Actos Performativos e constituição do Género: Um Ensaio sobre Fenomenologia e Teoria Feminista* 1

June 2, 2017 | Autor: Rosa Vieira Guedes | Categoria: Judith Butler
Share Embed


Descrição do Produto

Actos Performativos e constituição do Género: Um Ensaio sobre Fenomenologia e Teoria Feminista*1 De Judith Butler

Os filósofos raramente reflectem sobre a representação, no sentido teatral do termo, mas imediatamente têm um discurso sobre os “actos” que mantém significados semânticos associados aos das teorias da representação (e actuação). Por exemplo os “actos da fala” de John Searle, essas garantias e promessas verbais, que não parecem reenviar somente a um intercâmbio de palavras, mas constituir um vínculo moral entre os falantes, ilustram os gestos ilocutórios que constituem o cenário da filosofia analítica da linguagem. Mais, a “teoria da acção”, uma área de filosofia moral, procura entender o que é “fazer”, antes de formular qualquer exigência sobre o que se deve fazer. Enfim, a teoria fenomenológica dos “actos”, adoptada por Edmund Husserl, Maurice MerleauPonty e George Herbert Mead, entre outros, procura explicar a mundaneidade dos agentes sociais ao constituírem a realidade social através da linguagem, do gesto e de todos os signos sociais simbólicos. Ainda que a fenomenologia pareça por vezes, assumir a existência de um agente electivo e constituinte anterior à linguagem (definido como a única fonte dos seus actos constituintes), também existe um uso mais radical da doutrina da constituição que toma o agente social como objecto, em vez de sujeito, dos actos constitutivos. Ao declarar que “a mulher não nasce, torna-se”, Simone De Beauvoir apropria-se desta doutrina dos actos constitutivos, inscrita na tradição fenomenológica, e re-interpreta-a2. Neste sentido, o género não é, de modo algum, uma identidade estável; tão pouco é o locus operativo de onde procederiam os diferentes actos, é antes uma identidade debilmente constituída no tempo: uma identidade instituída por uma repetição estilizada de actos. Mais ainda, o género ao ser instituído pela estilização do corpo, deve ser entendido como a mundaneidade em que os gestos corporais, os movimentos e as normas de todo o tipo, constituem a ilusão de um eu genérico e permanente. Esta formulação desloca o conceito de género para além de um modelo substancial de identidade, para um espaço que requer uma conceptualização de temporalidade social constituída. Significativamente, o género é instituído por actos internamente descontínuos, a aparência de substância é precisamente isso, uma identidade *(1990) Sue Ellen Case (ed.), Performing Feminisms: Feminist Critical Theory and Theater, Johns Hopkins University Press, p. 270-282. 2

Para uma discussão mais detalhada da contribuição feminista de De Beauvoir para a Teoria feminista, ver o meu texto “Variations on Sex and Gender: Beauvoir’s The Second Sex”, em Yale French Studies, 172, 1986. Existe tradução em espanhol, “Variaciones de sexo y género: Wittig, Foucault y De Beauvoir”, en Marta Lamas comp., El género: la construcción cultural de la diferencia sexual, México, Miguel Angel Porrúa y PUEG-UNAM.

1

construída, um resultado performativo levado a cabo em que a audiência social mundana, inclusive os próprios actores, têm vindo a acreditar e a actuar/representar como numa crença. Se o cimento da identidade de género é a repetição estilizada de actos no tempo e não uma identidade aparentemente, de uma só peça, então, na relação arbitrária entre esses actos, nos diferentes modos possíveis de repetição, na ruptura ou repetição subversiva desse estilo, encontrar-se-ão possibilidades de transformar o género. Mediante a concepção de actos de género, acima esboçada, procurarei mostrar como poderíamos entender alguns modos segundo os quais foram constituídos os conceitos coisificados e naturalizados de género e por fim, como são susceptíveis de ser constituídos de outra maneira. Em oposição aos modelos teatrais ou fenomenológicos que assumem um eu, necessariamente anterior aos seus actos, entenderei os actos constitutivos como actos que, para além de constituírem a identidade do actor, a constituem como uma ilusão irresistível, no objecto de uma crença. Ao desenvolver a minha argumentação, hei-de lançar a mão aos discusos teatral, antropológico e filosófico mas, sobretudo ao fenomenológico, para mostrar que ao que se chama identidade de género, não é senão um resultado performativo, que a sanção social e o tabu compelem a atribuir. É precisamente neste carácter performativo onde reside a possibilidade de questionar o seu estatuto coisificado. I. Sexo/Género: enfoques feminista e fenomenológico A teoria feminista criticou frequentemente as explicações naturalistas do sexo e da sexualidade que assumem que o significado da existência social das mulheres se pode derivar de alguma falta na sua fisiologia. Ao distinguir entre sexo e género, as teóricas feministas questionaram as explicações causais que assumem que o sexo dite ou imponha certos significados sociais à experiência das mulheres. As teorias fenomenológicas da corporeidade humana preocuparam-se também em estabelecer uma distinção entre, por um lado, as várias causalidades fisiológicas e biológicas que estruturam a existência corporal e, por outro lado, os significados que esta existência corpórea assume no contexto da experiência vivida. Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty reflecte sobre “o corpo no seu ser sexual” e, considerando a questão da experiência corporal, chega a afirmar que, o corpo é, mais que “uma espécie natural”, “uma ideia histórica”3. Significativamente, é esta citação que Simone De Beauvoir refere em O Segundo Sexo quando estabelece na sua argumentação que, “a mulher” e por extensão qualquer género, é uma situação histórica ao invés de um dado natural4.

3

Maurice Merleau-Ponty, “The Body in its Sexual Being” em Phenomenology of Perception, trad.Collin Smith, Routledge and Keagan Paul, 1962. Existem traduces em espanhol (Editorial Península) e em português do Brasil (Martins Fontes). 4

Simone de Beauvoir, The Second Sex, trad. H.M.Parshley, New York, Vintage, 1974, p.38. Existem traducões em espanhol (Siglo Veinte Editores, Buenos Aires) e em português (Quetzal Editores).

2

Em ambos os contextos, a existência e a realidade das dimensões materiais ou naturais do corpo não são negadas mas antes reposicionadas, de maneira a que fique estabelecida a distinção entre estas dimensões e o processo pelo qual o corpo acaba por transportar significados culturais. Tanto para De Beauvoir como para Merleau-Ponty, o corpo é compreendido como o processo activo de encarnação de certas possibilidades culturais e históricas, um complexo processo de apropriação que toda a teoria fenomenológica da encarnação deve descrever. Ora, para descrever o corpo genérico, uma teoria fenomenológica da constituição necessita ampliar os enfoques convencionais sobre os actos, que signifique simultaneamente, o que constitui o significado e como se representa e actua este significado. Por outras palavras, os actos que constituem o género oferecem semelhanças aos actos performativos em contexto teatral. A minha tarefa, será então a de examinar de que modo actos corporais específicos, constroem o género e que possibilidades existem de transformação cultural de género através de tais actos. Merleau-Ponty sustenta que o corpo é não somente uma ideia histórica mas também um conjunto de possibilidades continuamente realizáveis. Ao definir o corpo como uma ideia histórica, Merleau-Ponty quer dizer que é através de uma expressão concreta e histórica efectivada no mundo como este corpo, ganha significado. Que o corpo seja um conjunto de possibilidades significa: a) que a sua aparição no mundo, para a percepção, não está determinada por nenhuma espécie de essência interior, e b) que a sua expressão concreta no mundo se deve entender como o destaque e o retorno específico a um conjunto de possibilidades históricas. Por isso existe uma prática que é entendida como os processos de retornar tais determinações em possibilidades. Essas possibilidades, por sua vez, estão necessariamente constrangidas pelas convenções históricas vigentes. O corpo não é pois uma identidade em si ou uma materialidade meramente fáctica: o corpo é uma materialidade que pelo menos, transporta significado e transporta-o de modo fundamentalmente dramático. Por dramático quero somente dizer que o corpo não é mera matéria, mas uma contínua e incessante materialização de possibilidades. Não se é simplesmente um corpo mas num sentido absolutamente chave, o próprio corpo é um corpo que se faz e assim, cada qual faz o seu corpo de modos diversos ao dos seus contemporâneos e também ao dos seus antecessores e sucessores corporeizados. Porém, é claramente uma infeliz gramática o dizer que existe um ‘nós’ e um ‘eu’ que constrói/faz o seu corpo como se uma prática descorporizada precedesse e governasse um exterior corporizado. Sugiro, como mais apropriado, um vocabulário que resista à substância metafísica das formações sujeito-verbo e, em seu lugar se apoie numa ontologia de gerúndios. O “eu” que é o seu próprio corpo, é necessariamente, uma forma de ir tomando corpo, e o “que” que se corporiza é as possibilidades. Mas também aqui a gramática da formulação engana, porque as possibilidades que são corporizadas não fundamentalmente exteriores ou anteriores ao próprio processo de corporização. Como materialidade intencionalmente organizada, o corpo é sempre uma encarnação de possibilidades por sua vez condicionadas e circunscritas pela convenção histórica. 3

Fazer, dramatizar, reproduzir, parecem ser algumas das estruturas elementares da corporização. Este ir fazendo o género, não é somente, para os agentes corporizados, um modo de ser exterior, à flor da pele, abertos à percepção dos outros. A corporização manifesta claramente um conjunto de estratégias, a que Sartre talvez tenha dado o nome de um estilo de ser, e Foucault “uma estilística da existência”. Estilo que nunca se Auto estiliza totalmente, porque os estilos vivos têm história, e esta história condiciona e limita as possibilidades. Toma-se então o género como um estilo corporal, por exemplo, um “acto” que foi intencional e performativo, onde o performativo tem o duplo sentido de “dramático” e “não referencial”. Quando De Beauvoir declara que “a mulher” é uma ideia histórica e não um facto natural é claro que subestima a distinção entre sexo, facto biológico e género, interpretação cultural ou significação deste facto. De acordo com esta distinção, ser fémea é um facto sem nenhum significado, mas ser mulher é ter-se tornado uma mulher, ou seja, obrigar o corpo a conformar-se com uma ideia histórica de “mulher”, induzir o corpo a tornar-se um signo cultural, a materializar-se obedecendo a uma possibilidade historicamente delimitada, e fazer isto enquanto projecto corporal sustentado e repetido. A ideia de “projecto”, porém, sugere a força originária de uma vontade radical, e como o género é um projecto que tem a sua sobrevivência cultural como finalidade, o termo “estratégia” sugere melhor a situação de coacção na qual sempre e diversamente se dá a performance do género. Portanto, como estratégia de sobrevivência, o género é uma representação*que conduz a consequências claramente punitivas. Os atributos distintivos de género contribuem a “humanizar” os indivíduos no seio da cultura contemporânea; desde já, aqueles que não fazem bem a sua distinção de género são regularmente castigados. Porque não existe uma “essência” que o género expresse ou exteriorize, nem um objectivo ideal a que aspire; como o género não é um facto, os diversos actos de género criam a ideia do género, e sem esses actos, pura e simplesmente não existiria género. O género é, pois, uma construção que habitualmente oculta a sua génese. O tácito consentimento colectivo de representar, produzir e sustentar a ficção cultural da divisão de género diferente e polarizada fica obscurecido pela credibilidade outorgada à sua própria produção. Os autores do género estão encantados com as suas próprias ficções; assim, a própria construção obriga à crença na sua necessidade e naturalidade. As possibilidades históricas materializadas em diversos estilos corporais não são nada mais que estas ficções culturais reguladas à força de castigos e alternativamente corporizadas e disfarçadas sob coacção. Será útil um ponto de partida fenomenológico para uma descrição feminista do género? À primeira vista, a fenomenologia partilha com as análises feministas um mesmo compromisso para proteger a teoria na experiência vivida e revelar o modo segundo o qual o mundo é construído através dos actos constitutivos da experiência subjectiva. É evidente que nem todas as teorias feministas privilegiam o ponto de vista do sujeito 4

(Kristeva chegou a criticar a teoria feminista por ser “demasiado existencialista” 5) e ainda o slogan feminista: “o pessoal é político” sugere, em parte, que a experiência subjectiva não só é estruturada pela existência de configurações políticas, como ainda se repercute nelas e nas próprias estruturas. A teoria feminista tem tentado compreender de que modo as estruturas culturais e políticas sistémicas ou invasivas são implementadas e reproduzidas através de actos e práticas individuais, e também como a análise de situações ostensivamente pessoais se esclarece ao considerar-se num contexto cultural partilhado amplamente. Desde já, o impulso feminista, e não tenho dúvidas de que existe mais que um, emergiu muitas vezes do reconhecimento de que a minha dor, o meu silêncio, a minha cólera, a minha percepção, não são somente meus, e colocam-me numa situação cultural partilhada que me permite abrir possibilidade e caminhos inesperados. O pessoal é pois implicitamente político no sentido em que se está condicionado por estruturas sociais partilhadas, mas o pessoal foi também imunizado contra o desafio político num grau tal que ainda perdura a distinção público/privado. Para a teoria feminista, o pessoal torna-se uma categoria expansiva, onde se acomodam, ainda que só implicitamente, as estruturas políticas habitualmente consideradas públicas. Desde já, alarga-se o próprio significado de político. Na melhor das hipóteses, a teoria feminista inclui a expansão dialéctica de ambas as categorias. A minha situação não deixa de ser minha só porque é a situação de alguém, e os meus actos, por muito individuais que sejam, reproduzem no entanto, a situação do meu sexo e fazem-no de maneiras diferentes. Por outras palavras, há, latente na fórmula o pessoal é político da teoria feminista, a suposição de que o mundo da vida das relações de género é constituído, pelo menos parcialmente, por actos concretos e historicamente mediados dos indivíduos. Uma vez que o “corpo” é invariavelmente transformado no corpo dele ou no corpo dela, o corpo só é conhecido pela sua aparência de género. Parece imperativo considerar o modo como se dá esta generificação do corpo. Sugiro que o corpo adquire o seu género numa série de actos que são renovados, revistos e consolidados no tempo. A partir de um ponto de vista feminista, pode tentar-se reconceber o corpo com género mais como uma herança de actos sedimentados do que como uma estrutura predeterminada ou encerrada, uma essência ou um facto, seja ele natural, cultural ou linguístico. A apropriação feminista da teoria fenomenológica da constituição permite empregar a ideia de acto num sentido rico em termos de ambiguidade. Se o pessoal é uma categoria que se expande até incluir as mais amplas estruturas sociais e políticas, então os actos do sujeito com género são similarmente expansivos. Existem actos políticos que são claramente acções deliberadas e instrumentais de organização política, de intervenção e de resistência colectiva, cujo propósito maior é o de instaurar um conjunto de relações sociais e políticas mais justas. Existem então actos que são levados a cabo em mome das mulheres, e desde logo existem actos em si e por si, dissociados de qualquer consequência instrumental, que desafiam a própria categoria de mulher. Certamente que 5

(1983) Julia Kristeva, Histoires d’amour, Ed Denoel, Paris, p.242

5

não se pode ignorar a inutilidade de um programa político cuja proposta seja a transformação radical da situação social das mulheres, sem ter previamente determinado se a categoria de mulher se vai construindo socialmente de tal modo que ser mulher é, por definição, estar numa situação de opressão. No seu desejo compreensível de criar vínculos de solidariedade, o discurso feminista assentou frequentemente na categoria mulher como pressuposto universal de uma experiência cultural cuja universalidade estatutária envolve a falsa promessa ontológica de uma possível solidariedade política. Numa cultura em que se considerou a maior parte das vezes o falso universal “homem” como co extensivo à própria humanidade, a teoria feminista procurou com êxito trazer à luz a especificidade da mulher e reescrever a história da cultura em termos que reconheçam a presença, a influência e a opressão das mulheres. No entanto, neste esforço para combater a invisibilidade das mulheres como categoria, as feministas correm o risco de iluminar uma categoria que poderá ou não ser representativa da vida concreta das mulheres. Enquanto feministas temos sentido pouco desejo, creio eu, em examinar o estatuto próprio da categoria, e, certamente em discernir as condições de opressão que resultam da reprodução não estudada das identidades de género que suportam as categorias binárias e diferentes de homem e mulher. Ao declarar que a mulher é uma “situação histórica”, De Beauvoir sublinha que o corpo padece de uma certa construção cultural, não só devido às convenções que sancionam e prescrevem como cada qual actua no seu próprio corpo, o acto ou a performance que o corpo de cada um é, mas também devido às convenções tácitas que estruturam o modo segundo o qual culturalmente se percebe o corpo. É claro que, se o género é a significação cultural que assume o corpo sexuado, e se essa significação que é co determinada por vários actos culturalmente percebidos, é óbvio que, no âmbito dos termos da cultura não é possível conhecer de modo distinto sexo e género. A reprodução da categoria de género age numa grande escala política quando, por exemplo, as mulheres entram pela primeira vez numa profissão, ou adquirem certos direitos, ou são re-projectadas pelo discurso legal e político de maneira significativamente nova. Mas a reprodução mais mundana da identidade de género acontece nas diversas maneiras de agir dos corpos, em função das expectativas profundamente enraizadas ou sedimentadas da existência de género. Ou seja, existe uma sedimentação das normas de género que produz o fenómeno peculiar de um sexo natural, ou de uma verdadeira mulher, ou de certo número de ficções sociais prevalentes e coercivas, sedimentação que com o tempo foi produzindo um conjunto de estilos corporais que, de forma coisificada, surgem como a configuração natural dos corpos em sexos que existem numa relação binária e mútua. II. Géneros binários e contrato heterossexual Para garantir a reprodução de uma dada cultura, foram estabelecidos pela literatura antropológica do parentesco vários requisitos rigorosos, dispuseram a reprodução sexual dentro dos limites de um sistema matrimonial fundado heterossexualmente, que exige a reprodução dos seres humanos em certos modos de género, que, efectivamente, 6

garantam a reprodução final desse sistema de parentesco. Como Foucault e outros assinalaram, a associação de um sexo natural com um sexo diferente, e com uma “atração” ostensivamente natural relativamente ao sexo/género oposto é uma conjunção nada natural de construções culturais ao serviço de interesses reprodutivos 6. A antropologia cultural feminista e os estudos de parentesco provaram como as culturas são governadas por convenções que não só regulam e garantem a reprodução, o intercâmbio e o consumo de bens materiais, mas também reproduzem os vínculos de parentesco que por sua vez exigem tabus e uma regulação punitiva da representação para alcançar os seus fins. Lévy-Strauss mostrou como o tabu do incesto trabalha para garantir a canalização da sexualidade para várias formas de casamento heterossexual 7. Gayle Rubin argumentou convincentemente que o tabu do incesto produz certos tipos de identidade de género particulares assim como as suas correspondentes sexualidades8. Desejo simplesmente sublinhar que uma das formas em que é reproduzido e encoberto este sistema de heterossexualidade coerciva consiste em cultivar os corpos em sexos distintos, com aparências “naturais” e disposições heterossexuais “naturais”. Embora o orgulho etnocêntrico sugira uma sequência que transcenderia as estruturas obrigatórias das relações de parentesco como são descritas por Lévy-Strauss, eu sugeriria, de acordo com Rubin, que as identidades contemporâneas de género são marcas ou “impressões digitais” de um parentesco residual. Nos últimos anos, a abordagem de que sexo, género e heterossexualidade são produtos históricos que se combinaram e coisificaram como naturais ao longo do tempo, recebeu muita atenção crítica, não só por parte de Michel Foucault, mas também de Monique Wittig, de historiadores gay, e numerosos antropólogos culturais e psicólogos sociais 9. Estas teorias, porém, ainda carecem de recursos críticos para pensar radicalmente a sedimentação histórica da sexualidade e das construções sexuais relacionadas, ao não delimitarem nem descreverem as mundaneidades que essas construções produzem, reproduzem e mantém no campo próprio dos corpos. A fenomenologia pode ajudar a uma reconstrução feminista do carácter sedimentado do sexo, do género e da sexualidade, ao nível do corpo? Em primeiro lugar, o interesse fenomenológico pelos vários actos com que se vão construindo e assumindo a 6

Michel Foucault, History of Sexuality: An Introduction, Random, New York, p. 154: “a noção de ‘sexo’ permite reagrupar numa unidade artificial elementos anatómicos, funções biológicas, comportamentos, sensações e prazeres, e permite a cada um utilizar esta unidade fictícia como princípio de causalidade…” Existe tradução em português. 7

(1947, 2002) Claude Lévy-Stauss. Les structures élémentaires de la parenté, Mouton de Gruyter, Berlin, New York. 8

(1975) Gayle Rubin, “The traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex” em Towards an Anthropology of Women, Ed. Rayna R. Reiter, Monthly Review Press, New York, p.178-185. 9

Ver o meu artigo “Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Wittig, and Foucault” em (1987) Feminism as Critique, ed. Seyla Benhabib e Drucila Cornell, Basil Blackwell, Londres

7

identidade cultural, oferece um ponto de partida para o esforço feminista em entender a mundaneidade em que os corpos se inserem em géneros. A formulação do corpo enquanto modo de dramatizar ou representar possibilidades abre uma via para entender como uma convenção cultural é corporizada e autorrepresentada. Parece difícil, se não impossível, imaginar uma maneira de conceptualizar a escala e o carácter sistémico da opressão das mulheres a partir de uma posição teórica que toma como ponto de partida os actos constitutivos. Embora os actos individuais trabalhem efectivamente para manter e reproduzir sistemas opressores, e, é claro, qualquer teoria sobre a responsabilidade política pessoal pressupõe este enfoque, não se pode contudo concluir que a opressão seja somente a consequência destes actos. Pode-se argumentar que se não existissem seres humanos cujos actos diversos, em sentido amplo, produzissem e mantivessem as condições opressivas, estas condições poderiam colapsar, mas não se pode obviar a que a relação entre actos e condições não é unilateral, nem sequer sem mediação. Existem contextos sociais e convenções onde não só certos actos se tornam possíveis, como se tornam concebíveis, enquanto actos. A transformação das relações sociais torna-se então mais uma questão de transformação das condições sociais hegemónicas do que a transformação dos actos individuais que geram essas condições. Desde já, quem se restrinja à política dos actos correrá o perigo de uma reflexão apenas indirecta, se não epifenoménica dessas condições. Mas o sentido puramente teatral de um “acto” força uma revisão dos significados individualistas subjacentes ao enfoque mais restrito dos actos constitutivos no discurso fenomenológico. Dada a duração temporal no seio de toda a performance, os “actos” são uma experiência compartilhada e uma “acção colectiva”. Assim como, na teoria feminista, a própria categoria de pessoal se expande até incluir estruturas políticas, do mesmo modo existe um enfoque teatralmente fundado dos actos e, desde já, menos orientado individualmente e que vai ficando um pouco fora da crítica da teoria dos actos como “demasiado existencialista”. O acto que é o género, o acto que agentes corporizados são, no sentido em que encarnam dramática e activamente e, assim transportam certos significados culturais, este acto não é claramente um acto solitário. Existem certamente maneiras individuais e matizadas de construção do seu próprio género, mas que cada qual o faça, ou o faça de acordo com certas sanções e prescrições, não é, claramente, um assunto plenamente individual. Uma vez mais, não quero com isto minimizar o efeito de certas normas de género que têm origem no seio familiar, se impõem através de certos modos familiares de castigos e recompensas e que, por conseguinte, podem ser interpretadas como altamente individuais, porque inclusivamente assim, as relações familiares recapitulam, individualizam e especificam relações culturais pré-existentes; raramente, para não dizer nunca, são verdadeiramente originais. O acto que se faz, o acto que se executa, é, de certo modo, um acto que já foi realizado antes de se chegar a cena. Portanto, o género é um acto que já estava ensaiado, como um libreto que sobrevive aos actores particulares que o usaram, mas que exige actores individuais para ser actualizado e reproduzido uma vez mais como realidade. É necessário discernir os componentes complexos que formam um acto para entender o 8

modo de acção em conjunto e de acção comprometida que, invariavelmente age como género. Em que sentidos é então o género um acto? Conforme sugere o antropólogo Victor Turner nos seus estudos sobre o teatro social ritual, uma acção social requer uma performance repetida. Esta repetição é por sua vez reactuação e reexperimentação de um conjunto de significados socialmente estabelecidos anteriormente; é a forma mundana e ritualizada da sua legitimação 10. Quando esta concepção de performance social se aplica ao género, é claro que, ainda que sejam corpos individuais os que representam essas significações ao adquirir o estilo de modos genéricos, esta “acção” é também imediatamente pública. São acções com dimensões temporais e colectivas, e a sua natureza pública não carece de consequências: desde já, leva-se a cabo a performance com o propósito estratégico de manter o género dentro de um marco binário. Compreendida em termos pedagógicos, a performance torna explícitas as leis sociais. Enquanto acção pública e acto performativo, o género não é uma escolha radical, nem um projecto que reflicta uma escolha meramente individual, mas também não é imposto ou inscrito no indivíduo, como argumentam alguns pós estruturalistas sobre o sujeito. O corpo não está passivamente escrito com códigos culturais, como se fosse o recipiente sem vida de um conjunto de relações culturais prévias. Nem os eus encarnados/corpóreos pré-existem às convenções culturais que significam, essencialmente, os corpos. Os actores já estão sempre no cenário, inseridos nas regras próprias da performance. Tal como um libreto pode ser representado de modos diferentes, e como uma obra, requer texto e interpretação, também o corpo sexuado representa o seu papel num espaço corporal culturalmente restricto, e leva a cabo as representações/interpretações confinado a directivas já existentes. Ainda que os vínculos entre papel teatral e papel social sejam complexos e as suas linhas divisórias difíceis de traçar (Bruce Wilshire assinala os limites da comparação em

10

(1974) Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors, Cornell University Press, Ithaca. Clifford Geertz sugere em “Blurred Genres: The Refiguration of Thought” em Local Knowledge, Further Essaysin Interpretative Anthropology (1983, Basic Books, New York), que a metáfora teatral, é usada nas mais recentes teorias sociais em duas direcções frequentemente opostas. Os teóricos rituais como Victor Turner focam a noção de drama social, nas suas variantes, como meio de regular os conflitos internos a uma cultura, e de regenerar a coesão social. Por outro lado, as abordagens à acção simbólica, influenciadas por autores tão diversos como Emile Durkheim, Kenneth Burke e Michel Foucault, focam o modo segundo o qual a autoridade política e as questões de legitimação são tematizadas e reguladas com base nos significados representados. O próprio Geerz sugere que a tensão pode ser vista dialeticamente; o seu estudo sobre a organização política em Bali, apresentada como um “estado-teatro”, destaca-se. Em termos de uma abordagem explicitamente feminista do género como performativo, parece-me claro que ao colocar o género como ritualizado, a representação pública deve ser combinada com uma análise das sanções políticas e dos tabus segundo os quais esta representação pode dar-se ou não na esfera política, livre de consequências punitivas.

9

Role-Playing and Identity: The Limits of Theater as Metaphor 11 ), parece-me claro que, embora as representações teatrais possam confrontar-se com censuras políticas e críticas mordazes, as performances de género em contextos não teatrais são regidas por convenções sociais ainda mais claramente punitivas e reguladoras. Desde já, a visão de um travesti no cenário pode provocar prazer e aplausos, enquanto a visão do mesmo travesti ao nosso lado num autocarro, pode provocar medo, ira e até violência. É clara que em ambas as situações, as convenções que medeiam a proximidade e a identificação são de todo diferentes. Quero comentar esta situação em dois sentidos diferentes. No teatro pode dizer-se: “é só uma representação”, e assim desrealizar o acto, separar totalmente a representação da realidade. Com esta distinção, protege-se o próprio sentido do que é real face a esse desafio temporal às nossas suposições ontológicas existentes sobre o modo de arranjar/compartimentar os géneros; as diversas convenções que anunciam que “não é mais que teatro” permitem traçar linhas restritas entre a performance e a vida. Na rua e no autocarro, o acto torna-se perigoso ao realizar-se, porque precisamente não há convenções teatrais que delimitem o seu carácter puramente imaginário, pois na rua ou no autocarro, falta a presunção de que o acto seja distinto da realidade; o efeito intranquilizador do acto emana da ausência de convenções que facilitem esta demarcação. Desde já, existe um teatro que tenta questionar ou mesmo romper as convenções que demarcam o imaginário do real (Richard Schener mostra-o claramente em Between Theater and Anthropology12). Porém, nestes casos confrontamo-nos com o mesmo fenómeno, quer dizer, o facto de o acto não ser contrastado com a realidade, mas que constitui uma realidade, nova em certo sentido ou seja, uma modalidade de género que não pode ser facilmente assimilada dentro das categorias pré-existentes que regulam a realidade do género. Do ponto de vista das ditas categorias estabelecidas, é possível que se queira declarar: mas ah! É mesmo uma rapariga ou mulher, ou é realmente um rapaz ou um homem, e, mais, dizer que a aparência contradiz a realidade do género, que a realidade particular e familiar, pode estar ali, nascente, temporalmente não realizada, talvez concretizada num outro tempo ou outros lugares. Enquanto o travesti pode fazer mais do que simplesmente expressar a distinção entre sexo e género: desafia, implicitamente pelo menos, a distinção entre aparência e realidade que estrutura boa parte do pensamento comum sobre a identidade de género. Se a “realidade” do género é constituída pela própria performance, então não se pode apelar a um “sexo” ou a um “género” essencial e não realizado, que seria ostensivamente expresso pelas performances de género. Assim, o género do travesti é tão completamente real como o de qualquer pessoa cuja performance cumpre as expectativas sociais. Que a realidade do género seja performativa significa, muito simplesmente, que é real só na medida em que é representada. É justo referir que certo tipo de actos, são 11

(1981) Routledge and Paul Kegan, Boston.

12

(1985) Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Ver “News, Sex and Performance”, p.295-324.

10

interpretados usualmente enquanto expressivos de um núcleo de género ou identidade, e esses actos, ou estão em conformidade com uma identidade de género esperada, ou questionam, de algum modo, essa expectativa. Expectativa que, por sua vez se baseia na percepção do sexo como dado factual e distinto das características sexuais primárias. Esta teoria implícita e popular sobre os actos e gestos expressivos do género, deixa supor que o género em si existe anteriormente aos diversos actos, posturas e gestos através dos quais é dramatizado e conhecido; desde já, o género surge na imaginação popular como um núcleo substancial que se pode compreender facilmente enquanto correlato espiritual ou psicológico do sexo biológico 13. Pelo contrário, se os atributos do género não são expressivos mas performativos, então estes atributos constituem efectivamente a identidade que se diz, expressa ou revela. A distinção entre expressão e performativo é crucial, porque se os atributos e os actos de género, isto é, as diversas maneiras segundo as quais um corpo mostra ou produz a sua significação cultural, são performativos, então não existe uma identidade preexistente que possa ser a medida de um acto ou atributo; não existem actos de género que sejam verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e o postulado de uma identidade de género verdadeira revela-se uma ficção reguladora. Que a realidade de género seja criada por performances sociais sustentadas significa que as próprias ideias de um sexo essencial, de uma verdadeira ou constante feminilidade ou masculinidade, também são constituídas enquanto parte de uma estratégia através da qual o aspecto performativo do género permanece encoberto. Consequentemente, o género não pode ser entendido como um papel que, ou expressa, ou disfarça, um “eu” interior, sendo que este “eu” se conceba sexuado ou não. Enquanto representação performativa, o género é, em sentido lato, um “acto”, que constrói a ficção social da sua própria interioridade psicológica. Em oposição a um ponto de vista como o de Erving Goffman, que representa um eu que assume e troca diversos “papéis” nas complexas expectativas sociais do “jogo” da vida moderna14, sugiro que não só este eu, é um irreparável “fora” constituído no discurso social, como também o destaque da interioridade é, ela própria uma forma de construção da essência, publicamente regulada e sancionada. Os géneros, então, não podem ser verdadeiros ou falsos, reais ou aparentes. Mais, vemo-nos forçados a viver num mundo em que os géneros constituem significantes unívocos, em que o género está estabilizado, polarizado, diferenciado e intratável. Com efeito, o género está construído para cumprir um modelo de verdade e falsidade que não só contradiz a sua fluidez performativa, como serve uma política social de regulação e controlo de género. Representar mal o género próprio inicia um 13

Em Mother Camp (1974, Prentice – Hall), a antropóloga Esther Newton oferece-nos uma etnografia urbana de travestis em que sugere que todo o género pode ser entendido segundo o modelo do travesti. Em Gender: an Ethnometodological approach (1978. University of Chicago Press, Chicago.), Suzanne J. Kessler e Wendy McKenna argumentam que o género é um “cumprimento” que requer destrezas para construir o corpo num artifício socialmente legitimado. 14

(1959) Erving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life, Doubleday, Garden City. Existe tradução em português.

11

conjunto de castigos óbvios e indirectos, representá-lo bem outorga a confirmação de que afinal existe um essencialismo na identidade de género. Que esta confirmação seja descolocada pela ansiedade tão facilmente, que a cultura castigue ou marginalize quem falhe a representação da ilusão de um género essencialista, deveria ser sinal suficiente, de que, a certo nível, existe o conhecimento social de que a verdade ou falsidade do género são socialmente forçadas, e em nenhum sentido ontologicamente necessárias15.

III. Teoria Feminista: para lá de um modelo expressivo de género. Esta interpretação do género não pretende ser uma teoria completa sobre o que é o género nem sobre o modo segundo o qual se constitui; nem propõe um programa político explicitamente feminista. Posso imaginar, desde já, que este enfoque do género seja usado por várias estratégias políticas discrepantes. Pode ser que algumas amigas me culpem por isso e insistam que em qualquer teoria da constituição do género, existem pressupostos e implicações políticas, e que é impossível separar uma teoria do género de uma filosofia política do feminismo. De facto, estaria de acordo, e argumentaria que são basicamente interesses políticos que criam o fenómeno social de género enquanto tal, e que sem uma crítica radical da constituição do género, a teoria feminista não pode avaliar a maneira segundo a qual a opressão estrutura as categorias ontológicas através das quais o género é concebido. Gayatri Spivak argumenta que as feministas necessitam ter em conta um essencialismo operacional, uma falsa ontologia das mulheres como categoria universal, para avançar num programa político feminista16. Ela sabe que a categoria “mulheres” não é plenamente expressiva, que a multiplicidade e descontinuidade das referências enganam e impugnam a univocidade do signo, mas sugere que possa ser usado com uma finalidade estratégica. Kristeva sugere algo semelhante, parece-me, quando prescreve que as feministas utilizem a categoria mulheres como ferramenta política sem que se atribua ao termo integridade ontológica, e acrescenta que, estrictamente, não se pode dizer que as mulheres existam17. É com razão que a feministas se preocupam com as implicações políticas que pode transportar a declaração de que as mulheres não existem, especialmente à luz dos argumentos persuasivos propostos por Mary Ann Warren no seu livro, Genderside18. Ela demonstra 15

Veja-se a edição de Michel Foucault: Herculine Barbin: Le jornal d’un hermaphrodite français au XIXème, para uma interessante exposição do horror suscitado pelos corpos intersexuados. A introdução de Foucault esclarece que a delimitação médica de um sexo unívoco é nada mais que outra aplicação caprichosa do discurso da verdade como identidade. Veja-se também o trabalho de Robert Edgerton em American Anthropologist sobre as variações culturalmente cruzadas de resposta aos corpos hermafroditas. 16

(1985) Apontamentos feitos no Center for Humanities, Wesleyan University, Primavera.

17

Julia Kristeva, La femme, ce n’est jamais ça.

18

(1985) Mary Ann Warren, Genderside: The Implication of Sex Selection, Rowman and Allanheld, New Jersey.

12

que as políticas sociais sobre o controlo da população e da tecnologia reprodutiva são desenhadas para limitar, e por vezes erradicar totalmente, a existência das mulheres. À luz de semelhante declaração, o que pode resultar de bom numa discussão sobre o estatuto metafísico do termo e talvez por razões claramente políticas, as feministas devam silenciar de todo esta discussão. Mas uma coisa é utilizar o termo e conhecer a sua insuficiência ontológica, e outra coisa muito diferente é, para a teoria feminista, articular uma visão normativa que celebre ou emancipe uma essência, uma natureza, ou uma realidade cultural partilhada impossível de encontrar. A opção que defendo não é a de reescrever o mundo a partir do ponto de vista das mulheres. Eu não sei que ponto de vista é esse, mas seja qual for, não é singular, e não está em mim adoptá-lo. Não seria de todo ajustado à verdade declararme interessada em averiguar como se chegou a constituir o fenómeno dos pontos de vista de homens e mulheres, porque embora eu ache que estes pontos de vista são desde já, socialmente constituídos e que é importante fazer a sua genealogia reflexiva, porém expor, desconstruir ou reconstruir a episteme de género não é o que mais me interessa. É a própria pressuposição de uma categoria mulher que requer uma genealogia crítica dos complexos significados institucionais e discursivos pelos quais é constituída. Embora algumas críticas literárias feministas sugiram que todo o discurso necessita do pressuposto da diferença sexual, esta posição coisifica a diferença sexual como o momento fundador da cultura, e exclui da análise não somente a constituição da diferença sexual, mas o seu contínuo processo de constituição tanto da tradição masculina que se apropria do ponto de vista universal, como dessas posições feministas que constroem uma categoria unívoca de “mulheres” em nome da expressão, ou da libertação de uma classe subjugada. Como nota Foucault em relação aos esforços humanistas para libertar o sujeito criminal, o sujeito assim libertado fica mais profundamente agrilhoado do que se havia previamente pensado 19. Não obstante, imagino claramente uma genealogia crítica do género que repouse num conjunto fenomenológico de pressupostos, privilegiando entre eles a concepção em sentido amplo de “acto”, que é socialmente partilhado e historicamente constituído, e também é performativo no sentido acima descrito. Mas faz falta complementar esta genealogia crítica com uma política de actos performativos de género, que reescreva as identidades de género existentes e por sua vez ofereça um enfoque prescritivo sobre o tipo de realidade de género que deveria existir. Esta reescrita requer não só, expor as coisificações que tacitamente servem como identidades ou núcleos substanciais de género, como também elucidar tanto o acto como a estratégia de desautorização que constituem ao mesmo tempo que encobrem o género tal como o vivemos. A prescrição é invariavelmente mais difícil, embora só o seja porque é necessário pensar um mundo em que os actos, os gestos, o corpo visual, o corpo vestido, os vários atributos físicos usualmente associados ao género, não expressam nada. Em certo sentido, a prescrição 19

Michel Foucault, Surveiller et punir: la naissance de la prison.

13

não é utópica: consiste antes num imperativo de reconhecimento da complexidade existente do género que o nosso vocabulário invariavelmente disfarça, levando esta complexidade a um interjogo cultural dramático sem consequências punitivas. Certamente que continua a ser politicamente importante representar as mulheres, mas fazê-lo de tal modo que não de distorça nem coisifique a própria colectividade, que se supõe que a teoria deve emancipar. A teoria feminista que pressupõe a diferença sexual como ponto de partida necessário e invariável, supera claramente os discursos humanistas que mesclam o universal com o masculino e se apropriam de toda a cultura como propriedade masculina. Não há dúvida, é necessário reler os textos da filosofia ocidental partindo dos vários pontos de vista que foram excluídos, não só para revelar a perspectiva particular e o conjunto de interesses que nutrem estas descrições ostensivamente transparentes do real, mas também para oferecer descrições e prescrições alternativas; e desde já para estabelecer a filosofia como uma prática cultural, e criticar os seus princípios a partir de lugares culturais marginalizados. Não discuto este procedimento, eu beneficiei destas análises. A minha única preocupação é que a diferença sexual não se torne uma coisificação que involuntariamente preserve uma restrição binária da identidade de género, e um marco implicitamente heterossexual para a descrição do género, a identidade de género e a sexualidade. Não existe, de acordo com o meu ponto de vista, nada do feminino que espere ser expresso, e existe muito, por sua vez, sobre as diversas experiências das mulheres que está a ser expresso e ainda está por sê-lo, mas requer-se um cuidadoso respeito a essa linguagem teórica, porque ela não reporta simplesmente uma experiência pré-linguística, mas antes constrói essa experiência assim como os limites da sua análise. Pese embora o carácter penetrante do patriarcado e a frequência com que se usa a diferença sexual como distinção cultural operativa, não há nada num sistema binário de género que esteja dado. Enquanto campo corporal ou do jogo cultural, o género é um assunto fundamentalmente inovador, embora esteja claríssimo que se castiga rigorosamente questionar o libreto representando fora de tempo ou com uma improvisação não autorizada. O género não está passivamente inscrito no corpo, e nem sequer está determinado pela natureza, pela linguagem, pelo simbólico ou pela esmagadora história do patriarcado. O género é o que se assume, invariavelmente, sob coacção, diária e incessantemente, com ansiedade e prazer, mas tomar erroneamente este acto contínuo por um dado cultural ou linguístico é renunciar ao poder de ampliar o campo cultural corporal com performances subversivas de diversos tipos. Tradução: Rosa Vieira Guedes

14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.