ACESSO IGUALITÁRIO À SAÚDE NO BRASIL: ASPECTOS CRÍTICOS E DESAFIOS

July 15, 2017 | Autor: Edna Raquel Hogemann | Categoria: Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, Direitos Fundamentais Sociais
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ACESSO IGUALITÁRIO À SAÚDE NO BRASIL: ASPECTOS CRÍTICOS E DESAFIOS

Edna Raquel Hogemann



Tem como propósito esclarecer o que é reconhecido, na época presente brasileira, como embaraço no acesso igualitário à saúde, em contraste com a pujança dos dispositivos constitucionais que dispõe sobre o referido direito em sua conexão essencial com o princípio da dignidade da pessoa humana, concebido como o pilar axiológico básico do Estado Democrático de Direito, por meio da utilização de uma metodologia crítico-dialética que busca uma reflexão situada mais no âmbito das ciências sociais, como, aliás, devem ser investigados os fenômenos jurídicos/políticos/históricos, considerados em sua concretude. A autora se valeu, em sua pesquisa, de pronunciamentos importantes — em defesa do direito ao acesso igualitário à saúde e contra as posições restritivas ou omissivas sustentadas pela Administração — por parte dos tribunais superiores e, em especial, do Supremo Tribunal Federal. Por contributo final, a autora considera que ainda falta uma mais pujante jurisdição constitucional no sentido preciso de promover a concretização de direitos (sobretudo os fundamentais) por seu caráter marcadamente finalístico e social.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde – Acesso - Direitos Fundamentais
















EQUAL ACCESS TO HEALTH IN BRAZIL: CRITICAL ISSUES AND CHALLENGES


Aims to clarify what is recognized in the Brazilian this time as embarrassment in equal access to health, in contrast to the strength of the constitutional provisions which provides for such a right in their essential connection with the principle of human dignity, designed as the basic axiological pillar of democratic rule of law, through the use of a critical-dialectical methodology that seeks to reflect more situated in the social sciences, as indeed should be investigated legal / political / historical phenomena, considered in its concreteness. The author drew on his research of important pronouncements - in defense of the right to equal access to health and against restrictive or silent positions held by Management - by the superior courts and in particular the Supreme Court. By late contribution, the author believes that there is still a more vigorous constitutional jurisdiction in the need to promote the realization of rights (especially the key) for its markedly finalistic, and social sense.


KEYWORDS: Health - access-Democracy - Fundamental Rights




INTRODUÇÃO

O estudo apresentado buscou agregar atualidade e importância social, ainda que o tema já não seja mais novidade, pois trata da efetivação dos direitos fundamentais na sociedade contemporânea, já que se relaciona diretamente ao direito constitucional, trabalhando a temática da dignidade humana, através dos Direitos Fundamentais de cidadania, mais especificamente do direto social fundamental à saúde.
Entre os direitos de cidadania, os direitos sociais – entre eles o direito à saúde – têm características próprias que devem ser levadas em consideração nas propostas de mudanças da política social do Estado, como a Reforma Sanitária Brasileira. Tais características geram obrigações positivas para o Estado, têm caráter programático e sua efetivação depende de instrumentos concretos de tutela e proteção, pois seu desenvolvimento está intimamente ligado à ampliação do papel do Estado.
A noção de saúde como direito social esteve presente no projeto da reforma de forma apenas geral. Não consta de qualquer documento da constituição do SUS a noção de saúde como direito social, faltando especificamente definições da especificação dos direitos à saúde segundo as diferentes condições de vida dos cidadãos, além dos instrumentos de tutela do direito, inclusive o papel do Ministério Público, como ausentes os crimes de violação dos direitos à saúde e as respectivas punições relativas a esses crimes, na mesma medida que a extensão da titularidade das ações judiciais de defesa dos direitos a setores da sociedade.
Além de não constar do projeto original, a preocupação com o desenvolvimento dos direitos à saúde não está presente na agenda de implantação do Sistema Único de Saúde – SUS nem na pauta das últimas conferências nacionais de saúde, nem das deliberações do Conselho Nacional de Saúde.
A saúde, enquanto direito fundamental social, vincula diretamente o Estado e os particulares e incide nas relações jurídicas negociais, ou seja, inclusive nos contratos privados de saúde. Entretanto, nos posicionamos no sentido de que esta aplicação deverá se dar, ainda que direta e imediata, de forma proporcional, cabendo ao judiciário impedir a insuficiência ou o excesso. Há, neste sentido, uma parcela mínima, essencial, sem a qual o direito à saúde, assegurado na Constituição, não se efetiva.

DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Os direitos do homem, de preservação da vida, da liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, todavia, são mutáveis, suscetíveis de ampliação. Desde o marco inicial de proteção universal dos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, até os dias atuais, o reconhecimento do conteúdo de tais direitos se mantém em constante transformação e evolução. A atual constituição brasileira, no Art. 1°, inciso III consagra a dignidade humana como fundamento da ordem jurídica.
Como o objeto desses direitos constituídos modificou-se historicamente, ocorreu o que hoje se designa como dimensões de direitos fundamentais. O percurso teórico conceitual dessa evolução estabelece estreitas correlações entre as mudanças sociais e o nascimento de novos direitos, que emergiram na transição entre o "Estado" absolutista e o Estado constitucional. A progressiva recepção constitucional de direitos, liberdades e deveres culminaram na positivação dos direitos fundamentais.
Segundo Bobbio (1992:63) a evolução dos direitos fundamentais ocorreu essencialmente em dois sentidos: a) de universalização; b) de multiplicação. A universalidade estaria caracterizada pela inserção atual do homem como cidadão do mundo, a tão proclamada globalização, fenômeno social contemporâneo que transcende a individualidade, colocando o homem no contexto coletivo, num plano internacional ou global. O homem é membro direto da sociedade humana, na condição de sujeito de direitos universais, cidadão do mundo, ainda que no âmbito das suas relações internas seja cidadão de seu país. Tal evolução decorreu do aumento dos bens tutelados pelo direito, pelo reconhecimento de direitos a sujeitos diversos do homem; ou seja, pela ampliação de titulares reconhecidos, como os animais e, também, por que os homens foram considerados em relação a sua especificidade social, como grupos sociais necessitados de tutela específica, p. ex., idosos, religiosos, consumidores, entre outros. Partindo do pressuposto de que tiveram origem na "Igualdade" defendida pela Revolução Francesa, esses direitos buscam, primordialmente, regular as relações entre as classes sociais numa relação de poder. Os direitos sociais implicam postura ativa dos poderes públicos, colocando à disposição dos cidadãos prestações de natureza material e jurídica.
A proteção da dignidade humana compreende não somente a garantia das liberdades individuais, mas também os meios para sua efetividade, atribuir ao Estado o dever da promoção de uma sociedade mais justa. O art. 6º da CFRB/88 aponta os direitos sociais fundamentais, todos voltados à garantia de perfeitas condições de vida. Tais direitos visam, portanto, garantir: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Como fundamentais esses direitos objetivam minorar a desigualdade social, tornando a sociedade mais justa e, portanto, propiciando aos desvalidos melhores condições de vida; por isso, são os direitos sociais considerados medida de cidadania. O Estado Social de Direito através das constituições dirigentes, na última metade do Séc. XX, fruto das mobilizações sociais, passou por reflexões e transformações profundas, culminando no Estado Democrático de Direito, fundado no princípio da soberania popular. Em paralelo, chegou-se a um impasse do Estado Social, pois as expectativas criadas pelo Welfare State para realização da igualdade material, somada com a questão da reserva do possível e o aumento descrédito da constituição dirigente como documento dotado de força normativa, mostraram a necessidade de repensar o modelo social.

DO DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NO BRASIL

Até o final do século XIX, o Brasil não previu forma de atuação sistemática sobre a saúde da população; por isso, atuava, de forma eventual, em situações de epidemias. Somente no século seguinte, mais precisamente, na década de 1920, é que se tem notícia da primeira medida em nível nacional, para a criação do sistema de saúde pública. Decorre daí que somente a população abastada tinha acesso aos tratamentos médicos e odontológicos, financiados por recursos próprios.
Na Constituição de 1934, por consequência de características do momento histórico da época, que necessitava da utilização do trabalho assalariado, e, também, do movimento de 1930, e em harmonia com as novas leis de proteção ao trabalhador, privilegiou-se a assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, incluindo a saúde como direito subjetivo do trabalhador. No contexto dessa Carta Magna, a proteção social era um seguro, para o qual contribuíam, tanto o trabalhador, como o empregador e o próprio Estado. Criou-se então o Instituto da Previdência Social, que vinculou a assistência médica ao princípio do seguro social e colocou-a no mesmo plano de benefícios como as aposentadorias, pensões por invalidez, e similares, direcionando a assistência à saúde, também, para o nível individual.
A Constituição de 1937, muito embora outorgada no período ditatorial do Estado Novo, prevê uma série de direitos sociais e, em relação à saúde, como disposto em seu art. 16, inciso XXVII: "Compete privativamente à União: XXVII - normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança". Além do que, esta incluiu os riscos sociais, assistência médica ao trabalhador e à gestante, à velhice, à invalidez e os acidentes de trabalho e em relação à criança.
Na Carta de 1946, a proteção à saúde estava ligada ao trabalhador; todavia, previu-se a distribuição dos encargos na área da saúde entre esferas de governo, cabendo à União legislar sobre as normas gerais de defesa e proteção da saúde e, privativamente, sobre a saúde do trabalhador, higiene e segurança do local de trabalho, organizando o controle das endemias rurais, serviços de saúde dos portos, fiscalização do exercício profissional, e outros.
Em 1950, a promulgação da lei n°2.312 de 1954, que tratava das normas gerais de "Defesa e Proteção à Saúde" e, posteriormente, em 1961, o Código Nacional de Saúde que a regulamentou.
A Lei Orgânica Nacional de Saúde, (Lei 8080/1990) revogou a lei 2.312 e o Dec. 49.974. Complementarmente, no Brasil, verifica-se preocupação fundamental com o combate às doenças, por meio de campanhas públicas, autoritárias, sem apoio popular.
Posteriormente, a Constituição de 1946 assegurava aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Previa também uma serie de direitos trabalhistas. Ainda a Constituição de 1946 estabeleceu, como obrigação da União, defesa e promoção do direito à saúde, assim como do sistema previdenciário, conforme preconiza seu Art. 5º, inciso XV, alínea b, "Compete à União: XV - legislar sobre: b) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; e de regime penitenciário" e estabeleceu pela primeira vez um percentual mínimo para de aplicação de recursos a um direito social.
A Constituição de 1967 no seu art.150, "assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade", garantindo no Art. 158 mais uma vez os direitos trabalhistas. No que diz respeito à saúde a Constituição no seu Art. 8º, inciso XV, alínea b determina ser de competência de a União legislar sobre o tema, bem como, garantiu aos trabalhadores "assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva;", "previdência social os casos de doença, velhice, invalidez, morte seguro desemprego, seguro contra acidentes do trabalho e proteção à maternidade, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado;". Nesse contexto, o exercício do direito à assistência à saúde não abarcava o exercício da cidadania, eis que excluía o trabalhador sem carteira assinada; portanto não-contribuinte da Previdência Social.
Desde o final do século XIX, até o término dos anos sessenta do Século XX, o sistema de saúde brasileiro ocupou-se precipuamente com o controle das doenças através de campanhas de saúde pública. Todavia, a partir dos anos setenta a política de saúde do Brasil se caracterizou pela supremacia dos serviços médicos-hospitalares de caráter individual, regulados pelo Instituto de Previdência Social (INPS), consolidando-se o modelo brasileiro de seguro social e de prestação de serviços médicos curativos e individuais, em detrimento das ações de caráter coletivo, que ficaram a cargo do Ministério da Saúde e secretarias estaduais de saúde.
Em 1975, foi criado o Instituto Nacional de Saúde, que separou as ações de saúde pública das individuais. Criou-se o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), responsável exclusivamente pela atenção aos trabalhadores que possuíam carteira de trabalho. Os serviços de saúde destinados aos desempregados e residentes no interior eram de responsabilidade das secretarias estaduais de saúde e dos serviços públicos federais .
Em 1977, instituiu-se o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), Lei nº 6439/77, em que se dividiram as ações relativas à previdência e à assistência médica. Dessas providências, resultou o complexo previdenciário brasileiro, composto por três sistemas: o sistema próprio (rede de hospitais e unidades de saúde de propriedade da previdência social, além dos profissionais assalariados pelo Estado); o sistema contratado credenciado (sistema de pagamento por unidades de serviço) e o sistema contratado conveniado (sistema de pré-pagamento), que persiste até os dias atuais, ou seja, "privilegia-se a forma conveniada em detrimento da manutenção e otimização dos próprios serviços públicos" . Nos anos 1980, veiculou-se nova proposta de assistência básica da saúde, propondo a adoção de modelos assistenciais voltados à realidade social, econômica, cultural e ecológica, através da rede de serviços básicos de saúde, da qual emergiu o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV SAÚDE). Tal programa, todavia, nunca foi colocado em prática no Brasil. Em 1986, ocorreu a VII Conferência Nacional de Saúde (VII CNS), considerada o maior fórum de debates sobre a situação da saúde do Brasil, que trouxe a lume conceitos e propostas incorporadas à constituinte de 1988. O relatório da VII CNS, entre outros aspectos relevantes, afirma que "a saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas". A saúde é uma das condições necessárias à vida digna, Direito fundamental reconhecido no Art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas, ratificado pelo Brasil.
Com esse fundamento, a saúde aparece na Constituição Brasileira atual como direito de todos e dever do Estado, juntamente com muitas propostas debatidas na conferência, como a garantia da implantação do sistema único de saúde, concretizado na Lei de n°8080/90 que cria o Sistema Único de Saúde – SUS, complementada pela Lei de °n 8124/ 90. Tais leis dispõem sobre os princípios e diretrizes do novo sistema de saúde. Desde a década de 1980, o povo brasileiro tomou consciência do seu direito à saúde e, cada vez mais, tem exigido do governo brasileiro a proteção recuperação e promoção da saúde, como garantia do direito fundamental integrante à dignidade humana. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que proteja o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção prevista para a vida e integridade física. Evidentemente - ainda que a Constituição não o tenha referido expressamente - também os particulares não poderão ofender a saúde alheia, alegando não serem destinatários do direito à saúde. Basta atentar para o fato de que ofender a integridade física e moral de seus semelhantes constitui, em muitos casos, conduta punível na esfera criminal ou, pelo menos, cível.

O CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, OS DIREITOS À SAÚDE E O SUS
O CNS foi criado em 1937, com a finalidade de órgão de assessoramento ao antigo Ministério da Educação e Saúde, conjugado ao Conselho Nacional de Educação. Com o advento do Sistema Único de Saúde - SUS, Lei n.o 8.142/1990, ficou redefinido o papel do Conselho, por meio do artigo 1º, § 2º, a saber:
"O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo."
O caráter deliberativo do Conselho e sua efetividade definidos pelo art. 1º da Lei nº 8.142/1990, em certa medida podem ser arguidos, em razão de suas decisões necessitarem de homologação "pelo chefe do poder legalmente constituído", no caso o Ministro da Saúde, que também o preside, nos termos do art. 2º do Decreto no 99.438/1990. A despeito desta breve observação, não resta dúvidas a respeito da importância e relevância do Conselho em termos de formulação da política nacional de saúde.
Como já devidamente demarcado, a Constituição de 1988 e as Leis Orgânicas da Saúde consubstanciaram o perfil e as características do sistema de saúde pública. Na estrutura institucional do Sistema Único de Saúde (SUS), ao governo federal delegou-se as funções de financiamento e coordenação intergovernamental, ao passo que os municípios assumiram a responsabilidade pela gestão dos programas locais. A função a ser exercida pelos governos estaduais, embora enunciada de um modo vago no texto constitucional (art.23, parágrafo único), incidiu em dar suporte aos governos municipais.
Por outro vértice, é possível constatar que a centralização da autoridade sobre o financiamento e a coordenação do sistema em torno do governo federal é digna de registro, na medida em que: "[...] os governos locais são fortemente dependentes das regras e transferências da União para a implementação de suas políticas".
A ressaltar-se que, a começar do início dos anos de 1990, o Ministério da Saúde passou a exercer dupla função — a de primeira arena decisória de formulação da política nacional e de mais relevante ator dessa mesma arena.
As ditas regras de descentralização — em grande medida definidas pelas Normas Operacionais Básicas (NOBs), elaboradas pelo Ministério da Saúde e elevadas a instrumental basilar da reforma sanitária desde o início da década de 1990 — correspondem aos mecanismos normativos com base nos quais os governos locais assumiriam as funções de gestão dos sistemas locais de saúde. Os embates políticos travados a propósito compreenderam sobretudo questões concernentes aos mecanismos de transferência dos recursos federais, bem como o destino dessas transferências — para os próprios provedores ou para as autoridades locais — e os procedimentos de avaliação do gasto efetuado pelos governos locais.
Por seu turno, essas regras decisórias da política de saúde, também correspondentes ao conteúdo das NOBs, diziam respeito a direitos de participação social, por meio dos Conselhos de Saúde, na formulação dessa política. As disputas que emergiram em torno de tais regras definiram, de maneira básica, a extensão da autoridade do Ministério da Saúde e o grau de participação dos governos locais no processo decisório. Aconteceram, a bem da verdade, no complexo transcurso da implementação da reforma sanitária.
O resultado histórico das disputas acerca das regras do jogo e do jogo das regras pôde conformar o modelo institucional de gestão nacional da política de saúde, já delineado no art. 196 da Constituição de 1988.
No processo de construção do SUS ocorreram algumas conquistas importantes — todas assentadas nos dispositivos da Constituição —, a saber, a descentralização das ações, serviços e da gestão, com o objetivo de se alcançarem melhorias na gerência e na capacidade de regulação , a diminuição relativa das desigualdades que era possível atestar na distribuição dos tetos financeiros da assistência à saúde entre as regiões do País, uma significativa ampliação do acesso à assistência sanitária e a elevação da cobertura da imunização das crianças.
Examinando esses fatos, é possível assinalar que o gasto do País com saúde, a considerar os dados da Organização Mundial de Saúde, continua abaixo do de diversas nações e a ser mal distribuído, e revela pouca produtividade. O Brasil dispendeu em 2011 o equivalente a 8,7% do Produto Interno Bruto (PIB) com saúde, bem menos do que a Argentina, onde ao setor em apreço foi destinado, valor da ordem de 20,4% do seu PIB e os EUA, que em 2011 destinaram 19,8% de seu PIB para a saúde e a média mundial foi de 11,7%.
SUPERANDO A INEFETIVIDADE DO ACESSO AO DIREITO À SAÚDE (BÁSICA)
Um número expressivo de ações visando a assegurar o direito ao fornecimento estatal de medicamentos — a envolverem obrigações de fazer — é ajuizado através da Defensoria Pública, a qual se destaca como instrumento garantidor desse direito fundamental que é o acesso à justiça. Em contraste flagrante com essas demandas, é bastante rara no país — provavelmente por razões culturais — a procura do Judiciário para obter tratamento para moléstias como diabetes, desnutrição, hipertensão, dengue, malária, doença de Chagas, esquistossomose — dentre outras — de se assegurar atendimento cardiológico, oftalmológico ou ginecológico (preventivo, pré e pós-natal); tampouco se busca o Judiciário para que este ordene ao Poder Público a realização ou custeio de um parto.
Assim, a saúde básica, de modo geral não é amparada no país nem pelo Poder Público — conquanto seja este um dever jurídico a ele imposto por nossa Carta Magna —, nem tampouco pelo Judiciário.
De todo modo, aparece nos processos que visam dar efetividade ao direito fundamental à saúde como pólo correspondente à legitimidade passiva qualquer ente federativo. Tem-se sustentado, por exemplo, quanto à questão dos medicamentos a pertinência de o Estado e o Município serem interpelados. É notório que a Constituição Federal, em seu art. 23, inc.II, estabelece a "competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na assistência à saúde". Igualmente, é legítimo argumentar, a propósito dessa legitimidade passiva, que o princípio da solidariedade constitui o pilar estruturante do SUS, tal como fixado pela Lei nº 8.080/90 que o implantou, e da solidariedade decorre que os serviços de saúde (haja vista, inclusive, o disposto nos arts. 896 e 904 do nosso Código Civil) podem ser exigidos de um ou de alguns dos entes federativos. Cabe sublinhar que, do ponto de vista da divisão interna de tarefas, União e Estados devem assumir funções subsidiárias em relação ao Município — em especial, em relação àqueles que já tiveram a gestão plena da atividade-fim do SUS reconhecida através de portaria do Ministério da Saúde.
A pretensão autoral — no caso de indicação de posição jurídica visando à efetivação do direito à saúde sob diferente aspecto — poderá ser deduzida através de ação ordinária ou até de mandado de segurança. Com efeito, este último meio processual se tem mostrado especialmente útil à salvaguarda de direitos frente a atos omissivos de autoridade; a sanção que lhe é pertinente corresponde, em nosso país, à prisão da autoridade. Por sua vez, a ação civil pública é outro instrumento utilizado, instando os entes públicos a fornecer gratuitamente o atendimento hospitalar de que necessita o hipossuficiente (seja ele maior ou menor) em situação de risco.
No que diz respeito às medidas cautelares, com bastante frequência os nossos tribunais se têm esforçado por observar o preceito, que determina a audiência do ente público, no prazo de setenta e duas horas, antes do proferimento de liminar em sede de ação civil pública. Caberia então recorrer a "um juízo de proporcionalidade que avalia se o estado de saúde dos beneficiários comporta tal oitiva".
A depreender-se que aquilo que resulta da própria judicialização em matéria de saúde — as decisões emanadas do Poder Judiciário — pode sinalizar para os aprimoramentos e as correções das políticas públicas de maior ou menor espectro que competirá ao Estado empreender, sobretudo no sentido de maior acesso igualitário à saúde pública por parte dos cidadãos brasileiros.
Aqui cumpre apontar o papel de relevância assumido pelo Ministério Público. Diversamente do que se tem registrado a propósito da maioria dos Ministérios Públicos ocidentais, e em especial, de seus congêneres latino-americanos, o Ministério Público nacional assumiu um papel de destaque na defesa dos interesses públicos, de caráter difuso e coletivo, relacionados aos direitos fundamentais (não excluindo, é claro, o direito à saúde), e qualquer outro interesse difuso ou coletivo que envolva algum interesse social. As novas funções que este passou a desempenhar na tutela de tais interesses firmaram-lhe um novo perfil como órgão agente, deixando à mostra o anacronismo de determinadas formas de intervenção como custus legis em processos de natureza eminentemente individual e privada, e sobressaindo tal instituição como "uma espécie de ombudsman não eleito na sociedade brasileira".
Um dos mecanismos básicos a que esse órgão público pode recorrer é o inquérito civil, que, conforme foi possível demonstrar, veio a ser utilizado pelo MPF nos inícios da década de 1990 de forma a resguardar a integridade do Sistema Único de Saúde em fase inicial de implementação, desde então valorado como bem comum. Mediante tal mecanismo o promotor de justiça passou a deter poderes diretos de investigação na área civil, sendo-lhe facultado colher diretamente as provas necessárias, requisitar perícias, provas, documentos e diferente auxílio com vistas à instrução preliminar de uma futura ação civil pública. Em todos os casos anteriormente elencados o ordenamento jurídico confiou ao Ministério Público um papel de inegável peso, na qualidade de possível autor ou de fiscal da lei com ativos poderes de instrução e de propositura de recursos em favor dos direitos transindividuais — com amplo destaque para a tutela judicial dos interesses difusos e coletivos. Pode ocorrer que o cidadão seja a parte legitimada para propor a ação popular (a exemplo do que caberia realizar um membro do Conselho Nacional de Saúde ou de um conselho municipal, sobretudo quando estiver em risco a governança do SUS); no entanto, na hipótese de sua desistência pode o Ministério Público assumir o pólo ativo e, considerando-se a procedência do pedido popular e sendo omisso o cidadão em tela, deve esta instituição promover a execução (Strozenberg, 2008:132).
A utilização cada vez mais frequente do termo de ajustamento de conduta — mais atestada em domínio ambiental do que em matéria de saúde — por parte do Ministério Público identifica-o como um órgão impulsor à chamada terceira onda de ampliação do acesso à justiça. Esta vai centrar a sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades contemporâneas.
CONCLUSÃO
Conforme evidenciado neste trabalho, o direito à saúde é um direito social fundamental, não sendo possível negar esse caráter, em razão da própria Constituição Federal, em especial, do que dispõe o art. 196 da nossa Carta Magna. Assim, os direitos sociais são direitos fundamentais, tanto pelo prisma formal ou material analisado, sendo que a fundamentalidade material encontra seu núcleo no princípio da dignidade humana, conforme depreende o sistema constitucional brasileiro.
O fundamento acerca dos direitos sociais se destinam a todos, também se baseia no princípio da solidariedade, pois que toda a sociedade é também responsável pela efetivação e proteção do direito à saúde de todos. O Estado, em consequência, deixa de ser mero espectador para intervir nas relações privadas.
Neste sentido, os direitos fundamentais, inclusive os sociais, e neste espaço inclui-se o direito à saúde, possuem imediata aplicabilidade tanto na sua dimensão negativa (notadamente no sentido de não-interferência na saúde dos indivíduos), quanto na sua dimensão positiva, prestacional, mas não significa que apresentem, na prática, o mesmo grau de eficácia.
Não sendo a dignidade humana apenas um direito subjetivo, mas uma cláusula geral constitucional, existe uma exigência da tutela integral do ser humano por meio da tutela de todos os interesses que lhe são essenciais. Neste sentido, os direitos à saúde e à vida estão inseridos dentro dos valores mínimos para concretização de uma existência digna e receberam proteção especial do sistema jurídico constitucional, sendo cláusulas pétreas e preceitos de aplicabilidade imediata, dotados de máxima efetividade, pois se fundamentam no pilar constitucional da vida digna, estando, portanto, diretamente relacionados com o mínimo essencial, que deve ser alcançado pelo Estado Democrático de Direito.
Assim, é possível através de uma interpretação dos dispositivos constitucionais e da legislação infraconstitucional à luz do direito fundamental social à saúde, a tutela jurisdicional para acesso à saúde, numa aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas, sempre que o particular ou o próprio legislador constitucional violarem o limite do mínimo existencial do direito fundamental à saúde, num posicionamento de aplicação direta dos direitos fundamentais sociais, baseado no art. 5, § 1º da CRFB. Afinal a saúde não pode ser vista como mera mercadoria, para além de custos e lucros, pois se trata do direito subjetivo à vida digna, que deve ser garantido na persecução do ideal democrático.
A questão mais crucial, de difícil enfrentamento, é como fazer funcionar o referido sistema de garantias. A necessidade de esclarecê-la e encontrar caminhos mais viáveis para a produção de respostas vigorosas dentro de um Estado Democrático de Direito levou-nos a sustentar desde o começo do nosso estudo uma posição que se poderia designar de procedimentalista, entendida como respeito às garantias processuais que são inerentes e irrenunciáveis nesse mesmo Estado.
Entende-se não apenas que o direito à saúde, aqui concebido como um direito subjetivo, representa consequência constitucional indissociável do direito à vida, mas também que o impasse no acesso igualitário à saúde em nosso país, não decorre de deficiências que possam ser atribuíveis à positivação constitucional desse direito fundamental, mas sim a problemas de outras ordens que envolvem tanto questões de ineficácia em termos de gestão do SUS a interesses outros de viés político e insitucional— em síntese, de uma implementação descomprometida de políticas públicas. Por estes motivos elencados, é que a efetividade do direito à saúde e de outros direitos prestacionais de idêntico cariz não se materializam na medida exata das necessidades demandadas pela sociedade brasileira com a simples vigência da norma e, exatamente por tal motivo, a questão não encontrará solução no plano exclusivamente jurídico, transformando-se em um problema cuja solução somente se dará no nível da implementação objetiva de uma verdadeira política dos direitos fundamentais.

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_________.Direitos fundamentais sociais, "mínimo existencial" e direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (Organizadores). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 551-602.
_________.O direito fundamental à proteção e promoção da saúde na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre o sistema (público e privado) de saúde no Brasil. Exposição conferida no I Encontro do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, que ocorreu nos dias 18 e 19 de novembro de 2010, em São Paulo. Disponível em: >Acessado em 21 de janeiro 2014.
STROZENBERG, Flora. O direito universal à saúde: efetividade e condições de sua concretização,(Doutorado:Direito) PUC-RJ,2008.




Professora Titular do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito, da Universidade Estácio de Sá/RJ, Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO.Pesquisadora da Faperj. Membro da SBPC e da Law and Society Association. Email: [email protected]

Art. 8º da CRFB de 1967. – "Compete à União: XVII - legislar sobre: c) Normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário".
CRF de 1967, Arts. 8º e 165.
A contradição é apontada por especialistas com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) compilados pela BBC Brasil.
Os números revelam que, em 2011 - os últimos dados disponíveis - os gastos privados com a saúde responderam por cerca de 54% das despesas totais na área, enquanto que o governo financiou os 46% restantes. Retirado do site: http://www.humanosdireitos.org/noticias/denuncias/619-ONU--quanto-se-gasta-com-saude-no-mundo-por-habitante-e-por-PIB.htm, consulta em 15.03.2013.

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