saber negociar é nato a certas pessoas, tendo em vista que esta não é uma concepção verídica, pois para aprender os métodos corretos da negociação é indispensável possuir muito estudo e experiência neste âmbito para que, desta maneira, possamos compreender aqueles fatos relativos ao processo negocial, além de seus mecanismos de modo geral. Neste sentido Silva (2008,p. 27) afirma que “não podemos esquecer que negociar é uma arte que se aprende e se aprimora na prática”. É importante destacar que, ao pensarmos em negociação, devemos ter em vista que geralmente esta possui como início algum determinado conflito e será através desse método que vamos buscar a dissolução mais eficaz dos embates. Logo, deverá ser alcançado o fim da divergência com a satisfação de todos a ela vinculados, e, inclusive, alcançar a amplitude dos interesses dos envolvidos, encontrando neste contexto o seu fim primordial. A fim exegético, podemos ressaltar a sua aplicação nos litígios familiares, situação em que é notória a necessidade de uma discussão direcionada a uma finalidade comum, tendo em vista, muitas vezes, a necessidade de manutenção da relação. Registra-se com fundamento que, nessa atividade, para se alcançar sua completa eficiência, é necessário saber ouvir, tendo em vista que, deste modo, teremos elementos importantíssimos para direcionar os posicionamentos a serem tomados, bifurcando a argumentação à sua satisfatoriedade e ampliando o leque de segurança a uma boa negociação. Logo, o ato negocial deve ser compreendido como uma oportunidade de ampliar e consolidar as relações interpessoais em todos os sentidos, através do bom e saudável confronto de ideias e interesses, no qual, com a valorização da autonomia de vontade dos conflitantes, a resolução acaba se tornando mera consequência.

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A DISSOLUÇÃO DOS CONFLITOS POR MEIO DA NEGOCIAÇÃO

É de expressão ressaltar que a tentativa de encontrar determinada forma de resolução de conflito é tão ligada à questão da vida em sociedade quanto a própria criação das situações conflituosas demasiadamente vivenciadas em nosso cotidiano. É notório o

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sentimento de violação aos direitos próprios quando nos vemos vinculados em conflitos penosos e improdutivos, que atingem com tanta força a nossa compreensão de justiça que nos parece violar a própria existência, podendo, a título exegético, ser apontado o defloramento da dignidade da pessoa humana, princípio fortemente enraizado na Constituição Federal de 1988. Nesse sentido Silva (2008, p. 19) expressa que, quando as pessoas [...] se encontram em situações de conflitos não resolvidos, sentem-se subtraídas de valores que lhe são essenciais [...] Conflitos sem solução transformam-se num verdadeiro tormento para as pessoas, gerando desesperança, falta de auto-estima e uma verdadeira desconfiança em tudo e em todos.

Nessa busca contínua de solução aos variados conflitos encontrados nas mais diversas sociedades, vemos que a negociação demonstra-se como ferramenta capaz de desconstituir o deslinde por meio do diálogo direcionado à progressão das partes, as quais trilharão o desenrolar da resolução que favoreça a ambas. Logo, diante da necessidade de atender aos anseios dos cidadãos, a negociação mostra-se como um importante instrumento dissolutório de litígios, pois, pelo diálogo positivo e honesto entre os conflitantes, será alcançada a real solução dos seus embates e, desse modo, também será atingido, de certa forma, melhor qualidade de vida9. Gize-se que em grande parte dos conflitos pode-se dizer que a questão-chave pode não se encontrar nos entraves da relação material colocada em discussão, mas sim em algo paralelo a ela, cuja simples conversação e debate direcionado poderiam resolver. A demanda de conflitos existentes na sociedade moderna ultrapassa a capacidade resolutiva dos meios intervencionistas, o que força a necessidade de ampliação de ferramentas para o desfecho

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De maneira formal ou informal a negociação abriga a possibilidade de resolução de conflitos entre pessoas que possam desenvolver um diálogo, franco e aberto, baseado na boa-fé das partes, a fim de que o resultado seja benéfico e efetivo para ambas (NUNES; SALES, 2010, p. 218).

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dos entraves10. Assim, as formas alternativas devem ser vistas como complementares à metodologia tradicional e tornam imperioso o não afastamento de investimentos em aspectos voltados ao trabalho inter-partes, quando os envolvidos acabam dialogando e forçando a própria engenhosidade para a satisfação mútua. Nas relações de conflito, muitas vezes se observa o retraimento das partes para o diálogo próprio, haja vista que a relação de entrave gera um afastamento entre elas, somente se chegando a um desfecho através da intervenção de terceiros, o que é visto como uma situação prejudicial a todos. Além disso, ante a negação do diálogo e o desenrolar intervencionista, as soluções alcançadas tendem por somente beneficiar a um dos envolvidos, impondo ao outro a vontade deste, o que, em inúmeras situações, não se mostra ideal. Neste diapasão, constata-se que o prejuízo trazido pela falta de comunicação entre os conflitantes diretos gera decisões frequentemente inadequadas e dissociadas dos objetivos comuns almejados. Novamente, ratifica-se a importância da negociação entre os conflitantes, ante as reais possibilidades de efetiva e adequada resolução da agitação, tendo em vista que tal forma acaba sendo o corolário lógico do diálogo inter-partes, elemento visto como fundamental para o alcance de uma forma equitativa11 e norteada de seus interesses. A contemporaneidade exige formas mais eficazes e céleres de resoluções de conflitos, sendo que, nesse passo, a negociação mostra-se como uma ferramenta de extrema importância aos inúmeros embates, aos quais somos envolvidos. Por meio dela alcançam-se os interesses dos litigantes, obtendo-se a satisfação erga omnes, bem como a concretude de princípios assentados pelas normas sociais, 10

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A complexidade das relações sociais modernas e a consequente explosão de conflitos, juntamente com a globalização e a crise estatal, têm desencadeado o exaurimento do sistema jurisdicional, de forma que o modelo tradicional de resolução de conflitos já não acompanha os anseios da população. “A eficácia da solução do problema, porém, depende da troca sincera de informações precisas. Ela requer uma redefinição flexível e criativa dos assuntos, além de extrema confiança. As partes devem, necessariamente, confiar que a informação precisa e flexível não será, de forma alguma, utilizada para barganhar vantagem. Esse tipo de colaboração está alicerçado na ideia de que o progresso pode, e deve, ter dois ganhadores, e não um perdedor e um vencedor. Ou seja, trata-se da ideia de buscar obter uma negociação do tipo “ganha-ganha” para o conflito.” (MARTINELLI, 2002, p. 24)

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como, a título de exemplo, o preenchimento das reais necessidades, ou a manutenção de relacionamentos e oportunidades de negociações futuras. Mostra-se instrutiva a transcrição a seguir, na qual visualiza-se a presente argumentação de forma didática (CALMON, 2008, p. 114): [...] em linha de princípio pode-se afirmar que a negociação se funda sobre a necessidade de evitar uma inútil perda de tempo, de conter os custos decorrentes de uma possível degeneração ou ruptura dos relacionamentos entre as partes, de manter a discrição em relação a terceiros, de defender outros sujeitos, por exemplo, o fiador, de uma extensão incontrolada do contencioso. O jogo da negociação opera em dois níveis, o primeiro endereçado à matéria do conflito e o segundo focado no modo de tratar a matéria.

Com o rechaço da negociação também se expurga uma forma adequada de alcançar o escopo objetivado pelos conflitantes, pois será ignorado um momento ímpar e apto a proporcionar uma resolução alternativa, construída por um debate enriquecedor e direcionado a partir de uma melhor ótica dos aspectos distintos entre os envolvidos. Nesta toada, mister referir que há casos em que negociação como forma de dissolução mostra-se perfeitamente aconselhável, como nos casos entre pessoas que precisam manter a continuidade do bom relacionamento, sendo que, a título de exegese, mencionam-se os contratos de locação e de ensino, bem como nos conflitos de família, situação em que o diálogo deverá perdurar por significativo período de tempo, haja vista a constância dos contatos e das respectivas relações que ambos manterão devido à assistência aos filhos, por exemplo. Assim não se pode penas resolver o conflito do momento, mas sim o conflito pessoal e profundo (CALMON, 2008, p. 114). Por derradeiro, diga-se que é necessário dar ênfase às diferenças entre negociação, mediação e conciliação, pois tratam-se de institutos distintos por apresentarem diferenças conceituais, sendo que o apontamento destas mostra-se necessário para emprego adequado nos diversos tipos de conflitos. No entanto, apesar de apresentarem suas diferenças, todas almejam a resolução rápida e

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apta para a diversidade de confrontos verificados na sociedade, conforme se tratará no tópico seguinte. 5

PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE OS MÉTODOS ALTERNATIVOS: NEGOCIAÇÃO, MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO

Em razão do fato de o Poder Judiciário12 encontrar-se em processo de crise ante uma variedade de fatores que prejudicam o seu pleno funcionamento, visualiza-se nos institutos da negociação, mediação e conciliação formas atuais e aptas às soluções jurisdicionais, bem como capazes de subsidiar o funcionamento daquele para resolução de embates. Assim, sua diferenciação mostra-se necessária em razão da notória confusão dada pela semelhança do escopo almejado, pois utilizadas como forma alternativa à judicialização onde os envolvidos, por meio do diálogo, vão ao encontro dos objetivos comuns, mas que, como será visto, possuem suas diferenças, as quais apontarão para a sua correta aplicação. Primeiramente, gize-se que o ato de negociar é inerente ao próprio ser humano, pois, há muito tempo, se faz necessária uma conversa direta entre os conflitantes para que se possa concretizar determinados deslindes. Nessa toada, cabe citar Spengler e Spengler Neto (2010) que afirmam: [...] negociar é um verbo conjugado durante toda a vida do homem. Desde a mais tenra infância negociamos para obter 12

“No que diz respeito à forma tradicional de resolução de conflitos, em nosso país, temos a ação judicial, por meio da qual as pessoas podem invocar o Poder Judiciário (o Estado) para que este decida a questão. Nada pode ser excluído da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal). Nasce a obrigação do Estado de tutelar a resolução de conflitos em face do imperativo que proíbe o “fazer justiça com as próprias mãos”, forma vedada de resolução de conflitos também conhecida como “autodefesa” ou “vingança privada”. O Poder Judiciário sempre se preocupou com o aprimoramento da prestação jurisdicional. Entretanto, mesmo com todo o esforço, seus órgãos tradicionais não são suficientes para atender à demanda por Justiça. [...] Além disso, a forma de praticar a Justiça pelos métodos existentes em nossa legislação processual, com muita formalidade e muitos recursos, além de cara e morosa, não traz a tão almejada paz social. [...] Assim, o processo judicial torna-se uma guerra, onde a decisão é importa e, por conseguinte, não leva à paz e, na maioria das vezes, acaba por perpetuar o conflito.” (SILVA, 2008, p. 20)

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aquilo que desejamos. Um longo percurso separa a maneira de negociar infantil daquela utilizada na vida adulta, porém, no seu âmago a ação continua a mesma: trata-se da busca de respostas para um desentendimento mediante a troca de informações. O entendimento pode vir calcado no fato de que cada uma das partes cedeu, em favor da outra, abrindo mão de uma parcela do que pretendia.

Como forma de diferenciar a negociação das demais modalidades (mediação e conciliação), nesta são os próprios conflitantes que, diretamente, resolvem o entrave, expondo seus pontos de vista e seus requerimentos ao “oponente” e contrabalanceando os pontos contrários, bem como não utilizando o auxílio de um terceiro (mesmo que neutro e imparcial). Nesta questão, percebesse a importância da qualidade humana de negociar, que, quando corretamente direcionada, pode enquadrar-se a qualquer tempo e lugar (SALES, 2004), pois [...] se pensarmos em todas as situações que experienciamos no dia-a-dia verificaremos que a maioria (se não todas) das decisões que tomamos foram negociadas. Na verdade, a negociação é o procedimento predominante para a tomada de decisões no trabalho, em nossa vida pessoal e no mundo da política. Porém, negociar é uma tarefa difícil. Muitas vezes envolve a tomada de decisões duras que podem nos colocar numa posição pouco confortável frente ao outro. A situação se agrava se o outro é alguém de nossas relações (SPENGLER; SPENGLER NETO, 2010).

Ao que se visualiza do instituto da negociação, ao contrário da coisa litigiosa e judicial, tenta-se alcançar o meio-termo na resolução dos conflitos, no intuito de abarcar aos interesses de ambas as partes, sem prestigiar por completo a satisfação de uma em face da outra. Neste sentido Spengler e Oliveira afirmam que a negociação “revela uma mudança de paradigma, com a diminuição do enfoque ganhar X perder e o crescimento da participação e da cooperação, baseadas na satisfação dos interesses e fortalecimento dos vínculos pessoais” (2013, p. 81). Cumpre salientar que em eventuais desencontros de posicionamentos, sem que se tenha chegado a um consenso, após se tentar

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a forma voluntária de negociação não intervencionista, poderão os conflitantes recorrer a outras formas de tratamento do conflito, oportunidade em que poderão contar com o auxílio de um terceiro. Nessa perspectiva, são exemplos válidos a mediação e conciliação. Ainda no enfoque da diferenciação, registra-se que é comum o emprego dos institutos da negociação, mediação e conciliação como sinônimos, haja vista que todas procuram abordar como objetivo principal da coisa o acordo de vontades entre as partes, contudo a forma deles é distinta. No tocante à mediação, conforme já visto, é forma alternativa de jurisdição que busca, por meio do diálogo, solucionar conflitos que a todo o momento nascem nos mais diversos os setores da sociedade. Sua forma distinta revela-se na presença de um mediador (terceiro neutro, imparcial e com competência técnica para tanto), designado para prestar auxílio às partes na resolução do entrave. No mesmo contexto visualizado na negociação, os principais conflitos encaminhados à mediação são inerentes às diversas relações do cotidiano, contudo, tal instituto possibilita a resolução mediante um grande leque de aplicabilidades, mas se faz imprescindível que as partes efetivamente queiram tal deslinde célere, privativo e econômico. Outrossim, na mediação, embora haja o mediador para auxiliar na resolução, este deve apenas incentivar o diálogo13, não podendo instigar os conflitantes a determinado acordo, bem como não tem permissão de aconselhá-los, pois, se assim o fizesse, estaria adentrando o campo da conciliação. O escopo crucial da mediação visa que os envolvidos, de forma autônoma e voluntária, cheguem a uma solução final da questão. Segundo Moore (1998, p. 28) a mediação pode ser definida como: [...] a interferência em uma negociação ou em um conflito de uma terceira parte aceitável, tendo um poder de decisão limitado ou não autoritário, e que ajuda as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitável com relação às questões em disputa. Além de lidar com 13

Cabe observar que o mediador é um terceiro ausente de pré-julgamentos, valoração e crenças, devendo também manter-se equidistante das partes; isto é, sem realizar nenhum tipo de vínculo com elas (SPENGLER; OLIVEIRA, 2013, p. 89).

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questões fundamentais, a mediação pode também estabelecer ou fortalecer relacionamentos de confiança e respeito entre as partes ou encerrar relacionamentos de uma maneira que minimize os custos e os danos psicológicos.

Assim, com o “auxílio do mediador, as partes tentarão buscar entender as fraquezas e fortalezas do seu litígio, com o objetivo de criar uma solução na qual todos fiquem satisfeitos” (MORAIS; SPENGLER, 2012). Neste ponto, salta aos olhos que o trabalho a ser desenvolvido pelo mediador é de significante valor14, em razão de recair sobre si a controle do equilíbrio entre os conflitantes, haja vista que somente estes possuem a capacidade de solução do entrave. Ainda, é de salutar importância levantar os aspectos que confundem o instituto da mediação com as demais formas voluntárias de resolução de conflitos neste trabalho mencionadas. Na conciliação, conforme dicção de Spengler e Oliveira (2013, p. 82), “o profissional intervém por meio da escuta e da investigação, expondo vantagens e desvantagens das propostas, buscando o acordo”. Neste mesmo sentido, Egger (2008. p.64) afirma que “o conciliador faz sugestões incentivando as partes para a realização do acordo”. Entretanto, na mediação o terceiro deve facilitar a comunicação sem tentar induzir que os ligantes alcancem uma solução (SPENGLER, 2010). Desta forma, a diferença trazida entre mediação e conciliação demonstra-se pela forma de auxílio do terceiro neutro e imparcial no deslinde da resolução, pois, na conciliação15, há uma interferência direta, diferentemente do que ocorre com a mediação. 14

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O mediador não é um mero assistente passivo, mas sim um modelador de ideias, que mostrará o sentido da realidade necessário para atingir acordos convenientes. Ele se vale de técnicas especiais e com habilidade escuta as partes, as interroga, apaga o problema, cria opções e tem como alvo que as partes cheguem a sua própria solução para o conflito (autocomposição). É fundamental que o mediador não expresse a sua opinião sobre o resultado do pleito. Tal atitude consiste na regra de ouro do mediador, característica que diferencia a mediação de outros mecanismos que igualmente visam à obtenção da autocomposição (CALMON, 2007, p. 121). Este tipo de tratamento do conflito é o mais frequente, habitual e conhecido. A conciliação é o mecanismo no qual um terceiro interlocutor apresenta possíveis respostas à demanda, fazendo com que os envolvidos as aceitem ou

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Assim, para que se apresente uma intervenção mais direcionada, com um tato na ponderação de aspectos positivos e negativos do conflito, sempre visando à resolução deste, o instituto aplicado, via de regra, trata-se da conciliação. De forma distinta, a mediação proporciona o diálogo com o auxílio de um mediador, contudo este não interferirá no desenrolar da resolução, somente viabilizando-a. É de suma importância elucidar que a mediação apresenta como espoco principal, tendo em mente que, via de regra, há um relacionamento anterior ao conflito que necessita ser preservado, reconstituir a comunicação entre os litigantes. Por outro lado, cabe destacar que na conciliação, geralmente, as partes não possuem “uma relação contínua, deste modo, existe a possibilidade de pôr um fim ao litígio ou até mesmo ao processo judicial de forma mais rápida e direta” (SPENGLER; SILVA, 2013, p. 135). Calmon (2008, p. 119), ao comparar a mediação e a negociação afirma que [...] à inclusão informal ou formal de terceiro imparcial na negociação ou na disputa dá-se o nome de mediação, que é, pois, um mecanismo para a obtenção da autocomposição caracterizado pela participação de terceiro imparcial que auxilia, facilita e incentiva os envolvidos. Em outras palavras, mediação é a intervenção de um terceiro imparcial e neutro, sem qualquer poder de decisão, para ajudar os envolvidos em um conflito a alcançar voluntariamente uma solução mutualmente aceitável (grifo do autor).

Assim, é fundamental salientar que a inclusão de um terceiro, que somente busque o equilíbrio das partes, na negociação dar-se-á a designação de mediação, tendo em vista que naquela não há a intervenção de terceiros não envolvidos diretamente no litígio. Logo, a mediação é essencialmente uma negociação em que se insere um terceiro que, munido de conhecimentos específicos para o direcionamento do deslinde, irá coordenar o debate visando um desiderato eficaz. Sem negociação não há mediação (CALMON, 2008). Por fim, a negociação pode ser vista como uma parte da mediação, não. Poderá haver o debate entre as partes; contudo, o terceiro limitará as propostas de modo a conciliar o conflito (SPENGLER; OLIVEIRA, 2013, p. 82).

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pois o ato de negociar irá ocorrer no exato momento em que o mediador constatar que as partes estão hábeis a sozinhas conduzirem a dissolução do litígio.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A amplamente divulgada atual situação de caos do Judiciário, é perceptível pela grande demanda de litígios depositados ao seu desfecho. Outrossim, tal produtividade esperada mostra-se impossível de ser alcançada, o que acaba gerando a busca por formas alternativas que possibilitem o auxílio para ao sobrecarregado Poder Judiciário, viabilizando o seu efetivo funcionamento. É notória a importância da atividade judiciária em nossa sociedade, contudo sua atual situação clama por auxílio urgente, haja vista que, com as consequências do seu estado de asfixia, bem como da crescente demanda que se aproxima a largos passos, concretizar-se-á a insatisfação geral, o que por muitos já é exposta. Assim, ante a impossibilidade do seu exercício de plena qualidade na tutela jurisdicional, nasce nos jurisdicionados o sentimento de injustiça e descrédito estatal, o que servirá como ponto de partida para a união de forças na busca por práticas voltadas às tentativas de soluções alternativas de conflitos, com o intuito de resgatar a confiança na jurisdição, há longa data perdida. Para tanto, visualiza-se na negociação, assim como na mediação e conciliação, uma ferramenta capaz de viabilizar o escape do entrave Judiciário, dando-lhe suporte para dirimir inúmeros conflitos com uma maior celeridade e satisfação pessoal dos conflitantes. Salienta-se que a tarefa de negociar é procedimento comum há muito tempo na rotina de todos, outrossim cabe frisar que necessitamos apenas de um direcionamento e embasamento técnico para não ignorar aspectos imprescindíveis à concretização de uma medida eficaz e apta ao exercício norteado à satisfação mútua na resolução de tumultos variados. Nessa toada, a longa familiarização com o diálogo deve ser direcionada a um objetivo comum, usufruindo-se do corriqueiro uso para também contextualizar uma forma voluntária de jurisdição.

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Pelo observado, através de uma forma correta de uso da negociação, retira-se da responsabilidade judicial grande parte de sua demanda, a qual verá no diálogo e na troca de opiniões uma saída construtiva ao desfecho de inúmeros conflitos, tornando saudável esta forma até então vista como desgastante e morosa. Tempestivamente, é crucial ainda ratificar a diferenciação conceitual e de aplicabilidade dos referidos métodos alternativos, onde a mediação e a conciliação se assemelham em grau maior do que a simples negociação. No instituto da mediação ocorre um diálogo direto entre as partes, as quais, embora sobre os olhos de um mediador, deverão chegar a uma resolução de forma voluntária. Sendo assim o mediador apenas deverá desempenhar o papel voltado ao equilíbrio entre os negociantes. Outrossim, por seu turno, na conciliação o terceiro poderá intervir no processo de resolução, expondo os pontos positivos e negativos do acordo, de passo contrário do que ocorre na mediação. Assim, uma das diferenciações dos dois institutos mostra-se clara na medida da intervenção do terceiro no auxílio da resolução do conflito, haja vista a forma de atuação particular em cada um dos institutos. Além disso, diga-se também que se percebe outra forma de aplicação para diferenciação no que tange à intenção dos envolvidos, pois, na mediação, há a vontade de manutenção da relação, pois é indicada nas hipóteses em que os conflitantes ambicionam sustentá-la; por outro lado, no que tange à conciliação, a possibilidade é de aplicação em ocasiões que permitam a imediata resolução, não importando a posterior coexistência. Nesse diapasão, a negociação também é forma alternativa de resolução de conflitos, no mesmo passo que a mediação e a conciliação, ante o fato de se mostrar como um método pacífico que visa alcançar objetivos comuns entre as partes, que, por meio do diálogo direto e sem a intervenção de terceiros no curso da discussão, irão contextualizar suas divergências e encontraram o fim equitativo e de benefício mútuo. Para tanto gize-se que a negociação sempre esteve presente no cotidiano da sociedade, sendo que sua aplicação é inerente ao ser humano, não necessitando do terceiro interventor, como se visualiza na mediação e conciliação. Por derradeiro, cabe referir que os processos de transformações sociais são diários, sendo que, dessa forma, devemos abranger

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o leque de formas resolutivas dos inúmeros conflitos inerentes à natureza da sociedade, que com rapidez se modifica. O auxílio à justiça comum mostra-se necessário para a garantia da eficácia das respostas requeridas pela coletividade, sendo imprescindível a busca por formas alternativas que as concretizem. Assim, exclusivamente visando ajudar o Judiciário sobrecarregado, que não viabiliza mais zerar e administrar sua demanda com a jurisdição tradicional, enxerga-se na negociação a luz ao final do túnel para a retomada do crédito nas maneiras resolutórias de conflitos, imprescindíveis para o prosseguimento democrático da sociedade e que de forma alguma almejam usurpar sua função primordial.

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O ACÚMULO DE DEMANDAS E A MOROSIDADE DA JUSTIÇA CÍVEL NO BRASIL1

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Fabiana Marion Spengler Pós-Doutora pela Università degli Studi di Roma Tre/Itália, com bolsa CNPq (PDE). Doutora em Direito pelo programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos – RS, com bolsa CAPES; mestre em Desenvolvimento Regional, com concentração na Área Político Institucional da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc – RS; docente dos cursos de Graduação e Pós-Graduação lato e stricto sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc – RS e da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, vinculado ao CNPq; coordenadora do Projeto de Pesquisa “Mediação de conflitos para uma justiça rápida e eficaz” financiado pelo CNPq (Edital Universal 2009 – processo 470795/2009-3) e pela Fapergs (Edital Recém-Doutor 03/2009, processo 0901814); coordenadora do projeto de pesquisa: “Acesso à justiça, jurisdição (in)eficaz e mediação: a delimitação e a busca de outras estratégias na resolução de conflitos”, financiado pelo Edital Fapergs nº 02/2011 – Programa Pesquisador Gaúcho (PqG), edição 2011; pesquisadora do projeto “Multidoor Courthouse System – avaliação e implementação do sistema de múltiplas portas (multiportas) como instrumento para uma prestação jurisdicional de qualidade, célere e eficaz” financiado pelo CNJ e pela CAPES; pesquisadora do projeto intitulado: “Direitos Humanos, Identidade e Mediação” financiado pelo Edital Universal 2011 e pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí; coordenadora e mediadora judicial junto ao projeto de extensão: “A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar conflitos” financiado pela Universidade de Santa Cruz do Sul - Unisc; advogada. Contato: [email protected]. Currículo Lattes:

Helena Pacheco Wrasse Aluna da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Integrante do Grupo de pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos” certificado pelo CNPq, coordenado pela Professora Fabiana Marion Spengler. Contato: [email protected].

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O presente texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada junto ao projeto de pesquisa: “Acesso à justiça, jurisdição (in)eficaz e mediação: a delimitação e a busca de outras estratégias na resolução de conflitos”, financiado pelo Edital Fapergs nº 02/2011 – Programa Pesquisador Gaúcho (PqG), edição 2011 e do Edital CNPq/CAPES nº 07/2011, processo nº 400969/2011-4.

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INTRODUÇÃO

O Estado possui como funções a atividade legislativa, executiva e judiciária. Para esta última, designou o Poder Judiciário como responsável pela solução dos conflitos sociojurídicos. Nesse sentido, é utilizado o processo, que é uma sequência lógica e ordenada de atos e, por assim ser, trata-se de um instrumento mediante o qual se procura solucionar os conflitos de interesses. Através dele, busca-se a efetividade das leis materiais. Nesse escopo, apresenta-se o Direito Processual Civil que é regido por normas e princípios jurídicos que podem ser reivindicados após a provocação do Judiciário. Na contemporaneidade o “direito estatal, enquanto instrumento de controle social e de realização da justiça, tem sido insuficiente para solucionar os grandes desafios” (RODRIGUES, 1994, p. 15). Percebe-se então, o exaurimento do Estado, e, por conseguinte, da Jurisdição. Esse exaurimento do Estado vai além da visão unicamente jurídica2, pois faltam instrumentos processuais adequados para a plena realização da justiça. Considerando tais observações deve-se atentar para outra discussão pertinente ao assunto, trata-se da questão do efetivo acesso à justiça. Nota-se que não se está somente fazendo referência ao acesso à resolução formal de litígios, mas também, ao acesso a uma justiça que venha realizar as pretensões trazidas pela sociedade, que resolva adequadamente os conflitos. Portanto, o presente trabalho tem por objetivo identificar as principais causas3 do aumento das demandas e da morosidade da Justiça Cível no Brasil. Serão abordadas questões como a Judicialização da política, o acesso à Justiça no pós-constituinte de 1988, bem como, a democratização desse acesso. Para ilustrar as causas da morosidade serão analisados números processuais (processos ajuizados e julgados), para que, desta forma haja a identificação da 2

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O exaurimento/desestabilidade não é provocado por aspectos unicamente jurídicos, trata-se, também, de uma problemática de cunho econômico, social, político e educacional. “É notório como a estrutura político-jurídica foi sempre muito atenta aos “remédios” e quase nunca às causas, deixando de lado análises mais profundas sobre a litigiosidade crescente, que é constantemente “traduzida” na linguagem jurídica que se dirige à jurisdição sob a forma irrefreável de procedimentos judiciários” (SPENGLER, 2010, p. 285).

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defasagem da Justiça Brasileira. Apontar-se-ão as alterações na legislação processual civil no Brasil, e, por fim, buscar-se-á elucidar o significado da expressão “razoável duração do processo”, trazido na Emenda Constitucional 45/04. Para tornar possível o desenvolvimento da temática utilizou-se como método de abordagem o dedutivo (BARROS; LEHFELD, 2000, p. 64), partindo de premissas gerais para chegar ao particular. Enquanto método de procedimento, fez-se uso do comparativo, que consiste no confronto de elementos, levando em consideração suas semelhanças e diferenças. Já o tipo de pesquisa que se apresenta é o bibliográfico, a partir da análise de leituras de livros, artigos, leis, documentos, etc. A população vê no papel do Judiciário um aliado na resolução de seus problemas, saciando o desejo de vingança via judicial. Todavia o aliado não está atendendo às expectativas. E é nesse intuito que este trabalho será conduzido, visando evidenciar aquilo que não funciona como o esperado, mas também aquilo que pode ou já está sendo feito para mudar este cenário de crise. É relevante observar que não serão esgotadas as hipóteses e análises referentes aos assuntos eleitos para a confecção deste trabalho, pois a temática é polêmica e versa sobre aspectos em constante efervescência.

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JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

A Constituição Federal de 1988 tem instituída, em seu artigo 60, § 4º, III, a separação dos Poderes. Assim sendo, devem estes Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) funcionar de forma harmônica e independente, sem qualquer distinção hierárquica. Porém, sempre existiram críticas à função estatal encarregada de aplicar a lei às controvérsias (NALINI, 2008, p. 2). Adicionalmente existem algumas particularidades com relação ao Poder Judiciário, no sentido de que ele se manteve estático às transformações oriundas das novas expectativas da sociedade. Diferentemente, os Poderes Executivo e Legislativo se aproximaram do povo através da mídia e de canais que permitem a manifestação da opinião pública, sendo o principal deles instituído pela Constituição Federal: o voto.

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A sociedade contemporânea é caracterizada por avanços tecnológicos que impõem um novo ritmo de vida, trata-se da Era da facilidade de comunicação, da comunicação instantânea e do acesso imediato a informações, que faz com que as demandas exijam soluções de urgência. Por assim ser, cria-se certo grau de desconfiança da população com relação ao desempenho eficaz do Estado4. No que tange ao Direito, existem duas visões: uma afirma que o Direito está limitado a acompanhar e incorporar os valores sociais; já em contraponto, tem-se o Direito como uma variável independente que atua de forma ativa, provocando mudanças sociais, tanto material quanto culturalmente. Porém, o debate vai além, pois há aqueles que acreditam num Direito que preza pela solidariedade social, bem como gera a composição harmoniosa de conflitos na busca da concretização do bem comum. Há também a opinião oposta que percebe o Direito “como a expressão última de interesses de classe, um instrumento de dominação econômica e política” (FARIA, 1989, p. 40). Na tentativa de dar sentido aos pontos de vista elucidados, far-se-ão algumas observações: A lei é o instrumento utilizado para se atingirem fins políticos (NALINI, 2008, p. 07), e tem-se tradicionalmente o juiz como “aplicador da lei” (NALINI, 2008, p. 8). A partir dessa afirmativa, percebe-se um Judiciário que funciona como a própria lei, como um mecanismo, um meio de se atingir o desejado. O Judiciário dará sentido a uma regra preestabelecida por meio da decisão concreta. Nota-se que a lei padece de legitimidade, pois é necessário adequar a previsão com os fins anunciados, portanto, a função da lei encontra-se questionada. Nesse viés é de se indagar a legitimidade do Poder Judiciário e a função do juiz. Será que é, por intermédio do juiz, que se faz uso do Poder Judiciário como um ente político? O Judiciário pode até ser a “expressão última” (FARIA, 1989, p. 40) de dizer o Direito, porém, a resposta apresentada pelo juiz ao problema é relativa. A função do juiz é aquela de dizer a verdade, 4

“Em diferentes países, a crise do Estado-Jurisdição se fortalece como uma instituição burocrática e lenta, desacreditada pelo povo e que representa na verdade um convite à demanda, potencializando os conflitos” (PAUMGARTTEN; PINHO, 2011, p. 445).

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porém, na sentença de 1º grau, a resposta do juiz local, na maioria das vezes, não é a verdade definitiva. Inicialmente, deverá o tribunal local arcar com este ônus; em seguida, passa-se a responsabilidade ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e/ou STF (Supremo Tribunal Federal) até que a busca pela resposta verdadeira seja “alcançada” (NALINI, 2008, p. 11). Fica, pois, claro que há necessidade de uma reforma, mas não se sabe até que ponto uma reforma processual ou uma reforma cultural. Retomam-se as ideias do exaurimento da Jurisdição, que resulta de fatores internos (como questões formais processuais, de organização e de planejamento institucional), bem como de fatores externos (exaurimento educacional, social, cultural, política e econômica). Nalini (2008. p.114) aponta, como um dos fatores desse desgaste, a crise de legitimidade focada no papel desempenhado pelo juiz que, além de executar suas funções de magistrado, arca com responsabilidades de administrador e organizador de tarefas a serem realizadas pelos demais serventuários da Justiça. Concernente a este posicionamento, destaca-se a criação do CNJ5 (Conselho Nacional de Justiça) para tentar resolver alguns dos problemas administrativos do Poder Judiciário que veio à tona. Trata-se de um órgão atuante em todo o território nacional, que propõe ações de planejamento com o intuito de coordenar e aperfeiçoar o serviço público de prestação da Justiça. A criação desse órgão está prevista no artigo 103-B da Constituição Federal de 1988. Outro ponto relevante é o que tange à função tradicional do Poder Legislativo: a elaboração de leis. Esse Poder também enfrenta seus problemas, o quais não serão explorados com profundidade neste trabalho. Sabe-se que existe um excesso de legislação e que muitos textos legais não são coerentes uns com os outros. Vive-se uma espécie de inflação legislativa6. 5 6

Mais informações disponíveis no site do CNJ: . “Cada vez mais se inova a legislação processual e mais controvérsias entre os operadores jurídicos surgem, retardando o trâmite dos processos acumulados nos Tribunais, que associado à falta de recursos humanos e materiais, a cultura judiciarista que resiste aos meios alternativos de resolução de conflitos, e a ineficiência das instâncias administrativas em equacionar os conflitos que surgem em nossa sociedade, fazendo com que eles acabem judicializados, criam o ambiente propício para a crise, motivando um incremento na litigio-

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Essa deficiência do Legislativo provocou o Judiciário, a ponto que este se ver obrigado a tomar atitudes mais enérgicas, como, por exemplo, dar às leis existentes um sentido de justiça, para que elas cumpram mais do que fins meramente políticos, e, além disso, o Poder Judiciário tem dever de trazer respostas para os conflitos, respostas justas que satisfaçam às demandas da sociedade. Por outro lado, essa transformação que o Judiciário vem sofrendo é complexa, pelo fato de ele ter permanecido, em certa extensão, alheio às mudanças sociais, fazendo com que as reformas tentem responder de forma imediata questões mais densas e profundas e que precisam de maior planejamento. Como consequência, tem-se a judicialização da política, um fenômeno no qual o Judiciário atua além das suas funções tradicionais7, arca com atribuições legislativas na medida em que precisa dar sentido às leis que se contradizem, bem como tomar decisões baseadas em princípios e analogias para suprir as demandas de leis que não existem ou que ainda estão na fase de projeto8. Nesse sentido, é pertinente citar o artigo 103-A da Constituição Federal, que foi acrescentado pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que diz respeito às súmulas vinculantes: [...] o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

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sidade sem que o Estado tenha condições para atendê-la, ou tentando fazê-lo, responde a destempo ou de forma inconsistente.” (PAUMGARTTEN; PINHO, 2011, p. 447) “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo.” (BARROSO, 2011, p. 360) Relacionado à judicialização vem a ideia de ativismo judicial, que “está associada a uma atuação mais ampla do judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes” (BARROSO, 2011, p. 364).

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Percebe-se a magnitude do assunto, tratando-se de um tema complexo que traz à tona questões referentes à legitimidade9 de cada um dos Poderes e, também, mostra a dificuldade que é a definição de um papel específico para ser desempenhado pelos Poderes. Tais observações acerca das fragilidades do sistema democrático levam a uma reflexão: existem três Poderes, dois deles são eleitos pelo povo, representando os interesses sociais; o terceiro possui um viés técnico e marcado pela racionalidade das decisões. Posto desta forma, são apresentadas críticas com relação ao terceiro Poder, por dizer que deste não emana a vontade do povo. Por outro lado, segundo a Constituição Federal, deve o STF (no papel guardião da ordem constitucional) promover e proteger os direitos fundamentais e a democracia. Justificam-se assim algumas ações do Judiciário, e que nem sempre ele irá apresentar como solução aquilo que pensa a maioria, pois cabe-lhe defender os elementos essenciais postos na Constituição, e isto se dá a favor e não contra a democracia (BARROSO, 2011, p. 371). Barroso elucida a existência de três modelos de atuação do Judiciário. Primeiramente, um modelo idealizado, no qual o Direito não sofre nenhuma influência política; um segundo modelo que descrê essa autonomia do Direito em relação à política, e o “modelo real” que combina uma dose de cada uma das visões anteriores, pois a realidade mostra uma autonomia relativa.10. Fica claro que aquele Judiciário alheio às transformações de expectativas da sociedade mudou. o que se tem é um Judiciário mais ativo e envolvido nas questões sociais. Contudo, “a relação entre órgãos judiciais e a opinião pública envolve complexidades e sutilezas” (BARROSO, 2011, p. 400). O Judiciário tem dever de transparência e prestação de contas perante a sociedade, porém esse Poder não pode ser escravizado pela opinião pública11. Partindo dessa assertiva, cabe res9 10

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Crise de legitimidade. “Decisões judiciais, com frequência, refletirão fatores extrajurídicos. Dentre eles incluem-se os valores pessoais e ideológicos do juiz, assim como outros elementos da natureza política e institucional.” (BARROSO, 2011, p. 386) “Nestas horas, juízes e tribunais não devem hesitar em desempenhar um papel contramajoritário. O populismo judicial é tão pernicioso à democracia quanto o populismo em geral. Em suma: no constitucionalismo democrático, o exercício do poder envolve a interação entre as cortes judiciais e o sentimento social, manifestado por via da opinião pública ou das instâncias repre-

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saltar outro ponto que atravanca um entendimento ou um processo fluídico na atuação do Judiciário: o acesso do povo à justiça.

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ACESSO À JUSTIÇA NO PÓS-CONSTITUINTE DE 1988

O efetivo acesso à justiça12 é um tema de grande interesse em uma sociedade com um número de demandas judiciais elevado13. Por isso, nesta parte do texto, serão brevemente apresentadas as três ondas de acesso à justiça trabalhadas por Cappelletti (1988), para, em seguida, abordar os desafios referentes a essa temática enfrentados pelo Brasil no pós-constituinte de 1988. a) Primeira onda: assistência judiciária para os pobres. Num primeiro momento a assistência judiciária era exercida por advogados particulares que prestavam seus serviços aos pobres, sem a cobrança dos honorários. Naturalmente os advogados tendiam a direcionar seu foco de trabalho para as causas remuneradas. Essa primeira onda é marcada por dois sistemas: o Judicare e o do advogado remunerado pelos cofres públicos. No Judicare, os advogados são pagos pelo Estado. É um procedimento muito simples, pois, em vez de a cobrança de honorários ser entregue ao cliente, ela era mandada ao Estado. O problema desse sistema é que ele não está aparelhado para ir além da assistência dos problemas individuais. Ao contrário do que reflete o sistema dos advogados que são pagos pelo Estado, neste caso, os serviços jurídicos deveriam ser prestados por “escritórios de vizinhança” (CAPPELLETTI, 1988, p. 40), os advogados, pagos pelo governo, deveriam promover os

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sentativas. A participação e o engajamento popular legitimam as decisões judiciais e é bom que seja assim. Dentro dos limites naturalmente.” (BARROSO, 2011, p. 401). Usar-se-á justiça com letra minúscula, pois não se está referindo ao acesso formal à Justiça (Poder Judiciário) e, sim, um acesso a uma resposta, um tratamento adequado e eficaz que resolva o conflito. “Hoje, o brasileiro padece de demandismo. Sintoma proveniente de distintas origens. Para os otimistas, o brasileiro tem noção mais clara de seus direitos. Para os realistas a litigância sugere uma sociedade egoísta, inflexível quando se trata de transigir, infensa a acordos e beligerante. [...] A razão de tantas ações é a complexidade do processo, concausa de uma lentidão insuportável do Judiciário” (NALINI, 2008, p. 107).

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interesses dos pobres como classe. Há, no entanto, um conflito de interesses, pois os pobres poderiam reivindicar contra o governo, ou seja, o governo (réu) estaria pagando a assistência judiciária da parte adversária. Alguns países adotaram a combinação destes dois sistemas, fazendo com que funcionem como complemento (um suprindo as limitações apresentadas pelo outro). b) Segunda onda: representação dos interesses difusos14. O principal método para a representação desses interesses se dá por meio da “ação governamental”: Ministério Público e instituições correspondentes, ou também, outra solução governamental seriam as agências públicas regulamentadoras. Por outro lado, existe a técnica do Procurador-Geral Privado que permite aos indivíduos a proposição de ações que visem defender os interesses públicos e/ou coletivos. E, por fim, a técnica do Advogado Particular do Interesse Público, por meio da qual ocorre primeiramente o reconhecimento dos grupos organizados para a defesa dos interesses difusos, sabendo-se da importância de consentir ações coletivas no interesse público. Atualmente, ao contrário dos preservacionistas, já existem alguns grupos muito bem estruturados, como, por exemplo, aqueles que defendem interesses trabalhistas. Percebem-se aí limitações nessa técnica de defesa do interesse difuso. c) Terceira onda: do acesso à representação em juízo a uma concepção mais ampla de acesso à justiça, um novo enfoque de acesso à justiça. Esse novo enfoque é mais abrangente; ele considera as “ondas” anteriores, mas vai além. Essa “onda” inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos. Nessas condições, a Justiça dá atenção para o conjunto, para o geral. São levadas em consideração as instituições e os mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar, até mesmo os que venham para prevenir as disputas. Encoraja-se uma ampla variedade de reformas, como mudanças nas formas de proceder, nas estruturas dos tribunais e nas maneiras utilizadas para tratar os conflitos (utilização de mecanismos privados e informais). Devem-se levar em conta as repercussões individuais e coletivas, e, 14

Como, por exemplo, o Direito Ambiental (pertencente a todos e a ninguém ao mesmo tempo).

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também, considerar eventuais limitações que possam existir, para, assim, criar instituições que as enfrentem. No Brasil, com o advento da nova ordem constitucional, foi trazida uma série de direitos fundamentais e medidas de caráter social, ao mesmo tempo em que vieram os desafios. Uma vez detectada essa situação, cabe questionar como programar e implementar essas medidas em meio às atuais dificuldades econômicas15. Segundo Nalini (2008, p. 109), “a Constituição de 1988 foi aquela que mais acreditou na solução jurisdicional dos conflitos. Natural o fato de que, despertada por seu texto, a cidadania viesse a multiplicar as demandas e evidenciasse a sua crença na solução judicial dos problemas humanos”. Na redação do artigo 5º, no inciso LXXIV da Constituição (1988) consta que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Para que esta garantia se torne uma realidade, foi instituída a Defensoria Pública, trazida pelo artigo 134: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”. Faria (1989) adverte que a resposta diante do desafio de compatibilizar a democratização política e as exigências de reforma social se encontra associada à capacidade dos atores políticos de compreenderem o atual momento histórico brasileiro, e faz a indagação: “Mas que momento é este?” (FARIA, 1989, p. 40). Vive-se um período no qual é garantida a facilidade de se acessar a Justiça. Para isto foi instituída a Defensoria Pública que funciona como uma porta de entrada à resolução formal dos litígios. Contudo, o excesso de demandas sobrecarrega as Defensorias e o Poder Judiciário como um todo. Eis a razão de se refletir sobre o que traz a “terceira onda” de Cappelletti, ou seja, analisar uma reforma que repense o processo civil e que traga outras “portas de 15

De acordo com o Relatório do CNJ, o número de assistências Judiciárias gratuitas foi de 54.544.881 na Justiça Estadual, o equivalente a 0,280% da despesa total da Justiça Estadual. Na Justiça Federal foram 54.344.679 assistências, correspondente a 0,838% da despesa total da Justiça Federal. Disponível em: .

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acesso” à justiça16. Vale pensar no sistema como uma totalidade, na qual para uma coisa funcionar ela, até certo ponto, depende de outra, e assim por diante. Para que o efetivo acesso à justiça possa se tornar uma realidade, deverão ser consideradas opções que vão além da resolução formal de litígios. Levando-se em conta institutos informais de resolução de conflitos, a saber: a mediação, a conciliação e a arbitragem17. Ressalta-se pensar nesses métodos não como uma solução mágica para esse exaurimento jurisdicional, mas, sim, como uma forma de conscientizar o Poder Judiciário de que não faz parte de sua função constitucional a intervenção em todo e qualquer conflito, e, por assim ser, a efetiva prestação jurisdicional quer dizer intervir quando for preciso. Vislumbra-se a análise do Direito sob uma ótica de transdisciplinaridade (PAUMGARTTEN; PINHO, 2011). Portanto, cabe aos atores políticos perceberem que se vive um momento no qual, apesar de cada um dos Poderes ter suas atribuições, elas se encontram conectadas pelo sistema democrático e, dessa forma, devem os Poderes funcionar com bom senso entre si.

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NÚMEROS PROCESSUAIS

Esta seção consiste em apresentar dados numéricos relativos aos índices de litigiosidade no Brasil, e de forma objetiva detectar os pontos mais críticos que indicam a defasagem da Justiça. As informações utilizadas foram retiradas do site do Conselho Nacional de Justiça, mais especificamente dos relatórios da Justiça em Números 2010 e 2011. Serão apreciados dados da Justiça Estadual e Federal. 16

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“Existem outros desafios além da reorganização do Judiciário. O primeiro é, sem dúvida, o acesso das classes populares à justiça: tal acesso não se resolve apenas com a ampliação física dos serviços da justiça, mas exige progressivamente, alterações no modo de se encarar a função judiciária e o próprio direito.” (FARIA, 1989, p. 142) “Mas cabe ressaltar desde já, que a busca pela autocomposição do conflito deve ser uma opção, pois quando o cidadão busca refúgio no meio alternativo não por livre escolha, mas para se livrar dos riscos de um processo judicial lento, ineficaz e oneroso, certo é que as bases do acesso à justiça encontram-se ameaçadas.” (PAUMGARTTEN; PINHO, 2011, p. 452)

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A Justiça Estadual, em 2010, foi marcada com o ingresso de 17,7 milhões de processos. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul formam o grupo dos maiores tribunais e foram responsáveis por 62% dos novos casos. Um segundo grupo, formado por 11 tribunais, teve o ingresso de 28% dos casos da Justiça Comum. Por fim, os 12 tribunais restantes formam o terceiro grupo, que iniciou 10% dos casos novos. Vale ressaltar que em 2010 o número de processos novos reduziu 3%, o equivalente a cerca de 640 mil processos. Os processos que se encontram em tramitação são resultado da soma entre casos novos e pendentes, correspondendo a mais ou menos 65,7 milhões, 0,8% a mais que em 2009. Houve aumento de 2,5% no quantitativo de casos pendentes, entretanto, apesar desse aumento, 9 tribunais informaram uma redução deste quantitativo. Além disso, foram proferidas 15,8 milhões de sentenças e 18,5 milhões de processos foram baixados. Referindo-se aos números do Rio Grande do Sul, há 2.224.640 casos novos, 2.285.371 casos pendentes, 2.274.586 processos baixados e 1.355.157 sentenças e decisões. É positivo o fato de o número de casos novos ser menor do que os pendentes, porém, ainda é muito alta a quantidade de litígios no Rio Grande do Sul. No 2º Grau da Justiça Estadual tramitaram cerca de 3,3 milhões de processos, sendo, dentre esses, 1,44 milhão de processos pendentes e 1,86 milhão que ingressaram no decorrer do ano de 2010. Infelizmente, os dados com relação a 2009 não se mostram tão positivos, pois houve em 2010 a incidência de152 mil processos a mais do que os que foram baixados, o que revela uma estimativa de crescimentos de casos pendentes para o próximo ano. Ainda assim foram proferidas cerca de 1,8 milhão de decisões terminativas, o equivalente a 96% dos casos novos. No Rio Grande do Sul, houve o ingresso de 399.868 casos; ficaram pendentes de baixa no 2º Grau cerca de 116.024 processos, 391.743 foram baixados e 397.340 decisões foram tomadas e puseram fim à relação processual no 2º Grau. Ainda relativo aos dados estaduais, deve-se ponderar que o 1º Grau e os Juizados Especiais (1ª instância), nos quais tramitaram 61,8 milhões de processos, 46,3 estão pendentes. A maior parte dos processos pendentes está concentrada nos estados de São Paulo e

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Rio de Janeiro, o que significa que esses dois tribunais armazenam mais da metade do acervo nacional de processos da Justiça Estadual. Em 2010, tramitaram 284 mil processos a mais do que em 2009. Por outro lado, 16,4 milhões de processos foram baixados e 13,7 milhões de sentenças. Os números do estado do Rio Grande do Sul na 1ª instância são: 1.786.823 casos novos, 2.154.124 processos pendentes, 1.849.033 baixados e 294.007 sentenças. Novamente são positivos os números do Rio Grande do Sul, pois demonstram um número menor de processos novos em relação aos baixados. Analisar-se-á agora os dados pertinentes à Justiça Federal em 2010. Ingressaram 3,2 milhões de casos novos18 e tramitaram cerca de 11 milhões o que leva a um crescimento de 0,18% em relação a 2009. Foram proferidas 2,9 milhões de sentenças (número 6% maior do que no ano anterior) e foram baixados 3,4 milhões de processos. Duas Regiões, a 1ª e a 4ª, apresentaram saldo negativo com relação aos casos novos e baixados19. Os dados da 4ª Região são: 915.916 casos novos, 646.320 casos pendentes, 409.012 processos baixados e 462.007 sentenças e decisões. Com relação aos dados de 2011, no 2º grau de jurisdição o índice de casos novos20 na Justiça Estadual foi de 1.908.065 processos, no Rio Grande do Sul esse número chegou ao patamar de 376.279, obtendo assim a segunda posição depois do Tribunal de São Paulo. Com relação aos casos pendentes (saldo residual), foram 1.610.443 ações, dentre essas 117.797 no RS, ocupando a terceira colocação em comparação com os demais estados. Ainda nessa linha, tem-se no 2º grau do Tribunal de Justiça do RS: 377.245 processos baixados. Número que, comparado ao de casos novos21 se mostra encorajador, considerando que o número 18 19

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Essa nomenclatura abrange os casos originários no 2º Grau, bem como, aqueles já protocolados na Justiça anteriormente, mas em grau recursal. Essas Regiões são referentes aos estados: 1ª Região (Acre, Amazonas, Amapá, Minas Gerais, Pará, Roraima, Rondônia, Tocantins, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Piauí e o Distrito Federal.) e 4ª Região (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). O número de casos novos é resultado da soma entre os casos novos criminais e não criminais. Casos novos no 2º grau no RS: 376.279; percebe-se que em 2011 o número de casos novos é inferior ao de processos baixados, logo, resolveram-se mais casos do que ingressaram.

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de casos novos é inferior ao de processos baixados. Esses dados refletem em uma grande carga de trabalho para os magistrados, em 2011 foi registrada uma média de 1.127 casos novos por magistrados, o RS ficou acima da média nacional, com 2.707 casos, ocupando a primeira posição no ranking. Na Justiça Federal (2011), a quantidade de processos novos por magistrado registrou no 2º grau: 3.919 casos. Assim, destaca-se a taxa de congestionamento: marcador que indica a quantidade de processos que ingressaram na Justiça em determinado ano e, não sendo resolvidos, passaram para o seguinte. No 2º grau da Justiça Federal essa taxa foi de 66,6%, ela é resultado da análise do total de casos baixados (520.318), casos novos (525.165) e casos pendentes (1.033.772). Esse marcador na Justiça Estadual registra que a taxa de congestionamento média de todos os estados brasileiros foi de 49%, sendo que no RS esse índice foi inferior ao nacional: 23,6%. Ao analisar o 2º grau da Justiça Estadual e Federal, observam-se esses mesmos indicadores numéricos no 1º grau de jurisdição. A Justiça Federal de 1º grau registrou 769 casos novos por magistrado na fase de conhecimento, o que reflete uma grande carga de trabalho. Por conseguinte, a taxa de congestionamento foi superior a 60%, visto que ingressaram 470.006 novos casos, restaram 981. 453 pendentes e 567.482 foram baixados. Na categoria de casos novos, foram registrados 7.441.988 processos na fase de conhecimento, restando o RS na terceira posição com 702.932; na primeira e segunda posições estão os Tribunais de São Paulo e Minas Gerais, respectivamente. Nestas, condições, os casos pendentes na fase de conhecimento no 1º grau atingiram o índice de 19.222.491, dentre esses, 879.503 no estado do RS. Na fase de conhecimento foram baixados no 1º grau 8.047.323 processos na Justiça Estadual; no estado do RS, esse número chegou a 616.740. Também no 1º grau de jurisdição calculou-se o índice de casos novos por magistrado na fase de conhecimento; na média geral foram 1.241 ações, e o RS novamente registrou um índice maior que a média: 1.448 novos casos por magistrado, sendo que no estado do Rio de Janeiro esse número foi superior a 2.000. Por fim, a taxa de congestionamento no 1º grau da Justiça

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Estadual registrou 69,8%; já no Tribunal gaúcho essa taxa foi de 61%. São de extrema relevância essas constatações quantitativas acerca das relações processuais. Os relatórios do Conselho Nacional de Justiça permitem fazer um panorama da situação de litigiosidade no Brasil, a ponto que, uma vez detectados os problemas, torna-se mais fácil a criação de soluções. A sociedade, além de ser dinâmica, é formada por pessoas que têm opiniões diversas. Quando essa diferença se choca dá-se início ao conflito. A facilidade de acessar o Judiciário combinada ao surgimento de novos conflitos causa o excesso de demandas, razão dos números de novos casos serem tão elevados, fato que, por conseguinte, aumenta o “estoque” de processos pendentes na medida em que o Judiciário não consegue atender a todas essas demandas. Seria interessante a utilização de mecanismos que tentassem resolver o conflito antes de ele se tornar mais um processo, por meio de alternativas que antecedessem uma possível batalha judicial. Além de se evitar o grande número de ingresso de processos, estar-se-ia adotando uma maneira mais pacífica na resolução dos litígios22. Nessa corrente, é necessário, então, repensar mudanças no que tangem à legislação processual civil do País.

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ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRA

O processo é o meio tradicionalmente utilizado pelo Poder Judiciário para se resolver as controvérsias. Para tanto, deve esse mecanismo seguir uma forma preestabelecida em lei, pois ele serve de “instrumento para a realização do justo” (NALINI, 2008, p. 18). Há, no entanto, uma supervalorização da forma em detrimento da substância, o que significa dizer que o que importa é o fato do pro22

Considera-se importante destacar uma passagem do texto de Humberto Dalla B. de Pinho, que reporta o seguinte: “Surge então com expectativa a adoção de métodos alternativos endo ou paraprocessuais para a solução das demandas, como antídoto contra a crise jurisdicional, que não deve cingir-se apenas a descongestionar os Tribunais ou promover a cura para um litígio, mas deve sim buscar a sua solução plena, duradoura e de forma pacífica, não violenta, buscando a solução de conflito em conjunto, amenizando-se a dependência social da jurisdição.” (PAUMGARTTEN; PINHO, 2011, p. 450).

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cesso ter seguido os trâmites estabelecidos, independentemente de se ter um resultado justo ou injusto. Busca-se a segurança jurídica através de formas perfeitas23 que institucionalizam o conflito. Ocorre que a justiça tarda24, e “as demandas se eternizam no Judiciário” (NALINI, 2008, p. 18). Eis a razão pela qual alguns processos não apresentam soluções: a estes são dadas respostas processuais, ou seja, não se chega a analisar o conflito em si, pois a lide é resolvida mediante a consideração de questões procedimentais. Na tentativa de se modernizar o processo, tem-se a Reforma do Judiciário implementada pela EC 45/04, que alterou algumas leis processuais com o intuito de dinamizar o processo. Além desta, outras tentativas foram feitas, como, por exemplo, as Leis: 11.187, de 19.10.2005, que confere nova disciplina ao cabimento dos agravos retido e de instrumento; 11.232, de 22.12.2005, que procura estabelecer a fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e revogar dispositivos relativos à execução fundada em título judicial; 11.276, de 07.02.2006, que altera os artigos 504, 506, 515 e 518 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), relativamente à forma de interposição de recursos, ao saneamento de nulidades processuais e ao recebimento de recurso de apelação; 11.277, de 07.02.2006, que acrescenta ao Código de Processo Civil o artigo 285-A25, e a Lei 11.280, de 16.02.2006, que altera os artigos 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 do Código de Processo Civil, para acelerar a prestação Jurisdicional. Feitas tantas alterações no Código de Processo Civil de 1973, viu-se a necessidade de estruturar um novo Código de Processo 23

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Segundo Montesquieu (2005, p. 12): “Falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto o mundo físico. Pois, embora aquele também possua leis que, por sua natureza, são invariáveis, ele não obedece a elas com a mesma constância com a qual o mundo físico obedece às suas. A razão disto é que os seres particulares inteligentes são limitados por sua natureza e, portanto, sujeitos ao erro; e, por outro lado, é de sua natureza que eles atuem por si mesmos.” “Uma decisão judicial, por mais justa e correta que seja, muitas vezes pode tornar-se ineficaz quando chega tarde, ou seja, quando é entregue ao jurisdicionado no momento em que não mais lhe interessa nem mesmo o reconhecimento e a declaração do direito pleiteado.” (SPENGLER, 2010, p. 218). BRASIL. Lei 11.277, de 07 de fevereiro de 2006.

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Civil, o Projeto 166/2010, que atualmente se encontra na Câmara dos Deputados sob o n. PL 8.046/2010, através do qual se pretende fazer uma Justiça mais célere. Esse Projeto apresenta mudanças como a supressão de recursos, a diminuição de prazos e certas etapas processuais. Para exemplificar algumas dessas alterações cita-se a redação do artigo 621 do CPC de 1973: [...] o devedor de obrigação de entrega de coisa certa, constante de título executivo extrajudicial, será citado para, dentro de 10 (dez) dias, satisfazer a obrigação ou, seguro o juízo (art. 737, II), apresentar embargos. Parágrafo único. O juiz, ao despachar a inicial, poderá fixar multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação, ficando o respectivo valor sujeito a alteração, caso se revele insuficiente ou excessivo.

Que passaria a vigorar com a seguinte redação: Art. 730. O devedor de obrigação de entrega de coisa certa, constante de título executivo extrajudicial, será citado para, dentro de três dias, satisfazer a obrigação. § 1º Ao despachar a inicial, o juiz poderá fixar multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação, ficando o respectivo valor sujeito a alteração, caso se revele insuficiente ou excessivo. § 2º Do mandado de citação constará a ordem para imissão na posse ou busca e apreensão, conforme se tratar de imóvel ou de móvel, cujo cumprimento se dará de imediato, se o devedor não realizar a prestação no prazo que lhe foi designado.

Nota-se através dessa comparação o objetivo geral do Projeto 166/2010, que é a aceleração da eficácia processual. A avaliação de que estas leis estão cumprindo o seu papel será possível somente após uma análise de decisões e jurisprudências. Porém, tudo dependerá “da capacidade hermenêutica e da vontade do juiz brasileiro de assumir uma nova postura” (NALINI, 2008, p. 19). Ainda a este respeito, Nalini entende que “as inovações introduzidas ao Código de Processo Civil abrem considerável espaço para o juiz brasileiro oferecer em oportuno, com urgência necessária à solução pretendida pela parte” (NALINI, 2008, p. 111). Através da edição das leis citadas, percebe-se a intenção de conferir um novo ritmo à Justiça no Brasil.

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Ainda assim, é preciso lembrar que os métodos de tratamento de conflitos devem ser revistos. Apesar de alguns resultados da Reforma do Judiciário serem significativos, eles não podem evitar que se continue tentando buscar outras estratégias de solução de conflitos. Há também que se apreciar, concomitantemente à resolução dos conflitos, o tempo de tramitação dos casos na esfera judicial, uma vez que a morosidade é fator de entrave e requer cuidados.

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RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

A Emenda Constitucional 45/04 incluiu na Constituição Federal o inciso LXXVIII ao artigo 5º, que determina: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Investigar-se-á o que se entende por “razoável duração do processo” e, para tanto, serão abordados assuntos como o tempo, a memória e o tempo processual. O tempo tem a função de orientar; ele serve de guia para instituir o “antes”, o “durante” e o “depois”. O fato de o ser humano ser dotado da capacidade de síntese torna possível estruturar uma ordem dos eventos que vivemos, o conhecimento e as habilidades que são fruto de experiências que compõem a memória. McGaugh (2003) afirma que vida sem memória não seria vida; a memória funciona como uma espécie de cola que forma assim a identidade pessoal. O fato de conseguirmos organizar e armazenar as experiências constitui a aprendizagem, que é algo de extrema relevância não somente na vida individual, mas na vida em sociedade, pois, através do tempo26 uma geração passa para a seguinte as suas lembranças, a sua forma de viver, ou seja, a sua memória. 26

“A percepção de eventos que se produzem “sucedendo-se no tempo” pressupõe, com efeito, existirem no mundo seres que sejam capazes, como os homens, de identificar em sua memória acontecimentos passados, e de construir mentalmente uma imagem que os associe a outros acontecimentos mais recentes, ou que estejam em curso. Em outras palavras, a percepção do tempo exige centros de perspectiva – os seres humanos – capazes de elaborar uma imagem mental em que eventos sucessivos, A, B e C, estejam presentes em conjunto, embora sejam claramente reconhecidos como não simultâneos. Ela

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A memória seleciona aquilo que considera mais relevante ou não27.. É nesse rumo que se pretende discutir o Direito e o perdão. O Direito primitivo funcionava como uma forma de vingança legitimada, porém agora se concebe o Direito na sociedade como o momento de se conceder o perdão; esse perdão é um momento de maturidade. Segundo Spengler (2010, p. 202), “não se pode duvidar que o passado tem uma presença tão forte quanto o presente, todavia o esquecimento, não obstante ameaçador, é necessário, uma vez que se trata do reverso da memória, porém para pensar é preciso esquecer as diferenças, generalizar, abstrair”. Desta feita, seleciona-se a memória, a lembrança que se pretende esquecer, mas este esquecimento não é total, pois permanece a aprendizagem e o amadurecimento pessoal, consolidando assim a identidade do indivíduo. A morosidade do Poder Judiciário prolonga um contato indesejado entre as partes, dificultando o esquecimento e o perdão. Por outro lado, criticar-se-ia uma rapidez exacerbada, pois isso tornaria o processo muito veloz não dando tempo de a parte absorver as informações concernentes ao aprendizado, o que também não é o esperado. Assim, revela-se a pertinência da questão relativa à razoável duração do processo. Qual seria o significado incutido nessa expressão? Nota-se que o tempo não pode ser extenso nem curto, ele deve ser o período “x” da parte se dar conta e assimilar a experiência. Ainda a esse respeito, deve-se considerar a complexidade do conflito, pois, dependendo da ordem conflitiva, demoraria mais ou menos tempo para solucionar a situação28.

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pressupõe seres dotados de um poder de síntese acionado e estruturado pela experiência. Esse poder de síntese constitui uma especificidade da espécie humana: para se orientar os homens, servem-se menos do que qualquer outra espécie de reações inatas e, mais do que qualquer outra, utilizam percepções marcadas pela aprendizagem e pela experiência prévia, tanto a dos indivíduos quanto a acumulada pelo longo suceder das gerações. É nessa capacidade de se aprender com experiências transmitidas de uma geração para outra que se repousam o aprimoramento e a ampliação progressivos dos meios humanos de orientação, no correr dos séculos.” (ELIAS, 1998, p. 33) “Selectivity in creating memories is critically important. For most of us, built-in neurobiological systems automatically provide that needed selectivity. Our remembrance of experiences tends to vary directly with their emotional significance” (MCGAUGH, 2003, p. X). “[…] a matéria litigiosa impõe o ritmo dos procedimentos.” (SPENGLER, 2010, p. 211)

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Ao se falar de processo, vem à tona a questão da memória, pois o processo é a recriação de fatos constitutivos do passado. O tempo processual é recriado, procura-se contar uma história ao juiz e, a partir dessa narrativa, ele decidirá, com base nas leis que foram criadas no passado, para servir a um potencial futuro. A EC 45/04 reforma o Judiciário para que este apresente soluções de maneira mais célere aos jurisdicionados, num viés essencialmente quantitativo. No entanto, deve-se pensar em estratégias que proporcionem respostas qualitativas às demandas sociais. Seguindo os limites estabelecidos nesta pesquisa, fica difícil estabelecer um prazo de tempo que possa ser medido em dias, meses ou anos29 para se responder à indagação do que seria a razoável duração processual. Para que o tempo não seja tão longo são esta29

Nesse sentido se apresenta a seguinte notícia: “TJDFT conclui projeto que mede tempo e custo médios de tramitação de processos da 2ª Instância, 25.07.2011, 147 dias e R$ 947,34. Estes são o prazo e o custo médios de um processo judicial que tramita na 2ª Instância do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Os valores foram calculados a partir da conclusão do Projeto de Definição do Tempo e Custo Médios de Tramitação dos Processos no Segundo Grau (Protec). O projeto, de continuidade administrativa da gestão 2008-2010, foi recepcionado pelo Plano de Gestão do Biênio 2010-2012. O objetivo principal da ação, sob a responsabilidade da Secretaria Judiciária, foi criar mais uma ferramenta de gerenciamento para o Tribunal, de forma profissional e com o máximo de transparência no trato com o serviço público prestado à sociedade. Esse levantamento será fundamental para subsidiar o TJDFT na identificação de oportunidades de melhoria nos processos de trabalho, como a implantação de um sistema automatizado de coleta e a adequação necessária das Tabelas de Custas Processuais. O Protec foi subdividido em duas partes: Protec Tempo e Protec Custo. E se baseou em dados anuais de 2004 a 2008, incluindo o mês de janeiro de 2009. Para o cálculo do tempo, foram definidas as variáveis ponto de início (distribuição) e ponto de chegada (fim de tramitação). Foram desenvolvidas as fórmulas de cálculo do tempo e custo médio de duração de 10 tipos de processos: mandado de segurança, habeas corpus, apelação criminal, apelação cível, ação rescisória, embargos infringentes cíveis e criminais, recurso em sentido estrito, agravo de instrumento, medidas cautelares. Os cálculos revelaram que o processo com tramitação mais cara é o Mandado de Segurança (R$ 2.103,80), e o de menor custo é o habeas corpus (R$ 267,90). A realização de estudos para estabelecer parâmetros razoáveis do tempo de tramitação dos processos judiciais, desde a propositura até o término das ações, atende à garantia constitucional prevista no art. 5º, LXXVIII: ‘a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação’.” (Fonte: TJDFT. Disponível em: )

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belecidos prazos formais no decorrer do processo30, o que evita do processo exceder um tempo “x”, mas isso não é realidade em um sistema com quatro instâncias processuais31. Não se apresenta uma resposta medida numericamente, o que se tem é uma conclusão de que na medida em que se aumenta a complexidade do litígio, aumenta-se o tempo necessário para solucioná-lo e tratá-lo adequadamente.32

7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objeto geral proposto neste trabalho foi a investigação das principais causas do aumento de demandas e da morosidade da Justiça Cível no Brasil. Pela leitura do texto, pode-se ressaltar que, apesar de existirem outros problemas no Judiciário brasileiro, as principais causas consistem no excesso de demandas sociais (demandismo), o que acarreta o acúmulo de processos e, além dessas, outra causa se dá pelo fato de que, ao mesmo tempo em que existe mais de uma lei sobre certos assuntos (sobrecarga de legislação), não há quaisquer sobre outros: em determinados setores se sofre pelo excesso e, em outros, se vive a falta de legislação. Sobre a Reforma do Judiciário, foram feitas algumas ponderações importantes no decorrer do texto, que levam a atenção a uma Reforma processual, além de uma Reforma de cunho moral33, calcada na ética profissional e na busca pela justiça, ao mesmo tempo em que são apresentadas respostas viáveis que tratem efetivamente os problemas submetidos à apreciação do Judiciário. As opiniões divergentes não são de um todo certas ou erradas, o essencial é 30

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Nota-se a importância da forma, ao mesmo tempo em que se revela uma preocupação com uma resposta justa que venha em um tempo adequado para solucionar o conflito. Surge novamente a questão de uma Reforma profunda, tanto cultural como processual. Segundo Humberto Dalla tem-se que: “A concepção contemporânea de jurisdição vai deixando então de ser tão centrada no poder, para conectar-se a ideia de soberania aderindo à função que o Estado Social de Direito deve desempenhar no sentido de promover a solução justa dos conflitos, em seu sentido pleno, com uma tutela adequada, num tempo razoável.” (PAUMGARTTEN; PINHO, 2011, p. 451). Relevante atentar à criação do Conselho Nacional de Justiça.

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conseguir filtrar o que é positivo em cada uma, para que, desta forma, ocorra o equilíbrio das relações. É importante destacar que a lei tornar-se-á legítima no momento em que os cidadãos estiverem conscientes da sua inviolabilidade e da ordem jurídica, não permitindo que se torne obtusa na medida em que se apresenta um sistema muitas vezes incoerente. No que diz respeito aos números processuais, pode-se apontar que tais números, de uma forma geral, ainda são muito altos. Apesar de alguns dados apresentados serem otimistas, outras providências podem ser tomadas no rumo de diminuir a incidência de novos casos. Destacam-se então os métodos prévios de resolução de conflitos, ou seja, ações que venham evitar o início de outro processo judicial. Nessa perspectiva a mediação e a conciliação prévias bem como a negociação e a arbitragem seriam as estratégias que caminham no sentido de conscientizar a população, a fim de que as pessoas venham a ter maior autonomia sobre os seus conflitos e problemas, evitando a recorrência ao Judiciário. No livro “O espírito das leis”, Montesquieu observa que uma sociedade que vive em harmonia e com alegria, que funciona bem de forma autônoma, não necessita de tantas leis impostas pelo governante, pois o controle ocorre de uma forma natural e o excesso obstruiria esse controle. Parece utópico pensar numa sociedade que funcione bem sem leis, mas é viável pensar numa sociedade que tenha o mínimo de leis necessárias para funcionar bem34, le34

“Se existisse no mundo uma nação que tivesse uma índole sociável, uma abertura de coração, uma alegria na vida, um gosto, uma facilidade de comunicar seus pensamentos; que fosse viva, agradável, brincalhona, às vezes imprudente, muitas vezes indiscreta; e tivesse junto com isto coragem, generosidade, franqueza, certo ponto de honra, não se deveria tentar atrapalhar com leis as suas maneiras, para não atrapalhar suas virtudes. Se, em geral, o caráter é bom, que importam os poucos defeitos que ali se encontram? Podemos [...] criar leis para corrigir seus costumes e limitar seu luxo; mas quem sabe se não perderíamos um certo gosto que seria a fonte das riquezas da nação e uma polidez que atrai para ela os estrangeiros? É dever do legislador acompanhar o espírito da nação, quando este não for contrário aos princípios de governo, pois não fazemos nada melhor do que o que fazemos livremente, seguindo nosso gênio natural. Se se der um espírito de pedantismo a uma nação naturalmente alegre, o Estado não ganhará nada com isso, nem por dentro nem por fora. Deixem-no fazer as coisas frívolas seriamente, e alegremente as coisas sérias” (MONTESQUIEU, 2005, p. 317).

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vando à equidade das doses de tempo, validade e propriedade na aplicação dessas leis e real necessidade no ingresso de um processo judicial que poderia ser contornado pela mediação dos conflitos, perante um corpo legislador que atendesse no passo da dinâmica de mudanças pela qual a sociedade segue, tendo a memória e os valores morais imutáveis como a trilha para a caminhada em direção a um Sistema Judiciário eficaz. Por se abordar no texto assuntos que provocam reflexão, finalizar-se-á com a seguinte frase de Mahatma Gandhi: “As verdades diferentes na aparência são como inúmeras folhas que parecem diferentes e estão na mesma árvore”.

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QUEBRA DE PARADIGMAS: OUTRO MEIO DE ACESSO À JUSTIÇA

Josiane Rigon Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, com ênfase na linha de pesquisa “Políticas Públicas de Inclusão Social”. Possui Pós-Graduação em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Integrante do Grupo de Pesquisas: “Políticas Públicas no tratamento dos conflitos”, vinculado ao CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Prof. Theobaldo Spengler Neto. Advogada. Contato: [email protected]

Caroline Wüst Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, com ênfase na linha de pesquisa “Políticas Públicas de Inclusão Social”. Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI. Integrante do Grupo de Pesquisas: “Políticas Públicas no tratamento dos conflitos”, vinculado ao CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Prof. Theobaldo Spengler Neto. Advogada. Contato: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em constante mudança vive o mundo na atualidade e com isso surgem novos desafios. Um deles, podemos dizer que é a cultura do judiciário que resiste em aceitar os meios alternativos de resolução de conflitos, outro seria a ineficiência das esferas administrativas em contrabalancear os conflitos que acontecem em nossa sociedade, obrigando que eles sejam judicializados. O conflito é intrínseco ao ser humano e vital para a evolução e transformação da sociedade; ele constitui-se como a mola propulsora do desenvolvimento e mudança social, na medida em que não é visto apenas sob seus aspectos negativos, mas sim como um fenômeno social.

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Assim, a partir do momento em que o conflito é instaurado e o cidadão almeja a sua solução, diversos meios aparecem, dentre eles a jurisdição estatal, forma mais tradicional de resolver litígios, que se caracteriza pela decisão imposta emanada por um juiz que decide discricionariamente a lide. Devido a essa sobrecarga que o Judiciário recebe, culminando numa explosão de litigiosidade, é que se tem diagnosticado sua inaptidão para recepcionar e resolver com eficácia as lides. Isso gera ainda problemas relativos aos custos e à demora dos processos, ou seja, obstáculos econômicos, culturais e sociais que constituem verdadeiras barreiras entre o cidadão que litiga em juízo e os procedimentos predispostos. O Estado deixa, então, de contribuir para a preservação da paz social e eliminação do conflito, pois a imposição de uma decisão emanada pelo Poder Judiciário, juiz, não significa que o conflito será efetivamente resolvido. Assim, a ideia de buscar outros meios de acesso à Justiça vem a calhar com a concepção do diálogo, pois não somente por meio do litígio é que podemos resolver os conflitos. Devido a todas essas problemáticas e ineficiência do acesso à Justiça, meios diferenciados como a arbitragem, a mediação, a negociação e a conciliação aparecem como verdadeira quebra de paradigma, na medida em que visam o restabelecimento das relações sociais através da cultura da paz, do diálogo e não através da cultura do litígio. Desta forma, o presente trabalho é baseado na análise da sociedade atual sob o prisma da mudança de paradigmas que ocorre a partir do momento em que os atores sociais buscam resolver suas controvérsias sob uma nova óptica, ou seja, eles almejam não apenas pôr fim ao litígio, mas tratá-lo1 tendo como pressuposto o diá1

Utilizar-se-á a expressão “tratamento” em vez de “resolução” de conflitos, justamente por entender que os conflitos sociais não são “solucionados” pelo Judiciário no sentido de resolvê-los, suprimi-los, elucidá-los ou esclarecê-los. Isso porque “a supressão dos conflitos é relativamente rara. Assim como relativamente rara é a plena resolução dos conflitos, isto é, a eliminação das causas, das tensões, dos contrastes que os originam (quase por definição, um conflito social não pode ser “resolvido”)”. Por conseguinte, a expressão “tratamento” torna-se mais adequada enquanto ato ou efeito de tratar ou medida terapêutica de discutir o conflito buscando uma resposta satisfatória. (SPENGLER, 2010, p. 26)

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logo, o que faz com que a cultura de levar todo e qualquer conflito ao crivo do Poder Judiciário seja alterada. Para tanto, inicialmente, analisa-se o conflito na sociedade e seus desdobramentos, caracterizando-o como inerente ao ser humano. Após, verifica-se de que modo estão sendo buscados outros meios de acesso à Justiça, evidenciando a preocupação com a crise do Judiciário e a consequente necessidade de surgirem outros meios de tratamento de conflitos. E, finalmente, se estuda a cultura da paz e a cultura do litígio, demostrando a quebra de paradigmas evidente no mundo jurídico.

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O CONFLITO E SEUS DESDOBRAMENTOS

O conflito é salutar e está intimamente ligado à existência do ser humano, surgindo a partir do momento em que as pessoas passaram a conviver em grupos, ou seja, o conflito constitui-se como parte integrante da sociedade (ÁLVAREZ, 2003, p. 51). Não obstante a sociedade contemporânea caracterizar-se por sua heterogeneidade e pela constante divergência de interesses, o conflito ocorre quando o almejado equilíbrio social não é atingido (CALMON, 2007, p. 22), seja pela retirada de liberdade das pessoas, seja pela imposição de condutas predeterminadas (BITENCOURT; SPENGLER; TURATTI, 2012, p. 37-38). Por conseguinte, o conceito de conflito tem diversas acepções, todas com a mesma essência: a noção de choque, de divergência, seja de valores, ideologias ou palavras (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 45). Ele resulta, portanto, da discordância de interesses, tendo como estopim um fator pessoal, psicológico e social (CALMON, 2007, p. 22), ou seja, a palavra conflito consiste “em um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma espécie que manifestam, uns a respeito dos outros, uma intensão hostil, geralmente com relação a um direito” (SPENGLER, 2010, p. 242). Outrossim, considerando o conflito de acordo com seus aspectos sociológicos, é possível identificá-lo em três níveis: latente, emergente e manifesto. Os conflitos latentes se distinguem pelas tensões básicas ainda não desenvolvidas por completo e que não se converteram em um conflito polarizado, o que leva muitas pessoas

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a não terem consciência de sua existência ou de sua possibilidade. Os emergentes, por sua vez, são disputas em que as partes reconhecem que há uma divergência, sendo a maioria dos problemas evidentes, contudo, não há uma busca por sua solução. Enquanto os conflitos manifestos são aqueles em que as partes se comprometem a uma disputa dinâmica e podem ter começado a negociar ou já estar estabelecido o impasse (CALMON, 2007, p. 22-23). Constitui-se o conflito, então, como um fator social, porque possibilita alterações de natureza evolutiva e retroativa na estrutura e nos modos de convivência e relacionamentos entre as pessoas (SPENGLER, 2012, p. 110), ou seja, na realidade, “não são apenas fenômenos individuais, mas também, metaindividuais e sociais” (CALMON, 2007, p. 25) na medida em que se constituem “num espaço em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento produzindo, simultaneamente, uma transformação nas relações dele resultantes” (SPENGLER, 2012, p. 110). Assim, o conflito pode ser classificado, segundo Spengler (2012, p. 111), “como um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder no qual uma parte influencia e qualifica o movimento da outra, enquanto ambas são influenciadas e influenciam o meio no qual se encontram inseridas”. Sendo o conflito “apenas um dos muitos meios de interação e convívio dentro de uma mesma sociedade” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 52), ele não pode ser visto apenas sob seu aspecto negativo, haja vista que ele é a mola propulsora das modificações e transformações pelas quais passa a sociedade. Neste sentido, ainda que todo o conflito seja visto como um transtorno que acaba com a harmonia e equilíbrio do estado normal da sociedade, ele é de suma relevância, justamente porque obsta a estagnação social (SPENGLER, 2010, p. 245). Dessa forma, o caráter positivo do conflito aparece no exato momento em que ele enseja mudanças, estimula inovações, mas, acima de tudo, mantém a coesão social, sendo, por isso, o “meio de manter a vida social, de determinar seu futuro, facilitar a mobilidade e valorizar certas configurações ou formas sociais em detrimento de outras” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 53). Neste sentido:

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[...] assim como o universo precisa de “amor e ódio”, de forças de atração e de forças de repulsão para que tenha uma forma qualquer, também a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, da associação e de competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. Sociedades definidas, verdadeiras, não resultam apenas nas forças sociais positivas da inexistência de fatores negativos que possam atrapalhar. A sociedade, tal como a conhecemos, é o resultado de ambas as categorias de interação (positivas e negativas), que se manifestam desse modo como inteiramente positivas. (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 53)

Enfim, o conflito tem funções sociais de suma relevância, haja vista que proporciona mudanças na sociedade em que se encontra, além de promover o desenvolvimento individual. Ele “transforma os indivíduos, seja em sua relação um com o outro, ou na relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfiguradoras e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 54). O conflito é, por conseguinte, inevitável e importantíssimo, especialmente diante da sociedade em que está inserido, a moderna, a qual se apresenta como uma cultura de conflitos, pois não somente se verifica uma enorme e interminável quantidade de conflitos, como, igualmente, tem o hábito predominantemente de atribuir ao Estado a responsabilidade de proporcionar a sua solução (CALMON, 2007, p. 25). Logo, diversas formas existem para restabelecer a harmonia e a paz social, sendo a jurisdição estatal o meio ordinário para esse fim, contudo, não é o único meio idôneo para tratamento dos conflitos, como se verá adiante. A fim de tratar os conflitos que nascem na sociedade, o ente estatal utiliza-se do Poder Judiciário como sua força legítima. Dessa maneira, ao conceder ao Estado o poder de decidir os litígios, a sociedade fica paralisada, haja vista que acredita que o juiz é o único responsável por dizer quem está certo ou errado ou quem tem mais ou menos direitos (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 69). Surge então o que se chama de explosão de litigiosidade, isto é, o ingresso de uma enorme quantidade de demandas que são propostas junto ao Poder Judiciário para que este diga a última palavra com base na legislação vigente (SPENGLER, 2010, p. 285).

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Contudo, ao decidir os conflitos que lhe são alheios, o magistrado nem sempre consegue extingui-los totalmente; ele apenas dá a solução que lhe parece mais justa naquele momento, o que faz com que inúmeros litígios retornem ao Poder Judiciário como novas demandas. Assim, ao prolatar uma sentença tão somente com referência aos textos legais, o juiz não consegue corresponder ao sentimento de Justiça que envolve as partes da contenda, ao contrário, muitas vezes aquelas saem descontentes com a decisão proferida. Ainda, é imprescindível referir que a maior parte da população, os mais desfavorecidos economicamente, não conseguem acessar a Justiça de forma igualitária, seja por questões sociais, econômicas ou psicológicas, isto é, são verdadeiros entraves a esse direito constitucionalmente previsto que dificultam e até impedem o acesso à Justiça em sua concepção mais ampla. Como complementos ao sistema tradicional de tratar os conflitos, surgem possibilidades não jurisdicionais que se destacam e diferenciam por restabelecerem a comunicação até então interrompida entre as partes pelo conflito (SPENGLER, 2010, p. 292). Esses meios diferenciados almejam modificar a cultura do conflito em pacificação social. Dessa forma, para que se alcance a tão desejada pacificação social por meio de métodos complementares, necessária é a análise da crise da jurisdição, que é um dos maiores, senão o maior obstáculo de acesso à Justiça, o que se verá na sequência.

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A BUSCA POR OUTRO(S) MEIO(S) DE ACESSO À JUSTIÇA

Não parece tarefa fácil definir a expressão “acesso à Justiça”, porém, podemos dizer que está vastamente vinculada ao binômio possibilidade/viabilidade de acessar o Judiciário em total igualdade de condições. Cappelletti e Garth (1988, p. 11-12) mencionam que esta faculdade foi conquistada pelos cidadãos, como “o mais básico dos Direitos Humanos” e aduzem sobre a relevância do acesso à Justiça “uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação”.

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Deu-se início aos estudos aprofundados sobre o acesso à Justiça a partir do momento em que o Estado começou a enfraquecer e. com isso, desencadeou-se uma crise nas instituições e consequentemente na esfera jurisdicional. Assim, houve a obstrução do acesso à Justiça e o assoberbamento do Judiciário, bem como sua ineficiência e carência de recursos que possibilitassem um atendimento adequado e eficiente aos que dele necessitam. Devido a essa assertiva é que se deve discutir a tão aclamada crise da jurisdição a partir da crise do Estado, observando sua gradativa perda de soberania, sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios, de tomar as rédeas de seu destino, sua fragilidade nas esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, enfim, sua quase total perda na exclusividade de dizer e aplicar o Direito. Em decorrência da desterritorialização da produção e da transnacionalização dos mercados, o Judiciário, enquanto estrutura fortemente hierarquizada, fechada, orientada por uma lógica legal-racional, submisso à lei, se torna uma instituição que precisa enfrentar o desafio de alargar os limites de sua jurisdição, modernizar suas estruturas organizacionais e rever seus padrões funcionais para sobreviver como um poder autônomo e independente (SPENGLER; SPENGLER NETO, 2011, p. 63-64). Amaral (2009, p. 48) define a crise da jurisdição como sendo as restrições que o direito e o processo sofrem em virtude do formalismo exacerbado, das deficiências tecnológicas e do despreparo técnico dos servidores. Constata-se, todavia que o sistema jurisdicional tradicional está eivado de vícios. Muitas são as causas que impossibilitam e embaçam o efetivo acesso à Justiça, tornando o processo mais moroso. Entre elas, a precariedade com estrutura física e recursos tecnológicos adequados e inovadores, a carência de juízes e servidores, o demasiado aumento de litígios, o formalismo exagerado, e até mesmo a obsoleta letra da lei, às vezes, assim considerada. Paumgarten e Pinho (2012, p. 03) acrescentam que o problema da obstrução das vias de acesso à justiça aumenta a cada momento nos países da América Latina e na Europa, e “promove um distanciamento cada vez maior entre o Poder Judiciário e a população”. Existem fundamentos que explicam a justiça conciliativa. O primeiro, funcional, ocasionado pela crise que assola o Judiciário

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tendo em vista que é fomentada pela sua falta de acessibilidade, morosidade e custo. Busca-se então a distribuição da justiça, desobstruindo os tribunais, bem como almejando a autocomposição e a recuperação de controvérsias. Como segundo fundamento, o social, que pretende alcançar a pacificação social; e o terceiro, o fundamento político, que acolhe a participação popular na administração da justiça, havendo uma colaboração do corpo social. Assim, podemos dizer que eles são “coexistentes e complementares, a comporem o quadro harmonioso dos diversos fundamentos que levaram ao renascer do instituto” (GRINOVER, 2008, p. 2-4). Nesse sentido, Braga Neto (2008, p. 2) diz que “não há dúvida de que o renascer das vias conciliativas é devido, em grande parte, à crise da Justiça”. Referidas vias conciliativas não pretendem ir contra o Poder Judiciário, mas sim examinar outros métodos de resolver as controvérsias por meio de uma nova racionalidade de composição das partes (SPENGLER, 2010, p. 292). Morais e Spengler (2012, p. 106) quanto ao assunto relatam: Vivemos, por isso, um momento de desacomodação interna, no qual há um aumento extenso e intenso de reivindicações de acesso à Justiça, quantitativa e qualitativamente falando, em contraposição a instrumentos tradicionais notoriamente insuficientes e ineficientes para atender e satisfazer subjetiva e objetivamente o conjunto de demandas que lhe são propostas.

Não é de hoje que se discutem novos métodos complementares de solução de conflitos. Começando pela descentralização do serviço jurisdicional, tornando o acesso à Justiça mais acessível aos cidadãos. Outra forma seria a criação dos Juizados Especiais, imprescindível para um melhor andamento dos processos, permitindo que as pessoas carentes economicamente utilizassem o Judiciário. A justiça itinerante é outra demonstração de preocupação com as vias de acesso à prestação jurisdicional, pois é realizada fora dos fóruns e gabinetes dos magistrados, eis que se desloca o aparato judicial até o local onde o serviço será prestado (FARINELLI; CAMBI, 2011, p. 281-283). Azevedo (2011, p. 12; 18-23) divide em três períodos o movimento de acesso à Justiça: “I) mero acesso ao Poder Judiciário; II)

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acesso ao Poder Judiciário com resposta tempestiva; e III) acesso a uma solução efetiva para o conflito por meio de participação adequada do Estado”. Em relação ao acesso à solução efetiva do conflito por meio da participação adequada do Estado, podemos referir aqui três desafios. O primeiro, como sendo de atribuir ao ordenamento jurídico positivado e à jurisdição o campo de atuação no sistema público de resolução de disputas que lhes é devido; o segundo, atribuir ao conceito de conflito a possibilidade de este ser resolvido de forma construtiva, e que, por meio deste, relações sociais possam ser fortalecidas; e o terceiro e último, redefinir o papel do Poder Judiciário na sociedade como menos judicatório e mais harmonizador. Inicialmente, o movimento de acesso à Justiça buscava endereçar conflitos que ficavam sem solução em razão da falta de instrumentos processuais efetivos ou custos elevados, voltando-se a reduzir a denominada litigiosidade contida. Contudo, atualmente, a administração da justiça volta-se a melhor resolver disputas, afastando-se muitas vezes de fórmulas exclusivamente positivadas e incorporando métodos interdisciplinares a fim de atender não apenas àqueles interesses juridicamente tutelados, mas também a outros que possam auxiliar na sua função de pacificação social (AZEVEDO, 2011, p. 16). Por muito tempo, a heterecomposição e a autocomposição foram os instrumentos próprios das sociedades primitivas e tribais e o processo jurisdicional representava a maior conquista da civilização. No entanto, nos dias atuais, em busca de encurtar ou evitar o processo, ressurgem os interesses pelas vias alternativas (GRINOVER, 2008, p. 1). Por todos esses movimentos em torno das vias de acesso à Justiça, esta se tornou cada vez mais prejudicada, pois ocasionou a sua obstrução provocando o distanciamento entre Estado e cidadão. Possibilita-se, no entanto, o surgimento de uma nova ideia sobre o modo de acessar a Justiça. E assim, a sociedade contemporânea teve necessidade de criar métodos complementares capazes de tratar e dirimir conflitos adequadamente. Para Morais e Spengler (2012, p. 77), “tendem a se desenvolver procedimentos jurisdicionais alternativos, como a arbitragem, a mediação, a conciliação e a negociação, almejando alcançar celeridade, informalização e pragmaticidade”.

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Aqui estão esses novos meios informais que se perfectibilizam na condição de as partes manterem o controle do procedimento e de seus eventuais resultados. É uma forma diferente das que estamos acostumados, pois, na maioria, vemos o Poder Judiciário impondo decisões, e a figura do juiz serve para decidir quem é vencedor e ganhador da ação (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 112). A aplicação desses métodos de tratamento dos conflitos pode gerar muitos benefícios, entre eles, o descongestionamento dos tribunais, a redução dos custos e do tempo dos processos, bem como a estimulação da participação da comunidade na resolução dos conflitos (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 107). O problema que o Judiciário nos coloca ao tratar os conflitos é que, ao saná-los, observa o mesmo ritual, ou seja, são tratados como números, partes, requerente e requerido, fazendo com que a identidade e a individualidade se percam (BITENCOURT; SPENLGER, TARATTI, 2012, p. 42). Nesse contexto, a preocupação com o acesso à Justiça torna-se cada vez mais latente diante da crise que envolve o Judiciário e toda sua prestação jurisdicional. Tal fato abre espaço para o surgimento dos métodos complementares de resolução de conflitos, como a mediação, a conciliação, a negociação e a arbitragem. Portanto, conclui-se que a crise estatal, responsável pela crise do Judiciário, ocasionou uma série de rupturas sistêmicas que encontram como resolução o livre acesso à justiça. Somente dessa maneira poderemos fugir dos ritos do Judiciário que o torna inalcançável e inatingível aos olhos dos cidadãos, entre eles, por exemplo, o formalismo exagerado. Os possíveis resultados dessa prática poderão ser eficazes e eficientes. Dentre eles, podemos ressaltar o descongestionamento do Judiciário, um maior acesso à Justiça, bem como a pacificação social.

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QUEBRA DE PARADIGMAS: DA CULTURA DO LITÍGIO À CULTURA DA PAZ SOCIAL

Muitos fenômenos sociais ocorrem na sociedade influenciando diretamente as instituições judiciárias. Esses acontecimentos demarcam o nascimento de uma nova era do Direito, o surgimento da sociedade juridificada, a qual se caracteriza pelo empoderamento

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das instituições, pois os cidadãos procuram resolver seus conflitos litigiosamente. Essa concepção está se inovando na medida em que as pessoas estão começando a pensar em outros meios para buscar o acesso à Justiça, deixando de lado o pensamento de que a única forma de resolver demandas judiciais é por imposição estatal. Esse é um pensamento inovador, que quebra paradigmas, deixando de lado a cultura do litígio e emancipando a cultura do diálogo. Certo que ainda há um caminho a percorrer, pois o indivíduo teme quando o assunto é inovar. Ele resiste ao novo, ao desconhecido. Somos seres estereotipados. Diante da complexidade das relações sociais, ficou destruída a ilusão da segurança jurídica, tornando o reconhecimento da singularidade imprescindível para a pluralidade, pois o reconhecimento desta pressupõe a aceitação do outro como indivíduo, e para isto é preciso aceitar a diferença, ou seja, lidar com o novo. Ainda nos encontramos debruçados em nome dos velhos paradigmas (BITTENCOURT; SPENGLER; TARTORRI, 2012, p. 76). Tendo em vista que os indivíduos estão contextualmente interligados, quando inseridos na mesma sociedade são afetados, mesmo que direta ou indiretamente, pelos mesmos valores ou até esse já estão intrínsecos na consciência do sujeito, pois expressos no ordenamento jurídico constitucional. Essa seria a intersubjetividade das comunicações que acontecem no campo do Direito. Diante dessa perspectiva, isto é, do indivíduo interligado com o outro, é que encontramos uma direção para solucionar os problemas e não para terminar exclusivamente com eles (BITTENCOURT; SPENGLER; TARTORRI, 2012, p. 82). No campo do Direito, portanto, predomina a cultura do conflito, pois a única verdade que existe é a verdade do processo. Não importando mais nada além do mundo mítico idealizado pelos juristas. Em contrapartida, a mediação tem como base da cultura à vivência do indivíduo e não aquela encontrada nos livros, isto é, aquela que vê o mediador conectado com o mundo, com os excluídos e com os esquecidos (BITTENCOURT; SPENGLER; TARTORRI, 2012, p. 87). Diante desse contexto é que as instituições jurídicas podem e devem seguir em frente e favorecer mais espaços para as práticas

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institucionalizas ou não institucionalizadas, almejando colocar o indivíduo como agente ativo de seu próprio destino e não só expectador, pois ele pode se autorresponsabilizar pela solução dos seus problemas. A direção correta conduz ao ideal de segurança e Justiça, pois o objetivo é tratar o conflito na sua essência e não simplesmente aniquilá-lo (BITENCOURT, SPENGLER, TARTATTI; 2012, p. 8788). Pinho (2011) busca compreender a ideia de acesso à Justiça com os estudos sobre a Revolução Francesa que tinha como premissa o legalité, o qual não aceitava a intervenção do Estado nas disputas. A máxima dominante era o laissez faire – a qual presumia que todas as pessoas eram formalmente iguais e os mecanismos de acesso à Justiça eram criados sem preocupação com sua eficiência prática ou efetiva. Assim, o avanço do acesso à Justiça se deu em paralelo com a passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno, possibilitando a busca de meios eficazes de tutela para resolução dos conflitos pelos diferentes grupos sociais (PAUMGARTTEN; PINHO, 2012, p. 3). Como já tratado no tópico anterior deste artigo, a crise na prestação jurisdicional é cada vez mais notória. Além disso, Paumgartten e Pinho (2012, p. 4) referem que o aumento de demandas em lides individuais, cuja solução é através da dicotomia vencedorvencido, afeta também a composição justa dos conflitos e as tornam mais complexas. A cultura da pacificação é o elemento dos métodos de tratamento de conflitos, em específico, a mediação, “em oposição à cultura hoje existente em torno da necessidade de uma decisão judicial para que a lide possa ser resolvida” (PINHO, 2011, p. 230). Nesse sentido, Souza (2009, p. 69) esclarece: É inevitável reconhecer que os mecanismos institucionais tradicionalmente disponíveis para a resolução de conflitos não têm dado conta desses desafios, seja no aspecto quantitativo, quando se pensa no direito à razoável duração do processo, seja no qualitativo, quando se pensa a pacificação social que deve ser atingida com a resolução de um conflito, seja ainda no que diz respeito às necessidades de tornar o sistema acessível para todos os titulares de direitos, superando os di-

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ferentes obstáculos de ordem econômica e cultural que impedem a realização do acesso à justiça.

Assim, a “atividade do conciliador/mediador poderá, ainda, contribuir para uma mudança de perspectiva dos operadores do Direito, acostumados à obtenção de soluções apenas por meio de sentenças judiciais, incentivando a cultura da pacificação” (FABRETTI, 2008, p. 73). Aqui está então a verdadeira aplicação da mediação e conciliação no enfrentamento das controvérsias na sociedade, pois será a partir dessa atuação do indivíduo como ente social que conseguiremos mudar a mentalidade de que tudo que devemos resolver deva ser por intermédio do juiz, permitindo que ele defina o destino de nossas vidas, e passar a pensar no outro como semelhante e dialogar com ele de igual para igual, buscando resolver o problema da melhor forma possível para ambos. Vislumbra-se então uma das mais importantes características dessas vias, o diálogo entre as partes em conflito, sem que haja imposição de vontade do Estado. “Assim, são valiosos instrumentos de pacificação social, na medida em que não há ganhadores ou perdedores: as partes constroem a solução do conflito”. Juntamente com isso vem a conscientização pedagógica das partes no entendimento de que o melhor é evitar o processo (FARINELLI; CAMBI, 2011, p. 281-284-285). Constata-se ainda alguma resistência por parte de pequenos segmentos de operadores do Direito, no entanto, há também a aceitação e a conveniência da adoção dos métodos alternativos de pacificação, tendo em vista o pronto atendimento que permite dar a imensos contingentes populacionais, independentemente das suas escalas socioeconômicas. Práticas simplificadas e rápidas são utilizadas, nas quais o próprio interessado atua, com legitimidade plena, na construção e obtenção concreta da solução do conflito, de modo participativo, com a apresentação da proposta de composição, supervisionados pelo Judiciário, afastando, assim, a possibilidade/necessidade de interposição de recursos e outros expedientes procrastinatórios do efetivo cumprimento do acordo ajustado pelas partes, sob a supervisão atenta do agente parajudicial (BUZZI, 2011, p. 44).

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Podemos dizer então que está surgindo um conjunto de direitos que se afirma de dentro do Estado e não oposto a ele, pois já não se trata de limitar negativamente a ação estatal contra o indivíduo e sim de assegurar a sua participação na definição dos destinos da comunidade. Um dos fatores responsáveis por essas transformações é o aumento da demanda sobre o Judiciário, ocasionando a morosidade e maiores custos de processos. Isso tudo, gerando uma Justiça de difícil acesso às classes mais pobres da população. Todas essas evidências nos levam ao entendimento de que, se os indivíduos participarem da vida do Estado e atuarem como protagonistas nas suas decisões, deixaremos de ter um mundo de expectadores, de inativos. Seria então a quebra de paradigmas entre a visão de mundo composta por uma sociedade que resolvia seus conflitos ao amparo da imposição estatal, para uma sociedade que age através do diálogo em prol do tratamento de seus conflitos. Deixaremos, portanto, de lado a ideia de que deve haver intervenção jurisdicional em todas as demandas sociais. Passaremos à concepção de que um efetivo e adequado meio de tratamento de conflitos é mais eficiente quando as partes, diante de suas urgências, podem utilizá-lo de forma preventiva e eficaz. Lamentavelmente, nos dias de hoje ainda encontramos uma cultura de litígios na sociedade, na qual a Justiça só pode ser alcançada se vier de uma decisão proferida por um juiz togado. Diante desse contexto social é que os métodos complementares de tratamento de conflitos ganham espaço, vencendo preconceitos e quebrando paradigmas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conflito existe no mundo desde sempre, ou seja, desde que o homem resolveu agrupar-se e viver em sociedade. Ele é de suma relevância, pois promove mudanças e transformações sociais, não podendo ser visto e compreendido apenas como uma coisa ruim. Assim, havendo conflito e objetivando-se à sua solução, o ente estatal, Poder Judiciário, aparece como o meio ordinário para tal fim. Entretanto, diversos problemas, que se denominam de crise da jurisdição, impedem uma grande parte da população de acessá-lo em situação de igualdade.

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Dessa forma, meios extrajudiciais aparecem como instrumentos complementares à ação estatal, pois visam dar voz às partes a fim de que elas mesmas resolvam autônoma e pacificamente suas controvérsias, mediante o restabelecimento da comunicação interrompida. A mediação, a conciliação, a arbitragem e a negociação ensejam, pois, acima de tudo, modificar a cultura do litígio em cultura da paz social, quebrando, assim, o paradigma de que apenas o Poder Judiciário, na pessoa do juiz, tem o condão de solucionar litígios. Esses métodos complementares são de suma relevância, eis que não apenas põem fim à lide, mas impulsionam a participação do cidadão na sociedade, tratando de forma adequada e eficaz os conflitos.

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MEDIADORES X JULGADORES: FACES DE UMA MESMA MOEDA1

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Josiane Caleffi Estivalet Juíza de Direito em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Sricto Sensu – Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, Unisc. Contato: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No presente texto pretende-se demonstrar em que sentido as figuras do mediador e do julgador afastam-se e aproximam-se, a fim de compreender porque aquele que julga não pode ser o mesmo que media o conflito. Sabidamente o Poder Judiciário, enquanto prestador de serviços, tem como mister solucionar conflitos. Comprometido, portanto, com a promoção da paz social. Garapon (1997, p. 19), na obra Bem Julgar nos mostra a riqueza do simbolismo da vida jurídica em que estamos inseridos. Não há como separar o direito da sua ritualística. O simbolismo judiciário, como concebido no mundo ocidental, sofreu a influência dos mais diversos elementos culturais, especialmente mitológicos e bíblicos. O primeiro gesto da justiça não é intelectual nem moral, mas sim arquitectural e simbólico: delimitar um espaço sensível que mantenha à distância a indignação moral e a cólera pública, dedicar tempo a isso, estipular as regras do jogo, estabelecer um objectivo e instituir actores. 1

Artigo produzido no grupo de estudos de Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, coordenado pela professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler.

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Não se tem notícia de uma sociedade, por mais arcaica e primitiva que seja, que não tenha delimitado, reservado um espaço específico ou tido como sagrado, separado de todos os demais onde são realizadas as tarefas do quotidiano, para a concretização da ritualística da justiça. Nesse lugar reina uma ordem espaço-temporal própria. Nos primórdios, o local onde se fazia a justiça não era uma escolha dos homens, mas sim dos deuses. Em vários episódios bíblicos é mencionada a existência de árvores nesses espaços. Ex. Isaías (61:3) fala da justiça feita sob um carvalho (p. 28). O Livro dos Juízes menciona a justiça feita sob uma palmeira (15:4). Como sublinha Jean Carbonnier, na introdução à obra de Antoine Garapon (1997, p. 27), “A presença frequente das árvores no palco judiciário deve-se ao facto destas atraírem a graça divina e a transmitirem aos magistrados que se sentam à sua sombra”. Na Idade Média, os espaços da justiça dividiam-se em duas partes. A primeira, chamada de “baixo piso”, onde ficavam os calabouços, e o “piso superior”, destinado ao auditório. Com a organização da urbe na idade clássica, intensificou-se o processo de laicização e separou-se o espaço judiciário do espaço profano da cidade; ainda assim, fisicamente localizado no seu centro, como o concebemos atualmente. Acentuou-se o distanciamento interno. A venda que cobre os olhos da imagem da justiça passou a representar que ela não se deixará levar por jogos de imagens, encontrará a virtude e legitimidade apenas em si mesma. 2

O UNIVERSO DO JULGAR

De acordo com as exigências sociais, os órgãos judiciários, enquanto espaços judiciários, latu senso, ganharam contornos de especialização multifacetária. Como exemplo pode-se citar o Brasil, onde coexistem atualmente a Justiça Federal Comum, Justiça Federal do Trabalho, Justiça Estadual Comum, Justiça Eleitoral, Justiça Militar, Justiça Desportiva, Justiça Eclesiástica, dentre outras, todas representadas por seus órgãos de primeiro e segundo grau. Em tese, quanto mais precisa for a competência ou a atuação nesses espaços, mais aprimorada, segura e eficaz será a prestação jurisdicional.

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Bauman (2007, p. 7) explica que a sociedade moderna vem enfrentando desafios inéditos, que até então eram inimagináveis. Isso vem ocorrendo porque a modernidade passa, atualmente, da fase “sólida” para a “líquida”, na medida em que as organizações sociais não se mantêm na sua forma original por muito tempo, pois se decompõem e se dissolvem com mais rapidez do que se moldam e/ou reorganizam. Aponta ainda como fonte de transformação o iminente divórcio entre o poder e a política. Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, agora se afasta na direção de um espaço global (e, em muitos casos, extraterritorial) politicamente descontrolado, enquanto a política – a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma nação – é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local.

Ou seja, o nível de complexidade das relações sociais (agora de dimensões planetárias, segundo Bauman), interfere diretamente na forma como vemos o mundo e como nos inserimos nele, assim como na qualidade dos conflitos que surgem e, via de consequência, na prestação/decisão judicial. As mudanças paradigmáticas da sociedade, e, via de consequência dos conflitos e/ou das causas conflitivas, desafiam, no mais das vezes, as instituições públicas como um todo. Isso implica não apenas incremento do número de litígios, mas também transformação da qualidade/espécie dos que são trazidos ao Estado-Juiz. O Judiciário é chamado para intervir em relações de conflito que, ou não existiam ou, se existiam, não exigiam a sua tutela. E mais, suas decisões também ultrapassam as dimensões locais até então conhecidas. Todas as relações passam a ocupar o espaço global, passam a ter dimensões planetárias. Sen (2013, p. 9) observa: O que nos move, com muita sensatez, não é a compreensão de que o mundo é privado de uma justiça completa – coisa que poucos de nós esperamos – mas a de que à nossa volta existem injustiças claramente remediáveis que queremos eliminar.

Afinal,

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É correto pressupor que os parisienses não teriam tomado de assalto a Bastilha, que Gandhi não teria desafiado o império onde o sol costumava não se pôr, que Martin Luther King não teria combatido a supremacia branca na “terra dos homens livres e lar dos bravos”, não fosse seu senso das injustiças manifestas que poderiam ser vencidas. Eles não estavam tentando alcançar um mundo perfeitamente justo (mesmo que não houvesse nenhum acordo sobre como seria tal mundo”, mas o que queriam era remover claras injustiças até onde pudessem. (SEN, 2011, p. 10)

Assim, a decisão judicial, enquanto ferramenta de remoção de injustiças, vem inspirando reflexões jurídico-filosóficas permanentes. Jean Carbonnier, na introdução à obra de Antoine Garapon (1997), revela o que se passa quando gangsters decidem fazer sua própria justiça. Reproduzem, mesmo que de forma inconsciente, a dinâmica de um tribunal. Habituamo-nos a ver a cena nos milhares de filmes que abordam o tema: Instalam-se em grupos de três, cinco, sete, mas nunca de quatro, ligeiramente erguidos atrás de uma mesa, escondem as pernas, abotoam o colarinho, fecham o semblante, colocam o acusado de pé a uma distância respeitosa e interpelam-no com a gravidade mais solene. De tão impacientes que são, adivinham por instinto que julgar não é a mesma coisa que assassinar. (p. 14)

Então, o que é julgar? Certamente não se resume à tarefa de adequar a norma jurídica ao caso concreto. Para Hart2, o Direito é um sistema de normas. Na sua concepção, Assim como os jogos deixariam de existir se os árbitros tivessem a liberdade de aplicar as regras ou não, o sistema jurídico deixaria de existir, caso os juízes pudessem fazer um jogo “ao arbítrio do mercador”. Ocorre que existem situações que não são regulamentadas juridicamente, oportunidade em que

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H. L. A. Hart, The Concept of Law.

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os juízes atuam como legisladores, criando normas. (apud POSNER, 2012, p. 159)

Em trabalho publicado por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2009, p. 93), Ainda, segundo Hart (1961, apud OLIVEIRA, 2009, p. 93), além de o Direito possuir uma linguagem própria, as suas regras dividem-se em “regras primárias e secundárias que se diferenciam das demais regras sociais com base num critério último de validade, a regra de reconhecimento, convencionalmente pressuposta por uma comunidade jurídica específica”. Dworkin (1999) entende que o direito não compreende apenas normas estabelecidas por assembleias legislativas e outras autoridades promulgadoras de normas jurídicas formais, mas também princípios. Dentre eles destacam-se os princípios morais. Para ele, o Direito é embebido de teoria moral. Ou seja, “Os juízes têm o dever de ser filósofos morais”. Desenvolveu-se a ideia de que sempre haverá uma resposta correta (a melhor possível), pois o Direito deve ser visto como integridade, que parte de uma concepção de sequencialidade, ou seja, ele pede aos juízes que continuem interpretando tudo o que já foi feito, com acréscimo ou continuidade das interpretações ainda mais detalhadas, com o “espírito mais voltado para o desafio interpretativo especial que se coloca perante os juízes e as outras pessoas que devem dizer o que é o direito” (POSNER, 2012, p. 273), opondo-se às concepções de que o Direito é uma mera aplicação de convenções (regras) sociais fixas, ajustadas no passado, voltadas para o futuro. A integridade se vale da história e, para Dworkin (2003), a interpretação das afirmações jurídicas não é estanque, volta-se para o passado e o futuro, quando o enfoque contemporâneo assim determinar, pois estão em contínuo processo de desenvolvimento. Assim, não há como exigir que os juízes tentem entender que aplicam a lei em decorrência daquilo que a originou, séculos antes. Dentre desse contexto, de que a autoria do Direito como integridade não é única, mas sim múltipla, Dworkin (1997) traz a ideia de “romance em cadeia”, o ato de julgar em analogia a prática literária, sendo que as decisões passadas equivalem aos capítulos já escritos pelos romancistas. Cada capítulo será escrito em sequên-

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cia, buscando o autor a melhor forma de desenvolvimento da história. Parte do pressuposto que cada romancista vai tentar fazer uma obra da melhor qualidade possível, como se fosse possível atribuí-la a um único autor. Segundo Dworkin (1997), os juízes são ‘igualmente autores e críticos’, pois lhes é permitido que façam acréscimos àquilo que interpretam dentro da ideia de o fazerem da melhor forma possível, como o Juiz Hércules o faria. Oliveira (2008, p. 23) explica: Para apresentar a tese da única resposta correta, Dworkin cria inicialmente um juiz imaginário, o juiz Hércules, dotado de capacidade e sensibilidade sobre-humanas de resgatar principiologicamente toda a história institucional do Direito, considerando adequadamente as pretensões jurídicas levantadas nos casos concretos que lhe são submetidos à apreciação.

A tese da única resposta não significa que Dworkin espera que qualquer juiz alcance a mesma resposta. A tese da única resposta é, sobretudo, uma questão de postura ou atitude, definidas como interpretativas e autoreflexivas, críticas, construtivas e fraternas em face do Direito como integridade, dos direitos individuais compreendidos como trunfos na discussão política e do exercício da jurisdição por esse exigida; uma questão que, para Dworkin, não é metafísica, mas moral e jurídica. (OLIVEIRA, 2008, p. 21)

Sabe Dworkin que nem todos os juízes atuarão da forma reflexiva e consciente segundo o modelo Hércules, pois estão sujeitos a limitações que diferenciam a sua atuação da do mediador. Direito e Literatura apresentam-se diferentes em vários aspectos, já que o primeiro produz pessoas, o segundo, personagens. O Direito é o mesmo para todos e apresenta uma linguagem racional; a Literatura conta as peculiaridades de cada história, apresentando uma linguagem de fantasia. Mas de que modo o estudo da Literatura pode contribuir para o Direito? François Ost (1999) afirma que há uma estreita relação entre ambos ao apontar a necessidade de se “contar o Direito”, de “narrar” seus fatos à moda literária. Importa referir, nesse particular, que a narrativa é uma

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arte popular que maneja crença comum sobre a cultura das pessoas e do seu mundo. Ocorre que os fatos são narrados para o juiz, por meio de um terceiro, qual seja, do advogado, e não diretamente pelos litigantes, partes, sujeitos da relação/conflito a ser enfrentado. E o local onde essa narração do direito acontece, ou onde ela é captada, ouvida, pelo julgador é, via de regra, dentro dos limites físicos dos foros, dos tribunais, dos palácios da justiça. Com relação aos limites físicos onde acontece a cena judiciária, Garapon (1997, p. 47-48) explica: O palácio da justiça apresenta-se por vezes esmagador, isto por força da sua monumentalidade. E, no entanto, o seu segredo será talvez a sua fragilidade. Ele só existe devido à vida que se lhe dá. Sem os juízes e os advogados, sem essas pequenas profissões, sem a densidade emocional, sem a concentração de angústias e por vezes de alegria, sem a competição pela notoriedade, pelo avanço ou pelo sucesso, sem as pessoas apressadas, inquietas ou ociosas, o palácio nada seria. Instituído pelo nosso respeito, restitui-nos generosamente a nossa dádiva, reiterando os valores da nossa democracia, conservando a nossa memória e organizando as nossas deliberações. Dá forma à gestação permanente da nossa democracia. O palácio da justiça torna-se um ponto de referência para a nossa sociedade que, diz-se, carece de sentido. A sua virtude fundamental é existir.

Quando se abrem as portas dos foros, todos que lá ingressam são formalmente iguais. Passam a assumir diferentes papéis na medida em que vão sendo identificados, sejam juízes, advogados, testemunhas, partes, jurados. A ninguém é assegurada a indiferença. Parafraseando Oscar Motomura (apud MALDONADO, 2008, p. 55), na visão sistêmica, somos um organismo vivo, “com componentes interdependentes (e não peças inanimadas de um grande mecanismo), fazendo parte de um todo maior”.

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O UNIVERSO DO MEDIAR

A mediação que pode acontecer dentro dos limites físicos dos foros, dos tribunais, dos palácios da justiça se caracteriza por ser,

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num sentido amplo, para Mathilde Neder (1997) citada por Cezar-Ferreira (2007, p. 159), [...] um processo, frequentemente formal, pelo qual um terceiro imparcial, o mediador, busca facilitar às partes que se opõem o confronto de seus pontos de vista, de modo a que possam compreender melhor as respectivas pretensões ou necessidades, possibilitando mudanças direcionadas à dissolução do conflito interpessoal.

Morais e Spengler (2008, p. 133) falam de mediação como [...] espécie do gênero justiça consensual, [que] poderia ser definida como uma forma ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal. Trata-se de um processo no qual uma terceira pessoa – o mediador – auxilia os participantes na resolução de uma disputa. O acordo final trata o problema com uma proposta mutuamente aceitável e será estruturado de modo a manter a continuidade das relações das pessoas envolvidas no conflito.3

Mais adiante, mostram a consistência do instituto: Com o auxílio do mediador, os envolvidos buscarão compreender as fraquezas e fortalezas do seu problema, a fim de tratar o conflito de forma satisfatória. Na mediação, por constituir um mecanismo consensual, as partes apropriam-se do poder de gerir seus conflitos, diferentemente da Jurisdição estatal, na qual este poder é delegado aos profissionais do direito, com preponderância àqueles investidos das funções jurisdicionais. (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 134)

Com o objetivo de restabelecer a comunicação, restaurar a harmonia e fazer ressurgir a tranquilidade, podem ser apontadas como principais características da mediação, na ótica dos autores mencionados (MORAIS; SPENGLER, 2008): a privacidade; a econo3

O termo “mediação” procede do latim mediare, que significa mediar, intervir, dividir ao meio. Derivada da palavra mediare também a expressão mediatone e toda uma série de outras palavras (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 147).

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mia financeira e temporal; a oralidade; a reaproximação das partes; a autonomia das decisões e o equilíbrio das relações4. Warat (2004, p. 25) explica: O mediador deve usar toda a sua sabedoria para conseguir deixar o problema fervendo. Se deixar as partes mornas, será inútil o trabalho, pois elas ficarão novamente frias. Para ficar mediado é necessário chegar ao ponto de ebulição, à transformação alquímica.

Diferencia-se da forma tradicional, jurisdicional de solução dos conflitos, por ter um cariz democrático, que coloca a figura do mediador em patamar de igualdade àquele ocupado pelos envolvidos no dissenso5, coordenando uma mesa redonda, auxiliando na edificação da paz ou, ao menos, na construção do diálogo, no mais das vezes congestionado, quando não perdido de todo. Ou seja, os conflitantes têm a oportunidade de narrar, do seu ponto de vista, o conflito como um todo e não apenas seus aspectos jurídicos, como o fazem os operadores do direito. Enquanto que no processo judicial tradicional normalmente os envolvidos se portam com hostilidade crescente, ocupando papéis secundários, na medida em que os seus procuradores atuam como interlocutores, na mediação, há um resgate da comunicação direta, uma oportunidade de que se apropriem do conflito mediante a condução do mediador, que administra a situação trazida pelos mediandos sem emitir juízos de valor ou julgamentos. 4

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Justamente por isso a mediação surge como um espaço democrático, uma vez que trabalha com a figura do mediador que, em vez de se posicionar em local superior às partes, se encontra no meio delas, partilhando de um espaço comum participativo, voltado para a construção do consenso num pertencer comum (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 134-136, passim). O espaço de trabalho do mediador é perpassado por reflexões das relações de poder. Uma visão desse campo se baseia fundamentalmente num poder do tipo horizontal, entre iguais, um pacto entre iguais, entendido como uma primeira concordância entre os indivíduos agrupados em um campo comum. Qual a importância disso? A percepção de que não há uma relação entre semelhantes, permite que as decisões sejam obtidas em função de acordos, sendo estes vistos como representações de interesses de unanimidade e não mais da maioria, deixando ao princípio majoritário decisões que digam respeito a interesses mais gerais (CARDOSO, 2006, p. 67).

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Warat (2004, p. 16) acrescenta: As verdades de alguém são fruto de comunicações dignas, de ser a ser, entre pessoas despidas. Quando nós nos encontramos despidos, apresentamo-nos como realmente somos, não como desejamos aparentar ser. Termina o jogo das aparências. As máscaras são entregues à mesma fogueira onde se pretende queimar o ego.

O mediador, para desempenhar o seu papel, assim como o magistrado, precisa de capacitação técnica específica. Destacam-se as formas adequadas de comunicação com os envolvidos no litígio, dentre as quais a empatia. Para Zimermann (2002, p. 105), [...] a capacidade de empatia [...] resulta diretamente da possibilidade de uma pessoa poder se identificar, isto é, de se pôr no lugar do outro, e de sentir junto com ele, e não por ele. A textura da palavra empatia (em + patia) sugere claramente essa condição de poder sintonizar, de entrar dentro (em) do sofrimento (pathos) do outro. Empatia guarda, pois, uma significação profunda, e não deve ser confundida com simpatia, que se refere a uma atitude de superficialidade e que visa, sobretudo, a agradar e ser agradado, ou, mais fundamente, a de não decepcionar.

Marodin e Breitman (2002) comparam o mediador ao deus da mudança das lendas greco-romanas, Hermes (Mercúrio), pois ele propiciaria a passagem dos litigantes do estado caótico para o estado de capacidade de entendimento do conflito. Simboliza as habilidades que deverá ter o mediador, e destaca o dom da permuta e da comunicação nas negociações entre as partes em conflito. Quanto ao agir mais adequado do mediador, referem: Ele tentará reestruturar a possibilidade de escuta recíproca e direta, sem intermediários parciais. Nesse sentido, o mediador procurará tornar legítimas e qualificadas as pretensões de ambos. De forma equidistante e habilmente treinado, não se deixará envolver por nenhum, mantendo seus próprios juízos de valor e princípios. Isso significa que o Mediador não participa da cultura beligerante, antes facilita a solução da

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disputa, o que não significa resolver o conflito, ou mesmo chegar a um acordo. Ele alcança as ferramentas para as pessoas refletirem sobre o que está acontecendo. (MARODIN; BREITMAN, 2002, p. 477)

Os motivos e a importância de os fatos serem narrados, na mediação, não àquele que ocupa a cena judiciária na condição de julgador, mas sim diretamente ao mediador, que está em condições de igualdade em relação aos litigantes, podem ser compreendidos com a ajuda da reflexão de Arendt (2001, p. 67): Pois, embora o mundo comum seja o terreno comum a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares, e o lugar de um não pode coincidir com o de outro, da mesma forma como dois objetos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes.

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CONCLUSÃO Para Cappelletti (1988, p. 8), A expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.

Precisamos perceber o conflito não com lentes de aumento, mas sim como parte da vida humana, que pode ser bem administrado, produzir e oportunizar mudanças, melhora de relacionamentos, crescimento. Nem o magistrado, nem o mediador possuem uma fórmula precisa para pôr fim ao conflito. Maldonado (2008, p. 22) explica que Nossa visão de mundo pode entrar em conflito com a maneira de outras pessoas enxergarem a mesma situação. Visão de

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mundo refere-se a estruturas que contêm nossos valores, crenças e suposições, e que influenciam nossa identidade (a maneira como nos vemos); a partir daí, construímos os significados de nossas vidas e relacionamento. A solução eficaz para os conflitos precisa levar em conta essas diferenças, sejam elas conscientes ou não.

Julgadores e mediadores possuem as suas visões de mundo, valores, crenças e suposições que certamente não coincidem àqueles dos litigantes ou mediandos. Porém, todos são igualmente importantes para a construção de novos caminhos a partir da clareza de comunicação, respeito mútuo e harmonização das suas diferenças. A sociedade reivindica um Judiciário dinâmico, eficiente, ágil, confiável, afirmativo e sensível às transformações sociais. Para isso, acreditamos, é necessário que aconteça uma mudança de paradigma na administração dos conflitos. O olhar deve ser dirigido às soluções e alternativas disponíveis e não a procurar descobrir com quem está a razão. Concordamos com Maldonado (2008, p. 50) quando afirma: No modelo atual, compatível com a noção de ‘bom conflito’, poder é a capacidade de gerar soluções em colaboração: meu poder aumenta na medida em que o poder dos outros aumenta também. Considera-se que, no mundo globalizado, os vencedores serão os que têm mais capacidade de colaborar. Isso é muito claro no ambiente de trabalho: na organização piramidal, a hierarquia é mais rígida, favorecendo o exercício do ‘poder sobre’; por outro lado, na organização em rede, não há um chefe, apenas um fomentador que conduz o processo em alguns momentos, criando uma horizontalidade em que predomina o ‘poder com’.

Oportunizando às partes que se submetam à mediação, poder-se-á ter uma visão holística do todo sistêmico, que levará ao enfrentamento do conflito dentro da sua complexidade. Assim, cada um de nós, operadores do Direito, magistrados, advogados, mediadores, somos responsáveis, dentro das nossas áreas de influência, por reverter o impacto e o estrago que o conflito gera aos indivíduos e à sociedade como um todo.

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Bauman (2006, p. 44) explica que: Cada evento que conhecemos ou de que ficamos sabendo – exceto a morte – tem um passado assim como um futuro. Cada um deles – exceto a morte – traz a promessa escrita em tinta indelével, ainda que em letras mínimas, de que a trama ‘continua no próximo capítulo’. A morte traz apenas uma legenda: lasciate ogni speranza (embora a ideia de Dante Alighieri de gravar nos portões do inferno essa inapelável sentença final não fosse realmente legítima, já que todo tipo de coisa continuava acontecendo depois de se atravessarem esses portões... depois do aviso: “Abandonai toda esperança”). Só a morte significa que nada acontecerá daqui por diante, nada acontecerá com você, ou seja: nada que você possa ver, ouvir, tocar, cheirar, usufruir ou lamentar. É por essa razão que a morte tende a permanecer incompreensível para os vivos. Com efeito, quando se trata de traçar um limite verdadeiramente intransponível à imaginação humana, a morte não tem concorrente.

O futuro da jurisdição, assim como da mediação, depende de novas aprendizagens, novas habilidades, novas formas de comunicação a serem desenvolvidas. Tão importante quanto o acesso à justiça ou o ingresso no Judiciário é forma como nele se permanece e, acima de tudo, como dele se sai. Por isso a importância de aprofundarmos nosso conhecimento sobre a nossa matéria-prima, por excelência, o conflito, especialmente para que possamos abandonar a cultura burocrática, especializada em justificar tudo o que não funciona bem. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Forense Universitária, 2001. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da Subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1984. BARRETTO, Vicente de Paulo. Dworkin, Ronaldo. In: MENDONÇA, Paulo Roberto (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito, São Leopoldo/Rio de Janeiro: Unisinos/Renovar, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA POLÍTICA PÚBLICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL NOS CASOS DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR

Marli Marlene Moraes da Costa Pós-doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha, com bolsa CAPES. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - na Universidade de Santa Cruz do Sul - Unisc, Coordenadora do Grupo de Estudos “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, da Unisc. Professora da Graduação em Direito na FEMA - Fundação Educacional Machado de Assis de Santa Rosa. Psicóloga com especialização em terapia familiar. Coordenadora dos Projetos de Pesquisa: “O Direito à Profissionalização e as Políticas Públicas da Juventude na Agenda Pública: desafios e alternativas para a inserção dos jovens no mercado de trabalho - um estudo no município de Santa Cruz do Sul - RS.” e “O Direito Vai à Escola: Consumo X Educação para cidadania de crianças e adolescentes na rede escolar do ensino fundamental”. Contato: [email protected]

Rosane Teresinha Carvalho Porto Doutoranda e Mestre em Direito, área de concentração: Políticas Públicas de Inclusão Social e Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Professora de Direito Civil e de Direito da Infância e da Juventude. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, coordenado pela professora Pós-Drª Marli M. M. da Costa. Coordenou o projeto financiado pelo Papeds: “O Direito vai à escola: Consumo X Educação para cidadania de crianças e adolescentes na rede escolar do ensino fundamental”. Contato: [email protected]

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NOTAS INTRODUTÓRIAS

Atualmente tem-se trabalhado com caminhos alternativos para o enfrentamento de conflitos que não exclusivamente o jurisdicional ou o tradicional, que se assenta no rito ordinário do Judiciário, mas em outras possibilidades de acesso à justiça, por exemplo: a Justiça Restaurativa. Essa alternativa de política tratamento conflitual, realizada na área da Infância e da Juventude, tem sua gênese na justiça criminal, mas seu enfoque não se restringe a isso, pois,

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além de casos que envolvem o ato infracional, também se tem trabalhado no Juizado da Infância e da Juventude de Caxias do Sul com os casos de destituição de poder familiar. Essa lógica é bastante inovadora e interessante para a criança, que acima de tudo precisa ter assegurado o direito a convivência familiar e comunitária. Logo, antes de romper definitivamente os vínculos com a família biológica ou natural, o juiz precisa certificar-se de que realmente está tomando a decisão certa em prol da criança. Por isso, a aplicação da justiça restaurativa nesse contexto se dá por meio dos círculos familiares, círculos de diálogo ou de paz, em que a família é trabalhada separadamente e depois a criança, de modo a verificar se realmente os pais têm condições de exercer o poder familiar, e se a criança, ao ser escutada, deixa claro seu interesse e desejo de retorno ao lar. Nesse ínterim e pelos avanços das práticas restaurativas nos Juizados da Infância e da Juventude de Porto Alegre/RS e Caxias do Sul/RS, que não mais consideram a Justiça Restaurativa um mero projeto ou um movimento, mas sim uma política pública de pacificação social, consolidada com a união de esforços da sociedade civil, com o município e com o Judiciário. Por isso, neste trabalho, sem a pretensão de esgotar o assunto, dar-se-á uma visão geral sobre a Justiça Restaurativa, os círculos de paz e a comunicação não violenta (CNV) como métodos utilizados nas práticas restaurativas, depois um enfoque dessa política pública no âmbito do município de Caxias do Sul, e por último, tratar-se-á do poder familiar e do procedimento de destituição familiar dentro dessa perspectiva. É o que prossegue.

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ENFOQUES GERAIS A RESPEITO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Com a aprovação da Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012 – SINASE (Sistema Nacional de Atendimento socioeducativo), deu-se a recente introdução dos conceitos essenciais da Justiça Restaurativa no seu artigo 35. Essa normatização é positiva, contudo não basta. Fazem-se necessários ainda “processos e sanções mais flexíveis, intervenções interprofissionais, menos automatismo, maior disponibilidade para a escuta das necessidades dos envolvidos pelo

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dano ocasionado pelo crime e mais humanidade no trato com os infratores e principalmente habilidade e agilidade na articulação de redes” (ZEHR, 2012, p. 09). A Justiça Restaurativa é outra maneira de se enxergar que “o sistema institucional de justiça não é senão reflexo de um padrão cultural, historicamente consensual, pautado pela crença na legitimidade do emprego da violência como instrumento compensatório das injustiças e na eficácia pedagógicas das estratégias punitivas” (ZEHR, 2012, p. 10). Por esse viés, para alguns, a Justiça Restaurativa é um processo de encontro, um método para lidar com o crime e a injustiça que inclui os interessados na decisão sobre o que efetivamente deve ser feito. Para outros, significa uma mudança na concepção de justiça, que se pretende ao ignorar o dano causado pelo delito privilegiar a reparação em detrimento da imposição de uma pena. Outros ainda entendem que se trata de um rol de valores centrados na cooperação e na resolução do conflito, forma de concepção reparativa. “Por fim, há quem diga que busca uma transformação nas estruturas da sociedade e na forma de interação entre os seres humanos e destes com o meio ambiente” (PALLAMOLLA, 2009, p. 59-60). Muito embora, a Justiça Restaurativa seja um movimento ainda novo e emergente, existe um crescente consenso internacional em relação a seus princípios, inclusive documentos da ONU e da União Europeia que validam e recomendam as práticas restaurativas para todos os países. Na Resolução 2000/12 (PINTO, 2005), de 24 de julho de 2000, do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a ONU divulga os Princípios Básicos para a Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal. Diga-se de passagem, nas sociedades ocidentais, a Justiça Restaurativa é implementada utilizando os modelos de tradições indígenas do Canadá, dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. A partir de 1989, “a Nova Zelândia fez da Justiça Restaurativa o centro de todo o seu sistema penal para a infância e a juventude” (ZEHR, 2012, p. 14). Embora o termo “Justiça Restaurativa” recepcione uma ampla gama de programas e práticas, no seu bojo ela é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série alternativa de perguntas paradigmáticas que, em última análise, oferece uma estrutura alternativa para se pensar nos danos (ZEHR, 2012, p. 15).

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Corrobora-se que a instituição de práticas restaurativas configura-se um novo olhar na esfera judiciária, nas relações familiares e comunitárias, abrindo um horizonte de participação democrática e de autonomia, ao construir espaços específicos que possibilitam o diálogo pacífico entre as partes envolvidas em um conflito. “Não raro, vítimas, ofensores e membros da comunidade sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às suas necessidades” (ZEHR, 2012, p.15). Muitas ideias equivocadas cotejam o termo Justiça Restaurativa e cada vez mais é fundamental definir aquilo que ela não é. A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação, esta é uma escolha que fica totalmente a cargo dos envolvidos; a Justiça Restaurativa não é mediação, pois em um conflito mediado se presume que as partes atuem num mesmo nível ético, geralmente com responsabilidades que deverão ser partilhadas. Ainda que o termo “mediação” tenha sido adotado desde o início dentro do campo das práticas restaurativas, ele vem sendo cada vez mais substituído por termos como “encontro” ou “diálogo” (ZEHR, 2012, p. 18-19). Considera-se ainda que a Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas em série, nem é um programa ou projeto específico. “É um convite ao diálogo e à experimentação e não necessariamente uma alternativa ao aprisionamento” (ZEHR, 2012, p. 21). Com relação à metodologia aplicada na Justiça Restaurativa, têm-se a prática dos círculos restaurativos e a Comunicação Não Violenta (CNV), cuja funcionalidade será abordada em seguida.

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OS PROCESSOS CIRCULARES E A COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA NAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS

Os encontros de Justiça Restaurativa podem ser desenvolvidos segundo diferentes metodologias, sendo recomendável um conjunto de alternativas metodológicas conforme o caso concreto. Para Kay Pranis (2010), [...] o processo do Círculo é um processo que se realiza através do contar histórias. Cada pessoa tem uma história, e cada

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história oferece uma lição. No Círculo as pessoas se aproximam umas das outras através da partilha de histórias significativas para elas.

Repensar nos processos circulares e na comunicação não violenta para resolução dos mais diversos conflitos é imaginar e labutar pela transformação cultural de uma comunidade que se volta para a cooperação e para o diálogo e refuta as relações individuais. É interessante a concepção de comunidade de Etzione (1999, p. 157) sob o enfoque do comunitarismo: a comunidade pode ser definida como um conjunto de relações carregadas de laços de afeto e uma cota de compromisso com valores compartilhados e a cultura moral. Reconhece que a comunidade é a boa sociedade, a qual fomenta tanto as virtudes sociais como os direitos individuais. É a maximização da ordem e da autonomia, um equilíbrio cuidadosamente mantido entre um e outro. Oportunamente, é sabido que os Círculos de Construção de Paz reúnem a antiga sabedoria comunitária e o valor contemporâneo do respeito pelos dons, necessidades e diferenças individuais num processo que: respeita a presença e a dignidade de cada participante; valoriza as contribuições do todos os participantes; salienta a conexão entre todas as coisas; oferece apoio para a expressão emocional e espiritual; dá voz igual para todos (PRANIS, 2010, p. 18-19). [...] nos Estados Unidos os Círculos de Construção de Paz foram introduzidos com a filosofia da justiça restaurativa, que inclui todos os envolvidos (as vítimas de um crime, os perpetradores, e a comunidade) num processo de compreensão dos danos e criação de estratégias para a reparação dos mesmos. (PRANIS, 2010, p. 21)

Os objetivos do Círculo incluem: desenvolver um sistema de apoio àqueles vitimados pelo crime, decidir a sentença a ser cumprida pelos ofensores, ajudá-los a cumprir as obrigações determinadas e fortalecer a comunidade a fim de evitar crimes futuros (PRANIS, 2010, p. 22). “Com relação ao significado do círculo, ele simboliza a liderança compartilhada, igualdade, conexão e inclusão.

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Também promove foco, responsabilidade e participação de todos” (PRANIS, 2010, p. 25). No Círculo, chega-se à conexão, momento de troca das histórias pessoais. Ali a experiência vivida é mais valiosa do que a troca de conselhos. Seus integrantes partilham experiências pessoais de alegria e dor, luta e conquista, vulnerabilidade e força, a fim de compreender a questão que se apresenta. Partem do pressuposto de que existe um desejo humano universal de estar ligado uns aos outros de forma positiva. Os valores do Círculo advêm desse impulso humano básico. Portanto, “valores que nutrem e promovem vínculos benéficos com os outros são o fundamento do Círculo” (PRANIS, 2010, p. 39). Evidencia-se aqui que a comunicação é o alicerce das relações interpessoais. Quando ocorre de forma violenta ou unilateral, fragiliza o Círculo, pois fica claro que não houve espaço para o diálogo, sendo assim, a linguagem pode ser lesiva aos relacionamentos (BOHN, 2005). Por conta disso, é importante frisar que, além dos círculos de construção de paz, o facilitador (responsável pelo encontro entre os envolvidos pelo dano) precisa adotar uma linguagem adequada e de conexão, de maneira que todos os envolvidos ou interessados no processo circular sejam escutados e compreendidos. Ao encontro disso, destaca-se o enfoque de Rosenberg (2006, p. 21): Enquanto estudava os fatores que afetam nossa capacidade de nos mantermos compassivos, fiquei impressionado com o papel crucial da linguagem e do uso das palavras. Desde então, identifiquei uma abordagem específica da comunicação – falar e ouvir – que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos e aos outros de maneira tal que permite que nossa compaixão natural floresça. Denomino essa abordagem de Comunicação Não-Violenta, usando o termo “não-violência” na mesma acepção que lhe atribuía Gandhi – referindo-se a nosso estado compassivo natural quando a violência houver se afastado do coração. Embora possamos não considerar “violenta” a maneira de falarmos, nossas palavras não raro induzem à mágoa e à dor, seja para os outros, seja para nós mesmos. Em algumas comunidades, o processo que estou descrevendo é conhecido como comunicação compassiva.

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Do mesmo modo, ao se utilizar a linguagem adequada para interagir com o outro, colocamo-nos em estado compassivo natural, sendo que a habilidade de manter tal estado depende primordialmente do uso que se faz das palavras, considerando que a violência nas interações humanas deriva, essencialmente, do uso inadequado da linguagem (ROSENBERG, 2006, p. 19). Sob esse viés, fundamental é o entendimento de Pelizzoli (s.d., online) sobre a comunicação não violenta: “A incapacidade para o diálogo, diz muito da incapacidade para ouvir. Por vezes, ouvir o outro e acolher é quase toda solução”. Sendo assim, a Comunicação Não Violenta é uma das técnicas do proceder a restauratividade, em que a experiência de ouvir e ser ouvido permite que as prováveis soluções sejam debatidas com flexibilidade (KONZEN, 2007, p. 86-87). Por conta dos ensinamentos de Barter, Cappellari e Maieron traduzem que o uso comunicação não violenta implica a troca informacional que ocorre entre pessoas, produzindo como resultado o aparecimento da harmonia, o entendimento, a solidariedade, a parceria e a compaixão. Com o aflorar de tais qualidades, os seres humanos são capazes de solucionar os seus conflitos, com base numa linguagem que não sentencia, nem pune, mas possibilita a união e, consequentemente, a conexão entre eles. Prossegue o autor explanando que o uso inadequado das palavras pode incitar o conflito. Em contraponto, a proposta da linguagem não violenta evidencia que os interlocutores ficam mais propensos a ouvir quando a pessoa fala dos sentimentos negativos que lhe perturbam, como a raiva e a irritação, ao invés de simplesmente expressá-la, fazendo uso de palavras iradas ou ações físicas violentas. Elas também se mostrarão ainda mais inclinadas a ouvir se forem relatados com sinceridade e clareza os sentimentos de mágoa, tristeza ou decepção, do que se estes fossem expressos mediante julgamentos e censuras a respeito de um comportamento reprovado (CAPPELLARI; MAIERON, 2009, p. 64). Uma compreensão mais apurada acerca do sentido da comunicação não violenta traz benefício a todos os envolvidos, consoante demonstra Rosenberg (2006, p. 23):

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À medida que a CNV substitui nossos velhos padrões de defesa, recuo ou ataque diante de julgamentos e críticas, vamos percebendo a nós e aos outros, assim como nossas intenções e relacionamentos, por um enfoque novo. A resistência, a postura defensiva e as reações violentas são minimizadas. Quando nos concentramos em tornar mais claro o que o outro está observando, sentindo e necessitando, em vez de diagnosticar e julgar, descobrimos a profundidade de nossa própria compaixão. Pela ênfase em escutar profundamente – a nós e aos outros –, a CNV promove o respeito, a atenção e a empatia e gera o mútuo desejo de nos entregarmos de coração. Embora eu me refira à CNV como “processo de comunicação” ou “linguagem da compaixão”, ela é mais que processo ou linguagem. Num nível mais profundo, ela é um lembrete permanente para mantermos nossa atenção concentrada lá onde é mais provável acharmos o que procuramos.

Desta forma, quando se prioriza o esclarecimento daquilo que se observa, sente e o que realmente se necessita, ao invés de emitir meras críticas, mitigam-se as reações de oposição e violência. Diante dessa atitude, o conflito se obscurece. Logo, o caminho do entendimento e da colaboração recíproca perpassa os quatro componentes do modelo de comunicação não violenta: Observação, Sentimento, Necessidade e Pedido (ROSENBERG, 2006, p. 25). Nessa ampla moldura, restam definidos os elementos básicos dessa proposição de linguagem, trazendo como pano de fundo o domínio da observação das ações e reações – pessoais e do outro. Tal atitude faz com que o indivíduo comece a ouvir e a se expressar de forma mais consciente e cuidadosa, o que, indubitavelmente promove relações saudáveis, na medida em que se avança para o estágio da identificação dos sentimentos e necessidades subjacentes às expressões. Por fim, consciente das necessidades que permeiam uma ação ou reação, a etapa do pedido reflete a importância da clareza na linguagem, vez que uma linguagem truncada ou agressiva prejudica as interações. Verifica-se, dessa forma, que no coração da comunicação não violenta está a dinâmica que dá fundamento à cooperação – nós seres humanos agimos para atender necessidades, princípios e valores básicos e universais. Cientes desta constatação, passa-se a enxergar a mensagem implícita nas palavras e ações dos outros, e

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de nós mesmos, independentemente de como são comunicadas. Assim, as críticas pessoais, rótulos e julgamentos, atos de violência física, verbal ou social são revelados como expressões trágicas de necessidades não atendidas (ROSENBERG, online, 2006). Compreende-se, pois, que as necessidades não acolhidas tendem a se transformar em potenciais gatilhos que precipitam conflitos, tendo em vista que o acúmulo de sentimentos negativos engendra julgamentos a respeito de si e do próximo que se manifestam de forma agressiva. De acordo com Rosenberg (2006, p. 38), quando tomados por tais emoções, nossa atenção se concentra em classificar, analisar e determinar níveis de erro, em vez de identificar o que nós e os outros necessitamos e não estamos obtendo. Aliado a esse entendimento, Barter (2009, online) declara que a dinâmica da CNV objetiva a tradução da linguagem violenta e opressora como a expressão trágica de uma necessidade não atendida, que se frustra. Trágica tanto por causa dos danos que causa, quanto pela pessoa que age dessa forma, porque a violência é um comportamento extremamente ineficaz de conseguir o que se quer. Há de se considerar que as bases do desenvolvimento da comunicação não violenta advêm da observação de que a crescente violência é a nítida representação de uma lógica de ações e relações divorciadas dos verdadeiros valores que deveriam nortear as relações humanas, suscitando ciclos de emoções dolorosas. Nesse espectro, Schuch (2008) sinaliza que o método da CNV é apresentado como facilitador de mudanças estruturais no modo de encarar e organizar as relações humanas. Trabalhado os processos circulares e o papel da comunicação não violenta para o desenvolvimento dialógico das práticas restaurativas, abordar-se-á sobre a Central das práticas restaurativas no município de Caxias do Sul.

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CENTRAL DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS: UM ESPAÇO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL

No município de Caxias do Sul, desenvolve-se, em parceria com o Juizado da Infância e da Juventude, o núcleo de Justiça Res-

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taurativa, constituído pela Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude e pela Central de Práticas Restaurativas Comunitárias, as quais oferecem atendimento inclusivo, qualificado, eficaz e concreto a diferentes públicos e tipos de casos judiciais e extrajudiciais, atuando de forma integrada e coerente entre si, por intermédio de um Núcleo Coordenador e com o conjunto da rede de instituições sociais caxienses (escolas, universidade de Caxias do Sul, Secretaria de Segurança Pública do município, guarda municipal, entre outros) por meio do Conselho Gestor. Com relação ao trabalho em âmbito local, reconhece-se na Justiça Restaurativa uma política pública transversal de pacificação social com enfoque no discurso, pela coesão e coerência na articulação com a rede no município para o enfrentamento dos conflitos sociais com o uso da linguagem e da comunicação (PARSONS, 2007, p. 74). No que tange à Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude, o enfoque inovador vai para os casos de atendimento a crianças em situação de destituição do poder familiar. Para fins de melhores esclarecimentos, quer-se discorrer primeiramente sobre o direito à convivência familiar e comunitária; em um segundo momento, sobre o poder familiar e a destituição desse instituto quando da violação de direitos da criança ou do adolescente pela omissão ou violência, como reza o artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90; e, por fim, a aplicabilidade dos círculos de diálogo ou de construção da paz, conforme definidos anteriormente, com crianças, em Caxias do Sul, pelo Juizado da Infância e da Juventude, nos casos cabíveis de destituição de poder familiar, combinando com o artigo 28 da legislação estatutária, que traz no seu bojo o direito de escuta e consentimento nos casos de adoção, o que é perfeitamente pertinente também nessas situações. Verifica-se no artigo 19 da legislação estatutária que a convivência familiar e comunitária é direito fundamental de toda criança e adolescente; logo, todos têm o direito de serem criados e educados no seio de sua família natural, e, somente em casos excepcionais, em família substituta. Entende-se como família natural aquela formada pelos pais e seus descendentes ou aquela conhecida como família monoparental, constituída por apenas um dos pais, como reconhece a Consti-

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tuição no seu artigo 226, § 3º, que inclusive menciona que a família natural tem preferência para a criação das crianças, salvo as exceções elencadas no artigo 19 do Estatuto (ELIAS, 1994, p. 17). É no meio familiar que a criança e o adolescente formarão o seu caráter e serão introduzidos na vida social. Estudos e pesquisas científicas (WEBER, 2004, p. 75) apontam que é fundamental os vínculos para o desenvolvimento psicossocial, por isso, outorga-se à família o exercício do poder familiar. Sendo assim, O poder familiar é instituto que reconhece e legitima o poder-dever dos pais de livremente conduzir e cuidar dos atos e da vida do filho, com a finalidade de encaminhá-lo para a maturidade e prepará-lo para o exercício pleno, livre e autônomo de sua capacidade de exercício. Isso tudo enquanto protegem e promovem os direitos de caráter material e imaterial do filho incapaz em decorrência da idade. (PEREIRA JUNIOR, 2011, p. 110)

Assevera-se ainda, que a exclusividade e irrenunciabilidade são notas do poder familiar. A exclusividade (assegurada pela lei, CC, art. 1.631) protege a liberdade dos pais no exercício legítimo do poder familiar, e, por sua vez, a irrenunciabilidade manifesta a categoria do dever que incide sobre eles. Com relação à irrenunciabilidade, convém rememorar que não é possível renunciar ao dever, senão ao direito (PEREIRA JUNIOR, 2011, p. 111). Nesse sentido, o poder familiar consiste em um conjunto de faculdades confiadas aos pais, com o objetivo de cumprir a proteção ao direito fundamental à convivência familiar e comunitária, garantindo o desenvolvimento integral dos filhos, do ponto de vista físico e psicológico. Tal poder é um dever dos pais, que deve ser exercido no interesse dos filhos. Por isso, o Estado passa a ser o legítimo fiscalizador de seu correto funcionamento, podendo suspender ou destituir qualquer um dos genitores de seus poderes, ou até mesmo ambos, se ocorrer o descumprimento de seus deveres, através de comportamentos que venham a prejudicar o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes. Assim, o procedimento para a perda ou suspensão do poder familiar não se dá de ofício,

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mas é impulsionado pelo juiz da infância e da juventude, caso os pais ou o responsável não estejam cumprindo seus deveres (DIAS, 2009, p. 389). Tanto a suspensão como a destituição do poder familiar são medidas aplicadas ao pai ou à mãe, quando não respeitarem os seus deveres, inerentes ao poder familiar. No entanto, é preciso salientar que o intuito maior é preservar os interesses dos infantes e não de penalizar os genitores. O importante mesmo é que tais sanções somente serão aplicadas quando sua mantença ameaçar ou violar os direitos da criança e do adolescente em situações de gravidade, tal que não se possam restabelecer os vínculos de proteção originais. Logo, quando existir a possibilidade de recomposição dos laços afetivos, torna-se preferível apenas a aplicação da suspensão (DIAS, 2009, p. 389). A suspensão é a medida menos grave neste contexto, estando sujeita à revisão. Uma vez superadas as razões que provocaram sua aplicação, ela pode ser cancelada, sempre que a convivência familiar atender ao melhor interesse do infante, ou ainda, é possível ser aplicada somente com relação a um filho ou a todos de uma família, como também pode o genitor perder somente o poder em relação aos atos que não estão sendo corretamente empregados, como no caso da má administração dos bens da criança e do adolescente. Em tal situação, os genitores só perderão o direito de administrar tais bens, permanecendo-lhes os demais poderes do cargo (DIAS, 2009, p. 389). A suspensão pode ocorrer nos seguintes casos: abuso de autoridade (CC, art. 1.637)1; abuso dos deveres inerentes aos genitores impostos no artigo 22 do ECA e no artigo 227 da CF/88 como: sustento, guarda, educação, vida, saúde, alimentação, lazer, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária. Existem ainda outros preceitos que buscam repreender a negligência, a violência, a discriminação, a opressão, a exploração, a crueldade contra os infantes, conforme artigo 5º do ECA. Seus direitos funda1

CC/2002, art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.

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mentais devem ser resguardados por seus genitores, pela família, pela sociedade, pela comunidade e pelo Estado, pois todos possuem a responsabilidade de assegurar a efetivação desses direitos, conforme artigo 4º do Estatuto. Cabe ainda mencionar que a falta de condições financeiras não pode ser considerada como descumprimento do poder familiar, logo, não poderá ser aplicada a suspensão sob esse argumento, conforme preceitua o artigo 23 do ECA. O genitor condenado por sentença transitada em julgado em virtude de qualquer tipo penal que tenha como cominação pena superior a dois anos também terá o poder familiar suspenso. Com relação à destituição do poder familiar, por óbvio, é a medida mais grave, pois o dever que foi infringido apresenta maior relevância, por isso sua imposição é imperativa, diferente da facultatividade da suspensão. O artigo 1.6352 do Código Civil de 2002 esclarece quando ocorrerá a extinção do poder familiar. Já o artigo 1.6383 do referido Código determina as situações em que a mãe ou o pai, ou ambos, perderão o direito do poder familiar judicialmente. Ressalte-se que apesar de o inciso I do artigo 1.638 falar em “castigar imoderadamente”, não quer dizer que o dispositivo autorize os pais a praticarem castigos moderados, pois há previsão maior no artigo 227 da Constituição Federal que veda qualquer tipo de violência contra a criança e o adolescente. E como já foi preceituado antes, caberá tanto ao Estado quanto à família, bem como à sociedade, zelarem pela não ocorrência de violência, discriminação, opressão, exploração, crueldade, devendo os agressores ser responsabilizados de acordo com a lei. É importante também destacar que o artigo 92 do Código Penal, que trata da situação em que o pai ou a mãe comete crime doloso contra o próprio filho, impõe que o crime deve ser punido, além da pena de reclusão, também com a perda do poder familiar. 2

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CC/2002, art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638. CC/2002, art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

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O Estatuto elenca ainda, como causas de suspensão ou destituição do poder familiar, o desatendimento injustificado ao dever de sustento, guarda e educação (art. 22) e o descumprimento das determinações judiciais atinentes à proteção da criança ou adolescente, conforme artigos 101, I a IV, e 129, I a VI. A destituição do poder familiar é medida extrema, aplicada apenas excepcionalmente, quando realmente não existir alternativa a ela. Mesmo assim, durante o processo, devem ser buscadas formas que possam evitar o rompimento das relações parentais e/ou restabelecer os vínculos, como a inclusão dos pais em programas de orientação, apoio e promoção social. Por conta disso da destituição do poder familiar, quando as crianças precisam ser retiradas do convívio familiar, a partir da Lei 12.010/09, passou-se a dar relevância ao acolhimento institucional e ao acolhimento familiar, sendo elas medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo isso possível, para colocação em família substituta. Segundo Rossato, Lépori e Cunha (2012, p. 155), a marca registrada do acolhimento familiar é que a criança e o adolescente estarão sob os cuidados imediatos de uma família denominada família acolhedora, que é previamente cadastrada no respectivo programa. Trata-se de vocacionada função para a qual se exige preparo especial e desprendimento, com o intuito de oferecer carinho e cuidados especiais ao assistido. Nessa medida protetiva, a criança e o adolescente não são recebidos como filhos, até porque não o são, tendo em vista que a situação instalada é provisória, existente tão somente para que, após determinado período, passada a situação de risco e suprido o déficit familiar, possam aquelas pessoas retornar ao seu grupo familiar de origem. Na referida lei incluiu-se também o § 2º do artigo 19 que disciplina sobre a permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional, que não se prolongará por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária. Esta medida veio para acabar com as internações prolongadas, ou seja, era comum a permanência da criança ou do adolescente em um acolhimento institucional até os 18 anos, quando atingia a maioridade. Inclusive, deve-se ressaltar que tanto no aco-

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lhimento institucional quando no acolhimento familiar a permanência da criança ou adolescente deverá ser reavaliada a cada seis meses por uma equipe interprofissional, e levada à autoridade judiciária para que decida se há possibilidade da reintegração familiar ou se o caso requer a colocação em família substituta. No Estatuto, portanto, tem-se o nascedouro das obrigações, fazendo surgir relações jurídicas entre crianças e adolescentes, de um lado, e família, comunidade e Poder Público, de outro. A intervenção estatal de orientação e apoio à família fica clara com a edição da Lei 12.010/09, que tem por finalidade manter a integridade da família natural, chegando a espraiar-lhe o conceito para abranger a família ampliada ou extensa (FONSECA, 2011, p. 21), o que não restringe a utilização dos métodos da justiça restaurativa em alguns casos. O parágrafo único do artigo 25 define que família extensa ou ampliada é aquela formada por parentes próximos que compõem o círculo de convivência da criança e do adolescente e que há uma afetividade. Por exemplo: as crianças que são criadas por avós, tios, irmãos mais velhos, etc. E ainda, acrescenta que essas crianças podem ser adotadas por integrantes de sua família, respeitando o artigo 42, § 1º (BARROS, 2010, p. 62). Pelo princípio do superior interesse da criança e da proteção da integral o Juizado da Infância e da Juventude de Caxias do Sul – RS, tem aplicado por meio da Central de práticas restaurativas os círculos familiares com a família que teve destituído o seu poder familiar e tem interesse em reaver os seus filhos, e, em separado, tem utilizado o Círculo da Paz com as crianças que passaram por um programa de acolhimento, observando nesse método restaurativo a técnica da comunicação não violenta. O objetivo de trabalhar de maneira dialógica com as famílias e com as crianças é para realmente verificar o real interesse dos envolvidos, e se a família tem condições de receber as crianças novamente. Mencionam-se aqui crianças, pois um dos casos relatados pela Central de Práticas Restaurativas fora o caso de cinco crianças que, ao final do Círculo de Paz realizado com os psicólogos, manifestaram-se contrários ao retorno para casa, ou a seus pais. Tal fato subsidiou significativamente o juiz para manter a destituição do poder familiar e encaminhar as crianças para adoção.

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É sabido que os pais recorreram junto à Defensoria, alegando nulidade do feito, ou seja, do emprego dos processos circulares. O caso está sendo julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Muito embora, os métodos nos processos circulares, pertinentes à Justiça Restaurativa, utilizados pela equipe interprofissional sejam novos para a realidade brasileira, é importante se valer deles, para que os envolvidos tenham clareza da situação em que se encontram, bem como o Juiz também seja munido de subsídios, de maneira a agir dentro da legalidade e, acima de tudo, reconhecer a(s) criança(s) como prioridade absoluta. Ainda dentro desse enfoque, tem-se que a modernização está caminhando para o processo do desenvolvimento humano, no qual o desenvolvimento socioeconômico produz mudanças culturais que tornam a autonomia, a democracia e por sua vez políticas públicas em que a Justiça Restaurativa está inserida ao contexto, cada vez mais prováveis, gerando um novo tipo de sociedade humanística propulsora da emancipação humana (INGLEHART; WELZEL, 2009, p. 18). 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe repisar que os trabalhos realizados pela Central de Práticas Restaurativas são inovadores e servem de exemplo para os demais espaços institucionais e comunitários que desejem aplicar as práticas restaurativas como política pública de pacificação de conflitos. Pode-se pensar na Justiça Restaurativa, a partir da experiência do Juizado da Infância e da Juventude de Caxias do Sul/RS como uma política pública, pois envolve os mais diversos segmentos da sociedade, que desejam consolidar no seu município um espaço de cultura de paz. A participação da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, da Universidade de Caxias do Sul-UCS, mais entidades da sociedade civil em parceria com o Poder Judiciário, para aplicar alternativas de solução de conflitos, judicial e extrajudicialmente, significa um caminho de busca e de cooperação para, que acima de tudo, desjudicializem conflitos, empoderando a comunidade e mantendo equilíbrio nas relações sociais, de maneira mais segura e saudável. A partir dessa perspectiva, podem-se abordar alguns conceitos sobre a Justiça Restaurativa, de maneira que todos são unâni-

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mes em reconhecer como sendo um processo de encontro, um método para lidar com o crime e a injustiça, que inclui os interessados na decisão sobre o que efetivamente deve ser feito. Por isso, o processo circular de Kay Pranis (2010) enquanto métodos de diálogo em combinação com a Comunicação Não Violenta promove o entendimento entre os envolvidos sobre as causas do conflito (autor, vítimas e a comunidade), ancoradas no princípio da cooperação. Por isso, a ênfase das intervenções restaurativas está focada sobre o resgate das relações afetadas pelo conflito. Deslocando-se o foco da culpa para a compreensão e o entendimento, priorizando a reflexão das controvérsias em busca de uma solução recompensadora e pacífica para o caso concreto, tomando como ponto de partida o conhecimento e o reconhecimento da situação de deu origem à violência, oportunizando que cada um possa falar e ser ouvido, com o objetivo de promover a compreensão mútua entre ambos, num processo centrado essencialmente na comunicação. REFERÊNCIAS BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do adolescente: Lei nº 8.069/1990. Salvador: JusPodivm, 2010. BARTER, Dominic. Entrevista. 2009. Disponível em: . Acesso em: mar. 2013. BOHN, David. Diálogos. Comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Athenas, 2005. CAPPELLARI, Jéferson Luis; MAIERON, Mara Denise Johann. O uso da comunicação não violenta na resolução de conflitos. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; FRIEDRICH, Dalvo Werner; SILVA, Gedeon Pinto da (Coords.). Justiça Restaurativa na práxis das polícias militares: uma análise sobre as políticas de segurança às vítimas em situação de violência. Curitiba: Multideia, 2009. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. São Paulo: Saraiva, 1994. ETZIONI, Amitai. La nueva regla de oro. Comunidad y moralidad en una sociedad democrática. Barcelona/Buenos Aires: Paidós, 1999. FONSECA, Antonio Cezar da. Direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Atlas, 2011. INGLEHART, Ronald; WELZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Trad. Hilda Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009.

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