ADMA MUHANA Ecfrase de Santa Cecília

May 26, 2017 | Autor: Adma Muhana | Categoria: Visual Arts, Poética Y Retórica
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ADMA MUHANA Ecfrase de Santa Cecília

Está num esquife, iluminada e intensamente, por pequenas luzes como de ribalta. O esquife de vidro, deposto num nível inferior à frente do altar, é protegido por um cibório, no centro do presbitério, construído em mármore filigranado por Arnolfo di Cambio, em . Já a ábside ostenta um mosaico do século IX: no meridiano central, o Redentor Bendizente, segurando um rolo de documento com a mão esquerda e fazendo o sinal da bênção com a direita; à sua esquerda estão São Pedro, São Valeriano e Santa Ágata; à direita, São Paulo, Santa Cecília e um jovem, o único que apresenta auréola quadrada, a demonstrar que ainda se encontrava vivo quando da figuração. A juventude é nota de incipiência, pois se trata do papa Pascoal I (-), conhecido como grande recuperador de relíquias e construtor de igrejas. Foi ele que dirigiu a reconstrução e ampliação do templo paleocristão, que, desde o século V, se instalara no local onde se situava a casa dos nobres patrícios romanos Cecília e seu marido Valeriano, martirizados durante o reinado de Marco Aurélio, segundo as Actas de Santa Cecília – do ano de , aproximadamente, e que constituem a primeira hagiografia da santa. Como quer que seja, nada disso atrái a atenção como a estátua jazente da santa, em seu ataúde vítreo, ao fundo da nave, diretamente defronte à porta de entrada da basílica. O mármore vivo cap

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tura o olhar, enquanto toda a igreja permanece em sombra fria. A Basílica é a de Santa Cecília em Trastevere, Roma. Estátuas jacentes têm longa história na iconografia. Basta mencionar algumas para confrontá-las com essa de Santa Cecília esculpida por Stefano Maderno entre  e . A maior parte das romanas ostentam a virtude da mulher morta e, às vezes, também sua sensualidade, como a de Ulpia Epigone, no Museu Gregoriano do Vaticano, em que a matrona se mostra de frente, apoiada sobre o lado esquerdo do corpo, com os seios desnudos e as pernas semifletidas, os pés descansando sobre uma cesta de fiar lã. Ousada imagem, em que a provisoriedade da vida se impõe vitoriosa e se representa erguida, como que desdenhando a eternidade da morte. Outras, em pequenos quadros, rememoram episódios em que os falecidos aparecem laboriosos, como costumavam em suas ações cotidianas. Em tempos cristãos, o mais comum é que a lápide sepulcral, com poucos e alegóricos elementos, celebre a entrada do morto na vida eterna. Essas estátuas rígidas, louvor monumental a personagens de alta estirpe, invariavelmente longilíneas e estiradas sobre seu próprio túmulo, estão mortas até o dia em que se levantarão, no Juízo Final; até lá, repousam em temporária paz, de olhos fechados, com o Livro entre as mãos, ou com as mãos cruzadas, ou em gesto de oração, tendo às vezes um cão fiel aos pés, um pássaro morto a lembrar a vanidade da existência terrena, uma coroa ainda à testa, ou uma mitra, com um travesseiro luxuoso a acomodar essas não tão belas mas sempre adormecidas. O mármore amarelecido mimetiza e multiplica a frieza e a dureza cadavéricas, em corpos e faces petrificados, citando os ossos, igualmente descorados, duros e frios, que restam nos caixões. Nesses casos, o monumento exige lembrar que a passagem pelo mundo é só um átimo na duração persistente da vida além-túmulo. Nenhumas afetam tanto como as esculturas fúnebres de Saint-Denis (as do século XV, sobretudo), que representam o corpo agonizante no momento do trespasse. Nelas, o memento mori se perpetua no fitar o instante em que estar vivo confina com o morrer. Algumas outras projetam a representação para os dias subseqüentes à morte, quando do corpo emer-

gem gusanos, e moscas pousam nas órbitas dos olhos cavos. Triunfa o macabro, tão conhecido. A estátua de Santa Cecília de Maderno também foi concebida como uma escultura fúnebre. Porém, nem retrospectiva nem prospectiva, celebra o próprio acontecimento que a converte em mártir. É morta nesse instante a donzela, afirma. A placa de mármore sobre a qual se sustém é a tampa do sarcófago da santa, cujos restos mortais são reproduzidos pela estátua, imagem fidedigna do corpo no instante em que morreu e congelado como em vida. Se essa estátua funerária tanto se assemelha a um ser vivente (e ainda há pouco movente) é porque representa uma santa canonizada, isto é, um ser que não foi tocado pela morte, em demonstração de sua pureza e incorruptibilidade. Como acontece no caso de mártires, sabemos, o corpo de Santa Cecília permaneceu intacto desde quando foi torturado até ser reencontrado pelo papa Pascoal I nas catacumbas de São Calisto. Ali, o corpo estava conforme o descreviam as Actas de Santa Cecília: não tendo morrido no suplício do Caldarium, sufo-

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Stefano Maderno, Santa Cecília, mármore,  cm, Roma Santa Cecilia in Trastevere

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cada pelos vapores escaldantes, foi condenada a ser degolada; mas como os três golpes do carrasco não a mataram, e, por lei, não era permitido infligir ao condenado mais do que três cuteladas, a santa foi deixada no lugar onde caiu; agonizou por três dias na mesma posição, sem que os parentes conseguissem estancar o sangue que minava do seu pescoço. Ao morrer, finalmente, por volta do ano de , ou de , foi assim enterrada numa urna de cipreste, com os vestidos recamados a ouro e os panos com que tentaram suster a hemorragia. O papa Pascoal, ao encontrar as relíquias da santa, em , juntamente com as de Valeriano, Tibúrcio e Máximo, e as dos papas Urbano e Lúcio, transportou-as para a igreja do Trastevere, reconstruída com grande esplendor para a ocasião. Em , o cardeal Sfondati, sobrinho de Gregório XIV, reencontrou os sarcófagos de madeira, em perfeito estado, e, dentro deles, os corpos intactos dos mártires, embora um pouco ressequidos, assim como os ricos vestidos, algo desbotados, e o véu que cobria o corpo da virgem santa. Testemunhou que a nobre virgem Cecília estava como que dormindo sobre o lado direito, com os joelhos ligeiramente encolhidos por modéstia, inspirando um respeito tão grande que ninguém se atreveu a descobrir seu corpo. O cardeal mostrou ao escultor Stefano Maderno os restos mortais da santa incorrupta, que a representou tal como viu, para o jubileu do ano de . Já os próprios restos mortais, foram depositados na cripta da igreja, ou talvez estejam no sarcófago, ou tenham se pulverizado. Isso pouco importa, pois estão fielmente perenizados no monumento de Maderno; mais tarde, até mesmo uma cópia dessa estátua foi transferida para as catacumbas de São Calisto, a fim de re-ocupar o lugar esvaziado onde primeiro enterraram a santa. É verdade que outra história afirma não ter o papa Pascoal encontrado o corpo da Santa Cecília e dos demais nas catacumbas de São Calisto, como diziam as Actas que aí foram sepultados, mas ter ele trazido das catacumbas de Pretestato outros cadáveres que apresentou como sendo os dos santos, para a re-inauguração da igreja, em tempos de iconoclastia. Que importância tem isso para a estátua? Desde aquele ano ela preenche o lugar exato aonde, nos primeiros séculos do cris-

tianismo, eram levados os corpos dos mártires recuperados das catacumbas: sob o altar das basílicas.

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É uma estátua jacente singular. Depositada no eixo frontal da igreja, para ela converge imediatamente o olhar de quem entra, já foi dito. Mas no princípio não se entende bem o que se vê. Luminosa e iluminante, pelo reflexo do branco marmóreo, a quem se aproxima parece uma massa informe estendida. Aos poucos se reconhece que é um corpo abandonado, em estranha posição. É sua pose que causa estranheza, obrigando a ver o corpo vagarosamente, desde o mais visível – os pés nus – ao menos visível – o rosto oculto da virgem santa. Compreende-se então que a mulher está caída no chão. As pernas até a cintura se apóiam no flanco direito, e, na queda, a longa túnica vestida se amontou em pregas entre as pernas, impedindo os joelhos de se unirem completamente. O torso, levemente inclinado para a frente, se tombasse mais um pouco, ficaria de bruços. O ombro esquerdo descamba, deixando as mãos largadas à frente, nítidas e sem ação. Da cabeça, o que primeiro se vê é o pescoço desnudo, entre a gola do vestido e o véu que desatado toucava-lhe os cabelos. O que se vê é o pescoço nu. Vê-se no pescoço nu o talho que matou a virgem. Parece um pedaço de colar arrebentado; mas é um corte fundo, que se prolonga até a nuca. O corpo desabado, ao se torcer, deixou em evidência o corte, que se mostra tão mais vívido quanto o rosto da morta afunda no chão. Não se vê o seu rosto. Não se vêem os olhos, a boca, a expressão, nada se vê do rosto da santa Cecília. Mas sua carne brilha, alva. Vê-se apenas a massa dos seus cabelos soltos sob o toucado desfeito, descobrindo a nuca golpeada. Se seu rosto não é visível, o talho é o que atrai agora o olhar. Ele é o inverso do olho, ou melhor, é um olho que não vê, um olho cego. Na pintura, é lugar-comum dizer que a dor excessiva não pode ser reproduzida; daí ser significada por um rosto velado, ou escondido entre as mãos, representação dos invisíveis afetos. Não é o caso de Santa Cecília, que, como mártir, terá recebido a morte sem dor, com gáudio. Inverossímil será pensar que a ocultação da sua face provenha de um decoro como esse, já que os mártires “correm à

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morte como a um festim”. Aliás, na pintura, a codificação da perspectiva permite aceitar a ocultação de corpos pela superposição de outros, como realização maior da arte. A ilusão da cortina de Parrásio que enganou a Zêuxis é demonstração disso: conta Plínio que, numa competição, Zêuxis apresentou umas uvas pintadas com tanta arte que os pássaros esvoaçaram à sua volta; já Parrásio apresentou uma cortina tão perfeita que Zêuxis pediu que a suspendesse para mostrar a pintura que estava por baixo… O rosto velado, na pintura, é mestria da arte e assim aceite pelo observador, demandando-lhe distâncias e não contatos carnais. Uma pintura da Santa Cecília, com o mesmo desenho que a escultura de Maderno, que efeitos teria? Na escultura, a apreensão em três dimensões solicita ao espectador que cerceie o objeto, elucidando aquilo que frontalmente não se deixa ver. Seu decoro implica, inclusive, esse rodeio do olhar e o desejo de tocar, como desvelos da arte. O corpo desfalecido da Santa Cecília, em abandono, com o rosto voltado para baixo e para trás, impedindo sua visão por qualquer ângulo, frustra o espectador de esculturas, nega-lhe a fantasia do tato, seu maior desejo (como contava Luciano de Samósata do jovem que não resistiu a conspurcar a estátua de Afrodite de Cnido feita por Praxíteles). É um corpo, o da santa Cecília de Maderno, que só tem semelhança com aqueles dos hermafroditas adormecidos, satisfeitos em sua dualidade. Aqui, porém, não é um duplo sexo que se exibe desavergonhado, no encobrir do rosto. Se vergonha há, neste críptico rosto, é da alegria. Mais importante: o ocultar desse rosto é correspondente à exibição do corte fatal. O que se exibe é o talho que nenhuma ausência de vergonha mostra, porque é o talho do que origina perpetuamente a morte. Esse corte, que por três dias não parou de sangrar, transmutado em olho cego, ferida aberta, se faz assim signo de pureza virginal, oculta beleza que se recusa a ser vista. É a beleza excessiva da santa que o escultor evita apresentar, amplificando-a contudo no corte que suprime da cabeça a face, escondida por não se corromper. O espectador é logrado na sua contemplação voluptuosa, obrigado à cegueira pela castidade defendida e ao intangível não só pela caixa de vidro.

Não sendo vista, Cecília também não vê ser vista. Ela cega, Cecília a ceguinha. Se por aquele olho fendido não vê, tampouco é olhada. O espectador que pretendesse dar um giro em torno dela, a fim de descobrir seu rosto invisível, cairia sempre na fenda sem fundo das suas costas. Na Legenda Aurea do século XIII, que fixa as narrativas hagiológicas ocidentais, o evento que deflagra o martírio de Cecília é um diálogo entre a jovem e o prefeito Almáquio, que lhe exige deixar de loucuras e sacrificar aos deuses pagãos. A isso, Cecília responde: “Tu és quem me parece atacado de loucura, pois aí onde vês deuses, nós só vemos pedras. Estende a mão e constata ao menos pelo tato o que teus olhos não alcançam ver”. Cecília, como cega que é, somente percebe as coisas pelo toque dos dedos, estando impossibilitada de contemplar as imagens para além da sua materialidade tátil. E pretende ensinar a Almáquio como “ver” do mesmo modo que ela. Esta cegueira de Cecília – que só em seu nome latino aparece e não em sua hagiografia, não sendo mencionada nem nas Actas nem na Legenda Aurea – fez com que a santa fosse associada à música sacra por volta do século XV, quando passou a ser representada com um pequeno órgão portátil, um cravo ou um alaúde. Assim, ela era inserida na linhagem dos divinos tocadores de instrumentos de cordas, como Apolo e Orfeu, afastada de qualquer proximidade com o sopro dionisíaco. A cegueira de Cecília foi o que levou a que fosse associada à música sacra, entre todos os demais santos do panteon cristão, porque, para a poética antiga, as artes da visão e as da audição se excluem mutuamente, com privilégio para as primeiras. A visão é o mais elevado dos sentidos (situado na parte superior da cabeça, por sua vez situada na parte superior do corpo, diz Aristóteles), ao passo que a audição se prende ao ritmo, aos deleites mais sensíveis que embalam a matéria, o esqueleto dançarino. Não à toa, a arte musical se baseava em unidades rítmicas denominadas pés. Para rebater censuras de ordem platônicas, ou aristotélicas, tanto a música como a pintura reafirmaram seu caráter imitativo e conceitual. A pintura pretendeu-se meio de apreensão sensível das idéias, livro dos analfabetos, própria ao ensino, ao deleite e à como-

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ção. Assumindo a capacidade de representar visualmente o discurso bíblico, foi acolhida pela religião cristã em seus templos (desde que, salvo por breves períodos, a iconoclastia nunca foi implantada no Ocidente, exceto com o protestantismo). Também a música obteve seu lugar na liturgia fazendo-se sempre acompanhar do discurso, sob a forma de cantos, salmos e hinos. Até o início do século XVII, inclusive, só se consideravam elevadas as peças musicais em que a música estava adjunta a um texto, preferentemente uma passagem bíblica, mas também um soneto, ou outro gênero poético igualmente elevado. A música meramente instrumental esteve banida dos recintos sagrados até o século XV. Enfim, se Cecília era cega, cantava; se cantava ao Senhor, dedilhava algum instrumento músico. Todavia, antes do século XV, não há sinal de qualquer aproximação entre Santa Cecília e a música; inclusive, em Os Cantos de Cantuária (do século XIV), no “Conto da Outra Freira”, dedicado à narração da sua vida, nada transparece dessa relação, sequer nas cinco etimologias que Chaucer fornece para o nome Cecília: “lírio do céu”, “caminho para os cegos”, “céu e Lia”, “carente de cegueira” e “céu do povo”. Explica-se tal aproximação, daí, por um dos tantos mal-entendidos que forjam a história: como nas Actas se lia que Venit dies in quo thalamus collacatus est, et cantantibus organis, illa [Cecilia virgo] in corde suo soli Domino decantabat (“Veio o dia em que o matrimônio se celebrou e, enquanto soavam os instrumentos musicais, ela [a virgem Cecília] cantava em seu coração a seu único Senhor”), a palavra latina organis foi traduzida como órgão (inventado, em sua versão portativa ou portátil, no século XIV) e a frase se tornou “ela cantava e se acompanhava com o órgão”. E é certo que a confusão vinha de muito antes: em códices mais antigos lia-se candentibus (e não cantantibus) organis, de modo que os instrumentos em questão não seriam musicais, mas de tortura; a antífona dizendo, então, que Cecília, entre as ferramentas em brasa, cantava a seu Senhor, referindo-se à ocasião do martírio, e não às núpcias com Valeriano. Talvez só nesse século XV neo-antigo se evidenciasse afinal a cegueira e a concomitante musicalidade da santa. O fato é que em  Santa Cecília foi nomeada oficialmente

patrona da música pelo papa Gregório XIII e sob esse título era cultuada quando o cardeal Sfondati encomendou a escultura fúnebre a Maderno. Naquele ano de , pintores como Rafael, Lelio Orsi e Rubens já a haviam representado com um dos seus atributos musicais. No despojamento dessa estátua, porém, nada indica o vínculo entre a santa e a arte da música, a não ser indiretamente, pela presença insistente da cegueira de Cecília, não obstante ser dissimulada por Maderno. Em , em tempos novamente iconoclastas, a figura dúplice de Santa Cecília unia entusiástica a imagem e a música sacra católicas. Por não trair o padroado da música que Santa Cecília detinha, o escultor tornou invisível os seus olhos e significou a privação da visão no corte do pescoço; no entanto, como por acaso, distinguiu na cabeça pendida e sob os cabelos desarranjados o pequeno lóbulo da sua orelha esquerda. Em silêncio é que nos acercamos do esquife.

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Adma MUHANA est née à Bahia, Brésil. Elle est plongée dans le XVII e siècle, qu’elle parcourt depuis l’Orient jusqu’aux « sertões » de l’Amazonie. Elle a publié et écrit sur des ouvrages et des auteurs du XVII e siècle. Elle enseigne la littérature portugaise à l’université de São Paulo.

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